O GINÁSIO NACIONAL SOB A DIREÇÃO DE JOSÉ VERÍSSIMO DIAS DE MATTOS (1892 –1898) Rosana Llopis1/ UFF A história institucional do Colégio Pedro II, durante os anos iniciais da República, quando passou a designar-se Ginásio Nacional2, se impõe como objeto de estudo relevante para a compreensão dos rumos do ensino secundário na chamada República Velha. Dessa maneira, o presente estudo tem por objetivo possibilitar a interpretação do Ginásio Nacional, durante a gestão de José Veríssimo, como um dos canais das políticas públicas da Primeira República. As fontes utilizadas nesse trabalho foram localizadas, principalmente, no Núcleo de Documentação e Memória (Nudom) do Colégio Pedro II (Rio de Janeiro/Centro) e na Biblioteca Nacional. Foram também realizadas consultas no acervo da Biblioteca Central da Universidade Federal Fluminense e da Rede Sirius de Bibliotecas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nos primeiros anos da República, o Ginásio Nacional representou um lugar de cultura, ou seja, um espaço onde o seu fazer interno, próprio de uma organização escolar, imbricava-se com as práticas sociais, produzindo uma cultura específica. Concebido como “colégio padrão” exerceu o papel de verdadeira agência formadora de grande parte da elite intelectual da recém-fundada República. Para uma compreensão mais abrangente dessa instituição de ensino, entretanto, é necessário considerar a influência dos intelectuais que ajudaram a forjá-la. Afinal, os intelectuais atuam na construção das consciências coletivas, imbuídos mesmo de uma espécie de “missão”. A enorme bagagem de informação que essa categoria tem à sua disposição permite uma comparação reflexiva entre a sociedade nacional e outras sociedades. Nesse sentido, a análise da atuação do crítico literário José Veríssimo Dias de Mattos constitui-se em aspecto importante para o estudo do Ginásio Nacional, uma vez que, no período de 1892 a 1898, esteve na direção dessa instituição escolar. O eixo de análise sobre o papel dos intelectuais ao longo da história foi bem explicitado por Lucia Lippi Oliveira em seu estudo sobre os intelectuais e o poder3. A esse respeito disse a autora: Se a consciência social e o messianismo podem ser tomados como características marcantes da autodefinição do intelectual, as formas particulares de realização de tais tarefas variam no tempo e se alteram em função do regime político com o qual ele interage. A influência da atividade intelectual tem a ver com o grau de diferenciação dos papéis intelectuais, com o grau de pluralismo do sistema ideológico e com o grau de flexibilidade da tradição. (OLIVEIRA,1999, p. 85.) A passagem do Império para a República configurou-se como um momento em que a intervenção intelectual fez-se sentir de maneira decisiva. A construção do Brasil como uma nação moderna era meta essencial da intelectualidade dessa época. Somente o poder das idéias, a confiança total na ciência e a certeza da importância da educação constituíam caminho legítimo para melhorar os homens e atualizar o país superando seu atraso cultural. Nicolau Sevcenko sintetizou, com muita clareza, as preocupações da elite intelectual desse momento: Sem possuir propriamente uma nação e com um Estado reduzido ao servilismo político, o Brasil carecia, portanto, de uma ação reformadora nesses dois sentidos: construir a nação e remodelar o estado, ou seja, modernizar a estrutura social e política do país. Foram esses os dois parâmetros básicos de toda a produção intelectual preocupada com a atualização do Brasil diante do exemplo europeu e americano. (SEVCENKO, 2003, p. 103.) José Veríssimo foi um intelectual de seu tempo. Um projeto totalmente revolucionário não fazia parte do universo de intenções dos homens da virada do século XIX para o XX, que pensavam os problemas nacionais apenas sugerindo transformações capazes de ajudar ou apressar o processo de evolução natural. Um verdadeiro conservadorismo reformista, num estilo marcado por uma visão organicista influenciada pela sociologia da época, concebia a mudança como o desenvolvimento de um organismo que pressupunha a existência de um cérebro, ou seja, de uma elite que reivindicava para si o privilégio do poder. Identificado como “uma das principais lideranças críticas da última década do século XIX e da primeira do XX” (BARBOSA, 2001, p. 