É a guerra aquele monstro que se sustenta
das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto
mais come e consome, tanto menos se farta.
Padre António Vieira
Continuo atravessando a parada do aquartelamento estabelecido
algures a norte de Bafatá. Ajeito o cinturão das cartucheiras. Abraça-me o dólman de camuflado, cinge-o de tal arte que o faz descair
em pregas tufadas em toda a roda das abas. À medida que prossigo,
vou-me aconchegando cada vez mais às forras felpudas do meu garbo ou aprumo militar...
Tinha razão, a Esteva! Dou-lha toda, retrospectivamente? Bem que
a merece. Deitava as cartas segundo as regras da cartomancia então
em vigor e adivinhava o futuro de qualquer bicho-careta que lhe batesse
ao pica porte da sua casa da Canada do Alecrim. Não levava dinheiro
pela consulta, aceitava o que se lhe desse: géneros, umas maçarocas de
milho, e isso. Tudo agradecia pelas almas: «Seja pelas almas do prigatório...» Minha Mãe acompanhou-me uma tarde a casa dela. Não
acreditava, mas tinha muito respeito pelo oculto e gostava de ouvir a
pitonisa. Quem não gosta? Por vezes vinha ela cá acima, a nossa casa,
praticava também adivinhação ao domicílio — a cada um a sua arte...
«Hás-de um dia atravessar o mar-oceano e seguir para outras babilónias deste mundo; repara neste valete de ouros, ao pé do ás do mesmo
naipe: quer dizer que hás-de vir a ser um desses homens grados em
dinheiro e educação, mas também te quero declarar sem pejo que há
aqui um cavaleiro de espadas entisicando-me as ideias — está trajado
de negro: és tu daqui por algum tempo, com uma farda de militar de
subida patente, oxalá te não desregule o destino, que, mesmo descontando a pouca sorte que vais ter com as namoradas pela vida fora, não
me parece que venha a ser muito ruim...»
Prosseguem os meus pés calçados de botas de lona esverdeada na
tarefa de anular a compridão da parada de terra batida. Nunca consegui perder este jeito estugado de andar e com certeza será demasiado tarde para mudar de passo. Nas ideias humedecidas de suor,
vem de novo intrometer-se uma voz timbrada de maus agoiros. Terá
sido na manhã do dia das sortes que a escutei pela primeira vez na
minha freguesia. Daí em diante, nunca mais deixou de me atormentar. Ouvia-a, sempre nítida, nos recessos do íntimo.
O oratório da confraria do Sagrado Coração de Jesus costumava
nesse tempo percorrer as casas das militantes mais fervorosas. As beatas tinham de ter não só a quota em dia como também a leitura, de cor
e salteado, da pagela mensal atinente à actividade apostólica do mês
em curso, com muitos padres-nossos, ave-marias e glorias patri rezados
pela conversão dos pecadores e sobretudo pela da Rússia comunista,
prometida pela Virgem através dos três pastorinhos da Cova da Iria. O
bento oratório demorava-se uma semana em cada uma das casas, pondo ao rubro o caldeirão da fé, principalmente o do orgulho religioso.
Ter o Coração de Jesus de portas adentro não era privilegio para qualquer, pelo menos se não tivesse as quotas e a leitura da pagela em dia...
Na véspera do meu teste de aptidão física que a Pátria me mandava fazer no Distrito de Recrutamento por intermédio dos seus mais ilustres
oficiantes — calhou vir o oratório fixar residência temporária em casa
de Vavó Libânia, já viúva, que vivia com tia Leocádia, solteirona, devotas de inesgotáveis recursos. Ambas foram unânimes em interpretar
a coincidência como um sinal, bom indício, sorte de aviso emanado das
potências celestes, que desta forma revelavam a sua disponibilidade em
relação ao meu livramento das tiranas correias militares. E a quitação
ir-se-ia consumar, no dia seguinte, na minha pessoa, nua e perfilada
perante o altar que a Pátria me havia armado e a todos os mancebos
nascidos no mesmo ano civil.
