Percursos Sem Abrigo Histórias das Ruas de Paris, Lisboa e Londres Filipa Lourenço Menezes Percursos Sem Abrigo Histórias das Ruas de Paris, Lisboa e Londres LISBOA, 2012 © Filipa Lourenço Menezes, 2012 Filipa Lourenço Menezes Percursos Sem Abrigo. Histórias das Ruas de Paris, Lisboa e Londres Primeira edição: Junho de 2012 Tiragem: 400 exemplares ISBN: 978-989-8536-11-2 Depósito legal: Composição em caracteres Palatino, corpo 10 Concepção gráfica e composição: Lina Cardoso Capa: Nuno Fonseca Revisão de texto: Gonçalo Praça e Helena Soares Impressão e acabamentos: Europress, Ld.ª Este livro foi objeto de avaliação científica Reservados todos os direitos para a língua portuguesa, de acordo com a legislação em vigor, por Editora Mundos Sociais Editora Mundos Sociais, CIES, ISCTE-IUL, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa Tel.: (+351) 217 903 238 Fax: (+351) 217 940 074 E-mail: [email protected] Site: http://mundossociais.com Índice Índice de figuras e quadros.................................................. ix Introdução ................................................................................ 1 1 7 7 2 3 Dilemas do “risco de sem-abrigo”............................... Multiplicidades habitacionais e sociais ........................ Risco: uma ambição de prevenção sob o princípio da precaução ..................................................................... Dinâmicas socioeconómicas de risco ............................ Pontes para o terreno empírico...................................... O percurso de sem-abrigo ............................................. Os sem-abrigo ................................................................... Trajetórias de exclusão .................................................... As funções do apoio social no percurso de sem-abrigo.................................................................... Esforços de racionalização dos caminhos de sem-abrigo.................................................................... Perceções do setor do serviço social sobre os sem-abrigo ................................................................... Os agentes de apoio social.............................................. Questões conceptuais e (im)possibilidades de quantificação................................................................ vii 12 19 28 33 33 34 50 58 73 73 74 viii 4 Percursos Sem Abrigo A “cadeia de reinserção social”...................................... Os constrangimentos do apoio aos sem-abrigo .......... Quem são os clientes? Os iguais mas diferentes?........ O técnico de serviço social ideal .................................... 79 87 90 91 Viver e sobreviver semabrigo em Paris, Lisboa e Londres.............................................................. 93 Apresentação..................................................................... Ciclos de privação habitacional ..................................... Gestão do local de pernoita ............................................ Estratégias de sobrevivência e o dia-a-dia................... Sociabilidades ................................................................... Necessidades e avaliação do apoio recebido............... Desconstrução de perceções: eles, nós e eu na situação “sem-abrigo”................................................ 5 125 Diálogos de risco entre técnicos e sem-abrigo.......... 133 Entre imagens de tolerância e de repressão ................ Impasses do paradigma de apoio social....................... Os bloqueios do apoio social segundo técnicos e sem-abrigo ...................................................................... Interações de risco............................................................ Técnicas e metodologias de apoio social de risco....... 6 93 93 95 100 109 115 Dinâmicas de risco na modernidade e os sem-abrigo ............................................................... Das divergências conceptuais à convergência nas práticas........................................................................ Trajetórias de risco e desigualdades sociais ................ Risco no contexto das dinâmicas de apoio social ....... (De)usos do risco? ............................................................ 133 143 149 155 161 169 169 175 181 186 Bibliografia .............................................................................. 191 Índice de figuras e quadros Figuras 3.1 Modelo base dos serviços sociais dirigidos aos sem-abrigo ......................................................................... 80 5.1 Constrangimentos do sistema de apoio segundo agentes de apoio social e sem-abrigo ······················· 150 Quadros 2.1 Trajetória de sem-abrigo por tipo de capital (enquanto recurso/obstáculo) ............................................................ 