PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Moises Gonçalves de Oliveira A Linguística Crítica, Leitura e Mudança Social: Um Enfoque Sistêmico-Funcional MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM SÃO PAULO 2009 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Moises Gonçalves de Oliveira A Linguística Crítica, Leitura e Mudança Social: Um Enfoque Sistêmico-Funcional Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em atendimento à exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Orientadora: Profª. Dra. Sumiko Nishitani Ikeda PUC - SP 2009 ii BANCA EXAMINADORA _______________________________________ _______________________________________ _______________________________________ iii Dedico esta dissertação a meus pais Laudina e João Gonçalves Oliveira, amantes incondicionais da educação. (in memmorian) iv AGRADECIMENTOS À minha orientadora, Profª Drª Sumiko Nishitani Ikeda, pela ajuda na pesquisa linguística, constantes conselhos, aulas impecáveis e acompanhamentos que, indubitavelmente, contribuíram para o meu desenvolvimento acadêmico e, sobretudo, no modo de encarar a vida tornando-a mais leve e disciplinada. Às Professoras Drª Maria Cecília Souza-e-Silva, Drª Maria Francisca Lier De Vitto e Drª Mara Sophia Zanotto, pelo esmero no desempenho de suas funções, a tratabilidade e o relacionamento interpessoal. À Profª Drª Fátima Beatriz De Beneditctis Delphino e da doutoranda Sônia Regina Longhi Ninomiya pelas observações e sugestões no exame da qualificação de que participaram. Aos funcionários do LAEL, Maria Lúcia e Márcia, pela incansável disponibilidade. À Secretaria Estadual da Educação pelo financiamento do meu curso, sem o qual o fardo seria mais pesado. Aos diretores e colegas professores da E.E. Maria Helena Faria Lima e Cunha, pelo apoio e compreensão sempre que foi solicitada a mudança de horário para as minhas necessidades. Aos meus filhos, Kênyo, Kelson e Kleyson, pela confiança no meu potencial como pai e estudante. À Débora, nora prestimosa, e aos netos Gustavo e Kathlyn, que não puderam contar comigo durante esse período. v À minha esposa, Maria Bete, pelo constante incentivo e compreensão nos momentos de ausência em que me dediquei à pesquisa. Agradeço, sobretudo, a Deus por me amar, me fazer feliz e realizado a cada dia. vi Epígrafe “... não é possível destruir o passado para reconstruir o presente, mas é possível reconstruir o presente para reescrever o passado.” Augusto Jorge Curi. (A pior prisão do mundo) vii MOISES GONÇALVES DE OLIVEIRA A LINGUÍSTICA CRÍTICA, LEITURA E MUDANÇA SOCIAL: UM ENFOQUE SISTÊMICO-FUNCIONAL RESUMO Nos últimos anos, no Brasil, tem havido uma preocupação singular com as questões de leitura, letramento e a mudança social advinda dessas práticas dentro do campo da linguística crítica. No entanto, ainda há um vasto campo a ser trabalhado nessa área. A leitura e a escrita são a base para uma leitura crítica do mundo. É a partir delas que se inicia o processo de consciência dos direitos e deveres do cidadão. Assim, segundo Fowler (1991), qualquer aspecto da estrutura linguística - seleção lexical, opção sintática, etc. - carrega significação ideológica. Todos têm sua razão de ser. As instituições estão situadas, social, econômica e politicamente e qualquer coisa que é dita ou escrita sobre o mundo, é articulada de uma posição ideologicamente particular. Esse estudo faz uma análise crítica textual de um editorial jornalístico da Folha de São Paulo sob o título “Desmandos sem fim” do dia 19.09.2006, com base na Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) de Halliday M. (1985, 1994) calcado, ainda, nos seguintes recursos e estratégias discursivas: (a) conceito de falácia e entimema apresentado por Lauerbach (2007); (b) contrabando de Informação proposto por Luchjenbroers & Aldridge, (2007); (c) enquadre (frames) proposto por Bednarek (2005); (d) crypto-argumentação de Kitis, E. & Milapides, M. (1996), (e) ‘dog-whistle politics’, Coffin & O’Halloran (2006) e (f) o discurso relatado (Lauerbach, 2006). A análise permitiu concluir que o texto servindo-se de tais recursos e estratégias, tem como objetivo convencer o leitor, de forma implícita, a aceitar a culpabilidade do presidente Lula sobre as ocorrências descritas sem, contudo, comprometer a imparcialidade do jornal. Palavras-chave: Leitura crítica; Editorial; Lingüística Sistêmico-funcional; Persuasão implícita. viii MOISES GONÇALVES DE OLIVEIRA THE CRITICAL LINGUISTICS, READING AND SOCIAL CHANGE: A SYSTEMIC-FUNCTIONAL FOCUS ABSTRACT In recent years in Brazil, there has been growing interest in questions related to reading, literacy and all the social changes resulting from these practices in the field of critical linguistics. There is, however, still a huge field to be exploited in this area. Reading and writing are the basis for making a critical reading of the world, and the process of the awareness of citizen’s rights and duties starts from reading and writing. According to Fowler (1991), all aspects of linguistic structure (lexical decisions, syntactic choices, etc) contain ideological meaning. All institutions are socially, economically and politically located, and anything that is either said or written about the world is made from a particular ideological position. The present study makes a critical textual analysis of a newspaper editorial from the Folha de São Paulo, “Endless Outrages”, published on September 19th, 2006, using Halliday’s Systemic Functional Linguistics (SFL) and the following resources and discursive strategies: (a) the concepts of phallacy and enthymeme presented by Lauerbach (2007); (b) information ‘smuggling' proposed by Luchjenbroers & Aldridge, (2007); (c) frames according to Bednarek (2005); (d) crypto-argumentation by Kitis, E. & Milapides, M. (1996), (e) the dog-whistle strategy, Coffin & O’Halloran (2006) and (f) reported discourse (LAUERBACH, 2006). The findings suggest that the text, using such resources and strategies, aims at convincing the reader, in an implied way, to accept the fact that the President was to blame for the events described, without, however, impairing the newspaper’s impartiality. Keywords: critical reading; editorial; Systemic Functional Linguistics; implicit persuasion ix LISTA DE QUADROS Quadro 2.1 - Notícia do The Sun publicada em 01.06.2004. ............................ 25 Quadro 2.2 - Recursos de AVALIATIVIDADE relevantes para a pesquisa ....... 26 Quadro 3.1 - lista de editoriais .......................................................................... 34 Quadro 4.1 - PRIMEIRO PERÍODO DO PRIMEIRO PARÁGRAFO - Análise do editorial .................................................................................... 37 Quadro 5.1 - TÍTULO - Análise do editorial ....................................................... 40 Quando 5.2 - LIDE - Análise do editorial ........................................................... 40 Quadro 5.3 - PRIMEIRO PERIODO DO PRIMEIRO PARÁGRAFO – Análise do editorial .................................................................................... 40 SEGUNDO PERÍODO DO PRIMEIRO PARÁGRAFO - Análise do editorial .................................................................................... 40 TERCEIRO PERÍODO DO PRIMEIRO PARÁGRAFO - Análise do editorial .................................................................................... 41 Quadro 5.6 - SEGUNDO PARÁGRAFO - Análise do editorial .......................... 41 Quadro 5.7 - TERCEIRO PARÁGRAFO – Análise do editorial ......................... 42 Quadro 5.8 - QUARTO PARÁGRAFO – Análise do editorial ............................ 42 Quadro 5.9 - QUINTO PARÁGRAFO – Análise do editorial.............................. 43 Quadro 5.10 - SEXTO PARÁGRAFO – Análise do editorial ............................... 43 Quadro 5.11 - SÉTIMO PARÁGRAFO – Análise do editorial .............................. 44 Quadro 5.4 Quadro 5.5 - x SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 1 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ...................................................................... 5 2.1 A Análise Crítica do Discurso .............................................................. 5 2.2 A linguística crítica ............................................................................... 09 2.3 A Linguística Sistêmico-Funcional ..................................................... 2.3.1 Língua e contexto ........................................................................ 2.3.1.1 O registro ........................................................................ 2.3.1.2 O gênero ......................................................................... 12 13 14 14 2.4 O editorial jornalístico como um gênero ............................................ 15 2.5 O gênero e o enquadre (frames) ........................................................ 17 2.6 Os Modos Textuais ............................................................................... 21 2.7 A crypto-argumentação ou a argumentação secreta ........................ 2.7.1 A política do 'apito do cão' (dog-whistle politics) .......................... 22 24 2.8 A avaliatividade (appraisal) .................................................................. 25 2.9 O contrabando de informação ............................................................. 27 2.10 As vozes do discurso ........................................................................... 