Criando porcos e arando a terra: família e compadrio entre os escravos de uma economia de
abastecimento (São Luís do Paraitinga, Capitania de São Paulo, 1773-1840)1
Carlos de Almeida Prado Bacellar (USP)
Desde há um bocado de tempo que o tema da família e do compadrio vem sendo
amplamente pesquisado no mundo da escravidão. A importância dos laços familiares e
espirituais entre cativos é questão reiteradamente discutida, mas certamente o muito que já se
avançou ainda pouco representa em termos de conhecimento. A dificuldade em se
compreender os complexos mecanismos que regiam as relações entre escravos e destes para
com a população livre, em uma realidade profundamente variada no tempo e no espaço,
constitui-se, certamente, num formidável desafio: as fontes documentais continuam a ser
bravamente revolvidas nos arquivos...
No que diz respeito à família escrava, não resta mais dúvida sobre a presença de casais
e mães solteiras na grande maioria das escravarias, não importando o tamanho. Embora o
tamanho do plantel e a razão de sexo interferissem nas oportunidades de organização familiar,
sabemos que mais de uma geração de cativos podia estar presente em uma senzala. A
reprodução de cativos era uma realidade, embora a mortalidade sempre elevada não
permitisse que todas as crianças nascidas no cativeiro alcançassem idade plenamente
produtiva. O tráfico atlântico permaneceria fundamental não somente para a manutenção dos
níveis de mão-de-obra, mas, especialmente no sudeste brasileiro, também para alimentar a
contínua expansão geográfica do escravismo em função do açúcar e do café.
1
Este trabalho é uma versão modificada de uma comunicação realizada no I Congresso Internacional de
História, Universidade do Minho, Portugal, 2005.
1
Quanto ao compadrio entre populações escravas, as investigações quase sempre têm
por base as amplas e variadas séries de registros paroquiais de batismo. As opiniões, contudo,
nem sempre coincidem. Como bem aponta Donald Ramos, a bibliografia tem ressaltado ora
os aspectos espirituais, ora os sociais do compadrio (Ramos, 2004). O batismo seria
fundamental, assim, por permitir a inserção do batizado – inclusive o africano que
desembarcava na colônia – na comunidade dos fiéis, ao mesmo tempo em que permitia que o
indivíduo passasse a fazer parte de redes mais ou menos amplas de solidariedade horizontal e
vertical. Para além dos laços espirituais, os batismos poderiam “reforçar laços de parentesco
já existentes, ou solidificar relações com pessoas de classe social semelhante, ou estabelecer
laços verticais entre indivíduos socialmente desiguais” (Schwartz, 2001: 266). Não é nosso
objetivo recuperar essa discussão, que já foi bastante desenvolvida. Mas acreditamos ser
fundamental postular que, na ainda relativamente grande imprecisão atual do conhecimento,
ambas vertentes explicativas – sacra e leiga – podem ser perfeitamente aceitas como
motivadoras do compadrio, tal como ressalta Donald Ramos (Ramos, 2004).
Muito pouco se conhece, todavia, sobre o compadrio de crianças livres, que
possibilitasse uma análise comparativa. Seria interessante, por exemplo, cotejar as escolha de
compadres dos filhos do senhor com a dos escravos, para perceber coincidências e
distanciamentos. Ou mesmo buscar detectar os afilhados dos senhores, e os de seus escravos,
enfocando o compadrio num âmbito ainda mais complexo. Esta teia em diversas direções e
níveis é, indubitavelmente, o cerne da questão e, ao mesmo tempo, seu principal nó analítico.
Reconstituir tais teias de um modo inteligível é, ainda hoje, um dos grandes desafios dos
estudiosos do compadrio.
Os trabalhos mais antigos sobre o tema buscaram discutir, em linhas gerais, quantos
livres e quantos cativos haviam servido como padrinhos para uma dada série de registros de
crianças escravas. A principal descoberta, então, foi a constatação de que não se encontrava
um padrão de práticas entre escravos e/ou entre seus senhores. Uma realidade escravista tão
vasta e diversificada como a brasileira não poderia comportar uniformidade de ação.
Tais
investigações, centradas no uso das informações constantes nos registros paroquiais de
batismo, não podiam, contudo, avançar mais além da simples constatação da condição de
escravo ou livre dos padrinhos. As dificuldades de identificação de indivíduos pelo nome,
graças à tradição de instabilidade dos nomes em populações coloniais portuguesas, é um
obstáculo para melhor precisar a identidade das pessoas consideradas. Qualquer tentativa de
melhor qualificar tais personagens deveria pressupor um cruzamento de fontes bem mais
exaustivo, levando, todavia, a um notável aumento no volume de informações.
2
Os laços de compadrio estendem-se para todos lados, com a escolha de escravos,
forros e livres das mais variadas qualidades, esparramados por espaços territoriais mais ou
menos amplos, para exercerem a função. Tome-se, a título de exemplo, a reconstituição, de
resto bastante interessante, das redes de compadrio entre fazendas do agro fluminense, da
paróquia de Inhaúma, promovida por José Roberto Pinto de Góes. O autor alcança, de modo
bastante expressivo, reconstituir o desenho da malha de fazendas cujas escravarias entretiam
algumas relações de compadrio entre si, abrangendo cento e setenta propriedades escravistas
(Góes, 2001). Mas a discussão, ao menos nesse texto, se interrompe justamente na detecção
do forte entrecruzamento do compadrio, sem conseguir chegar a maiores considerações.