56 ix Introdução Este livro tem como objetivo primordial dar a conhecer os testemunhos pessoais dos indivíduos que vivem nas ruas e centros de acolhimento de Paris, Lisboa e Londres. Provavelmente, se não tivesse sido a insistência frequente dos sem-abrigo entrevistados — de que o trabalho para nada servirá se ficar fechado numa biblioteca —, a coragem para expor um trabalho de base académica, que se considera sempre imperfeito, teria faltado: Honestamente, sei que se trata de uma tese, o problema é que me pergunto sempre para que irá servir… depende do espírito com que for feito. Espero que faça alguma coisa de construtivo, relevando antes de tudo o que viu, exatamente o que constatou no terreno. A segunda coisa é ser bem preciso, porque o problema da falta de alojamento é complexo (Paris). Acho que é uma boa ideia, SE os resultados trouxerem melhorias para o futuro… (Londres). É dado a conhecer como se veem a si próprios os sem-abrigo, e como são caracterizados por outros. Estes são indivíduos que para muitos representam uma imagem do incompreensível, da preguiça e do fracasso, vítimas de traumas e exclusões, de um 1 2 Percursos Sem Abrigo futuro indesejado (especialmente em momentos de crise económica) ou mesmo puras aberrações. O livro percorre as ruas de Paris, Lisboa e Londres analisando sociologicamente o fenómeno de sem-abrigo e estabelecendo o retrato do indivíduo “sem domicílio fixo”. São contempladas estas três cidades europeias, bem como dois níveis de discurso e práticas sociais distintas, que aqui se colocam em diálogo — o dos prestadores de apoio social e o dos sem-abrigo —, tomando como central o conceito de risco. Pela desconstrução das situações sociais consideradas “em risco” é também possível contribuir para a compreensão dos fatores atualmente entendidos como de exclusão social. O conceito de exclusão social tem vindo a ser aplicado em diversos sentidos, sendo pertinente questionar os seus modos de aplicação, nomeadamente a sua relação com a questão fulcral das desigualdades sociais. A pertinência de explorar o conceito de risco quando associado a uma população desfavorecida é permitir teorizar e operacionalizar dicotomias relevantes, como as do desvio e exclusão, criminalização e reinserção social, bem como questionar as dinâmicas de responsabilização individual e social face a indivíduos socialmente excluídos. São aqui dados passos sociológicos fundamentais para compreender como são construídos, aplicados e cada vez mais emergentes os “discursos de risco” sobre o fenómeno de sem-abrigo. Quando aplicado a um domínio de exclusão social, o risco pode servir para perpetuar um discurso que separa causas individuais e estruturais. Numa perspetiva de responsabilização individual, prevalecem como fator explicativo as condutas dos indivíduos, assim suscetíveis de ser culpabilizados pela sua situação de precariedade social. A abordagem de risco pode pois constituir-se como modo de privatização do risco e simultânea desresponsabilização do Estado. Delimitaram-se várias questões nucleares em torno dos discursos sobre o risco de “vir a tornar-se sem-abrigo”. Por exemplo, Introdução 3 se a identificação de “grupos vulneráveis” serve, ou não, num contexto de contingências globais, para construir uma ideia de segurança ilusória para aqueles que, por oposição, “não estão em risco”. Os indivíduos, desejando “estar a salvo”, devem assim organizar os seus projetos de vida de forma prudente o que, em última instância, leva a crer que a gestão do risco é uma responsabilidade individual, e não social ou pública. Estas considerações não são apenas de natureza teórica pelo que, verificando-se na prática, moldam a conceção das medidas de apoio aos sem-abrigo disponíveis em cada país. Tal está patente em perceções como “o apoio” que os sem-abrigo merecem deve ser avaliado em função da sua “culpa” e do seu “empenho” em se reinserirem socialmente. Não se pretendeu fazer mais um relato dos sem-abrigo como os idosos, alcoólicos, com problemas mentais que vivem ao relento, mas conhecer de facto os seus trajetos e como se relacionam com o apoio social que recebem. A análise das histórias de vida dos indivíduos em situação sem-abrigo constitui uma mais-valia para a compreensão sociológica deste fenómeno enquanto processo. É pela análise articulada das várias ruturas e momentos de crise por que passaram os sem-abrigo que podemos estar em condições de melhor delinear medidas preventivas, ao invés de apostar meramente numa perspetiva reparadora, ou de reinserção, que para além de mais dispendiosa para os sistemas de segurança social, contribui para a perpetuação da transferência intergeracional da exclusão social. O processo de sem-abrigo não se esgota, em muitos casos, num episódio único de privação habitacional, traduzindo-se, pelo