JOSÉ E PILAR de Miguel Gonçalves Mendes_10 de Fevereiro de 2011
sinopse Um documentário realizado por Miguel Gonçalves Mendes ("Autografia") sobre o escritor José
Saramago, falecido a 18 de Junho de 2010: a sua vida, as suas viagens, a sua relação de amor com
Pilar del Río, sua companheira até ao fim da vida. Filmado entre 2006 e 2009 e com a criação do
romance "A Viagem do Elefante" como pano de fundo, mostra o quotidiano de um dos mais importantes
escritores contemporâneos, na sua relação com Pilar, o público e a vida.
Filme de abertura da edição 2010 do DocLisboa, chega agora às salas portuguesas com 22
cópias, tendo também estreia marcada em 11 cidades brasileiras.
ficha técnica
Título original: José e Pilar
Realização: Miguel Gonçalves Mendes (Portugal/Brasil/Espanha/Finlândia/Suécia),
2010, 128 min.)
Produção: Abel Ribeiro Chaves, Jumpcut, El Deseo, O2 Filmes
Fotografia: Daniel Neves
Montagem: Claudia Rita Oliveira
Som: Olivier Blanc, Adriana Bolito, Bárbara Álvarez Plá, Hugo Alves
Distribuição: Jumpcut
Classificação: M/6
Estreia: 18 de Novembro de 2010
Página Oficial: http://www.joseepilar.com/
Críticas
Por Rascunho, 23 de Novembro de 2010
Há uma certa impossibilidade de a morte acabar com figuras tão contundentes quanto José Saramago.
Não é apenas o escritor distinguido com o famigerado Nobel da Literatura, é todo o homem que, sem
surpresa, o suporta. Tendemos a esquecer que o velho de ideias contumazes e controversas, o
desafiador das almas apaziguadas, ali, na mesa em que vai dando centenas de autógrafos, é esse ser
tão humano como qualquer um dos seus interlocutores, leitores ou outros, que se apaixonam ou se
abespinham pelas suas composições. É evidente desde o início, ainda o filme é só cartaz, que Miguel
Gonçalves Mendes sabe que assim sucede e que esta proposta está na retaguarda da força avançada
que é o escritor José Saramago.
O título retira, à partida, as plumas da figura pública. José e Pilar, eis os nomes próprios por que se
tratam homem e mulher, juntos numa paixão arrebatadora que sempre foi questionada pelas bocas
miúdas. É no quotidiano do casal que a narrativa se centra e se divide em três actos: arranca em 2006,
quando As Pequenas Memórias estão para sair e A Viagem do Elefante está em maturação, atravessa
a fase que debilitou quase fatalmente Saramago, entre 2007 e 2008, e acaba no final desse mesmo
ano, já Caim, o derradeiro romance do escritor estava a ser planeado. A agenda literária é relevante
porque ocupa a vida de ambos de forma intensa, não mais.
Na esfera pública – que não é o cerne deste filme –, a cronologia importa para reconhecer o movimento
gradual que Pilar del Río faz para ocupar o espaço que o marido deixará, necessariamente, vazio.
Desde logo, ao assumir a presidência da Fundação José Saramago, quando esta é constituída a 29 de
Junho de 2007; mas também durante o período em que o escritor esteve internado e com a vida em
risco, mais de um ano de viagens depois, em que passa a elemento central da narrativa.
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É a consubstanciação de um esforço conjunto encetado duas décadas antes, com o casamento e a
construção de uma frente una de combate. José e Pilar foram duas fontes de energia notáveis
canalizadas para uma mesma batalha – a da implantação da lucidez.
O documentário ocupa-se de fazer cair o mito do escritor em desassossego, assim que mostra
Saramago ao computador: pensativo, levanta-se, acrescenta música e regressa aos cliques. Página
branca? Não, solitário de cartas, exercício para manter afastado o Alzheimer e devolver o estelar Nobel
da Literatura à Terra. É o primeiro sinal; seguir-se-ão a vaidade, o desinteresse, a amabilidade, a
destreza e o apego a um amor que surge natural, nos momentos de força e de maior fraqueza. «Se eu
tivesse morrido aos 63 anos, antes de te conhecer, morreria muito mais velho do que serei quando
chegar a minha hora», diz Saramago à esposa. A tirada, plena de efeito literário, ficará para a
posteridade como registo de uma união de conto de fadas. É nesse plano que José e Pilar a coloca, no
dos amores inacreditáveis.