281), José Veríssimo produziu obras exemplares de crítica e história literária. Pode-se dizer que dirigiu todo o movimento literário na primeira década do século XX, através de sua coluna no Jornal do Comércio. Assim, a sua vertente crítico-literária foi a mais difundida entre nós, mas foi ele, também, um homem preocupado com a educação. A obra “A Educação Nacional” publicada em 1890, primeiro ano do regime republicano, ao sugerir reformas que deveriam ocorrer no novo período político, acabou por se firmar como um dos mais importantes escritos educacionais da época. Dessa forma, a faceta menos divulgada de Veríssimo, mas nem por isso a menos relevante, foi a de educador. Oriundo da província do Pará (1857), já na sua terra natal inaugurou e dirigiu, entre 1884 e 1890, o Colégio Americano. Mas foi no Rio de Janeiro4, para onde se transferiu definitivamente em 1891, que esse intelectual ganhou maior visibilidade no cenário cultural do país. Ao lado de uma intensa atividade de jornalismo literário na imprensa periódica atuou, durante sete anos, como Reitor5 do Ginásio Nacional, verdadeiro referencial do ensino brasileiro. Essa instituição de ensino, tal como no tempo do Império sob a denominação Imperial Colégio de Pedro Segundo, permaneceu nos primeiros anos republicanos com a incumbência de formar parte da elite intelectual do nosso país. A República, que defendia a educação como instrumento central de construção de uma brasilidade moderna, necessitava assegurar a permanência de uma instituição com tradição e experiência nesse campo. A criação do Colégio Pedro II, em 1837, durante a Regência de Araújo Lima, deveu-se, principalmente, à iniciativa do Ministro Bernardo Pereira de Vasconcellos. Situado no Rio de Janeiro, município da Corte, teve por objetivo desenvolver a instrução secundária do Império. Serviu de modelo aos demais estabelecimentos de ensino que eram incentivados a adequar os seus programas aos do “Imperial Collegio de Pedro Segundo”. Transformou-se, assim, ao longo de todo o Império, numa espécie de instituição educacional modelar. Na passagem do século XIX para o XX, o regime republicano tomou como tarefa precípua a reconfiguração da Nação. Os novos tempos exigiam a modernização das arcaicas estruturas imperiais. Uma verdadeira batalha ideológica foi iniciada. Tudo quanto lembrasse a extinta monarquia foi rapidamente modificado. Nomes de ruas e estabelecimentos foram alterados, novos símbolos foram criados. Foi nesse contexto, onde a República procurava redesenhar o Estado Nacional, que a denominação “Colégio de Pedro II”, pressupondo identificação com o antigo regime imperial, constituiu-se em incômodo. Para os republicanos era inconcebível que o nome do imperador deposto acompanhado da partícula possessiva “de” designasse uma instituição oficial. O novo governo republicano buscou firmar-se em contraposição a tudo o que, na época, tivesse ligação com o Império. Seis dias após a Proclamação da República, o governo provisório de Marechal Deodoro da Fonseca alterou o nome do Imperial Colégio de Pedro II para Instituto Nacional de Instrução Secundária6, numa clara tentativa de apagamento da imagem monárquica. As duas seções, Internato e Externato7, passaram a existir apenas na forma de externato. Em 1890, Benjamin Constant, Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos restabeleceu as antigas seções do Internato e Externato sob a denominação “Ginásio Nacional”.8 Apesar de toda a ligação simbólica do Colégio com a Monarquia, a instituição contou entre seus quadros com muitos professores simpáticos à causa republicana. Além disso, a permanência, nos recém-formados círculos de poder republicanos, de membros integrantes da antiga ordem imperial e que tinham ligações com o Colégio contribuiu para que a instituição preservasse, durante a República Velha, seu lugar social privilegiado conservando algumas prerrogativas que só foram modificadas no regime instaurado a partir de 1930. No final do século XIX, o Rio de Janeiro além de ser o centro de decisões políticas do país foi também um local de sociabilidade intensa para o qual afluíram pessoas letradas, que acabaram por formar as elites intelectuais do país. Os membros desse grupo reuniamse em livrarias, bibliotecas, cafés e jornais. Conversavam sobre temas diversos, trocavam entre si