Murmúrios no Jardim dos Cravos
Ou um olhar brasileiro sobre “A costa dos murmúrios”, de Lídia Jorge
Aleilton Fonseca
escritora Lídia Jorge é uma
das vozes mais relevantes
da literatura portuguesa. A
poeta, contista e romancista já foi
traduzida para outros idiomas e já
recebeu alguns prêmios importantes
em seu país e no exterior. O
público brasileiro tem agora à sua
disposição o romance A costa dos
murmúrios, lançado este ano pela
editora Record. Nesse livro, que em
Portugal já foi transformado em
filme, ficção e história se entrecruzam, num hábil jogo de linguagem
e de técnica, num estilo que já
consagrou a autora como uma das
ficcionistas mais originais e densas
da atualidade.
Nascida a 1946, na província do
Algarve, aliás cenário de seus dois
primeiros romances, Lídia Jorge
estreou em 1980, no contexto cultural do cenário político português
A
98
inaugurado em abril de 1974, com
a Revolução dos Cravos, que pôs
fim aos 41 anos de ditadura salazarista. Seus romances refletem esse
novo tempo, em que escritores e
intelectuais iniciam uma avaliação
crítica do país e do colonialismo
português, para levantar questões
novas e repensar o ethos lusitano.
Na sua obra, ficção, imaginação e
realidade transfundem-se em
performances narrativas instigantes,
críticas e criativas que envolvem o
leitor e provocam a reflexão sobre
o país. Já no romance de estréia, O
dia dos prodígios, de 1980, a autora
produz, segundo Eduardo Lourenço,
“o livro-chave do novo olhar romanesco pós-Abril”. O romance é uma
representação alegórica do ambiente
sufocado e extático da era salazarista, bem como uma avaliação das
reais mudanças ocorridas após a
Revolução de Abril
de 1974.
A costa dos
murmúrios, publicado em 1988, e
que há pouco teve
uma edição de
cem mil exemplares em Portugal, é,
talvez, a melhor
contribuição da
escritora a essa
vertente literária.
Trata-se de uma
contraposição aos
relatos oficiais, na
qual se ativa um
outro olhar, personalizado, crítico,
sensível e feminino
para reinterpretar
o drama da ocupação portuguesa em
Moçambique, num
momento agudo
da guerra colonial.
Ao redor das experiências, sentimentos e contradições
das personagens,
observam-se as
tropas portuguesas a combaterem
os rebeldes que lutam pela indepedência de sua pátria.
A guerra, que terminaria em
1975, com a derrota dos portugueses, serve de pano de fundo para o
drama de um jovem casal, cujas
aspirações e visão de mundo serão
confrontados segundo o modo
como vêem a luta, interpretam os
acontecimentos e lidam com a crua
realidade. O romance começa com
a bela cena de casamento de Eva
Lopo e o alferes Luís Alex. Logo
após a cerimônia, Eva e as demais
esposas dos oficiais permanecem
no hotel Stella Maris, em frente ao
Oceano Índico, na costa da Beira,
em Moçambique. Os homens
seguem para as frentes de batalha.
Luis Alex, lisboeta, exímio estudante
de matemática, absorvera a doutrinação do salazarismo e se torna um
convicto soldado colonialista, um
degolador de indefesos, em cruéis
operações militares contra os africanos. Eva Lopo, secundarizada
diante do ideal do marido de tornarse um herói de guerra, passa a
refletir sobre a destruição material
e simbólica do conflito, o que faz
ruir seu amor por Luís Alex. Assim,
ela dirige sua energia afetiva para
outro homem, um jornalista
mestiço, “num perigoso jogo de
vida e morte, do qual sobrevive
para contar a história.”, como
destaca Antonio Torres na apresentação do livro.
Não é no campo de batalha, mas
na rememoração da personagem
principal, Eva Lopo, que se monta
o mosaico de situações do enredo.