2.10.1 Vozeamento e Ventriloquismo .................................................... 29 31 3 METODOLOGIA ............................................................................................. 33 3.1 Dados ..................................................................................................... 3.1.1 A Folha de S. Paulo .................................................................... 3.1.1.1 O editorial da Folha de S. Paulo ..................................... 33 33 33 4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE .................................................................. 37 5 ANÁLISE ........................................................................................................ 39 5.1 Etapa 1 - Configuração Contextual ..................................................... 39 5.2 Etapa 2 – Aplicação das categorias ao editorial ................................ 40 6 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ................................................................ 45 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 47 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 48 ANEXOS .............................................................................................................. 53 xi Introdução 1 A LINGUÍSTICA CRÍTICA, LEITURA E MUDANÇA SOCIAL: UM ENFOQUE SISTÊMICO-FUNCIONAL 1 INTRODUÇÃO O meu interesse pela leitura crítica partiu do questionamento sobre o porquê de alguns saberem ler e, todavia, essa prática não ocasionar nenhuma mudança visivelmente significativa. Quando entrei em contato com os termos 'letramento' (FREIRE, P. & MACEDO, 1987) e 'letramento crítico', (BRAHIM, 2007) percebi, então, que aí estava um caminho para dar início às minhas investigações. Uma pedagogia crítica, segundo Pennycook (1994) é a educação que almeja a mudança social e o fortalecimento do mais fraco (EMPOWERMENT) e que objetiva promover mudança na sociedade. Nessa perspectiva, a questão do letramento adquire um novo sentido. Segundo Lankshear (1997: 06), o termo 'letramento' tem sido, hoje, associado a iniciativas ligadas à transformação da consciência, em particular, à consciência política e social, o que não ocorre com os termos 'leitura' e 'escrita', como têm sido entendidos. Para Baynham (1995), o letramento crítico, como tem sido chamada essa visão de letramento, está estritamente relacionado com o engajamento do sujeito em uma atividade crítica ou problematizadora e que se concretiza através da linguagem como prática social que dê conta dos vários tipos de conhecimento que interagem nos processos interpretativos: conhecimento linguístico-textual, conhecimento prévio do mundo, de práticas sociais gerais e discursivas (cf. FAIRCLOUGH, 1992; BAYNHAM, 1995 E MOITA LOPES, 1996). De posse dessa visão, decidi empenhar-me numa pesquisa sobre as escolhas léxico-gramaticais e os recursos linguísticos (HALLIDAY, 1989) presentes num editorial jornalístico, publicado no jornal Folha de S. Paulo, editado no dia 19.09.06, por ocasião das eleições presidenciais e cuja interpretação depende da leitura crítica. Introdução 2 O editorial será examinado na dimensão pragmática desse gênero, o que significa que a referida avaliação depende de várias noções discursivas. Assim, a seguir, apresento alguns pressupostos sobre a importância da leitura, do letramento e da linguística crítica para a compreensão textual. Para conhecer como se estrutura o texto enquanto construtor de um significado do discurso, recorro à linguística crítica, uma abordagem que foi desenvolvida por um grupo da Universidade de East Anglia na década de 1970 (FOWLER et al., 1979; KRESS e HODGE, 1979). Esses teóricos mesclaram um método de análise linguística textual com uma teoria social da linguagem em processos políticos e ideológicos, recorrendo à teoria linguística funcionalista associada a Michael Halliday (1978, 1985) e conhecida como 'linguística sistêmica”. O ponto teórico principal na análise de Fowler et al, é de que qualquer aspecto da estrutura linguística carrega significação ideológica. Seleção lexical, opção sintática, etc., todos têm sua razão de ser. Há sempre modos diferentes de dizer a mesma coisa, e esses modos não são alternativas acidentais. Diferenças de expressão trazem distinções ideológicas e assim diferenças de representação. Fowler (1987:67) diz que "não há representação neutra da realidade". Por outro lado, não temos como compreender a realidade ou o mundo se não for através da língua, que estrutura e reconstrói essa realidade. Contudo há uma diferença entre uma linguagem aparentemente neutra e o que poderíamos chamar de linguagem emocionalmente carregada: esta apela mais para as nossas emoções do que para a nossa cognitividade. A linguística crítica faz entender que a realidade não é construída apenas em termos do léxico usado (FOWLER, 1987), mas que a nossa escolha das estruturas linguísticas para representar eventos, processos ou estados é significativa do ponto de vista da ideologia que eles refletem e assim constituem. Muitas propostas na área de compreensão textual, incluindo leitura e compreensão oral, mostram que nem toda informação está no texto. Relaciono, a seguir, algumas delas, e que deverão elencar as categorias de análise desta dissertação. Estudos recentes relacionam a coerência de um texto, o fato de um texto fazer sentido para o leitor, ao resultado da aplicação de enquadres (frames) ao discurso pelo ouvinte, estruturas mentais de conhecimento, que captam as feições típicas de uma situação, para garantir a coerência. Bednarek (2005) mostra que a Introdução 3 coerência de textos (re)construída pelo ouvinte é o resultado de uma interação complexa de contexto linguístico e conhecimento (frame) não-linguístico. Kitis e Milapides (1996) falam em crypto-argumentação – ou argumentação secreta – aquela que subjaz a um texto narrativo e descritivo, através da construção de metáforas e outros recursos utilizados para implicitamente persuadir o leitor. Nesse sentido tratam da convicção, que recorre às evidências, e da sedução, que recorre à emoção, como processos que se incluem no hiper-processo da persuasão. Outro autor que mostra a construção da argumentação através de 'modos textuais' é Reynolds (2000). Lauerbach (2007) trata de dois conceitos interessantes à análise do discurso em sua teoria da argumentação: (a) o conceito de falácia ou raciocínio falho e (b) o conceito de entimema, ou premissa implícita de um argumento, que se referem, respectivamente, à introdução numa argumentação de raciocínio, que não resiste às evidências, e à omissão de uma informação, o que poderia denunciar a ideologia subjacente ao discurso. Coffin & O’Halloran (2006) tratam do conceito da política do 'apito do cão' (dog-whistle politics), expressão cunhada recentemente para capturar a forma de avaliação implícita. A comunicação política usa significados aparentemente neutros, mas que devem ser ‘entendidos’ como uma mensagem negativa pela comunidade alvo (MANNING, 2004). Luchjenbroers & Aldridge (2007) estudam o 'contrabando de informações', termo usado quando uma informação (negativa) é subrepticiamente inserida, por exemplo, nas declarações de uma testemunha. Componentes adicionais de significado são derivados dos enquadres de referência associados com cada escolha lexical, i.e., cada escolha desencadeia uma rede mais ampla de associações prototipicamente presentes no uso desse termo. O acesso do interlocutor a essas associações é dependente de sua experiência e compreensão das normas sociais das quais as escolhas lexicais são derivadas. Introdução 4 Objetivo da pesquisa O objetivo desta pesquisa é examinar a persuasão que percorre um editorial jornalístico a fim de verificar as escolhas léxico-gramaticais feitas pelo seu autor para a sua realização. Para tanto, devo responder às seguintes perguntas de pesquisa: 1. De que recursos se vale o autor para persuadir o leitor do editorial? 2. Quais as escolhas léxico-gramaticais realizam esses recursos? Justificativa da pesquisa O presente trabalho nasce do interesse que nutro como professor de língua portuguesa pela leitura crítica e a avaliação implícita e o que pode vir a resultar delas, e por considerar que nessa área há um vasto campo a ser trabalhado. Como educador, estou convicto que a formação de cidadãos, atributo da escola, passa hoje obrigatoriamente pela habilitação do cidadão para ler (BACCEGA, 2003:81). E ler implica em saber reconhecer os recursos e as estratégias discursivas que refletem a ideologia veiculada pela estrutura linguística do texto. Estrutura do trabalho Essa dissertação compõe-se das seguintes partes: (a) Introdução (b) A fundamentação teórica, constituída de considerações sobre a Análise Crítica do Discurso (ACD) amparada pela Linguistica Sistêmico-Funcional (LSF). (c) A descrição dos dados e os procedimentos metodológicos de análise. (d) A análise dos dados. (e) Discussão dos resultados. (f) Considerações finais. E, finalmente, as Referências e os Anexos. Fundamentação teórica 2 5 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Inicio este capítulo fazendo a descrição das teorias em que me apoiarei na análise crítica do gênero editorial da Folha de S. Paulo, explicitando a noção de análise crítica do discurso conforme as idéias de Fowler (1987), apoiada na Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF) de Halliday (1978; 1985). Examino em seguida o conceito de enquadre (frame), apresentado por Bednarek (2005), que o leitor traz na sua interação com o texto contribuindo para a coerência. Kitis e Milapides (1996), tratando da argumentação secreta, dizem que a análise de um texto deve considerar todas as estruturas lexicais e gramaticais dentro de um enquadre que permeia e domina a espinha dorsal da sua estrutura argumentativa. Recorro, ainda, às pesquisas esclarecedoras de Reynolds (2000) que trata dessa fusão para o efeito argumentativo final, como também dos conceitos de falácia e entimema de Lauerbach (2007) que se referem à inserção de raciocínio falho e a omissão de premissa que pode denunciar a ideologia subjacente ao discurso. A argumentação pode também, permear o texto através da estratégia do ‘apito do cão”, - expressão cunhada no jornalismo, com base no efeito do apito do cão, cujo som, de alta frequência, somente ele pode ouvir - que serve para captar a forma de avaliação implícita, aquela dirigida especificamente para determinados leitores de jornais (ODA, 2008: 7). Nessa dimensão, inclui-se, a proposta de footing, através do qual o escritor se posiciona em relação tanto ao leitor quanto às pessoas envolvidas no editorial. Finalmente, apoio-me no que Luchjenbroers & Aldridge (2007) chamam de 'contrabando de informação', que se refere à inserção subreptícia de informação. 