correspondências, que serviam para fortalecer laços de amizade, mas que também garantiam nomeações para cargos de prestígio. O círculo de intelectuais era composto por jornalistas, literatos, advogados e médicos, engenheiros e militares. Desse grupo saíram os professores do ensino secundário, especialmente do Colégio Pedro II, uma vez que, nessa época, não havia instituições formadoras de professores para esse grau de ensino. José Veríssimo Dias de Mattos mudou-se para o Rio de Janeiro justamente nessa virada de século. Ao chegar na capital da República, no dia 1º de junho de 1891, com toda a família, encontrou uma cidade com mais de 500 mil habitantes9. No centro populoso e insalubre do Rio de Janeiro, as ruas eram estreitas, sinuosas e congestionadas. Os bondes de burro tentavam ajustar seu ritmo ao passo do “burro sem rabo”10, das carroças e dos cargueiros. Os bondes elétricos da Companhia Jardim Botânico para a zona sul só apareceram em 1892 e, em 1896, para Santa Tereza. Nas esquinas havia os quiosques, frágeis armações de madeira , sob a forma de pagode chinês, antiestéticos e sujos que, nas calçadas, vendiam café, cachaça, broas de milho, lascas de bacalhau, fumo e outras miudezas ao povo. Nas confeitarias e nos cafés, verdadeiros pontos de encontros, pessoas trocavam idéias, discutiam negócios, deixavam a hora passar. A última década do século XIX foi, sob todos os aspectos, um período turbulento na vida da cidade carioca. Um ambiente de desassossego, de crise econômica, dos anos febris do Encilhamento, dos negócios fantásticos, das fortunas ora construídas do dia para a noite, ora perdidas com a mesma rapidez no jogo da Bolsa. Lutas políticas marcaram essa época onde a Monarquia ainda existia na oposição e a República buscava sua consolidação. Os anos de 1890 foram especialmente críticos quanto às condições de vida e saúde de sua população. As epidemias ceifaram inúmeras vidas, com intensidade voraz, dando ao Rio de Janeiro fama internacional de cidade empestada e mortífera. Foi esse o Rio de Janeiro que José Veríssimo conheceu ao chegar. Acompanhado de sete pessoas, a família e mais dois empregados, veio para a capital da República a fim de descobrir trabalho e recomeçar a vida. Inicialmente, foi acolhido na residência de sua prima Matilde Veríssimo Rebouças, viúva do engenheiro Antônio Rebouças, até que depois, conseguiu alugar uma casa no Catumbi. Em dezembro desse mesmo ano de 1891, a convite de Rodolfo Dantas, entrou para o Jornal do Brasil como colaborador e posteriormente conseguiu efetuar a compra de uma casa no Engenho Novo. Foi nessa residência suburbana que compôs a maior parte de seus livros: todas as séries de “Estudos da Literatura Brasileira”, “Homens e Cousas Estrangeiras”, “O que é Literatura” e “História da Literatura Brasileira”. A cidade do Rio de Janeiro foi, para Veríssimo, um ponto de encontro de sua pessoa com o mundo da intelectualidade brasileira. Nessa cidade, que acabava de despertar de seu longo passado colonial e que começava a fazer-se capital cultural do país, tornandose seu grande centro político, esse escritor, mas também educador, criou um ambiente propício ao seu trabalho intelectual. Nesse período, um nacionalismo mais ousado começou a ser forjado. Um nacionalismo envergonhado da dependência cultural de Portugal e da dependência econômica da Europa. Uma nova consciência política foi sendo esboçada. Os intelectuais passaram a olhar para o Brasil, para os seus problemas. Inúmeras foram as obras que surgiram com essa preocupação: José Veríssimo escreveu “A Educação Nacional”; Rodrigo Otávio, as “Festas Nacionais”; Sílvio Romero, a “História da Literatura Brasileira”; Assis Brasil, a “Democracia”, dentre outros. No dia 21 de janeiro de 1892, José Veríssimo Dias de Mattos foi nomeado Reitor do Externato do Ginásio Nacional. Sua larga experiência em direção adquirida em Belém, quando dirigiu seu Colégio Americano e o seu sempre presente interesse pelos problemas da educação devem ter influenciado a decisão do Governo Floriano em indicá-lo para ocupar tal cargo. Ao mesmo tempo em que esteve à frente dessa instituição de ensino, deu prosseguimento à sua atividade de jornalismo literário no Jornal do Brasil e em outros periódicos. Como colaborador no Jornal do Brasil, sob o título “Às Segundas Feiras”, deu mais