É evidente que precisamos, portanto, buscar novos rumos analíticos. Pensamos, para o
caso da capitania de São Paulo, em fazer proveito de uma fonte serial que é praticamente
exclusiva a seu território, isto é, as listas nominativas anuais de habitantes, que cobrem o
intervalo de tempo entre 1765 e 1836. Tais listagens, oferecendo a descrição de cada
domicílio, ano a ano, permitem, de modo bastante especial, o entrecruzar dos dados
nominativos dos padrinhos e madrinhas, presentes nos registros de batismo. O maior
obstáculo, nessa proposta, consiste justamente em como cruzar as informações, e a saída é
única: contar com os nomes dos indivíduos – todos eles -, de ambas as séries documentais,
lançados em bancos de dados, permitindo o máximo de economia no tempo de rastreamento e
cruzamento de informações nominativas.
Nossa opção, para ensaiar tal método, se deu pela escolha de um município de
pequenas dimensões: a vila de São Luis do Paraitinga, no vale do Paraíba paulista. Uma
pequena comunidade, cuja principal atividade econômica, desde sua fundação na década de
1770, até o período final de nossa observação, 1840, era fundamentalmente a criação de
porcos, fosse para vendê-los vivos ou sob a forma de toucinho, e o plantio de tabaco e
algodão. Uma vila profundamente voltada para o abastecimento regional, com quase toda a
sua produção voltada para o mercado urbano em expansão do Rio de Janeiro. Não obstante,
sua população escrava crescia mais rapidamente que a livre, prova do dinamismo econômico
por que passava o vale do Paraíba naquele momento.
Quadro 1
Evolução da população de São Luis do Paraitinga.
Ano
Livres
%
Cativos
%
Total
1799
1.790
79,1
472
20,9
2.262
1809
2.490
77,2
735
22,8
3.225
3
1818
2.745
73,5
992
26,5
3.737
1828
3.344
74,0
1.175
26,0
4.519
Fontes: Listas nominativas anuais de habitantes para 1799, 1809, 1818 e 1828.
A escravidão em São Luis do Paraitinga estava restrita, em 1801, a somente 25% de
seus 400 domicílios. Destes, apenas catorze possuíam mais do que dez escravos, dos quais
apenas dois ultrapassavam o patamar dos quarenta. Como seria de se esperar, esses catorze
maiores proprietários concentravam 58,1% dos cativos da vila, baixa o suficiente para
caracterizar uma economia relativamente modesta. Portanto, o mundo da família e compadrio
escravos enfocados em nosso projeto não é o da grande lavoura, mas sim o das posses mais
modestas, mas mesmo assim bastante interessantes.
Algumas questões foram centrais no direcionamento das primeiras sondagens. A
principal delas, sem dúvida, diz respeito à abrangência do fenômeno do compadrio. Não
importa qual o sentido que damos ao ato de apadrinhar, como já anteriormente visto; a
incerteza sobre as motivações ainda é fato. Antes de tudo, deveríamos perguntar quem tomava
a iniciativa na escolha de padrinhos para escravos: os próprios pais, seus senhores, ou ambas
as partes, em conjunto? Nada mais difícil para se responder.
No que toca aos batismos de escravos adultos, recém-chegados da África, seria
plausível aventar a possibilidade de que aquele que adquiria a nova “mercadoria” decidia não
somente qual nome cristão lhe seria atribuído, mas também quem seriam os seus padrinhos. O
africano, desembarcado em meio estranho, não teria conhecimentos e espaço para tomar
muitas ou mesmo quaisquer decisões nesse sentido, que lhes eram impostas, provavelmente
sem seu perfeito entendimento.
É bastante interessante a constatação de que o batismo dos africanos não
necessariamente se fazia urgente. Embora não disponhamos da data exata da aquisição desses
escravos, as listas nominativas – quase sempre preparadas na virada do ano – apontam para
essas compras, feitas quase sempre junto a negociantes da vizinha vila de Cunha ou
diretamente no mercado do Valongo, cidade do Rio de Janeiro. Curiosamente, o cotejar das
listas com os registros paroquiais parece sugerir que alguns desses cativos já chegavam
devidamente batizados pelo negociante, já que não localizamos seus registros na paróquia,
enquanto outros passavam pela cerimônia apenas em seu novo destino Os batizados no Rio
certamente o foram de forma burocrática, e seus padrinhos certamente se tornaram
irrelevantes na vida desses cativos.