2.1 A Análise Crítica do Discurso A partir da década de setenta, desenvolveu-se uma forma de análise do discurso e do texto que identificava o papel da linguagem na estruturação das relações de poder na sociedade (FAIRCLOUGH, 2001). Contudo, não podemos deixar de registrar que na década anterior, alguns movimentos consolidavam estudos sobre a importância das mudanças sociais como perspectiva de análise. Na Fundamentação teórica 6 Grã-Bretanha, um grupo de linguistas desenvolveu uma “linguística crítica”, ao articular as teorias e os métodos de análise textual da “linguística sistêmica”, de Halliday, com teorias sobre ideologias. Contrapondo as duas vertentes, verificamos que a primeira destaca a análise linguística, porém, com pouca ênfase nos conceitos de ideologia e poder, e a segunda enfatiza a perspectiva social, relegando a análise linguística. Ambas apresentam uma visão estática das relações de poder, enfatizando o “papel desempenhado pelo amoldamento ideológico dos textos linguísticos na reprodução das relações de poder existentes” (FAIRCLOUGH, 2001: 20). O fato é que as lutas e as transformações de poder não mereceram a atenção exigível, considerando-se a linguagem em si e seu papel. A Análise Crítica do Discurso (doravante ACD), se propõe a estudar a linguagem como prática social e, para tal, considera o papel crucial do contexto. Esse tipo de análise se interessa pela relação que há entre a linguagem e o poder. É possível defini-la como uma disciplina que se ocupa, fundamentalmente, de análises que dão conta das relações de dominação, discriminação, poder e controle, na forma como elas se manifestam através da linguagem (WODAK, 2003). Nessa perspectiva, a linguagem é um meio de dominação e de força social, servindo para legitimar as relações de poder estabelecidas institucionalmente. Para a ACD, são necessárias as descrições e teorizações dos processos e das estruturas sociais responsáveis pela produção de um texto “como uma descrição das estruturas sociais e os processos nos quais os grupos ou indivíduos, como sujeitos históricos, criam sentidos em sua interação com textos” (WODAK, 2003: 19). Não obstante, a relação entre o texto e o social não é vista de maneira determinista: [...] a ACD trata de evitar o postulado de uma simples relação determinista entre os textos e o social. Tendo em consideração as intuições de que o discurso se estrutura por dominação, de que todo discurso é um objeto historicamente produzido e interpretado, isto é, que se acha situado no tempo e no espaço, e de que as estruturas de dominação estão legitimadas pela ideologia de grupos poderosos, o complexo enfoque que defendem os proponentes [...] da ACD permiti analisar as pressões provenientes de cima e as possibilidades de resistência Fundamentação teórica 7 às relações desiguais de poder que aparecem em forma de convenções sociais (WODAK, 2003: 19-20). Para Fairclough (2003), cujo trabalho é baseado na linguística funcional de Halliday, teoria que considera a linguagem na forma como ela é configurada pelas funções sociais que deve atender, a localização teórica da ACD está em ver o discurso como um momento de prática social, considerando que todas as práticas incluem os seguintes elementos: atividade produtiva, meios de produção, relações sociais, identidades sociais, valores culturais, consciência e semioses. Esses elementos se acham relacionados dialeticamente, isto é, não são elementos discretos, embora sejam diferentes. Por sua vez, em conformidade com o autor, as práticas sociais que são construídas de maneira concreta, em forma de redes, constituem uma ordem social. O aspecto semiótico de uma ordem social é o que podemos chamar uma ordem do discurso. A ordem do discurso é uma maneira em que as diferentes variedades discursivas e os diferentes tipos de discurso são postos juntos na rede (FAIRCLOUGH, 2003: 183). O foco de Fairclough é a mudança discursiva em relação à mudança social e cultural. Como as mudanças ocorrem nos eventos discursivos, as origens e as motivações imediatas que as geram no evento comunicativo estão nas problematizações das convenções para os produtores ou intérpretes, o que pode ocorrer de diversas formas. Os produtores enfrentam os dilemas ou problematizações criativamente e, assim, geram mudanças discursivas. Mudanças envolvem formas de transgressão e cruzamento de fronteiras, também a reunião de convenções existentes em combinações novas ou sua exploração em ocorrências que comumente se coíbem. Em relação à dimensão textual do discurso, as mudanças deixam marcas no texto que podem ser mesclas de estilos formais e informais, vocabulários técnicos e não-técnicos, marcadores de autoridade e familiaridade, formas sintáticas típicas da escrita e da oralidade etc. Quando a mudança é estabelecida, não é mais percebida pelos intérpretes como uma “colcha de retalhos”, estabelecendo-se novas hegemonias no discurso. Fundamentação teórica 8 Já o discurso é tanto um modo de ação - como as pessoas agem sobre o mundo e sobre as outras - como um modo de representação -, há uma dialética entre ele e a estrutura social. O discurso, ainda, é tanto moldado como restringido pela estrutura social. “Os eventos discursivos específicos variam em sua determinação estrutural segundo o domínio social particular ou o quadro institucional em que são gerados” (FAIRCLOUGH, 2001: 91). Eles são, também, socialmente constitutivos. O discurso é uma prática de representação e de significação do mundo, constituindo e construindo esse mundo em significado. Para trabalhar com o discurso, Fairclough (2001: 100) sugere uma análise tridimensional, explicando que qualquer evento ou exemplo de discurso pode ser considerado, simultaneamente, um texto - análise linguística -, um exemplo de prática discursiva - análise da produção e interpretação textual - e um exemplo de prática social - análise das circunstâncias institucionais e organizacionais do evento comunicativo. Para atender a esse modelo tridimensional, deverão ser consideradas três perspectivas analíticas, a multidimensional, a multifuncional e a histórica: a primeira, para avaliar as relações entre mudança discursiva e social e, também, para relacionar as propriedades particularizadas de textos às propriedades sociais de eventos discursivos; a segunda, a multifuncional, para averiguar as mudanças nas práticas discursivas que contribuem para mudar o conhecimento, as relações e identidades sociais; finalmente, a histórica, para discutir a “estruturação ou os processos ‘articulatórios’ na construção de textos e na constituição, em longo prazo, de ‘ordens de discurso’” (FAIRCLOUGH, 2001: 27). A análise de um discurso, tomado como exemplo particular de prática discursiva, focaliza os processos tanto de produção e de distribuição como de consumo textual. Esses processos são sociais, por isso exigem referência aos ambientes econômicos, políticos e institucionais particulares, nos quais o discurso é gerado. Podemos, ainda, afirmar que a produção e o consumo são, parcialmente, de natureza sociocognitiva. Essa afirmação se justifica porque ambas são práticas que abrangem processos cognitivos de produção e interpretação textual que, por sua vez, são fundamentados nas estruturas e nas convenções sociais interiorizadas (daí o uso do prefixo “sócio-”). Portanto, nessa visão, os textos funcionam como traços do processo de produção e pistas do processo de interpretação. Fundamentação teórica 9 Enfim, a “concepção tridimensional do discurso” reúne três tradições analíticas. Observa-se que nem sempre é nítida a distinção entre “descrição” análise textual - e “interpretação” - prática discursiva. O critério recomendável, segundo o próprio Fairclough, é considerar como “descrição” os casos em que mais se destaquem os aspectos formais do texto. Realçando-se mais os processos produtivos e interpretativos, há de ter-se em conta a análise da prática discursiva, embora se envolvam, também, os aspectos formais do texto. Apresento, a seguir, a chamada 'linguística crítica', abordagem que valorizou o papel da língua na análise do discurso, em especial, na ACD. 2.2 A linguística crítica A 'linguística crítica' é uma abordagem que foi desenvolvida