No dia destinado às inspecções, fui-me com cedo para a cidade, ao
mesmo tempo que, em casa de minha Avó e de tia Leocádia, se iniciou,
também cedinho, a prática litúrgica só por minha intercessão. Quanto
aos outros mancebos, as famílias que se desunhassem, apegando-se aos
santos das respectivas devoções — cada um por si e Deus por todos! As
vizinhas e alguns familiares mais rentes ao afecto vieram engrossar a
súbita assembleia de fiéis. Apelavam para o Sagrado Coração de Jesus
para que eu me livrasse da tropa e naturalmente da guerra que acabava
de eclodir na África colonial portuguesa.
Todos desejavam — sobretudo a minha pessoa — que eu subisse,
sem grandes contratempos, a empinada ladeira dos estudos universitários, que deviam iniciar-se no mês de Outubro seguinte, se tudo corresse bem nos exames do Curso Complementar do Liceu. Meu Pai
nem sequer sonhava com o que se estava passando em casa de minha
avó, mas calhou por lá passar. Ao deparar-se com aquela encenação
de velas acesas, incenso, rezas e cantochão, ficou passado de medo, e
a superstição veio-lhe ao de cima: «Está desgraçado o meu rico filho;
depois de tamanha catinga, vai ficar apurado para todo o serviço militar» — e desarvorou porta fora, aos raios e coriscos...
Continuo cheio de pressa ao longo da parada do aquartelamento da Companhia de Caçadores 666, o mesmo número da Besta do
Apocalipse, a última parte do Novo Testamento que revela o mistério de Deus julgando e destruindo o mal, a fim de implantar o Seu
reino sobre a terra. São João, o seu presumível autor, adverte para
os perigos da Besta: «A segunda Besta fez também com que todos,
pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, recebam uma
marca na mão direita ou na fronte. E ninguém pode comprar ou
vender se não tiver a marca, o nome da Besta ou o número do seu
nome. Aqui é preciso entender: quem é esperto calcule o número da
Besta; é um número de um homem; o número é seiscentos e sessenta
e seis.»
Estou por enquanto ferido apenas de certa urgência. O meu grupo
de combate, o primeiro da hierarquia da companhia, espera-me no
outro topo da parada de terra batida, avermelhada e gretada dos
grandes calores tropicais. São trinta e três homens operacionais, afora um rancheiro e respectivos ajudantes, um primeiro-cabo maqueiro, que ele há morrer e viver. Vai ainda um casal de cães de quartel,
rafeiros, nados e criados na unidade, e recebidos, com outro património, do pelotão que viemos render a Andorinha e o Morteiro.
Encontram-se todos devidamente municiados e instalados, costas com costas, em três viaturas Unimog, sem taipais, para, em caso
de emboscada ou mina anti-carro, facilitar o salto e a consequente
progressão no terreno. Não foram também esquecidos os sacos atacados de areia nas cabinas das viaturas o seu peso pode contrariar os
efeitos da explosão e do estilhaçamento.
Os camiões estão estacionados em frente do ex-estabelecimento
comercial de um libanês, transformado em edifício de comando e
secretaria. Os motores aquecem, roncando. Tudo a postos: rações
de combate, cartucheiras à cinta de cada combatente, sacos de campanha cor de azeitona, com alguma roupa interior, maços de cartas
e aerogramas amarelos, a cor do desespero. Só falto eu. Acabei de
atravessar a parada, ainda me vou demorar um pouco na secretaria,
tenho de ultimar, com o nosso primeiro Gervásio, a guia de marcha
do pelotão: «Por ordem de S. Ex.ª, o comandante-chefe, segue para
a sede do batalhão de Nova Lamego, onde aguardará ordem de marcha para Dunane, o primeiro grupo de combate desta companhia,
sob o comando do senhor alferes miliciano de infantaria, Arquelau
de Mendonça, a fim de reforçar, sempre que necessário, as forças
estacionadas no sector militar constituído por Nova Lamego, Piche,
Kanquelifá e Burutuma. Vai abonado, assim como todos os seus
homens, de alimentação até hoje inclusive...»