Estamos a assistir à parte que normalmente nos é vedada, após a sentença de felicidade eterna. O que
vemos? Os dias. O pequeno-almoço ao som da rádio que debita qualquer coisa sobre o escritor –
perante a sua indiferença –, a brincadeira com a empregada, as inquietações (os sonhos), as viagens, o
cansaço, a doença, a recuperação, os projectos – enfim, o tanto que faz a vida dos casais. Incluindo
tudo o que os torna gente, como os demais: no caso, uma intensa desavença encimada pelo feminismo
exacerbado de Pilar, sobre as eleições presidenciais norte-americanas. Saramago sempre propalou a
igualdade entre cada um; o que conseguiu nas Letras foi uma demarcada reverência. Na relação com a
esposa está, contudo, indubitavelmente de igual para igual. Pilar sabe que partilha os dias com o
Saramago, mas não é dada a espantos. Este, às tantas, articula: «Eu tenho ideias para romances. Ela
tem ideias para a vida. E eu não sei o que é mais importante». Chama-a, para repetir e apontar-lhe a
beleza. Pilar responde que, sim, que é bonito, mas, azafamada, pergunta-lhe o que quer ele que se faça
com isso.
Miguel Gonçalves Mendes (n. Covilhã, 1978) preocupa-se com a intimidade do casal, sem fazer
concessões ao voyeurismo. Conhecemos o seu trabalho sobretudo através de Floripes (2007) e
Autografia (2004), documentário sobre Mário Cesariny que abriu as portas de «A Casa», o refúgio de
José Saramago e Pilar del Río em Lanzarote, nas Canárias. O realizador ocupou-se deste projecto
durante quatro anos, um e meio dos quais na sala de montagem. Em bruto, existem 240 horas de
filmagens. A versão que Saramago viu – e gostou – era, com três horas, mais longa do que a que
chegou às salas. Existe, no entanto, uma versão do filme com seis horas, a preferida de Gonçalves
Mendes – é essa que esperamos ver, um dia, num qualquer suporte, mas ver, para insistir e fruir da
beleza destas duas pessoas tão juntas que foram uma jangada.
Por: Mário Jorge Torres, Público de 18 de Novembro de 2010
José e Pilar - Da vida e da morte
José Saramago tornou-se um ícone cultural, sobretudo depois da atribuição do Nobel, mas já antes
disso entrara no cânone ocidental (Harold Bloom dixit) por via de uma obra polémica com pessoais
marcas de estilo, embora dispersa em termos de abrangência temática, e de um posicionamento
político interveniente: comunista assumido, ateu militante, sacrílego contestatário da herança do
cristianismo, director do "Diário de Notícias" nos tempos quentes do PREC, defensor de uma estranha
União Ibérica, na sequência do seu "exílio" na ilha de Lanzarote, dizendo cobras e lagartos da pátria
que o "rejeitara", embora sempre mantendo uma complexa relação de amor-ódio com Portugal.
Biografar uma figura desta dimensão implica riscos incalculáveis, de tal modo o seu ego desmesurado
suplanta a dimensão física e literária da "personagem". Envolvê-lo numa idealizada história de amor
acresce o tamanho da façanha de construir uma ficção documental, feita de fragmentos e gestos
acumulados ao longo de centenas de horas de filmagem, durante anos.
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O ponto de partida é interessante e passa pela assunção de que todo o material narrativo possui uma
componente autobiográfica, construindo assim um arremedo de memórias provocadas, algo que o
próprio Saramago cultivou, sobretudo nos narcísicos e diletantes "Cadernos de Lanzarote": a montagem
possível dos fragmentos estrutura-se de modo cronológico com datas apostas a cada um dos
elementos, cobrindo três anos de vida e obra, de 2006 a 2008, os anos do endeusamento máximo (a
inauguração da biblioteca de Lanzarote, a grande exposição iconográfica, as repetitivas entrevistas pelo
mundo inteiro, a criação da Fundação José Saramago), mas também da doença e do contacto com a
morte, pudicamente tratados com extremo cuidado pelo "biógrafo".