por um grupo da Universidade de East Anglia na década de 1970 (FOWLER et al., 1979; KRESS e HODGE, 1979). Esses teóricos tentaram acoplar um método de análise linguística textual com uma teoria social da linguagem em processos políticos e ideológicos, recorrendo à teoria linguística funcionalista associada a Halliday (1978, 1985) e conhecida como "linguística sistêmica". O seu o propósito é a interpretação crítica de textos: "a recuperação dos sentidos sociais expressos no discurso pela análise das estruturas linguísticas à luz dos contextos interacionais e sociais mais amplos" (FOWLER et al., 1979: 195-196). Sabe-se que a linguística, segundo a ortodoxia predominante, é uma disciplina descritiva, que não prescreve o uso da língua nem avalia negativamente a substância de seus questionamentos. Mas, para Fowler, na medida em que há, sempre, valores implicados no uso da língua, deve ser justificável praticar um tipo de linguística direcionada para a compreensão de tais valores. Esse é o ramo que se tornou conhecido como linguística crítica. A análise crítica está interessada no questionamento das relações entre signo, significado e contexto sócio-histórico, que governam a estrutura semiótica do discurso, usando um tipo de análise linguística. Ela procura, estudando detalhes da estrutura linguística à luz da situação social e histórica de um texto, trazer para o nível da consciência os padrões de crenças e valores que estão codificados na Fundamentação teórica 10 língua – e que estão subjacentes à notícia, para quem aceita o discurso como 'natural'. Segundo Fowler, que estudou a linguagem dos jornais, a análise do produto textual revela proposições abstratas que não são necessariamente afirmadas e nem questionadas e tendem, segundo estudiosos da mídia, a estar em consonância com idéias de grupos controladores numa sociedade industrial-capitalista, porque o jornal é uma indústria com seus próprios interesses comerciais. Assim, o jornal é uma prática: um discurso que, longe de refletir com neutralidade a realidade social e os fatos empíricos, intervém no que Berger e Luckmann (1976) chamaram de ‘construção social da realidade'. Fowler refere-se à Halliday, para quem a forma linguística é afetada sistematicamente pelas circunstâncias sociais. Para Halliday (1985), primeiramente, a língua serve para a expressão de conteúdo: ela tem uma função representacional (ou ideacional). É por meio dela que o falante ou escritor estrutura em língua sua experiência dos fenômenos do mundo real. Em segundo, a função interpessoal viabiliza a introdução do falante no evento de discurso, isto é, a expressão de seus comentários, atitudes e avaliações, estabelecendo uma relação entre falante e ouvinte. Em terceiro, a função textual que é instrumental em relação às duas anteriores, diz respeito à criação de texto. É através dela que a língua constrói elos consigo mesma - através da coesão - e com a situação, fatos que tornam possível o discurso. “Por que a linguagem tem as características que tem?” Segundo Fowler (1991: 32), Halliday fornece uma explicação funcionalista detalhada da estrutura linguística em termos de configuração social: A natureza da linguagem está intimamente relacionada com as exigências que fazemos para ela própria, as funções a que deve servir. Em termos mais concretos, essas funções são específicas da cultura. A forma particular assumida pelo sistema gramatical da língua está intimamente relacionada às necessidades sociais e pessoais para a qual a linguagem deve servir (HALLIDAY, 1970: 142, apud FOWLER, 1991: 32). Fowler ainda trata da semiótica social, advertindo-nos de que dizer que a voz de um jornal é um constructo institucional e, por conseguinte, impessoal na origem, não é dizer que não seja pessoal no estilo. Através do uso de coloquialismo, Fundamentação teórica 11 sentenças incompletas, perguntas e uma variada tipografia sugerindo variação em ênfase, o texto escrito pode imitar a voz falada, expressando indignação ou admiração. O leitor que traz para o texto um modelo mental do estilo esperado, deve reconhecê-lo intuitivamente, através de conhecimentos previamente adquiridos, e ser capaz de ler valores que o texto incorpora. A noção de 'idioma público', de Stuart Hall (1978), deve ser mencionada aqui. Padrões de vocabulário mapeiam os registros e seus usuários; enfatizam preocupações especiais, projetam valores sobre o assunto do discurso; a sintaxe analisa ações e estados, moldando as pessoas com papéis e atribuindo a elas responsabilidade; afirmam-se ou implicitam-se temas recorrentes e generalizações. Se o leitor julgar que o modo coloquial de discurso lhe é familiar e confortável, acaba considerando a ideologia que sua estrutura incorpora como um 'senso comum', e a aceita. Assim, os leitores compartilham uma 'competência discursiva' comum, conhecem as afirmações toleráveis, as permissões e proibições de que fala Kress (1985) (louras são peitudas, trabalho é dever, jogo é emoção, greves constituem falta de patriotismo, etc.) e negociam o significado de um texto num modo de discurso 'sugerido' para o leitor através de opções linguísticas significativas. Por outro lado, continua Fowler, os jornais podem lançar mão de padrões estruturais que sugerem um discurso mais literário. Tais feições 'poéticas' como aliteração, frases paralelas, metáforas e jogo de palavras são abundantes. Valores deploráveis podem ser abertamente exibidos, e sugestivamente intensificados; mesmo um leitor crítico pode ser desarmado pelo prazer da grandiosidade do discurso. A seguir, apresento os principais conceitos elaborados pela Linguística Listêmico-Funcional, teoria apontada tanto por Fairclough, quanto por Fowler como aquela que fornece a metodologia mais adequada para a ACD. Como diz Eggins (1994), o que distingue a linguística sistêmica é que ela procura desenvolver uma teoria sobre a língua como um processo social e uma metodologia que permita uma descrição detalhada e sistemática dos padrões linguísticos. Fundamentação teórica 2.3 12 A Linguística Sistêmico-Funcional A Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) é uma proposta de Halliday (1985, 1994) e seus colaboradores, que explica o modo como os significados são construídos nas interações linguísticas do dia-a-dia. Por isso, requer a análise de produtos autênticos das interações sociais (textos orais ou escritos), levando em conta o contexto cultural e social em que ocorrem a fim de entender a qualidade dos textos: por que um texto significa o que significa, e por que ele é avaliado como é. Para Halliday (1985, 1994), a linguagem está estruturada para construir três tipos de significados simultâneos: experiencial, interpessoal e textual. Essa fusão é possível porque a língua é um sistema semiótico, ou seja, um código convencionalizado como um conjunto de escolhas. A língua possui um nível intermediário de codificação: a léxico-gramática. É esse nível que possibilita à língua construir três significados concomitantes, e eles entram no texto por meio das orações. Assim, Halliday diz que a descrição gramatical é essencial à análise textual. A LSF tem sido considerada como a abordagem teórico-metodológica mais adequada à análise crítica do discurso (FOWLER, 1991; FAIRCLOUGH, 1992; LEMKE, 1998). Halliday (HALLIDAY & HASAN, 1989) mostra essa visão dinâmica do texto ao considerá-la como um processo, ou seja, um sistema contínuo de escolhas semânticas, e como um produto de seu ambiente, circunscrito a um determinado contexto de situação. Segundo a Eggins (1994), a abordagem sistêmico-funcional oferece dois benefícios maiores para a análise das interações: (a) oferece um modelo de língua compreensivo e sistemático que possibilita padrões conversacionais serem descritos e quantificados em diferentes níveis e em diferentes graus de detalhe; e (b) teoriza os laços entre língua e vida social de modo que a conversa pode ser abordada como um modo de fazer a vida social. Por exemplo, a conversa casual pode ser analisada como envolvendo padrões linguísticos diferentes, que tanto atuam quanto constroem dimensões da identidade social quanto das relações interpessoais. São essas duas vantagens da linguística sistêmica que são responsáveis pela sua aplicação em uma série de domínios, por exemplo, Análise Crítica do Discurso, Fundamentação teórica 13 campo da educação (CHRISTIE, 1991a. b; CAPE & KALANTZIS, 1993; MARTIN, 1993, apud EGGINS, 1994), linguística computacional (e.g., BATEMAN & PARIS, 1991; MARTTHIESSEN & BATEMAN, 1991, apud EGGINS, 1994). Antes de entrar nas metafunções mais detalhadamente, passo a tratar do gênero – o contexto cultural, segundo LSF – noção que, segundo Vigner (1988: 33) “regula a leitura sobre um sistema de expectativas, e a inscreve em uma trajetória previsível, a partir da apreensão de um certo número de sinais”, e que por isso envolve o leitor em uma espécie de ‘armadilha’ coerente, que o faz aceitar as afirmações nele contidas. 