regularidade a sua atividade como crítico. Desta última atividade resultaram seis tomos de estudos de Literatura Brasileira e a monumental História da Literatura Brasileira, reeditada várias vezes. Fundador da Academia Brasileira de Letras dirigiu a revista dos “imortais”, que fez reaparecer em 1895. Foi professor do Instituto de Educação e crítico do Correio da Manhã. Em seus numerosos ensaios críticos encontrou um recurso à divulgação de suas idéias e um pequeno acréscimo à sua economia. Na Reitoria do Ginásio Nacional permaneceu por largo período, de 1892 a 1898. Ocupando a chefia de um colégio que continuava sendo referência de qualidade de ensino, num tempo em que, na opinião de Sílvio Romero, os colégios brasileiros não passavam de “oficinas de ignorância organizada” (SEGISMUNDO, 1967, p. 239), procurou implementar os ideais preconizados na obra de sua autoria, “A Educação Nacional”. Publicado em 1890, o livro “A Educação Nacional” procurou inventariar o estado da instrução da época. Elaborado a partir de uma crítica ao sistema educativo de então foi, antes, uma contribuição às mudanças que deveriam ocorrer com o regime republicano ao indicar o modelo do novo cidadão que o Estado brasileiro precisava formar. Para Veríssimo, só havia um meio: a educação. “Nós tivemos já a reforma radical no governo, cumpre-nos completar a obra da revolução pela reforma profunda da nossa educação”. (VERÍSSIMO, 1906, LII) Era essa a sua crença quando foi nomeado Reitor do Ginásio Nacional, em 1892. Para ele, a educação era o instrumento básico de transformação nacional, de melhoramento da estrutura social, de formação do homem do Brasil. O fragmento do Discurso proferido por Veríssimo, em 27 de maio de 1894, por ocasião do encerramento dos cursos do Ginásio Nacional ilustra bem a sua concepção de educação: Nem seremos verdadeiramente independentes, nem poderemos representar, na América e no mundo, o papel que todas as demais condições de existência nacional nos distribuem, enquanto a nossa ciência, a nossa literatura, a nossa arte, tudo enfim, que faz a vida intelectual de um povo, forem simples reflexos de povos mais cultos. (VERÍSSIMO, 1894, p. 6) Para o dirigente do Ginásio Nacional a instrução pública carecia de “espírito brasileiro”. Faltavam compêndios11 nacionais para o ensino geral. Os existentes, até então, eram “pesados, indigestos e mal escritos”. A própria língua pátria era estudada através de autores portugueses o que, no seu entender, não contribuía para a formação do sentimento nacional. Estribado em pensadores clássicos – Montaigne, Locke, Rousseau, Spencer e outros – Veríssimo defendia uma reforma de métodos e sistemas. Nesse sentido, durante a gestão de José Veríssimo, o professor João Ribeiro, responsável pela cadeira de história Universal e do Brasil no Ginásio Nacional, viajou para a Europa a fim de estudar o processo de instrução pública em vários países desse continente. Visitou, durante um ano, a França, Inglaterra, Holanda e Alemanha com o objetivo de conhecer experiências educacionais que pudessem ser adotadas no Brasil. De regresso ao seu país de origem trouxe importante inovação para os estudos históricos brasileiros ao vincular o passado com o presente. Na sua nova concepção, o passado deixava de ser um tempo imutável, uma matéria acabada, para ser interpretado como um objeto de conhecimento a partir do presente e do historiador. Condenando o ensino de História como pura memorização e mera exaltação patriótica, incentivando a criatividade dos professores e dos alunos, o professor João Ribeiro estabeleceu uma cisão com os historiadores precedentes apegados à narrativa cronológica da história política. Sua influência logo se fez sentir nos Programas do Ginásio Nacional, como bem observou Arlette Gasparello: Em 1895, os Programas apresentaram nova modificação em relação à História: seu ensino começa no quarto ano, com a História Antiga em conjunto com a História Média, no quarto e quinto anos, com a observação: “estudo concreto”. (GASPARELLO, 2004, p. 74) A introdução de uma nova metodologia de trabalho explicitada na observação “estudo concreto” deveu-se, sem dúvida, ao esforço de pesquisa do professor de História do Ginásio Nacional. Entretanto, talvez também tenha sido fruto do trabalho de Veríssimo na função de diretor desse estabelecimento, visto