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Surpreendente, contudo, é fato de que os batismos feitos na vila nem sempre foram
imediatos. Eram, numa análise preliminar, minoritários, mas sugerem uma falta de
preocupação tanto do senhor quanto do vigário local. É o caso de Gonçalo, escravo de
Antonio Estevão Gomes de Gouvêa, batizado em junho de 1815, mas já presente na lista
nominativa de 1813. Joaquim, escravo de Inácio da Silva Rego, batizado em agosto de 1814,
já estava arrolado na lista de 1812. Antônio e João, comprados por João de Medeiros Barros
em 1811, somente foram batizados em março de 1814! Dos 43 escravos africanos batizados
em 1814 e 1815, há indícios de que 18 foram batizados passados pelo menos um ano após sua
chegada. Em todos esses casos, a escolha dos nomes já se efetivara no convívio da senzala,
mas a oficialização diante da Igreja e a seleção dos compadres teve que esperar. Além do
descaso, outra hipótese poderia ser levantada para justificar tal prática: a espera da integração
do estranho no cativeiro.
Uma rápida investigação sobre as opções de nomes de escravos, separados por
naturalidade – africanos e crioulos – demonstrou, de maneira instigante, que o repertório era
distinto para cada condição. Segundo a lista nominativa de São Luis do Paraitinga para o ano
de 1801, a variedade de nomes para escravos homens nascidos no Brasil – setenta e cinco
atribuições dadas a cento e sessenta e quatro indivíduos – destoa da realidade dos africanos do
sexo masculino, em que duzentos e quatro indivíduos foram nomeados dentro de um exíguo
repertório de apenas vinte e oito nomes. Além disso, os africanos apresentam uma forte
concentração em torno de sete nomes (José, João, Antonio, Joaquim, Domingos, Manuel e
Francisco), somando 75,5% das opções, enquanto os crioulos tinham apenas 36,6% de casos
concentrados nos sete nomes mais usuais (João, Antonio, Luis, José, Manuel, Francisco e
Domingos).
A mesma realidade pode ser verificada entre as escravas, embora ligeiramente mais
atenuada. De um total de cento e setenta crioulas, ocorriam sessenta e sete nomes distintos,
enquanto que sessenta e seis africanas recebiam vinte e dois nomes distintos. A concentração
em torno dos sete nomes mais freqüentes aponta para 35,3% de casos para as crioulas, contra
65,2% para as africanas. De qualquer maneira, percebe-se que o repertório das escolhas era
bem mais restrito para os africanos aqui desembarcados, indicando fortemente a não
interferência dos mesmos ou de companheiros de cativeiro na nomeação, que deveria ficar a
cargo dos senhores, de capatazes ou até mesmo, por que não, do próprio pároco, todos se
restringindo a poucas opções de nomes portugueses óbvios (Oliveira, 1995/1996: 185). No
ano de 1801, o capitão mor da vila, José Gomes de Gouvêa Silva, informa, na lista nominativa
5
de habitantes, que havia comprado os africanos “Domingos, José, José, João e João”, numa
evidente falta de criatividade ou despreocupação no batizar.
No cotidiano da senzala e do trabalho, o surgimento de apelidos, acrescentados aos
nomes próprios, era uma saída quase inevitável para contornar o problema. Em um inventário
da vila de Itu, capitania de São Paulo, a relação de cativos deixa bastante claro esta prática,
geralmente não informada nas listas nominativas: João Capitão, Pedro Theobaldo,
Dominguinho, Manuel Maxado, Francisco Beru, Antonio Comprido, Matheus Grande,
Joaquim Grande, Francisco Angola, Antonio Cambaio, João Mandovi, Joaquim Cantagalo,
Antonio Cavalo, Ana Pequena, Pedro Moleque, Domingos Grande, Antonio Xengue, João
Martins, Joaquim Cambaio, Domingos Quileque, Francisco Cavalo, José Mandioca, Joaquim
Berava, João Sargento, Bento de Barros, Bento Cruel, Lourenço Velho, Maria de Nazaré,
Manuel Calhambota – uma lista interminável2.
Os crioulos, por outro lado, apresentavam uma riqueza de nomeação bastante variada,
parecendo sugerir a preocupação com a escolha cuidadosa, com o significado do nome –
inclusive, no contexto de um sincretismo cultural que não pode ser ignorado.
Para a maioria dos autores, parece não haver muitas dúvidas no tocante à liberdade do
cativo crioulo quando do batismo de suas crianças. Assim, se podia haver alguma opção na
seleção dos nomes de batismo, muito provavelmente haveria, por conseqüência, margem para
a escolha, ou ao menos para sugerir, padrinhos e madrinhas, seus futuros compadres.
Mesmo assim, ficamos, muitas vezes, temerosos em advogar que pais de escravos
tinham reais e totais condições de selecionar padrinhos. Podemos tentar imaginar, por
exemplo, como escravos logravam escolher, ou convidar, o capitão mor ou outro potentado
local para apadrinhar seu rebento. Como teriam acesso pessoal a um indivíduo que, muitas
vezes, não tinha contato direto nem mesmo com seu senhor, e também não entretia com estes
laços de parentesco? E, mais do que isso, como conseguiam organizar a ida de todos até a
igreja, na vila, muitas vezes em dia útil da semana, tirando esses padrinhos ilustres de sua
rotina na lavoura, especialmente para comparecerem na vila e cumprir com a cerimônia?