2.3.1 Língua e contexto Para a LSF, a língua e seu contexto são estratificados, com cada estrato sendo realizado por um estrato inferior. Nesse modelo há níveis extralinguísticos de contexto teorizados como conceitos de cultura e situação (MARTIN, 1992); os níveis linguísticos de conteúdo consistindo de semântica (sistema de significados) e léxicogramática (sistemas de palavras ou sistemas de sinais); e o nível da expressão composto de fonologia (sistema de sons), gestos e grafologia (sistemas de escrita (BUTT et al., 2000: 7). Assim, o contexto é realizado na semântica; a semântica é realizada na léxico-gramática; a léxico-gramática é realizada por meio da fonologia, da grafologia e de gestos. A língua e o contexto estão interrelacionados, tanto que, sem um contexto, não somos capazes, em geral, de dizer que significado está sendo construído. Mas quais feições desse contexto afetam o uso da língua? Para responder a essa questão, os sistemicistas lançam mão de dois conceitos; gênero (contexto cultural) e registro (contexto situacional imediato), que compõem o contexto social. Mencionam também o contexto ideológico: a ideologia ocupa um nível superior de contexto, o que tem chamado a atenção dos sistemicistas, na medida em que, em qualquer registro, em qualquer gênero, o uso da língua será sempre influenciado pela nossa posição ideológica (nossos valores, nossas tendências, nossas perspectivas). Os conceitos de gênero e registro servem para mapear o estrato extralinguístico de contexto: gênero está ligado a contexto de cultura; registro, a Fundamentação teórica 14 contexto de situação. O gênero fornece uma visão macro da estrutura do texto através de sua orientação sintagmática. O registro está ligado à seleção de Campo, Relação e Modo em uma orientação paradigmática (i.e. perpassa os estratos da semântica, da léxico-gramática, é uma expressão física). 2.3.1.1 O registro Halliday (1978; 1985; 1994) sugere que os elementos de contexto que moldam o uso da língua sejam os do registro: (a) Campo (o assunto sobre o que a língua está sendo usada); (b) Relação (a relação entre os participantes) e (c) Modo (o papel que a língua exerce para a construção do texto). No entanto, Martin (1992) e Eggins (1994) incluem como contexto social tanto o registro (contexto situacional) quanto o gênero (contexto cultural). 2.3.1.2 O gênero Bakhtin (1997: 279) define ‘gêneros do discurso’ como sendo tipos relativamente estáveis de enunciados elaborados por esfera de utilização da língua. Inclui desde o diálogo cotidiano até a exposição científica. E com isso, gênero passa a ter um significado mais amplo do que o tradicionalmente aceito, saindo da área estritamente literária. Visando à sua operacionalização na LSF, Martin (1984: 25) define gênero como uma atividade, organizada em estágios, orientada para uma finalidade na qual os falantes se envolvem como membros de uma determinada cultura. Grande parte do choque cultural, diz ele, é de fato choque de gênero. Ele mesmo (MARTIN, 1985b: 248), diz que gêneros são como as coisas são feitas, quando a língua é usada para efetivá-las. Para Martin (1985) o gênero representa os processos sociais em etapas orientados para uma meta de uma dada cultura tais como a narrativa, uma anedota, uma reportagem, um relato, um procedimento, etc., e, por isso, são em geral rotulados de contexto de cultura. Fundamentação teórica 15 Usando a teminologia da linguística sistêmica, Fairclough (1992) diz que os estilos variam ao longo de três parâmetros principais, de acordo as Relações, o Modo e o Modo Retórico do Texto. Primeiramente, o estilo varia de acordo com o tipo de relação que existe entre os participantes na interação. Assim, podemos classificar os estilos com termos como formal, informal, oficial, íntimo, casual, etc. Em segundo lugar, os estilos variam de acordo com o Modo, isto é, se os textos são escritos ou falados ou combinação dos dois (por exemplo, escrito-para-ser-falado, escrito-como-se-falado, falado-como-se-escrito). Podemos também usar termos que em parte refletem o Modo, mas em parte refletem as Relações, o Gênero ou o Discurso, como conversa, escrito formal, escrito informal, acadêmico, jornalístico, e assim por diante. Em terceiro lugar, os estilos variam de acordo com o Modo Retórico e podem ser classificados em termos como argumentativo, descritivo e expositivo 2.4 O editorial jornalístico como um gênero No capítulo intitulado “Liderando o povo: a autoridade do editorial”, Fowler (1991: 208-221) caracteriza o editorial jornalístico como tendo uma função de simbólica importância, de partilhar da opinião do jornal, ao sustentar implicitamente a asserção de que as demais seções, por contraste, sejam puros fatos ou reportagens. O simbolismo textual é salientado por uma disposição e uma tipografia, sendo o editorial geralmente impresso na mesma posição e na mesma página todos os dias, e, além disso, um tipo gráfico especialmente ‘visível’ pode ser usado, como no caso da Folha de S. Paulo (ODA, 2008: 24). Reynolds (2000) diz que, contextualmente, o gênero editorial é reconhecível por ser frequentemente colocado em uma página interna (embora em alguns tablóides ingleses, possa estar na primeira página), proeminentemente marcado em relação aos demais, tais como cartas e artigos de destaque, e em geral encabeçado pelo logo do jornal e pela data. Tem um Layout diferenciado e de rotina, desacompanhado de ilustrações (embora isso possa estar mudando), e – mais significativo que tudo – não é assinado. Fundamentação teórica 16 De acordo com a definição de Rabaça e Barbosa (1987, apud, ARRUDA & FERNANDES, 2003: 3) Editorial é um texto jornalístico opinativo, escrito de maneira impessoal e publicado sem assinatura, sobre os assuntos e acontecimentos locais, nacionais ou internacionais de maior relevância. Define e expressa o ponto de vista do veículo ou da empresa responsável pela publicação (do jornal, revista, etc.) ou emissão (do programa de televisão ou rádio). O objetivo do editorial pode ser munir os leitores (os consumidores) de preconceitos, e assim contribuir para reter o hábito do leitor. É nesse ponto que a ideologia entra no editorial, na medida em que, como parte de suas funções, atinge e confirma interesses, preocupações e pontos de vista do leitor. Para Bonini (2003), os mecanismos linguísticos/sociais que caracterizam esses gêneros textuais ainda são poucos conhecidos em termos acadêmicos. O autor observa que, em termos gerais, os manuais de ensino de jornalismo (AMARAL , 1978, 1982; BAHIA, 1990; ERBOLATO, 1978; SODRÉ & FERRARI, 1986) são construídos como uma espécie de compêndio de sugestões, privilegiando mais os procedimentos práticos, e tratam dos gêneros como parte da técnica jornalística. Os gêneros mais comuns citados são: a notícia, a reportagem, a entrevista e o editorial. Os manuais, ainda segundo o autor, tratam do gênero como fixo, claramente delimitável e, por isso, passível de ser ensinado, sendo comum que os autores privilegiem o ensino da técnica jornalística (coleta de informações, o trato com as fontes, organização das informações, relato, composição do jornal), tomando, como eixo da explicação, o gênero notícia. Diz Toledo (2005, apud ODA, 2008: 28) que o primeiro ponto a considerar é que o editorial jornalístico é reconhecível como um gênero: isto é, etnometodologicamnte, o reconhecimento por parte de membros, que é um aspecto importante da realidade sócio-psicológico-retórico de gêneros. É reconhecível por motivos contextuais textuais. Na relação entre gênero e língua, Toledo (2005) cita Bazerman (1998: 401), para quem as feições léxico-gramaticais são assim o traço dos textos que está menos ligado a um gênero e não formam parte de condições para a atribuição de um texto a uma categoria genérica específica. Fundamentação teórica 17 A noção de gênero, para Toledo, traz a dimensão pragmática e incorpora a consideração de convenções sócio-culturais que existem ao redor dos textos ou unidades discursivas, e devem ser levadas em consideração na avaliação da compreensão em leitura. Não saberemos se o leitor entendeu a mensagem a menos que possamos ter certeza sobre seu conhecimento das dimensões contextuais que restringem a compreensão em diferentes níveis. 2.5 O gênero e o enquadre (frames) Em termos amplos, de acordo com Bednarek (2005), a teoria do enquadre trata do conhecimento de mundo. Numa primeira definição, um enquadre pode ser considerado como uma estrutura mental de conhecimento que capta feições ‘típicas’ do mundo. Desde a sua concepção, o conceito de enquadre tem interessado pesquisadores de vários campos e tradições (cf. TANNEN,1993a: 3; 1993b). Os pioneiros vieram da filosofia e da psicologia (cf. KONERDING, 1993: 8, apud BEDNAREK, 2005), mas seus conceitos foram desenvolvidos e reinterpretados por pesquisadores da inteligência artificial (MINSKY, 1975, 1977) e da sociologia (GOFFMAN, 1974, 1981) para nomear apenas alguns campos e autores. Segundo a autora, apesar do fato de não existir uma teoria de enquadre unificada com termos específicos e definições, a teoria de enquadre tem também, de um modo ou outro, conseguido aceitação ampla entre os linguistas, que se concentram nos vários aspectos do fenômeno do enquadre: Raskin (1985) e Konerding (1993), por exemplo, estão interessados na lexicografia e a relação entre enquadre e significado. Na verdade, a semântica de enquadre exerce um papel de importância vital na teoria do enquadre linguístico. The Round Table Discussion dos semanticistas do enquadre (publicado no Quaderni di Semantica 1985 e 1986) conta entre seus participantes com pesquisadores consagrados como Filmore, Hudson, Raskin & Tannen (ver FILMORE, 1985, 1986). O conceito de enquadre tem sido aplicado na análise do discurso (e.g. BROWN & YULE, 1984; CHAFE, 1977) com a preocupação em enquadres e a verbalização, i.e. ‘aqueles processos pelos quais o conhecimento Fundamentação teórica 18 não-verbal é transformado em língua’ (CHAFE, 1977: 41) e Shanon (1981) trata dos “indicadores