Desta forma regulamentar terminam sempre as guias de marcha
emitidas por todos os primeiros-sargentos Gervásios de todas as
companhias deste país arregimentado: «Vai abonado de alimentação, por vezes também de pré, até hoje inclusive...»
Aconteceu, por outras razões, ao soldado Covilhã, da companhia
sediada em Fajonquito. Viera adido para a 666 durante algumas semanas, devido a reparações a serem efectuadas num pontão sobre o
Geba destruído pelas cheias da época das chuvas. Era um afamado
carpinteiro do concelho de onde provinha e acabara por lhe fornecer
o apelido por que todos o conheciam desde que ingressara no mundo castrense. Regressou a Fajonquito mais cedo do que o previsto e
também levou guia de marcha exarada pelo punho do nosso primeiro: «Por ter morrido afogado no rio Geba, quando o grupo de combate em que estava integrado procedia a obras de restauro num pontão sobre o mesmo, regressa, sob escolta à sua companhia, onde lhe
será dado o destino mais conveniente, o soldado número 1750/63, o
qual vai abonado de pré e alimentação até hoje inclusive...»
A minha coluna, composta de três viaturas, segue sem escolta.
Acabámos de atravessar o pontão sobre o Geba, o que significa que
dentro de escassos dois quilómetros, aqui muito compridos, estaremos na tabanca da Jabicunda, população mandinga, uma das mais
populosas se não a mais da região norte.
Muitos superiores hierárquicos haviam-me já enchido os ouvidos
com a consabida cantilena de que a tribo mandinga era raça traiçoeira, a dos fulas e futafulas é que sim senhor, muito amigos e fiéis.
Nunca dei por tal dicotomia. De qualquer forma, não tive outra
alternativa senão fazer que escutava a lição de forma atenta e respeitosa: «Muito cuidadinho, nosso alferes, nunca se aventure a percorrer, sozinho, nenhuma tabanca dessa etnia, sobretudo à noite; não
se separe da pistola e leve sempre consigo o guarda-costas ou uma
secção armada; quanto a mulheres, contenha-se ou contente-se com
a manápula homem prevenido...»
Principio a avistar as primeiras moranças de Jabicunda. Dou ordem ao condutor, sentado ao meu lado, para que abrande a marcha e
pare a viatura umas centenas de metros mais à frente. As outras duas
da retaguarda, à distância regulamentar, seguem o exemplo. Sempre
será útil fazer-se um pouco de psicossocial, pouco ou nada custa
uns comprimidos LM (laboratório militar), milagrosa mezinha de
branco que produz efeito instantâneo, sobretudo sobre os que nunca
provaram raça de medicamento em toda a sua vida. Cura todas as
mazelas, de eternas chagas purulentas a diarreias galopantes, para já
não mencionar o paludismo, a ténia, os ancilostomas e tantos outros
bichinhos da Natureza tão pródiga neste recanto africano.
Apeio-me da viatura e alguns homens também. Outros montam a
segurança nas imediações. O chefe da tabanca, o célebre mouro de
Jabicunda, barba grisalha, mal semeada, saial branco até aos pés e
um cofió cor de vinho na cabeça, já vem caminhando ao encontro
do grupo onde me acho dissolvido. Acompanham-no dois acólitos,
um de cada lado, nunca me viu nem tão-pouco deveria saber que
sou o alferes, comandante do grupo de combate, não trago os galões
doirados nas platinas do dólman camuflado, no mato não se usam
parangonas, em caso de perigo iminente todos se tuteiam, superiores e subalternos, nada de se dar a saber quem são os graduados, as
balas perfurantes parecem saber de cor e de olhos vendados o itinerário que desagua nos graduados. Este tu-cá-tu-lá, porém, não significa que se tenha aberto uma brecha na espessada muralha castrense
e castradora, trata-se, isso sim, e em casos de perigo manifesto, de
uma questão de genuíno amor à pátria do corpo e não vice-versa.