Desta forma, mesmo se considerarmos que havia uma certa autonomia dos pais escravos, não
seria de todo irreal supor que seus senhores interferiam, até para facilitar as coisas, abrindo
portas, fazendo de seu compadre um compadre de seu cativo, implementando redes de
solidariedade mais complexas.
2
Inventário do capitão José Manuel de Mesquita, Itu, 1813. Museu Republicano “Convenção de Itu”, 1º Ofício,
caixa 18C.
6
Quadro 2
Condição dos padrinhos e madrinhas de escravos na vila de São Luis do Paraitinga, 17741839.
Escravos batizados
Condição do
Adultos Africanos
padrinho ou
madrinha
Crianças
Padrinho
Madrinha
Padrinho
Madrinha
(%)
(%)
(%)
(%)
Total %
Cativo
222 (65,5)
175 (50,0)
688 (52,7)
640 (39,7)
1.725 47,9
Livre
117 (34,5)
175 (50,0)
617 (47,3)
971 (60,3)
1.880 52,1
Total
339
350
1.305
1.611
(100,0)
(100,0)
3.605 100,0
Fonte: Registros paroquiais de batismos de escravos, 1774-1839.
Para verificar as estruturas básicas dessas autênticas teias de relacionamento, podemos
fazer a observação da freqüência de livres e cativos no papel de padrinhos de escravos. Os
autores, de uma maneira geral, detectaram diferenças na qualidade dos padrinhos, diretamente
relacionada à condição do batizado e de seus pais, ao tamanho da propriedade escrava e à sua
atividade econômica (Rios, 2000).
A partir dos registros de batismo, optamos por observar separadamente crianças e
adultos na pia batismal, e seus respectivos padrinhos, como se pode observar no Quadro 2. A
presença de escravos como padrinhos e madrinhas era mais efetiva entre os africanos recémintroduzidos do que entre as crianças crioulas, fato que pode ser interpretado de maneiras
diversas.
Se considerados os batismos de escravos em geral, temos uma situação quase próxima
do equilíbrio, mas ligeiramente favorável aos padrinhos livres. Segundo Schwartz, quando de
sua análise sobre o compadrio em Curitiba (capitania de São Paulo) e Santiago de Iguape
(capitania da Bahia), sociedades com um perfil predominante de pequenas propriedades
tinham um padrão de marcada preferência pelo padrinho livre, em cerca de dois terços do
total, especialmente devido à pouca presença e densidade da população escrava (Schwartz,
2001: 281). Todavia, a população escrava de São Luis, embora também fortemente marcada
pela relativamente baixa concentração da posse de escravos, não se caracterizava pela
preferência acentuada pelos padrinhos livres para os escravos. A pequena população cativa
não parece ter sido, em São Luis, um obstáculo para se escolher um escravo para padrinho, e
7
isso é bastante notável se considerarmos que a população livre sempre se manteve
aproximadamente na faixa dos dois terços da população total.
Em oposição a Schwartz, Ana Maria Lugão Rios sugere que é preciso considerar, para
efeito de maior precisão, o tamanho das escravarias observadas. Segundo a autora, quanto
maior o contingente humano em uma senzala, maior seria a preferência dos escravos em
escolher outros escravos (Rios, 2000: 291). Mostraremos, mais abaixo, que alguns grandes
proprietários têm, entre seus cativos, práticas de escolha de compadres diametralmente
opostas, fortemente marcadas pela preferência por livres e, em especial, pela família do
senhor.
Talvez a única unanimidade a respeito do compadrio seja, até o presente estado das
investigações, a recusa da participação dos proprietários enquanto padrinhos de seus próprios
cativos. Já se tornou célebre o famoso comentário de Henry Koster, na segunda metade do
século XIX, de que os senhores não poderiam aceitar o vínculo do compadrio para com seus
cativos, sob o risco de não mais conseguir aplicar castigos em seus próprios afilhados (Koster,
1942).
De fato, chama a atenção, em São Luis do Paraitinga, a baixíssima presença de
senhores estabelecendo vínculos de compadrio com seus próprios cativos, sejam eles
africanos ou crioulos. De um total de um mil e vinte e um atos de batismos de cativos que
pudemos analisar mais detidamente, referentes a trinta e um proprietários, encontramos
apenas treze destes que chegaram, alguma vez, a se tornar padrinhos de seus cativos,
perfazendo somente quarenta e nove registros, ou insignificantes 4,8%, aí incluídos quatro
batizados “em artigo de morte”, em que o senhor pode ter sido apenas a solução mais
disponível no momento de emergência.
Semelhante constatação vai de encontro a colocações de alguns autores, entre eles
Kátia Mattoso, que admite, sem comprovação empírica, que seria usual o compadrio entre
senhores e escravos, pois são vínculos que “se harmonizam perfeitamente com as regras dessa
sociedade brasileira na família extensiva, ampliada, patriarcal” (Mattoso, 1982: 132). A
aceitação cabal de uma possível prática corriqueira de o senhor ter afilhados em sua própria
senzala parece ter sido influenciada pelos diversos relatos de viajantes coevos, que
reafirmaram o pretenso interesse que o cativo manifestava em garantir compadres de nível
preferencialmente melhor que o seu, como demonstrou Maria de Fátima Neves (Neves, 1990:
240). Pesquisas mais recentes não têm confirmado tais assertivas.