linguísticos” (1981: 35) de enquadre. Bednarek (2005) relaciona a noção de enquadre com a de coerência, afirmando que, ao invés de supor que essas conexões existam independentemente do falante ou do ouvinte, a coerência é claramente definida em relação à contribuição do ouvinte: “ [...] a coerência somente é mensurável em termos da avaliação do leitor” (HOEY, 1991: 11). Assim chega-se a uma simples distinção entre coerência e coesão: a coerência não é uma propriedade inerente ao texto, ela se refere a relações lógicas de um texto e é estabelecida pelos ouvintes. Em outras palavras, ela se refere à extensão pela qual os ouvintes julgam que um texto ‘está unido’ e constitui um todo unificado. A coesão, por outro lado, é uma propriedade inerente ao texto; ela se refere a meios textuais explícitos pelos quais as conexões lógicas potenciais são sinalizadas. Em outras palavras, ela se refere ao modo pelo qual as sentenças ligam-se no texto por meios lexicais e estruturas (ver BUBLITZ, 1999). Assim, a autora supõe que são os ouvintes quem estabelece a coerência, e não os textos, embora os meios coesivos dos textos exercem um amplo papel ajudando os ouvintes a estabelecer a coerência. Em geral, operamos por princípio automático de coerência (cf. BROW and YULE, 1983: 66; BUBLITZ and LENK, 1999: 156), supondo que o texto seja coerente (e que o falante obedeça aos princípios de cooperação (GRICE, 1975) que são tacitamente aceitas na conversa. Daí porque o esforço que fazemos para criar coerência, apoiando-nos em pistas possíveis. Assim como acontece com o conceito de enquadre, a coerência também é uma noção relativamente vaga na linguística e não há ainda uma definição geralmente aceita ou uma teoria da coerência (cf. BUBLITZ, 1999:1). Bednarek não discute a noção em detalhe, restringindo-se a algumas observações referentes à diferença entre coesão e coerência. A coesão é uma propriedade de textos e refere-se aos meios linguísticos para prover ‘textura’ (i.e., liga as sentenças de um texto), tal como a referência, substituição, elipse, reiteração, colocação e conjunção, de Halliday & Hasan (1976), os padrões do léxico, de Hoey (1991) etc. A coerência, por outro lado, é mais bem descrita como conexão semântica, lógica ou cognitiva que está subjacente ao texto Fundamentação teórica 19 (cf. BEAUGRANDE and DRESSLER, 1981: 4; BUSSMANN, 1996: 80; THOMPSON and ZHOU, 2000: 121, apud BEDNAREK, 2005). Infelizmente, mas talvez inevitavelmente, continua a autora, o resultado dessa situação tem sido uma terminologia confusa: enquadre tornou-se um termo associado e ligado a fenômenos diferentes, embora relacionados. Ao mesmo tempo, uma série de outras expressões (script, schema, scenario) foi escolhida para referirse a essas noções. Diz ela que os termos competidores (scenario, schema, script) parecem diferir apenas em ênfase e não podem ser facilmente distinguidos, e que, considerando os exemplos usados em sua elaboração, eles podem ser vistos como instâncias particulares de enquadres. Assim a autora segue Fillmore, para quem enquadre é um termo geral para um conjunto de conceitos conhecidos de maneira diversa na literatura sobre a compreensão da linguagem natural, como schema, script, scenario. Ao invés de supor que essas conexões existam independentemente do falante ou do ouvinte, a coerência é hoje claramente definida em relação à contribuição do ouvinte: “[...] a coerência somente é mensurável em termos da avaliação do leitor” (HOEY, 1991: 11). Assim, chega-se a uma simples distinção entre coerência e coesão e sua definição de enquadres é hoje muito conhecida e referência sempre citada em: a coerência não é uma propriedade inerente ao texto; ela se refere a relações lógicas de um texto e é estabelecida pelos ouvintes. Em outras palavras, ela se refere à extensão pela qual os ouvintes julgam que este texto ‘está unido’ e constitui um todo unificado. Apesar de suas raízes estarem na filosofia e na psicologia, a teoria do enquadre está em geral associada ao trabalho de Minski na inteligência artificial (doravante IA). Em sua pesquisa, Minski toma a noção introduzida pelo psicólogo Bartlet em 1932: “[...] o passado opera mais como uma massa organizada do que um grupo de Elementos cada um dos quais retém um caráter específico” (BARTLETT, 1932: 197). Sendo um pesquisador da IA, Minsky é contudo, o primeiro a preocupar-se com a questão de como equipar computdores com o conhecimento de mundo que precisam para realizar certas tarefas impossíveis de outra maneira. Mas ele também afirma estar interessado em “uma teoria do pensamento humano” (MINSKY, 1975; 215), linguistica (e.g. KONERDING, 1993: 24; BROWN & YULE, Fundamentação teórica 1983: 328): schema 20 scenario, ideational scaffolding, cognitive model, ou folk theory (FILMORE, 1982: 111). De acordo com Minsky (1977: 355), um enquadre pode ser considerado uma representação mental do nosso conhecimento de mundo, uma estrutura de dados que está localizada na memória humana e pode ser selecionada ou recuperada quando necessária. Um enquadre é considerado uma estrutura: é “uma rede de nós e relações” que parece estar estruturada em diferentes níveis. Há os níveis fixos de topo, que possuem muitos terminais, “buracos” que precisam ser preenchidos por instâncias específicas de dados. Essas instâncias específicas, ou escolhas, podem ser sub-enquadres menores, e geralmente precisam preencher certas condições dadas pelos terminais através do que Minsky chama de marcadores. Para Bednarek, um dos problemas com a teoria de enquadre de Minsky é sua vaguidade. Isto é, na maioria das vezes, ele confia no poder de suas hipóteses bem como no poder do leitor de imaginar as ações cognitivas que ele propõe. Como o próprio Minsky admite, sua teoria está incompleta e fragmentada. Minsky considerou o enquadre um fenômeno cognitivo, uma estrutura que é estocada na mente. Na linguística, foi primeiro considerado um conceito linguístico por Filmore, mas, com o passar dos anos, foi experienciado como uma reinterpretação cognitiva; atualmente, muitos linguistas concordam com a definição de enquadre como sendo um fenômeno mental, uma estrutura de conhecimento (e.g. YULE, 1996: 85; TANNEN & WALLAT, 1993: 60; STUBBS, 2001: 3). Tais estruturas de conhecimento não são inatas, mas adquiridas através da socialização, construída a partir da experiência (da nossa experiência ou relatos de experiência por outros etc.), e são, portanto, dependentes diacrônica e culturalmente. A importância de dependência cultural foi mostrada por Tannen (1993b) e Yule (1996: 87); quanto à dependência diacrônica, ela é uma das consequências lógicas da socialização (e.g. antes da invenção do computador e outras inovações técnicas, as pessoas não possuíam nenhum enquadre a eles associado). Uma vez estabelecidos, os enquadres são bem estáveis (cf. STUBBS, 2001: 5), com alguns enquadres parecendo ser mais estáveis que outros, não tão propensos a mudar. A socialização é sempre tanto individual quanto social. Experienciamos a vida individualmente e subjetivamente, mas também possuímos certos padrões de percepção inatos que usamos para interpretar o mundo, e temos mais ou menos as Fundamentação teórica 21 mesmas experiências sociais dependendo de nossa cultura (cf. MÜLLER, 1984: 57, apud BEDNAREK, 2005). Tanto quanto eles são relevantes para a comunicação, os enquadres parecem ser convencionalizados e captam as feições prototípicas de uma situação. 2.6 Os Modos Textuais Reynolds (2000) mostra como a textura do discurso é criada por meio da mistura de modos textuais, no contexto do gênero editorial jornalístico, todos sobre o tema “eleições gerais britânicas de 1997”. Os dados constituíram-se de editoriais publicados em jornais representativos de visões políticas distintas, The Times (direita) e The Guardian (centro-esquerda). Foram coletados 12 editoriais do The Times num período que compreende o fim de dezembro de 1996 e 30 de abril de 1997 (véspera da eleição) e 22 do The Guardian do fim de novembro de 1996 a 1º de maio de 1997 (dia da eleição). Reynolds usa o termo “gênero” no sentido amplo bakhtiniano – que é, não num conceito literário, mas como um que se aplica a todo discurso como seu princípio, como “uma forma de ação social” (Miller ‘984), ou melhor, como ação sócio-retórica. O gênero motiva e formata socialmente o discurso e a participação discursiva de fora, enquanto a língua na qual um discurso ocorre restringe e capacita a expressão de, como se fosse, de dentro. Se a língua e o gênero juntos fornecem a estrutura para o discurso, então esses são realizados como textura. Textura é a instanciação no discurso de duas ordens virtuais de estrutura, ou seja, a estrutura genérica e a estrutura linguística (REYNOLDS, 1997). Textura é um conceito funcional que inclui a coesão - descrita pelos linguistas sistêmico-funcionais (HALLYDAY & HASAN, 1976; 1989; MARTIN, 1992), mas também e mais importante é a coerência. Textura é o resultado da mistura de modos textuais, que juntos envolvem o discurso e correspondem a funções para as quais usamos a língua. Há três modos representacionais: narrativo (contar estórias), descritivo (dizer como as coisas são) e argumentativo (expressar opiniões e crenças e tentar persuadir os outros dos seus pontos de vista). Há também três modos interpessoais: Fundamentação teórica 22 diretivo (dizer aos outros como, quando e/ou onde fazer algo), intencional (anunciar planos e intenções, e expressar compromisso de ação) e fático (estabelecer e manter contato com outros); e um modo metadiscursivo, o modo reflexivo, no qual se faz comentário sobre o discurso, o próprio e do outro. No caso do editorial de jornal, o foco está nos modos representacionais. Os termos – ‘narrativo’ e ‘argumentativo’ não são ‘gêneros’ por si, mas descritores dos modos que se combinam para formar gêneros. A combinação de modos textuais não é, contudo, um assunto aleatório. Em gêneros específicos, devido ao motivo social (MÜLLER 1984) da ação retórica que está sendo praticada, um ou outro modo será predominante. É a percepção comum dessa predominância que leva as pessoas a falar em ‘gênero narrativo’ ou ‘gênero argumentativo’. 