E é de facto o homem grande da tabanca que se me dirige, estes
indígenas parecem ter o faro apuradíssimo, todos os combatentes
vestidos de uniforme igual, mas lá conseguem, por artes mandingas,
pressentir quem, no grupo de combate, é o mais graduado. Dirige-se-me num português mascavado por cinco séculos de fé e de império, chama-me alfero e aperta-me a mão com muitas vénias, ri-se em
gargalhadinhas de cacarejo e, por fim, ordena a um dos súbditos que
me entregue, em sinal de hospitalidade, uma malga de vinho de coco,
fresquíssimo, que bebo quase de uma assentada.
O cabo maqueiro principia, entretanto, a distribuir comprimidos
LM a um magote de negros sôfregos que o rodeiam. Todos querem
experimentar a mezinha do homem branco de Lisboa. Continuo
parlapeando com o mouro-chefe-da-tabanca, não preciso de intérprete, por uma palavra vou tirando as outras e arredondo o sentido.
Quem me dera ter a bossa e o dom linguístico do soldado Bonanza
já consegue entender e fazer-se entendido, num papear quase fluente, em vários dialectos autóctones, sobretudo no fula e mandinga:
são dons com que se nasce. Neste momento já se encontra no meio
de um grupinho de raparigas de mama firme e ainda com o cabaço
intacto. Fala-lhes com desenvoltura e propriedade de gestos: se aqui
nos demorássemos mais tempo, nada me surpreenderia que levasse a mais bela de todas ao doce sacrifício do desfloramento. Parece
possuir magnetismo que arrasta as jovens mais perfeitas todas elas
se derretem por ele.
Aconteceu à Binta, virgem negra e escultural da tabanca de Contuboel, nas imediações do nosso aquartelamento ficou com o Bonanza no goto e, em vez de se engasgar, não descansou enquanto
o não fez tirar o cabaço... Anda agora pejadinha, esperando parir
um mulatinho a quem, como tantas outras mães autóctones, porá
o nome de Lisboa, Furriel, Capitão, Alfero... Depende do gosto e
da circunstância. Uma dessas mães baptizou o filho com o nome de
Sábado, havia-o parido nesse dia da semana no próprio campo de
arroz onde trabalhava o homem prefere ficar à sombra do mangueiro, no largo da tabanca, aguardando a hora da oração para se virar
para Meca e rezar a Alá. Foi só o tempo de arrancá-lo do ventre,
dar-lhe a primeira mamada e regressar de caminho à bolanha onde
continuou mourejando no terreno alagadiço até ao desamparinho
do dia, como dizem os cabo-verdianos para o pôr do Sol.
O vinho de coco trepa-me à cabeça. Sem cerimónia sobe pelas
escadinhas do sangue. De súbito, viro-me para o homem grande de
Jabicunda e digo-lhe, meio enxofrado, que não sou alfero, mas alferes alferes, entendido?
Ri-se como galinha mourisca depois de pôr o ovo e responde-me
de imediato, «alfero é um, alferes é manga deles, nosso alfero...»
Despedimos de Jabicunda e fazemo-nos ao caminho de Sonaco,
estrada sofrível, perigo ainda não há. Deixo-me afundar no assento
da viatura, embrulho-me em pensamentos viageiros estou na Ilha
e em Coimbra, ou vice-versa, tão fácil e rápido este meu viajar-me.
Vou a caminho não sei de que guerra, o corpo vazio baloiçando-se
nos lassantes intervalos do camuflado. Demoro-me na unidade mobilizadora do Continente, o Regimento de Infantaria 15, em Tomar,
quero de novo escutar algumas das palavras proferidas pelo capelão,
o padre-major Almagreira, no decorrer da homilia da missa campal,
celebrada no dia em que de lá saímos para o cais de embarque, «Nesta hora conturbada para a nossa Pátria, fomos todos mobilizados,
mas sois vós, bravos rapazes, que tendes a dita de partir, porque a
Pátria...»