O projecto parte, porém, de outras coordenadas: há um
Saramago antes de Pilar e outro depois de Pilar e esta
imiscui-se na narrativa com um protagonismo desafiante
que atinge o ponto culminante na entrevista ao "Diário de
Notícias", construindo uma figuração central que contrasta
com o retórico apagamento perante o mestre.
Por tudo isto, a história de amor cifra-se no confronto entre
dois egos de idêntica força e o documentário dissolve-se
numa ficção articulada com os dados factuais e jogada
contra uma dimensão que é aparentemente a predominante, a hagiográfica: o louvor ao "homem que
mais fez pela língua portuguesa" aparece, em simultâneo, no excesso de uma vaidade narcisista e na
extrema fragilidade que a doença e a ameaça da morte arrastam consigo. Se "José e Pilar" constitui um
monumento à glória de um escritor, assume-se também como uma contagem decrescente: Saramago
insiste na falta de tempo, na ignorância do que existe para além da desaparição física. E se o objecto do
olhar é complexo e contraditório, a montagem das imagens aumenta essa complexidade, porque parece
desnudar o que "elogia".
Pautado por dedicatórias (as muitas a Pilar "que tardou tanto a chegar"), ignorando embora o lado mais
negro da personalidade do escritor, a alteração das dedicatórias que fez a quem chegou antes à sua
vida, numa espécie de cancelamento de um passado que deveria respeitar, até em nome do "grande
amor", o filme aceita as regras do jogo: José é um homem mais do que um ícone.
Na montagem final reside a escolha da narrativa que se quer mostrar: seleccionar a referência a "Caim"
significa um olhar retrospectivo que dá conta do que aconteceu depois do tempo representado; insistir
na omnipresença da morte significa, consciente ou inconscientemente, a importância posterior da sua
passagem para o tal outro lado que Saramago não reconhece. Há um lado telúrico, a subida à
montanha, a paisagem agreste de Lanzarote que o olhar do cineasta cruza com a imediatez de um
quotidiano, tornado comezinho pela repetição dos gestos.
E chegamos a um dos problemas fulcrais. "José e Pilar" é um filme sobre o tempo: os três anos que
reconstitui, a duração das peripécias seleccionadas, o muito tempo que fica de fora na montagem, o
tempo que falta para completar uma obra começada verdadeiramente aos 60 anos. Poderia ser um
"filme-fleuve" de 50 horas, poderia optar por mais cortes, mas a grandeza do romance documental
retrata-se nessa hesitação, nessa noção de que vida e morte não cabem no espaço exíguo de uma
projecção. Por isso, o essencial passa menos pelo conteúdo (Saramago é sobretudo um pré-texto) do
que pelas formas. "José e Pilar" é um documentário, mas também um documentário para acabar com a
ilusão do documental puro. Um fim de ciclo. Depois disto, ainda será possível a Miguel Gonçalves
Mendes, que já nos dera o excelente "Autografia" (2004), continuar a fazer documentários? A
enormidade do projecto poderá ter-se esgotado na sua feitura.
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"Ele punha as pessoas a pensar. Devemos-lhe muito" ENTREVISTA a Miguel Gonçalves Mendes
18.11.2010 - Vasco Câmara
"José e Pilar": uma história de amor entre um português melancólico e uma intempestiva
andaluza. Mas é também, diz-nos o realizador Miguel Gonçalves Mendes, um espelho que nos
confronta, espectadores, portugueses
Há um momento, e não é longe do início de "Pilar e José", em que o filme parece logo coisa ganha:
quando a angústia do escritor Saramago perante a página em branco - cliché na nossa cabeça - se
transforma numa batalha lúdica do jogador Saramago com a paciência - o jogo da... O que Miguel
Gonçalves Mendes, 32 anos, revela aí é a determinação de construir uma cena como numa ficção. Isso
vai tendo oportunidade de se mostrar ao longo do documentário, através da ironia, da cumplicidade e da
admiração perante as personagens José e Pilar. E também esculpindo na montagem um espelho que
nos confronta, espectadores, portugueses.