que em “A Educação Nacional” esse autor já destacava a importância dessa metodologia, como forma de modernização do ensino. Outras modificações foram promovidas atendendo a novas orientações do regime republicano. Alterações que não chegaram a representar uma ruptura com o modelo anterior de ensino, conforme pregava e desejava Veríssimo, mas que muito provavelmente só foram possíveis devido a sua atuação política e intelectual, enquanto diretor do Ginásio Nacional. Atuação essa que foi interrompida. Com a mudança do Governo Republicano cuja presidência passou a Prudente de Morais, José Veríssimo viu-se obrigado a pedir dispensa do cargo que ocupava há seis anos. Seu filho, Ignácio José Veríssimo, relatou a história dessa demissão, na obra de sua autoria intitulada “José Veríssimo visto por dentro”. Segundo ele, em 1892, ano mesmo da nomeação de seu pai para a chefia do Ginásio, a Faculdade Livre de Ciências Jurídicas, uma faculdade particular, contando com uma autorização ministerial e a anuência de José Veríssimo ocupou, a título precário, algumas salas do prédio público onde funcionava o Ginásio Nacional. Uma vez que a situação provisória acabou por, indefinidamente, persistir, o diretor do estabelecimento de ensino cedente passou a solicitar, através de ofícios ao Ministério do Interior, a retirada da Faculdade. Dois eram os motivos para tal solicitação. O primeiro referia-se ao imperativo do Ginásio em ampliar o número de matrículas, necessitando para isso de todas as suas salas. O segundo aludia à indisciplina dos alunos da faculdade, que no entender de Veríssimo, acabava por perturbar a boa ordem do educandário. Esses estudantes de ensino superior “quebravam copos, moringas, tinteiros, globos geográficos, arandelas de gás e escreviam e pintavam, nas paredes, obscenidades de toda ordem.” (VERÍSSIMO, 1966, p. 69) O próprio Presidente Prudente de Moraes dirigiu-se ao Ginásio Nacional a fim de examinar a possibilidade de expandir a Faculdade onde seu filho estudava. Nessa ocasião, o intelectual que ocupava o cargo de chefia do colégio secundário procurou mostrar ao Chefe de Estado os inconvenientes dessa ampliação, os conflitos entre duas autoridades, a da Faculdade e a do Ginásio, coexistindo em um mesmo prédio e os prejuízos de ordem moral advindos do convívio entre rapazes com mais de dezessete anos e meninos de dez a quatorze anos de idade. No dia 20 de julho de 1897, o diretor do Ginásio Nacional expediu um ofício à Presidência da República solicitando a cassação da autorização para o funcionamento da Faculdade no edifício público. Entretanto, antes mesmo de chegar às suas mãos a resposta ao seu ofício, recebeu ordem do Diretor da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas, em nome do Presidente da República, para ceder mais salas para o ensino superior ali instalado. Sentindo-se afrontado, desprestigiado, José Veríssimo exonerou-se do cargo a 24 de agosto de 189812. A sua despedida do Ginásio ocorreu no dia seguinte, no pátio do Colégio, com os alunos formados. José de Castro Nunes testemunhou a cena: “José Veríssimo veio vindo cercado de funcionários e professores. Muito pálido começou com a sua voz abafada: “venho me despedir de vocês”. Mas foi só. Nada mais pode dizer. Os soluços embargaram-lhe a palavra”. (VERÍSSIMO, 1966, p. 71) Encerrava-se, assim, a trajetória de José Veríssimo Dias de Mattos na sua vertente, hoje, menos conhecida, a de diretor de uma instituição de ensino, que nos primeiros anos da República continuou como referência para o ensino secundário brasileiro: o Ginásio Nacional. José Veríssimo não despertou muitas simpatias ao longo de sua vida. Sua austeridade, sua severidade que chegava à intolerância, seu aspecto de homem frio angariaram inimigos e desgostos obrigando-o, inúmeras vezes, a refazer sua vida econômica, a construir tudo de novo. O Colégio Americano teve de ser vendido; do Jornal do Brasil pediu demissão; a Revista Brasileira renascida por ele, em 1895, contando com a colaboração de homens cultos, não encontrou eco no meio brasileiro e deixou de ser editada. Após sete anos de trabalho no Ginásio Nacional exonerou-se do cargo de Reitor. Até o seu desaparecimento, no dia 2 de fevereiro de 1916, com 59 anos de idade, os desentendimentos e desacordos foram constantes. Assim ele foi exonerado