Éramos mais de duzentos na parada, todos sob rigorosa formatura, só nos era permitido fazer manguitos por dentro ou roer as unhas
de memória até ao sabugo; chorar não podíamos, nem, se calhar,
teríamos lágrimas disponíveis no canto do saco estávamos, exteriormente, em sentido e essa posição era sagrada; havíamos aprendido,
em Mafra, no COM, o instrutor não se cansava de repetir, «Nem que
vos passem um caralho sujo pela boca, nossos cadetes, o sentido é
uma posição sagrada...»
Desta forma treinados e mecanizados no estribilho de rastejai até
aos meus pés, durante os longos meses da recruta, não admira que a
posição de sentido não fosse violada na parada da unidade mobilizadora... No clímax do entremez, abençoou-nos a todos e às espingardas em rigorosa posição de apresentar armas! Valeu-nos, pouco
depois, as viaturas tarimbeiras que, num relâmpago, nos despejaram
no cais do desterro. Logo a seguir, após mais uma formatura em
frente ao navio, entrámos naquela baleia de Jonas que nos engoliu a
todos e veio vomitar, seis dias mais tarde, cá neste longe, situado no
avesso do sonho... Mas, se persistirmos, ele ainda é possível e necessário como pão imprescindível... Exactamente aqui, onde as horas
se transformam em casamatas de pesadelo e os dias emperram em
ferrugentos rodízios e as semanas se paralisam com muletas de medo
e os meses são fundos que nem poços desfundados e os anos, cerca
de dois, contados ao minuto, nem será de bom agoiro mencionar...
O capelão do regimento... Mas, e enquanto vai a viatura percorrendo a estrada de Sonaco, veio outro habitar-me os pensamentos.
Ou não será o mesmo? Nada mais parecido que um capelão do que
outro capelão... Dois dias antes de uma operação ao mato do Caresse, onde se encontrava um reduto inimigo que era mister destruir
quanto antes se quiséssemos continuar a sobreviver, houve briefing
na sala de operações do comando do batalhão. Havíamos chegado
de fresco ao mato e era esse o nosso primeiro rebuçado. Reuniram-se
todos os altos comandos do sector, os cérebros da guerra, e também
os comandantes de companhia e respectivos alferes. O capelão também foi convocado para que houvesse cumplicidade de Deus com
a guerrilha... Acabada a parlenga do major de operações, vira-se o
sacerdote para o comandante de sector, um coronel tirocinado, e,
como quem lê o breviário já de cor, dispara com a patilha de segurança em posição de fogo de rajada: «Se me dá licença, meu comandante, gostaria de declarar que, como ministro de Cristo na terra,
é meu dever e desejo integrar-me na operação e celebrar missa no
objectivo após ter este sido destruído pelas nossas tropas; trata-se
de um acto litúrgico de acção de graças, o qual, se V. Ex.ª o entender, poderá ser especificado na mensagem-rádio que naturalmente
será enviada para o QG: “Missão cumprida, stop; segue relatório
pormenorizado, stop. Inimigo destroçado, stop, missa celebrada no
objectivo”; vai ser um grande ronco, se Deus quiser, meu coronel...»
Não quis. Nem chegámos ao objectivo. Fugimos em debandada
com um homem ferido por uma mina anti-pessoal...
A dada altura do percurso ao longo da estrada de Sonaco, o condutor dá-me um safanão respeitoso e pergunta-me, «Estamos quase a chegar a Sonaco, meu alferes, quer que pare ou siga adiante?»
Meio ensonado, de tanto viajar e também devido aos vapores do
vinho de coco bebido em Jabicunda, digo-lhe, alheado, que o melhor
será fazermos um alto no destacamento. Cumpre a ordem, sem sequer sonhar por que paragens eu andava...