De fato, os senhores parecem ter evitado, de uma maneira geral, esta vinculação
espiritual com seus próprios cativos. Nas palavras de Stuart Schwartz, ao analisar o fenômeno
8
para a vila colonial de Curitiba, “os papéis de senhor e padrinho eram considerados
contraditórios” (Schwartz, 2001: 280). Qual a razão, afinal de contas, para se criar uma nova
qualidade de vínculo, se a de senhor-escravo, onipresente e opressora, já imperava?
Mesmo assim, dentro do grande padrão de recusa em se tornar padrinho que se
verifica para os trinta e um proprietários acima, é preciso ressaltar que havia exceções à
regra, e que, embora pouco representativas no todo, merecem atenção pelo simbolismo de sua
mera ocorrência. Pois, se eram papéis tidos como “contraditórios”, qual a razão para certos
senhores, muito pontualmente, não enxergarem esta contradição dita pelos historiadores
como tão óbvia? É o caso do alferes Pedro José dos Santos, lavrador de posses medianas, que
contava com uma escravaria que variou de nove para quatorze cativos entre 1818 e 1828. Ao
longo desses anos, batizou seis africanos e oito crianças, dos quais foi padrinho
respectivamente de cinco e três, dois destes acompanhado da esposa como madrinha. Em 2 de
julho de 1827, apadrinhou no mesmo dia dois africanos, e os gêmeos ilegítimos tidos por sua
escrava Maria. Preocupação interessada com o estabelecimento do vínculo, ou falta de opção
diante do batistério? Difícil responder, mas efetivamente o chamado vínculo “contraditório”
se estabelecera, e gostaríamos de saber se esta realidade amainou ou não a mão punitiva do
padrinho.
Caso semelhante é o de Joaquim José de Faria. Negociante instalado em São Luis em
1802, contando apenas com dois escravos, enriqueceu progressivamente, tornando-se
agricultor em 1813 e chegando a possuir vinte e três cativos em 1825, pouco antes de sua
morte, em 1828. Batizou, nesses anos, quinze escravos, sendo dois africanos e treze crioulos.
Merece destaque, aqui, a relação forte que iria estabelecer com seu casal de escravos de
naturalidade africana, Pedro e Isabel. Unidos em matrimônio por volta de 1813, viriam a ter
vários filhos que, um a um, iam se tornando afilhados de seu senhor e sua esposa, dona Teresa
Joaquina: Felicia (1815), Josefa (1818), Rosa (1821), Pedro (1822), Jacinta (1823), Joana
(1825) e Benedito (1827). A razão dessa insistência ao longo de anos resta enigmática, já que
havia, na própria senzala de Joaquim José, mais de uma dezena de cativos aptos para
apadrinhar, mas que jamais o fizeram. É impressionante, aliás, como essa escravaria
permanece isolada da sociedade em termos de compadrio, pois conhecemos apenas duas
ocasiões em que cativos de Joaquim José se tornam padrinhos: uma vez com o casal Diogo e
Luzia, em 1809, e outra vez com a escrava Paulina, em 1813. Em contraposição, o casal de
senhores foi pródigo em ter afilhados, muito provavelmente pelo papel de destaque de
Joaquim José como negociante de grosso trato na vila: por dezoito vezes o casal, unido,
apadrinha crianças, além de noves vezes em que um deles aparece sozinho. Formidável papel
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na comunidade, ao passo que seus escravos não fundam laços de solidariedade – ao menos,
via batizados.
Para além dos senhores, podemos checar, nos registros de batismo de escravos, a
presença de parentes do senhor atuando como padrinhos. Schwartz, em sua análise, frisa com
muita ênfase que “os senhores e seus parentes raramente batizavam e se tornavam guardiões
espirituais dos próprios escravos, e sua ausência desses papéis refuta o suposto paternalismo
dos senhores de escravos brasileiros” (Schwartz, 2001: 265). Ora, tal assertiva, no que diz
respeito aos parentes, não é absoluta para a realidade de São Luis do Paraitinga. Obviamente,
identificar os laços de parentesco dos padrinhos para com o senhor do escravo não é
exatamente uma tarefa fácil, haja vista a variabilidade na transmissão de sobrenomes entre as
gerações de livres. Além de filhos e filhas com sobrenomes distintos, há, ainda, a necessidade
de precisar quem foram os cunhados e genros, e mesmo sobrinhos, para ficarmos nos parentes
mais próximos. Seria preciso, também, identificar os compadres da família, para verificar
eles, também, constroem laços espirituais com os escravos do proprietário, seu compadre.