do cargo de Diretor da Escola Normal e também deixou a Academia de Letras que ajudou a fundar. Veríssimo provocou a reprovação e irritação de muitos e a compreensão e amizade sincera de poucos, mas ninguém pode retirar-lhe o mérito de ter conseguido apreender, com inteligência, aspectos relevantes do nosso processo cultural. Com o advento da República, a situação educacional do país não apresentou grandes alterações. Os esforços de legitimação republicana limitaram-se à construção de símbolos que evocassem a identificação do povo com a nascente República e à extinção de tudo o que mantivesse ligação com a antiga ordem monárquica. Entretanto, as formas de consolidação republicana passavam, necessariamente, pela construção da identidade nacional. Nesse sentido, o livro de José Veríssimo, “A Educação Nacional”, influenciou grandemente os debates sobre o país e sobre a importância da educação para a formação da Nação. A relevância dessa obra reside nos assinalamentos claros, formulados com precisão, sobre o caminho escolar da construção da identidade nacional. José Veríssimo defendeu a modernização da sociedade brasileira através da instrução. Mas, convicto da inferioridade de negros, índios e mestiços, preocupou-se apenas com a educação do cidadão branco. “Somos o produto de três raças perfeitamente distintas. Duas selvagens e portanto descuidosas e uma em rápido declínio depois de uma gloriosa, brilhante e fugaz ilustração” (VERÍSSIMO, 1906). Quando, então, Veríssimo se referia à necessidade de difundir a educação, estava se dirigindo apenas a uma parcela da população brasileira, àquela que, na sua visão, era capaz de conduzir o país. Seguindo essa lógica, o Ginásio Nacional, sob a direção de José Veríssimo, continuou com a incumbência de formar uma parte da elite intelectual do nosso país. O Colégio Pedro II idealizado como padrão do ensino secundário imperial, um modelo que deveria ser esgotado com a República, permaneceu, nas primeiras décadas desse novo regime, sendo um referencial do ensino brasileiro. 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Gymnasio Nacional. Discurso proferido na solenidade da distribuição de premios e collação do grau de bacharel em Sciencias e Letras. Em 27 de maio de 1894. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894. NOTAS: 1 Mestranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense e Professora do Colégio Pedro II. Pelo Decreto nº 1.075, de 22 de novembro de 1890, o Imperial Collegio de Pedro II passou a chamar-se Gymnasio Nacional, retornando a denominação original, Colégio Pedro II, sem o “de”, através do Decreto nº 8.660, de 5 de abril de 1911. 3 A autora se remete à intelectualidade da Era Vargas, mas não sem antes fazer uma retrospectiva do período inicial da República e a atuação de seus intelectuais. 4 Segundo Maria Auxiliadora Cavazotti, José Veríssimo fixou residência no Rio de Janeiro, aí permanecendo até seu falecimento, ocorrido em 2 de fevereiro de 1916. (CAVAZOTTI, 2002, p. 609.) 5 Esse termo foi utilizado para designar o cargo de direção do Colégio, desde a sua fundação até os anos iniciais da República. José Veríssimo foi o quinto e último dirigente dessa instituição a portar tal título. A substituição do termo Reitor por Diretor inscreveu-se na tendência liberal republicana do novo regime. 6 Pelo Decreto nº 9 de 21 de novembro de 1889. 7 Por Decreto de 24 de outubro de 1857, o Imperial Colégio havia sido desmembrado em duas seções, Internato e Externato. 2 8 Uma terceira mudança no nome do Colégio ocorreu, em 1909: as seções do Internato e Externato passaram a denominar-se, respectivamente, “Instituto Bernardo de Vasconcellos” e “Externato Nacional Pedro II”. Somente em 1911, o Colégio retornou a sua designação histórica, “Colégio Pedro II”, assim permanecendo até a atualidade. 9 Cf. Jaime Larry Benchimol, entre 1872 e 1890, a população do Rio de Janeiro passou de 274.972 a 522.651 habitantes. (BENCHIMOL, 1985, p. 601) 10 Veículo de carga tracionado por homens. 11 O termo era utilizado, na época, para designar os livros didáticos. 12 De acordo com Maria Auxiliadora Cavazotti, José Veríssimo demite-se da função de diretor do Ginásio Nacional, em 1898, expondo as razões de sua demissão num artigo publicado no Jornal do Comércio, em 30 de agosto de 1898. (CAVAZOTTI, 2003, p. 21)