2.7 A crypto-argumentação ou a argumentação secreta Kitis e Milapides (1996) afirmam que a análise não pode restringir-se a unidades gramaticais como sentenças ou estruturas menores do texto. Ao mesmo tempo em que prestamos atenção às estruturas lexicais e gramaticais do texto, nossa análise considera essas estruturas dentro de um enquadre de uma metáfora que não só permeia e domina todo o artigo, mas também forma a espinha dorsal da sua estrutura argumentativa. O que se salienta nessa análise multi-nivelada é a preponderância de certas suposições de natureza ideológica, que, embora não formem parte da estrutura formal do texto, são aspectos de interpretação subrepticiamente insinuados no subtexto do texto. Significados não são entidades congeladas, mas são gerados e re-gerados na medida em que são imersos nos processos e estruturas que os constituem, de um lado, ao mesmo tempo em que são constituídos por eles, de outro lado. O texto escrito desfruta de certa autonomia semântica, que é a configuração de uma forma de distanciamento. Como disse Ricouer (1981:201, apud KITIS e MILAPIDES, 1996): Fundamentação teórica 23 "A carreira de um texto escapa do horizonte finito vivido pelo autor. O que o texto diz agora importa mais do que o autor quis dizer, e toda exegese desenvolve seu procedimento dentro da circunferência de um significado que rompeu as amarras que o ligavam à psicologia de seu autor.” Por outro lado, dizem os autores, em qualquer análise que aspire revelar complexas ideologias e versões da realidade, deve-se prestar atenção ao 'co-texto' do texto. Assim, por exemplo, um artigo tenta não apenas informar, mas informar sob uma certa perspectiva, i.e., analisar determinada situação e ajudar a formar a opinião pública. Assim, o jornal em que estiver inserido, por exemplo, a Folha de São Paulo, permite aos leitores investi-lo com a mesma autoridade e credibilidade que se atribui ao jornal. A convicção e a sedução são processos que se incluem no hiper-processo da persuasão. A convicção envolve uma série de passos argumentativos, para que o leitor os aceite (VAN DIJK 1988, apud KITIS e MILAPIDES, 1996). Pelo fato de incluir a ativação e a participação do sistema cognitivo, essa aceitação constitui-se num processo cognitivo. Porém, a persuasão pode se apropriar da participação cognitiva do leitor no processo de aceitação da perspectiva do autor. Nesses casos, podemos falar de 'sedução' em vez de convicção. Sornig (1988: 97, apud KITIS e MILAPIDES, 1996) nota que "enquanto os mecanismos de convencimento e convicção trabalham obviamente ao longo de linhas cognitivas argumentativas, a sedução, ao contrário, em vez de confiar na verdade e/ou credibilidade de argumentos, explora a aparência externa e a aparente confiabilidade do persuasor". Pode-se conjecturar que os mecanismos de sedução na relação entre o persuasor e sua 'vítima' ou 'cúmplice' sejam identificáveis tanto no nível do texto quanto no do sub-texto, i.e., não somente no nível do léxico, estruturas e figuras de linguagem como componentes da estrutura local do texto, mas também no nível de sua coerência geral. O que está implícito em tudo isso é a seleção de um certo estilo. Devemos supor que há algo que não varia: "o significado subjacente ou referência deve ser conservado constante". "O estilo, assim, parece ser capturado pela conhecida frase 'dizer a mesma coisa através de diferentes modos" (VAN DIJK, 1988: 73, apud KITIS e MILAPIDES, 1996). Fundamentação teórica 24 O artigo estudado por Kitis e Milapides, tem uma estrutura textual quase toda constituída por afirmações descritivas e narrativas, cuja sequência de evento são narradas no tempo passado. As únicas exceções são o cabeçalho do artigo e o parágrafo final, caracterizados por um estilo claramente argumentativo. Os autores, em vez de focar nossa atenção nessas estruturas argumentativas, mostram que a feição da organização principal da estrutura do texto no nível global é a construção de uma metáfora dominante suscitando o 'script' (ou o mito) 'do fraco e do poderoso'. Essa metáfora é o fator predominante da transformação do estilo textual descritivo ou narrativo explícitos para um argumentativo camuflado, gerando uma avaliação ideológica do assunto relatado. 2.7.1 A política do 'apito do cão' (dog-whistle politics) Coffin & O'Halloran (2006) tratam do conceito embutido em 'dog-whistle politics', frase cunhada recentemente para capturar a forma de avaliação implícita. A comunicação política usa significados aparentemente neutros, mas que devem ser ‘entendidos’ como uma mensagem negativa pela comunidade alvo (MANNING, 2004, apud COFFIN & O'HALLORAN, 2006). Pode-se verificar, então, que a avaliação direta de um fenômeno de um intratexto prévio condiciona o leitor para uma avaliação indireta do mesmo fenômeno; o mesmo ocorre com a avaliação direta de fenômeno relacionado num inter-texto prévio. É o que se chama de logogênese - construção dinâmica do significado conforme o texto se desenvolve (HALLIDAY, 1992, 1993) e HALLIDAY & MATTHIESSEN, 1999). Essa análise combinada fornece, segundo os autores, uma explicação empiricamente fundamentada e sistemática de como uma reportagem publicada em 1º de maio de 2004 no tablóide popular britânico The Sun parece posicionar os leitores para ver os novos cidadãos da CE como uma ameaça ao estilo de vida e sistema de seguro ingleses – apesar do fato de não haver palavras expressando diretamente tal ponto de vista. Assim, são frases que – se descontextualizadas – não carregam mensagem negativa. Veja o texto (QUADRO 2.1): Fundamentação teórica 25 Quadro 2.1- Notícia do The Sun publicada em 01.06.2004. Os migrantes são os primeiros de muitos por Nick Parker.Charles Rae e Charles Yates A HISTÓRIA será feita hoje na medida em que novos cidadãos da Comunidade Européia (CE) começam a deixar suas pátrias para novas vidas na Inglaterra. Eles virão às centenas em ônibus, trem e avião, desesperados por trabalho pago decentemente – ou por qualquer emprego. Eles são cidadãos de dez novos estados-membros da CE que agora têm o direito de viver e de trabalhar na Inglaterra. Esses estados são a República Tcheca, a Estônia, a Hungria, a Letônia, a Lituânia, a Polônia, a Eslováquia, ao Chipre e Malta. Oito são estados muito pobres da antiga União soviética no leste europeu – com uma população totalizando 75 milhões. Nosso governo diz que há meio milhão de emprego esperando aqui para serem preenchidos. Para Coffin & O’Halloran (2006), com o sucesso do discurso liberal em criar maior sensibilidade para descrever minorias, políticos da direita e jornalistas políticos tornaram-se mais cuidadosos no modo como comunicam mensagens sobre a imigração. Como um ‘apito de cão’, políticos ou jornalistas podem pronunciar a mensagem “alto o suficiente” para que sua base política ou o leitor-alvo ouça, mas fora do alcance daqueles cujos ouvidos não estão ajustados para a mensagem. Consequentemente, isso a faz menos direta. Os autores apoiam-se na teoria da Avaliatividade (Appraisal). 2.8 A avaliatividade (appraisal) Martin (2000) distingue, nesse posicionamento pessoal do autor, que ele chama de Avaliatividade (Appraisal), os seguintes elementos: Compromisso, Atitude e Graduação. Examinando a avaliatividade, ele diz que a questão atinge um ponto crítico em relação à avaliação implícita. Quando a avaliação está explicitamente realizada, é possível a análise da atitude em positiva ou negativa em relação a algum evento, observemos alguns exemplos (MARTIN, 2003). Fundamentação teórica 26 (4) Felizmente, o Brasil peitou os EUA na ALCA. (5) Infelizmente, o Brasil peitou os EUA na ALCA. Mas o que fazer em casos nos quais a avaliação não está inscrita explicitamente, como em: (6) O Brasil peitou os EUA na ALCA. Então, considera que o significado interpessoal possa ser realizado por meio de configurações ideacionais, e propõe a noção de Token de atitude para denominar o modo pelo qual o significado ideacional pode ser “saturado” em termos avaliativos, ou seja, interpessoais. Dessa forma, enquanto os elementos de Atitude (MARTIN, 2000): Afeto, Julgamento e Avaliação – referentes ao posicionamento pessoal do autor do texto – são frequentemente inscritos explícita e diretamente em um texto (por meio de léxico como: “medo”, “covardemente” ou “significativo”), o Token de atitude é um termo que se refere à realização indireta de avaliação. Na essência, a Avaliatividade é um enquadre localizado na LSF, que mapeia os recursos que usamos para avaliar a experiência social (veja MARTIN 2000; MARTIN & WHITE, 2005; WHITE, 2003). Esses recursos podem se realizar através de várias estruturas gramaticais e do léxico. A análise da avaliatividade é um modo de capturar, de maneira compreensiva e sistemática, os padrões avaliativos globais que ocorrem num texto, num conjunto de textos ou em discursos institucionais. Veja (Quadro 2.2) a seguir: Quadro 2.2 - Recursos de AVALIATIVIDADE relevantes para a pesquisa Compromisso Afeto AVALIATIVIDADE Atitude Julgamento Apreciação (Avaliação Social) Graduação O Afeto envolve um conjunto de recursos linguísticos para avaliar a experiência em termos afetivos, para indicar efeito emocional positivo ou negativo de um evento. Fundamentação teórica 27 O Julgamento envolve significados que servem para avaliar o comportamento humano com referência a normas que regem como as pessoas devem ou não agir. A Avaliação social, uma sub-categoria de Apreciação, refere-se à avaliação positiva ou negativa de produtos, atividades, processos ou fenômenos sociais. A Graduação envolve um conjunto de recursos para aumentar ou diminuir a intensidade da avaliação. O Compromisso é um conjunto de recursos que capacita o escritor (ou o falante) a tomar uma posição pela qual sua audiência é construída como partilhando a mesma e única visão de mundo ou, por outro lado, a adotar uma posição que explicitamente reconhece a diversidade entre várias vozes. No primeiro caso, o escritor pode adotar uma declaração monoglóssica, sem negociação com o leitor, ou heteroglóssica, em que admite essa negociação. 