Tomemos um exemplo em que a presença de parentes apadrinhando foi usual. Trata-se
da propriedade do capitão Antônio Estevão Gomes de Gouvêa, rico proprietário para os
padrões locais, possuidor de trinta e seis escravos em 1828. Até o ano final de época de
observação, 1839, fez batizar quarenta e um escravos, dos quais doze eram africanos. No
total, teriam sido necessários oitenta e dois padrinhos e madrinhas, se não contarmos as
repetições. Encontramos, a princípio – já que vários nomes restaram duvidosos, e não foram
contabilizados - dezoito padrinhos e quinze madrinhas de parentescos bastante próximos em
relação ao proprietário: pai, mãe, irmãos e irmãs, cunhados e sobrinhos. Algo bastante
distante, portanto, da descrição de Schwartz: seriam, aqui, pelo menos 40,3% de parentes.
A atitude de um irmão de Antônio Estevão, o capitão José Alexandre Gomes de
Gouvêa, segue na mesma direção. Dentre os trinta e oito cativos que fez batizar, o próprio
senhor não se oferece para compadre uma vez sequer. Mas seus irmãos, cunhados e sobrinhos
aparecem em profusão: quinze padrinhos, doze madrinhas. Nada menos que 35,5% de
parentes.
Por fim, podemos também examinar o que ocorria com os escravos batizados pelo pai
dos dois proprietários acima, o capitão mor José Gomes de Gouvêa e Silva. Levou oitenta e
seis cativos para batizar e, destes, tiveram trinta padrinhos e vinte e oito madrinhas com
parentesco próximo a seu senhor, além dos oito efetivamente apadrinhados pelo próprio.
Somam, assim, 33,7%. No geral, o pai e filhos, senhores dos mais ricos em São Luis do
Paraitinga, promoviam vínculos espirituais de seus familiares com pelo menos um terço de
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seus cativos. E, aparentemente, viam importância no estabelecimento desse vínculo: em
diversas ocasiões, alguns desses parentes identificados tornaram-se padrinhos e madrinhas por
procuração, sugerindo a importância que o ato tinha, não abrindo margens para substituições.
Aqui temos, portanto, uma realidade oposta à descrita por Rios, e anteriormente citada, de que
quanto maior a propriedade, maior a preferência por padrinhos cativos. Não é caso dos
exemplos aqui apresentados, se bem que a autora estivesse se referindo a escravarias de
dimensões consideravelmente maiores. Mesmo assim, o entendimento dos mecanismos a
regerem o compadrio mostra-se complexo e variável, tornando praticamente impossível
delimitar padrões e modelos diante dos elementos hoje disponíveis. Pois, diante dos casos
acima, podemos citar, em oposição, o dos cativos de Antonio Rodrigues de Mendonça, em
que 30 dos 39 batismos ocorridos contavam com escravos apadrinhando, apontando para uma
prática diametralmente oposta.
Mas a visão genérica da condição dos compadres pode ser deixada de lado, para que
possamos dar maior atenção ao processo de escolha no interior das propriedades escravistas.
E novamente observaremos o processo de assimilação dos africanos recém-adquiridos. Um
primeiro caso interessante é o dos seis africanos comprados por José Pereira de Campos e
batizados na mesma cerimônia, aos 20 de abril de 1829. Três deles – Domingos, Lourenço e
Eva – foram batizados pelo forro José e pela escrava Cristina, esta pertencente a parentes. Os
outros três africanos – Miguel, Luis e Catarina – foram, por sua vez, apadrinhados por Luis e
Joaquina, dois escravos pertencentes a parente próximo. Nenhum ensaio de integração,
portanto, com algum dos trezes cativos já vivendo na propriedade do senhor, doze dos quais
eram, também, africanos.
Outro proprietário analisado é primo do anterior, como o comprova o nome
semelhante, José Pereira de Castro. Era já homem de 63 anos de idade e dono de vinte e seis
escravos quando encontramos o seu mais antigos registros de batismo de africanos, referentes
a Maria e Caetano, ambos de janeiro de 1814. Maria foi a grande exceção na história dos
compadrios engendrados em torno dos africanos de seu senhor, pois foi apadrinhada por dois
jovens parentes deste, talvez mesmo primos ou irmãos, se melhor identificados. O próprio
Caetano, batizado na mesma cerimônia, já teve como padrinhos escravos pertencentes a
familiares de seu senhor, num padrão que, desde então, seria a norma por anos naquela
senzala: Pedro, em 1816 (escravo e forra), Manuel e João, em 1820 (apenas escravos), e
Miguel, Domingos e Bernardo, em 1825 (apenas escravos). Novamente, a opção marcante por
cativos como padrinhos de africanos, mas evitando os colegas de senzala, que já eram em
vinte e seis no ano de 1825.
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Os dois casos acima pareceriam constituir um padrão, mas a observação de outro
primo, o alferes José Pereira dos Reis, aponta para realidade distinta. Os nove africanos que
fez batizar entre 1815 e 1839 foram apadrinhados, em sua maioria, por livres, aparentados ou
não. Apenas uma vez, com a africana Inácia, batizada em 1838, os padrinhos foram escravos e
da mesma senzala. Nenhum escravo de parente, ao contrário dos dois casos precedentes.