Sonaco é urna das mais importantes povoações da etnia fula.
Além das tabancas onde os indígenas vivem em moranças de adobes
e cobertas de colmo, a povoação propriamente dita, a da população
branca, consiste tão-só numa única rua pejada de casas e respectivos
comércios de brancos da metrópole e de libaneses, numa proporção
de meio por meio.
Contíguo à moradia do chefe de posto, o edifício da administração situa-se na extremidade da rua principal e representa, aqui, o
poder colonial constituído, criado para pôr os indígenas nos varais.
Em Sonaco, como em outros locais onde o comércio é florescente,
a moeda de troca é quase exclusivamente a mancarra, o nome local
para o amendoim. O comerciante pesa a mercadoria que o indígena lhe leva em balaios (os pesos, por artes mágicas, tornam-se mais
pesados), estabelece o preço como muito bem quer e entende e, em
troca, fornece ao indígena panos coloridos (as medidas do metro são
mais curtas), pilhas velhas para os rádios portáteis, óleo, água de
Lisboa (aguardente), açúcar...
Mesmo que note a trafulhice, nunca o indígena dá um pio de boca.
Por vezes sorri-se e é quanto basta torna-se mais acutilante para o
cantineiro. Sabe por interposta experiência que, se por acaso, tivesse
o alvedrio de reclamar, como alguns o haviam feito antes, estaria lá
o chefe de posto mais os seus cipaios para manter a ordem com a
simplicidade de quem prega um pontapé num cão vadio. Os que ou-
saram fazer valer os seus direitos perante os comerciantes patriotas
foram acusados de terroristas ou turras, tanto faz, presos e da maior
parte deles nunca mais se lhes viu o rasto.
O chefe de posto de Sonaco é um cabo-verdiano odiado pela
maioria dos indígenas. Mas possui o grande predicado de ter uma
mulher também cabo-verdiana, perfeita de mais, muito mais moça
do que o marido e pejada de apetites extraconjugais. Num clima
excitante e puxavante como este, será muito natural e humano que
exija do marido pela medida acogulada, que ele, com os seus quase
sessenta, não tem forças para lhe matar o desejo com a frequência
desejada. Os alferes, na força miliciana da idade e desempenados,
são por isso a sua predilecta sobremesa. O marido anda desconfiado, mas, por enquanto, ainda não fez qualquer cena dramática. Seja
tudo por amor do clima!
Desde há muito que Sonaco constitui um destacamento do batalhão de Bafatá, ao qual, só para efeitos logísticos, pertence a companhia 666. Trata-se de um sítio sossegado, sem rumores de guerra,
sorte de pausa do guerreiro, para onde vêm grupos de combate durante um mês e pouco, para descansar e retemperar forças e ficarem
prontos para as mais acesas frentes da guerrilha que se desenrola
muito perto. Paramos um pouco nesta fatia de paraíso em pleno
inferno patrioteiro, só o tempo para um fraterno abraço molhado
em uísque, muito gelo e água Perrier vinda do Senegal e da Guiné-Conacri através da candonga dos gilas que, de olhos fechados,
percorrem os atalhos enriçados do mato. Os soldados desforram-se
encharcando-se de cerveja e empanturrando-se de mancarra torrada e confraternizam debaixo do poilão, árvore gigante do ramo da
família brasileira das oxalídeas, implantada no meio do pátio que
serve de parada. Agrupam-se em montinhos divididos pelas linhas
fronteiriças das suas terras e províncias de origem. Daqui por mais
umas cervejas, lêem uns aos outros as cartas dos pais e das namoradas, assoalham intimidades, que a circunstância a isso convida.
Um destes dias dizia-me o segundo-comandante do batalhão que,
em campanha, o nosso soldado é o melhor do mundo cristão. Desde
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Braço Tatuado - Retalhos da guerra colonial