Um dos primeiros planos do filme é hoje estranho: José Saramago diz "Pilar, encontramo-nos num outro
sítio". Parece um plano do "lado de lá". Em que momento da rodagem esse plano aconteceu? E tem um
sentimento diferente hoje, quando sabemos que Saramago morreu?
Acho que o sentimento da altura e o de hoje é o mesmo. A temática da morte interessa-me muito. É
uma obsessão que tenho de resolver. Claro que no caso do José a contagem descrescente estava lá,
era um problema efectivo.
O que lhe propus foi a coisa mais idiota: "José, imagine que acontece um cataclismo, o que é que dizia
à Pilar como última mensagem?" E ele disse aquilo...
Hoje tem uma ressonância diferente.
Claro que sim.
Mais: há aquele chamamento mútuo, "Pilar, Pilar...", "José, José...". E a voz "off" de Saramago: "A voz
de alguém que sente despegar-se da vida...". Era evidente a ideia de alguém que se despedia?
Não no sentido em que era no caso do Mário [Cesariny, objecto do documentário "Autobiografia", 2004];
aquilo, sim, era um testamento. O que aqui havia era a noção clara de que o tempo dele estava a
acabar. Nunca no filme ele se comportou como se estivesse a deixar um legado. Mas sabia que daqui a
cinco ou dez anos o "game over" estava ali.
Quando adoeceu a primeira vez, e toda a gente temeu que isso podia acontecer, isso, sim, mudou a
leitura do filme. Vivi sempre a rodagem com varios pesos em cima, e um deles era a possibilidade de
ele morrer. A montagem durou ano e meio, e eu estava com medo. Tentámos acelerar. Queria que ele
partilhasse connosco a estreia, e tinha medo de ser acusado de oportunismo. Mostrei a primeira versão
de três horas à Pilar e ao José. Várias vezes tive medo das opções, o ter eliminado todas as entrevistas
e a ausência de um discuro mais filosófico e político da parte dele...
Porque é que eliminou, já agora?
Inicialmente baseei o trabalho em oito horas de entrevistas ao José e à Pilar sobre a vida, a morte e o
trabalho. Mas eu não queria repetir fórmulas, o pensamento do Saramago está mais do que difundido.
O que faltava era o registo intimista, aquilo que ele é com esta mulher.
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Há uma coisa que ele diz nessas entrevistas, que não está no filme mas acho muito bonito: somos
mata-borrões, somos impregnados pelo outro, deixamos de ser quem somos e passamos a ser nós com
o outro; por isso é que nas separações o mais difícil não é um separar-se do outro, é a separação da
terceira pessoa que ambos criaram. Portanto, para fazer um filme sobre ele, eu tinha de fazer um filme
sobre ela. Para além de que a Pilar é uma figura incompreendida, alvo de juízos de valores ordinários, e
interessou-me quebrar isso...
Estava a dizer que a montagem tinha sido complicada...
Quando mostrei a versão de três horas, o Saramago disse-me: "Miguel, muitas vezes quando estavas a
filmar não percebia o interesse daquilo, mas hoje que vejo acho que o filme é mais do que só sobre nós
os dois, é um filme sobre a vida e as relações". Foi o maior elogio, porque era isso que me interessava:
que o filme ultrapassasse o patamar da elegia e fosse sobre o que nos faz estar aqui. E virou-se para a
Pilar e disse: "Este filme é uma dedicatória de amor à tua pessoa". E ela respondeu: "Sim, mas a minha
vida também é". E é. Para além do companheirismo, da luta comum, aquele amor era de uma lucidez...
O que é que lhe interessou em Saramago e o que é que acha que interessou a Saramago?
Acho que ele foi enganado [risos]. Propus-lhe fazer um retrato intimista de
uma relação, e ele disse logo que a intimidade dele era a intimidade dele.
Expliquei-lhe que não seria voyeurista, que queria perceber o quotidiano.
Fui insistindo, ele viu o filme sobre o Mário, e disse uma coisa lindíssima:
"Miguel, tenho é medo de não dizer coisas tão interessantes como o Mário
disse."