Quando, no entanto, observamos a prática adotada por um quarto proprietário, Manuel
José Pereira, entre 1815 e 1838, encontramos algo bastante distinto do já descrito. Os
dezenove africanos comprados e batizados por Manuel tiveram, em sua grande maioria, por
padrinhos, seja colegas de senzala, seja o próprio senhor e seus familiares. São vinte e três
cativos da senzala atuando como padrinhos, algumas vezes servindo enquanto tais em
cerimônias coletivas. O casal José e Genebra, também africanos, apadrinham cinco recémchegados em 1830; Miguel, igualmente africano, batiza três companheiros juntamente com a
forra Felicia, no ano de 1826. E somente dois escravos de fora apadrinhando, em oposição ao
que ocorria nas propriedades acima descritas.
Do panorama até aqui traçado, percebemos que havia práticas distintas de uma senzala
para outra. Não são, acreditamos, práticas fortuitas, fruto do acaso. São preferências por
padrinhos e madrinhas dentro de um certo perfil, que é seguido ao longo da história da
unidade produtiva. Poderíamos ousar, e dizer que haveria, em senzalas distintas, culturas
distintas em relação ao compadrio. Práticas estabelecidas talvez por iniciativa ou influência do
senhor, ou talvez por iniciativa dos próprios escravos – como saber?
Senhores pertencentes à mesma família, donos de escravarias de dimensões
semelhantes, optam – se acreditarmos que têm papel ativo nesse processo – diferentemente,
por razões que não são claras. Não sabemos, por exemplo, qual o grau de convivência entre os
escravos dos três parentes José Pereira de Castro, José Pereira de Campos e José Pereira dos
Reis. Seria interessante identificar se as propriedades eram vizinhas, facilitando o contato. Os
dois primeiros tinham nítida preferência pela integração dos novos escravos com aqueles já
pertencentes à família, mas este último não era do mesmo parecer.
Não obstante tal constatação, precisamos alargar ainda mais nossa visão dos laços de
compadrio. Os escravos dos três proprietários de sobrenome Pereira estabeleciam, ao longo de
suas vidas, parentescos espirituais com outros cativos, seja dentro da propriedade, seja fora,
não bastando, portanto, a observação dos casos dos africanos. Para tanto, vamos centrar
nossas atenções para uma única propriedade escravista e seus cativos, pertencentes ao já
citado alferes José Pereira de Castro. Podemos analisar especificamente dois casais de
escravos, que tiveram numerosa prole e, portanto, diversificados laços de compadrio. A idéia
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básica é examinar similitudes e diferenças nesses laços, pela comparação das teias de
compadrio estabelecidas pelos dois casais que conviveram por muito tempo na mesma
senzala.
Quadro 3
Descendência de dois casais de escravos pertencentes ao alferes José Pereira de Castro, da
vila de São Luis do Paraitinga.
Filhos
Joaquim x Cristina
José x Jacinta
12/01/1806
18/01/1807
Batismo
Padrinhos
Filhos
Batismo
Padrinhos
Teodora
1806
E/E
Antonia
1807
E/E
Marta
1811
L/?
Rita
1810
E/E
Manuela
1815
E/E
Lourenço
1812
E/E
Benedito
1817
L/E
Joaquim
1814
E/E
Vitória
1820
E/E
Florência
1818
E/E
Ana
1823
L/E
Adão
1821
L/L
Manuel
1825
L/L
Florentina
1822
L/L
Martinho
1825
L/L
Isabel
1825
L/L
Justina
1827
?/?
Legenda: E = escravo; L = livre
Fonte: Registros paroquiais de batismo de São Luis do Paraitinga, 1774-1839.
Em uma vista panorâmica dos batizados de ambos casais, parece haver uma tendência,
mais nítida no casal José e Jacinta, no sentido de escolher cada vez mais padrinhos entre o
segmento livre da população. Por outro lado, chama a atenção a presença de somente uma
cativa como madrinha e residindo na mesma senzala: Teodora, que batiza a pequena Ana em
1823, filha de Joaquim e Cristina. Nenhum dos demais cativos a apadrinhar pertence à mesma
senzala, embora esta contasse com dezoito indivíduos em 1806 e trinta e seis em 1828, não
sendo possível apostar na indisponibilidade de candidatos a padrinhos em seu interior. De
fato, somos levados a acreditar que o jogo de alianças era complexo, e que, muitas vezes, era
mais interessante buscar apoio em cativos de outra propriedade do que no companheiro ao
lado. Além do mais, os dois casais jamais teceram aliança entre si, através do batismo de seus
filhos, apesar da convivência por cerca de vinte anos.
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A análise das práticas do compadrio de escravos, de uma maneira geral, tem levado a
resultados que estão longe de permitir conclusões definitivas. Muitas vezes, o que se obtêm é
bastante diferenciado, tal como ocorre na participação de livres e cativos como padrinhos, ou
na presença de parentes do senhor a apadrinhar. Talvez seja preciso, doravante, análises mais
refinadas, especialmente com o recurso precioso ao cruzamento de fontes documentais outras
que os batismos. Bastante sugestiva é a tentativa, empreendida por Maria Inês Côrtes de
Oliveira, de cruzar registros de batismos com testamentos, acrescentando informações
preciosas de caráter qualitativo (Oliveira, 1995/1996).