contrário, em sucessivas recorrências, entre fatores como a discriminação social, a insustentabilidade das medidas de reinserção. A presente obra analisa o papel das medidas de apoio social, quer ao longo das vidas dos sem-abrigo entrevistados, quer no contexto das estratégias de sobrevivência. O desenvolvimento de linhas comparativas neste domínio não deixa de reenviar a análise do fenómeno de sem-abrigo para a questão das diferentes políticas sociais e do seu impacto 4 Percursos Sem Abrigo ao nível das estratégias de sobrevivência de rua. São diversos os trabalhos realizados a este respeito, discutindo-se questões de base essenciais, como se o Estado-providência poderá transformar, ou não, a sociedade capitalista, e debatendo os desafios da sustentabilidade do modelo social europeu. Sem negar a importância deste enfoque, neste livro é tomada a opção de dar a conhecer as realidades e perceções dos sem-abrigo e técnicos, identificando os pontos de convergência entre três cidades europeias. Desta forma, estabelece-se o “modelo tipo” do apoio social aos sem-abrigo, subjacente depois de eliminadas as especificidades das respostas disponíveis em cada cidade. Apesar das diferenças em termos de sistemas de apoio disponíveis, as situações de precariedade social não deixam, do ponto de vista daqueles que as experienciam ao viver nas ruas e centros de acolhimento, de evidenciar grandes semelhanças, quer ao nível das causas e percursos individuais, quer ao nível da sobrevivência quotidiana. Para informar os decisores políticos e a definição de linhas de atuação europeias nesta matéria, importa compreender o fenómeno sem-abrigo enquanto realidade partilhada. As perceções dos agentes de apoio social e sem-abrigo apresentam também vários pontos de proximidade, fundamentais para delinear propostas participativas e concertadas para o desenvolvimento das práticas de apoio social. É devida uma nota de esclarecimento breve — mas não de menor importância —, quanto à forma como o termo “sem-abrigo” é aqui utilizado. Frequentemente, os indivíduos em situação de privação habitacional extrema são designados por “os sem-abrigo”. Dadas as facilidades gramaticais oferecidas por esta opção, este trabalho não constitui uma exceção. No entanto, não se pretende perpetuar a confusão imperante entre situação social e característica individual, ou considerar homogéneo este grupo tão diversificado. Assim, ao ler-se os “sem-abrigo” deverá entender-se como “em situação de sem-abrigo”. O que talvez pareça Introdução 5 apenas um detalhe pode, ao mesmo tempo, contribuir para criar dinâmicas de estigmatização evitáveis. Nesta obra, quando se referem características dos sem-abrigo, ou processos de perda de habitação, procura-se delimitar a síntese das várias situações analisadas, sendo que nem todos os indivíduos se enquadram em todos os cenários e atributos reunidos. Nesse sentido, todos os entrevistados contribuíram individualmente para estipular a situação global do sem-abrigo. O livro está estruturado em torno de seis capítulos. O primeiro centra-se nas questões de cariz teórico em torno da construção do “risco de sem-abrigo”. Dada a sua natureza primordialmente etnográfica, o livro baseia-se de forma vincada nos testemunhos quer dos técnicos de serviço social e outros atores deste domínio, quer dos sem-abrigo, aos quais “dá voz”. O segundo capítulo explora especificamente a trajetória de sem-abrigo, partilhando os testemunhos a esse respeito, dos sem-abrigo e técnicos. Estes são os dois planos de perceções que se dão a conhecer aos leitores de forma individualizada, nos capítulos três e quatro, a respeito de temas comuns, como as condições de vida nas ruas e as estratégias de sobrevivência. O quinto capítulo dedica-se ao cruzamento de perspetivas entre ambos os planos de interlocutores relacionados com as imagens de risco sobre os sem-abrigo, nomeadamente de controlo social, bem como sobre as práticas de apoio social. Por último, as conclusões salientam os principais resultados do estudo, articulando-os com os pressupostos teóricos identificados no primeiro capítulo e ao longo da publicação. As entrevistas são aqui tratadas respeitando o anonimato dos sem-abrigo e agentes de apoio social. Uma palavra de especial apreço a todos os técnicos de serviço social entrevistados em Paris, Lisboa e Londres, bem como a todos os que, sem habitação fixa e a dormir nas ruas, se dispuseram a falar das suas vidas e a fazer parte deste estudo, não esquecendo os investigadores que orientaram a tese de doutoramento que 6 Percursos Sem Abrigo sustenta o presente livro (Dinâmicas de Risco na Modernidade e Desigualdades Sociais: o Caso dos Sem-Abrigo em Paris, Lisboa e Londres, finalizada em 2009 no ISCTE-IUL, nomeadamente José Manuel Paquete de Oliveira, Maryse Marpsat e Joan Smith.