O que é que lhe interessava? Ele achava que eu era um repórter a fazer
mais um documentário. Mas percebi rapidamente que o tempo de rodagem
tinha de ser outro. Eles eram duas figuras públicas que sabiam muito bem
lidar com a câmara, tinham as defesas todas, e se eu queria chegar ao âmago tinha de ser estabelecida
uma relação de confiança total. Não podia ser uma rodagem de dois meses. Ou ficaríamos pela rama.
Comecei por acompanhá-los nos eventos públicos e nas viagens e eles começaram a perceber que o
que eu estava a filmar não era normal. Criámos uma relação especial. Quando cheguei a Lanzarote, as
portas estavam abertas. Fui deixando nas entrelinhas que o que me interessava era fugir ao
documentário do homem e da obra e criar uma narrativa com espessura clássica: esta é a história de
um homem que quer escrever um livro e depois adoece e tem medo de não conseguir acabar o livro,
mas escreve e depois ainda escreve outro, e por acaso é prémio Nobel...
... sim, a questão da obra é irrelevante. Mas o que é que lhe interessou em Saramago? Já agora: o que
é que lhe interessou em Cesariny?
Li na adolescência os livros do Saramago. Gosto muito da forma como escreve as personagens, o bem
e o mal habitam em nós. Quando toda a gente o acusava de ser panfletário, eu achava-o humano,
modelado e sereno. O que me levou a fazer o filme? Conhecê-lo pessoalmente, o filme foi uma
desculpa. Foi assim com o Mário...
No caso do filme sobre o Cesariny você aparece no ecrã, a relação entra pelo filme. Com Saramago foi
diferente...
A minha existência no filme sobre o Cesariny prende-se com o facto de o filme ser o resultado da
relação entre um miúdo que na altura tinha 24 anos com a pessoa que ele admirava. É um filme sobre
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solidão e eu era uma companhia para o Mário. O José estava acompanhado por aquele amor. Mas há
nos dois filmes um lado meu de ingenuidade que colocou aquelas pessoas à vontade.
Há uma coisa de que gosto muito no Saramago e que pratico na vida: não idolatro ninguém e
estabeleço relações com as pessoas em patamares de igualdade. O Saramago ou a senhora do
mercado... Ele também não tinha qualquer tipo de subserviência. Isto cria uma relação de igual para
igual, sendo que o meu olhar sobre o mundo é mais ingénuo e isso para eles poderá ser carinhoso. A
relação que se estabece é honesta, não há nenhum tipo de luta de egos.
Por quanto tempo se estendeu o filme, da rodagem à montagem?
Quatro anos.
E só a montagem ano e meio. Problemas de produção?
Não só. Devido também à quantidade de material.
Precisamente: o filme apresenta um recorte muito nítido, um olhar definido sobre o que quer. Há um
momento, no início, em que se percebe essa definição: quando Saramago se senta ao computador,
prepara o ritual - põe um disco - do que parece ser um dia de escrita e... e afinal era apenas um jogo de
paciência...
As pessoas constroem clichés, e eu queria quebrar o cliché. Eu sabia que ele jogava paciências,
achava isso maravilhoso, ia lá a casa e via-o jogar. Portanto ia criar o "setting"... eis o momento triunfal
da entrada do escritor, a página em branco e tal... e de repente está a jogar paciência...
Outro momento, este embaraçoso, do encontro com os estudantes...
Eu já sabia que caras é que ele fazia perante admiradores e fãs. O que me interessava era o outro lado,
como os fãs lidam com ele. Daí a colocação da câmara naquela posição, por trás dele.
Eu já calculava que aquilo ia acontecer. Eu já tinha assistido a comportamento daqueles. Queria que o
filme fosse um confronto de todos nós, fãs, jornalistas, pessoas que pedem autógrafos... com a nossa
imagem. Temos tendência a romantizar as coisas. Mas a beleza reside na humanidade das coisas e
não na tentativa de florear a realidade.
Havia um roteiro para as cenas? Por exemplo, quando Saramago, no carro, fala sobre Deus, aquele
cepticismo orgulhoso: estou sozinho, mas quero estar sozinho...