Nesse sentido, nossa tentativa de alargar o leque analítico consiste justamente em
trabalhar com as listas nominativas de habitantes, de maneira a melhor identificar as
ramificações da teia do compadrio, em busca de sentidos que possam estar escondidos atrás
de nomes e números frios. Pelas listas, torna-se possível melhor conhecer os personagens e a
composição do domicílio, examinando a rede de laços sob uma ótica mais panorâmica. Um
caso de pequeno proprietário escravista foi, assim, alvo de análise particularizada.
José Vieira de Almeida era lavrador, instalado em São Luis desde 1774 até 1814,
quando aparentemente veio a falecer. Os escravos que logra possuir, ao longo desses anos, são
um casal e seus oito filhos aí nascidos, bem como outros dois adolescentes, comprados ou
herdados. A reprodução do casal Cipriano e Lourença é essencial para a manutenção do
domicílio, pois as crianças cativas foram sendo utilizadas para responder às demandas
específicas da história de vida do casal. Duas das crianças cativas, Inácia e Benedito, foram
cedidas em dote para as filhas Ana e Antonia, quando de seus casamentos. Outras três
crianças escravas – Francisco, João e Joaquina – devem, também, ter composto os dotes de
outros três filhos de José Vieira de Almeida, pois desaparecem do domicílio à época dos
respectivos casamentos. Por fim, um dos escravinhos, o primogênito, Manuel, foi vendido aos
21 anos de idade “aos ciganos”, declaração bastante incomum, mas que comprova a reserva
de capital que a reprodução natural estabelecia para um pequeno lavrador.
O acompanhamento longitudinal desse domicílio nas listas permitiu identificar que
grande número de padrinhos e madrinhas também eram filhos ou parentes, ou então, vizinhos
de zona rural. Mas talvez o mais interessante seja aquilo que denominamos ser uma autêntica
rede de compadrio, envolvendo os mesmos indivíduos em situações de apadrinhamento
distintas. Francisco Pinto de Carvalho, genro de José Vieira de Almeida, tem quatro de seus
filhos apadrinhados pelo próprio sogro e, ao mesmo tempo, torna-se padrinho de um cativo
deste. O mesmo se repete com outro genro, José Correa Leme. Estes laços são de “mão-
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dupla”, pois reforçam por duas vezes os vínculos entre dois domicílios, em instâncias
diferenciadas.
Identificar a complexa rede de compadrio a partir de um domicílio é tarefa
tortuosa e árida. Principalmente porque julgamos importante não ficar restrito, nessa análise,
aos compadres oriundos dos batismos de escravos. Devem também entrar na observação os
padrinhos dos filhos do proprietário, bem como as relações estabelecidas por este e por seus
escravos, ao serem convidados para apadrinhar os filhos de outros, livres ou cativos. Nessa
imbricada rede, traçada com muitos fios, vamos encontrar realidades inesperadas. Como, por
exemplo, no caso de Francisco Xavier de Araújo, em cuja propriedade os nove escravos são,
em sua maioria, batizados quase exclusivamente por livres, em sua maioria morando em
domicílios que atendiam a um ou a ambos dos seguintes perfis: ser escravista, voltado para a
lavoura e vizinho; ser negociante, ou ser artesão na vila. O fato de o compadre pertencer a um
domicílio escravista já denota um processo de seleção, já que eram amplamente minoritários
na sociedade luizense. O mesmo podemos dizer dos domicílios de negociantes ou artesãos.
Os afilhados de Francisco Xavier, da mesma maneira, são, em grande parte, da mesma
origem, demonstrando que os laços de mão-dupla seguiam, eles também, o mesmo critério
seletivo: os laços eram preferenciais com outros domicílios escravistas, em geral vizinhos, ou
com moradores da vila, mais acessíveis no momento do batismo.
Sejam quais forem as variáveis observadas, o compadrio permanece um desafio para o
estudioso da família. Perceber as motivações que estão por trás exige penetrar no imaginário
religioso das populações do passado, mas também no imaginário das relações de
solidariedade, que estabeleciam obrigações e deveres entre as partes. Senhores e escravos se
emaranhavam nessa teia, mas ainda não sabemos ao certo que vantagens levavam nessa
vinculação, embora tenhamos muitas e sérias desconfianças nesse sentido. Muito nos resta,
portanto, a desvendar nas fontes sobre a história da família e da população de nosso passado:
este é o desafio.
Bibliografia
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no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX”. Paper apresentado no III Congreso de
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escravos em São Paulo do século XIX” en Nadalin, Sergio; Marcílio, Maria Luiza, e Balhana,
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OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de (1995/1996) “Viver e morrer no meio dos seus. Nações e
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RIOS, Ana Maria Lugão (2000) “The politics of kinship. Compadrio among slaves in
Nineteenth-Century Brazil” en The History of Family. An International Quartely, vol. 5, nº 3.
SCHWARTZ, Stuart B. (2001) Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
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