Eva é a fonte do relato transposto
para a forma de romance por uma
segunda voz, que organiza o texto
e o percurso da história. Este
recurso estilístico é eficiente, pois
gera um original torneio dialógico,
equilibra a tensão e a subjetividade,
e tem efeito persuasivo junto ao
leitor. A voz autoral faz questão de
reiterar, passo a passo, a frase:
“disse Eva Lopo”. Infere-se que a
LATITUDES
n° 22 - décembre 2004
narrativa deriva de um depoimento
cujo texto é editado/recriado pela
autora, em sutil discurso indireto
livre. Essa técnica cria um leve
distanciamento
intersubjetivo,
abrindo um espaço entre as duas
vozes romanescas superpostas, Eva
Lopo e a narradora. Entre ambas
opera a imaginação e os afetos do
leitor, cabendo a ele a interpretação
final.
No meio da narrativa, “disse Eva
Lopo”: “Não é porque alguém
chama que alguém responde. Não
é porque alguém quer que a obra é
feita. Só por vezes. De nada vale
querer que existam nos escombros
os fantasmas” (p. 120). Mas, de fato,
os escombros estão repletos de
fantasmas e narrar é a melhor forma
de exorcizá-los, tanto no plano
pessoal, como no coletivo. Lídia
Jorge foi professora em Angola e
Moçambique, no início dos anos 70,
e ali conheceu e viveu o ambiente
da guerra colonial. Na ficção, a cena
é revista através do olhar da mulher
de um oficial do exército português,
cujo relato ironiza e desmonta as
versões oficiais.
A costa dos murmúrios é uma
narrativa densa, pela realidade da
guerra cruel, e, ao mesmo tempo,
envolvida na leveza romanesca e
na consistência do discurso rememorativo. Experiência inscrita no
plano do real e da ficção, se apresenta como uma denúncia, mas
também como uma esperança. E
este é, sem dúvida, um dos poderes da literatura Aleilton Fonseca élu à
l’Académie des Lettres de Bahia
otre correspondant et ami
brésilien Aleilton Fonseca a
été brillamment élu, le 12
août dernier, à l’Académie des
Lettres de Bahia. On mesure toute la
valeur de cette élection quand on
sait que dans cette prestigieuse maison, fondée en 1917, ont siégé des
personnalités de renom tels que le
juriste abolitionniste Rui Barbosa ou
les romanciers Afrânio Peixoto, Luiz
Viana Filho ou encore, plus près de
nous, Jorge Amado. Inspirée en partie du modèle français, l’Académie
des Lettres de Bahia est présidée
actuellement par le professeur
Cláudio Veiga, traducteur et grand
connaisseur de la littérature française, qui vient de publier un merveilleux petit livre de souvenirs de
sa vie d’étudiant à Paris, Um estudante em Paris, 1950-1952.
Aleilton Fonseca est co-éditeur
de la revue Iararana avec laquelle
Latitudes entretient depuis l’année
2000 des échanges réguliers et enrichissants. À 45 ans, professeur de
littérature brésilienne à l’Université
d’État de Feira de Santana (Bahia),
auteur d’une thèse de doctorat sur
Mário de Andrade, Aleilton Fonseca
a déjà publié huit livres, dont
Movimento de Sondagem (1981),
Teoria particular (mas nem tanto)
do poema (1994), Enredo Romântico,
música ao fundo (1996), Jaú dos
N
Bois e outros contos (v. Latitudes n°
12, septembre 2001) ou O desterro
dos mortos (2001). Son dernier
livre, O Canto de Alvorada, publié
en 2003, lui avait valu le Prix national Herberto Salles, catégorie conte,
en 2001. Depuis 2003, année où il
a été professeur invité à l’Université
d’Artois, à Arras, Aleilton Fonseca a
réalisé plusieurs voyages en France,
notamment à l’occasion de la publication conjointe Iararana/Latitudes,
en octobre 2003, d’un numéro sur
la poésie. Très heureux et très honorés par cette élection, nous le félicitons chaleureusement et souhaitons
que la collaboration entre nos deux
revues se poursuive encore longtemps D. S .
A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge,
ed. Record, 2004, Rio de Janeiro, 288 p.
Aleilton Fonseca, co-editor da revista
Iararana (Salvador da Bahia) e correspondente de Latitudes nesta cidade, é
escritor e crítico, autor de O canto de
Alvorada, contos.
Académie des Lettres de Bahia
n° 22 - décembre 2004
LATITUDES
99
Download

LAT. 22 - Association des Revues Plurielles