Não lhe dizia: hoje vamos conversar sobre isto. Antes dessa sequência tínhamos ido filmar umas
imagens perto de uma igreja, repleta. Ele começou a dizer: "A igreja estava cheia, cheia de fiéis para
ouvir o padre". A conversa partiu daí, embora haja uma série de perguntas que fiz que não estão na
montagem. Eu queria que as pessoas não sentissem que estavam a ver um documentário. Queria dar
um passo ao lado e limpar da imagem qualquer relação deles directa com a câmara. O filme foi isso: um
processo de limpeza. Se uma reunião de trabaho deles tinha três horas, eu filmava tudo. Depois tratava
de encontrar os momentos em que eles se tinham esquecido da câmara.
Quando Saramago adoece, Pilar toma as rédeas no documentário. Como é que a doença perturbou a
rodagem do filme?
Trouxe também coisas bonitas... Chegámos a Lanzarote, para a passagem de ano, e ele tinha sido
internado no dia anterior. Filmámos a família em casa, a situação estava grave. Acabei por visitá-lo
naqueles dias, e ele disse que andava a ter sonhos estranhíssimos, por causa do espaço e das luzes.
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Basicamente, colmatei a ausência dele com a recriação dos pesadelos dele, que para mim é das coisas
mais bem conseguidas no filme. E depois a forma milagrosa, palavra um bocado estranha...
... provavelmente ele não iria gostar...
... [risos] como se deu a recuperação.
Quais foram os dilemas na montagem?
Havia várias coisas que me preocupavam: o escritor e Nobel, a Pilar, que é uma pessoa frontal e
intempestiva - ele é muito português, mais melancólico -, o que para nós portugueses causa problemas,
pelo nosso moralismo barato. E depois a relação com Portugal, que me interessava, e a questão
internacional, o filme não podia ser bairrista. Houve várias coisas que começaram a pesar, e também a
pressão dos produtores internacionais [a O2 Filmes do brasileiro Fernando Meirelles e a espanhola El
Deseo] por causa dos prazos. Mas ninguem meteu o bedelho.
Passar 240 horas para duas horas é uma tarefa que não desejo ao pior inimigo. Passámos cinco meses
a ver o material, fiz uma primeira montagem cronológica. Ninguém esperava que ele, naquele momento,
tivesse a ideia para a "Viagem do Elefante". O filme passou a ser sobre o livro. Do momento da escrita
até ao lançamento no Brasil - era assim que o filme começava e acabava. Depois foi dilatado no tempo
por várias circunstâncias, porque ele adoeceu, porque houve a recuperação. Na montagem fizemos
uma primeira versão cronológica, depois fiz uma versão de seis horas, que é a minha preferida, mas
que era impossível de ir parar às salas ou onde quer que seja. E depois foi a luta de cortar. E o filme
começou a ganhar narrativa própria. E só parei a montagem porque se se começa a polir demasiado, o
diamante começa a perder a forma. Aí decidi parar. Mas ainda hoje não sei se o que ficou de fora é pior
ou melhor do que o que ficou no filme.
Há um "caso Saramago" e há um "caso Portugal" em "Pilar e José". Aquela sequência em que "Ensaio
Sobre a Cegueira" de Meirelles passa em Cannes e continua a ser dia de futebol na TV portuguesa... E
abrem-se portas em relação à percepção pública do Saramago: uma doçura que não se conhecia.
Sim, mas esse era o Saramago que eu achava que haveria. Não era só o filho da mãe comunista, ateu
e traidor à pátria. Portugal é um pais complicado. Somos injustos. O que não se perdoou ao Saramago
foi que ele tivesse sucesso. Veio de família pobre, não pertencia às elites, começa a escrever aos 60 e
aos 80 ganha o Nobel. De onde veio este tipo? Isso não se perdoa. E como o sucesso do outro espelha
a nossa inacção, começámos a destruir o outro para nivelarmos por baixo. É sempre um processo de
destruição colectiva. A puxar o país para baixo.
O Saramago era polémico. Há coisas que ele defendia e com as quais não concordo. Não suporto, por
exemplo, qualquer teoria iberista. Agora, era um provocador nato. E temos que agradecer aos deuses.
Quando ele escreveu "Caim", em 2010, tivemos em horário nobre na TV teólogos a discutir a existência
de Deus. Isso não é um privilégio numa época de estupidificação total? Não devemos agradecer por
isso? Ele punha as pessoas a pensar. Devemos-lhe muito.
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