2.9 O contrabando de informação Luchjenbroers e Aldridge (2007) mostram que as representações inspiram modelo de base positivo ou negativo, que os ouvintes precisam para avaliar as ações e possíveis motivos dos participantes do caso em questão. Para tanto, a metáfora (LAKOFF and JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1987, 1993) e o frame semântico (FILMORE 1975, 1982; MINSKY, 1975) são instrumentos teóricos usados para apreciar a força inferencial de tais modelos de base. A metáfora capta estereótipos culturais, codificados nas escolhas de descritores por parte do falante e é um poderoso instrumento na investigação das atitudes do falante. Os frames são conjuntos de informação aceitos culturalmente que envolvem qualquer termo lexical. A adequação do frame escolhido é também muito importante para ‘contrabandear uma informação’, um termo usado quando uma informação (negativa) é subrepticiamente inserida, por exemplo, nas declarações de uma testemunha. Componentes adicionais de significado são derivados dos frames de referência associados com cada escolha lexical, i.e., cada escolha desencadeia uma rede mais ampla de associações prototipicamente presentes no uso desse termo. O Fundamentação teórica 28 acesso do interlocutor a essas associações é dependente de sua experiência e compreensão das normais sociais das quais as escolhas lexicais são derivadas. Lakoff (1993) mostrou que a metáfora não é apenas uma feição da língua, mas do pensamento, no qual um domínio cognitivo (geralmente um domínio abstrato, experiencial) é entendido em termos de outro (veja também LAKOFF and JOHNSON 1980). Por exemplo, o tempo é um conceito abstrato, e os falantes através do mundo entendem (e descrevem) o tempo com referência ao modo como entendemos nossos movimentos e posições corporais. Na cultura ocidental, o futuro está na nossa frente (porque essa é a direção que olhamos quando andamos para frente), e o passado (onde estivemos) está atrás de nós. Socialmente, o progresso (i.e., mover-se para frente) é visto positivamente; um traço da vida, a antítese sendo a morte. A metáfora conceitual é fundamental para o modo como os falantes se expressam, e com a metáfora ilustramos como concebemos mundo e os nossos papéis nele. Do ponto de vista da linguística/semântica cognitivas do significado lexical, o significado é ‘enciclopédico’ por natureza: o sentido de uma palavra não está divorciado do seu contexto de uso. Assim, o significado linguístico está codificado na memória como um tipo de rotina cognitiva que se apóia em experiências no mundo, e a ativação de um conceito desencadeia os conceitos relacionados na memória. As associações que o falante traz para o discurso nos descritores que ele usa para falar sobre pessoas, ações e eventos influenciam (com o óbvio intento de manipular) o modo como os ouvintes avaliam a informação que lhes é apresentada. Desse modo, a escolha de um descritor em detrimento de outro pode expressar atitudes positivas ou negativas em relação à entidade em questão, dependendo das atitudes referentes a itens do domínio fonte. Os frames são representações conceituais da experiência que definem uma situação (na memória) e fornecem a estrutura de um evento que nos permite compreender como as partes se encaixam no todo; como um evento se desenrola; e predizer o que virá em seguida (RIBEIRO e HOYLE, 1996). Fundamentação teórica 29 Uma vez que um frame é acessado, todas as informações associadas relevantes para aquele frame e traços contextuais adicionais ficam imediatamente disponíveis para inferências suplementares. Quando um frame escapa do esperado, isso acontece em pequenos passos. a. A defesa perguntou a X se ela tinha pensado em divórcio. b. Se ela era sexualmente próxima a Sra. Barbara Y? c. e se ela estava envolvida em discussões sobre hedonismo d. e estilos de vida alternativa. Um ouvinte pode desencadear um frame progressivo feminista ou de mulher assertiva para uma mãe, conforme ela possa ter considerado um divórcio’. A implicação completa dessa linha de argumentação, envolvendo frame de conduta do conhecido para o desconhecido, pode na realidade ser mais condenador para o referente feminino do que os frames tradicionais. Para se compreender amplamente as escolhas lexicais feitas, precisa-se reconhecer a força do mito cultural que envolve o comportamento de uma mulher. De fato, para se apreciar inteiramente o poder inferencial de tais escolhas lexicais, o ouvinte precisa conceitualizar o evento inteiro, incluindo o poder relativo do papel de cada participante. É o frame que capta as experiências sociais e culturais bem como as expectativas associadas com essas referências. Juntamente com cada enunciado que produzimos, podemos ativar ou inconscientemente deixar pistas para a audiência sobre como percebemos as pessoas, ações e eventos no mundo que nos cerca. Mais ainda, contudo, cada escolha lexical ativa que fazemos revela mais diretamente como encorajamos os outros a pensar sobre certas pessoas, ações e eventos. 2.10 As vozes do discurso Thompson (1996) apóia-se no conceito de 'heteroglossia' (BAKHTIN, 1981), para tratar da linguagem do relato. Para ele, a idéia de que a língua seja inerentemente 'unitária' ou 'homogênea (tal como está implícita no conceito Fundamentação teórica 30 saussuriano de 'langue') é falha: cada grupo sócio-ideológico de uma sociedade tem sua própria 'linguagem'- 'linguagens de grupos sociais, “de profissionais” ou “de gênero”, ou de gerações'- assim criando um pano de fundo de heteroglossia contra o qual forças unificadoras e centralizadoras da sociedade tentam estabelecer homogeneidade. Um texto apóia-se nessas diferentes linguagens, que parecem ser mais ou menos vozes distintas, identificáveis. Kristeva interpreta a abordagem de Bakhtin desenvolvendo o conceito de 'intertextualidade' (FAIRCLOUGH, 1992): a idéia de que nenhum enunciado é novo, mas cada enunciado responde a, constrói sobre, e re-trabalha enunciados passados (e é ele mesmo disponível desse mesmo modo para futuros enunciados). Fairclough (1992: 104) mostra que isso pode acontecer de dois modos: como intertextualidade 'manifesta' (outros textos estão explicitamente presentes) ou como 'constitutiva': Na intertextualidade manifesta, outros textos estão explicitamente presentes no texto em análise, eles estão marcados por traços na superfície do texto, tais como as aspas. A intertextualidade constitutiva de um texto, contudo, é a configuração de convenções discursivas que entram em sua produção. Thompson focaliza a linguagem do relato na intertextualidade manifesta, chamando essa linguagem de 'vozes sinalizadas no texto', que incluem a linguagem de relato em que o falante ou o escritor sinaliza de alguma forma que uma outra voz está entrando no texto, mesmo de modo abafado ou ambíguo. Em termos de Sinclair (1988), a escolha acontece entre afirmação e atribuição; o texto é considerado como de afirmação se não estiver sendo especificamente atribuído à outra fonte. O caso da atribuição seria a opção marcada, e leva à investigação dos motivos dessa escolha pelo falante. A pressão para essa escolha pode se mais ou menos forte, e dependente de gênero: no discurso acadêmico, a não-atribuição de algo conhecido como sendo atribuível a alguém pode sinalizar ignorância ou plágio, mas ela é aceita como norma em livros-texto. Fundamentação teórica 31 2.10.1 Vozeamento e Ventriloquismo Para Lauerbach (2006), a representação do discurso de outros funciona como um instrumento pelo qual um interlocutor pode distanciar-se do que está sendo expresso, posicionando-se em um universo dialógico de vozes bakhtiniano além da sua própria voz (WHITE, 2000). Em termos de Goffman (1974, 1981), a figura além do falante está sendo animada sem que ela seja entendida como sendo a autora das palavras ou a responsável por elas. Esse tipo de representação do discurso é chamado por Lauerbach de ‘vozeamento’. Contudo, se a representação-imitação for feita pondo as palavras de alguém na boca de outros (e.g. falando para animais de estimação ou usando a falade-bebê) a isso Goffman (1974: 536) chama de “say-foring” ou ventriloquismo e é um modo vívido de fazer atuar o próprio discurso através de outro, e que não tem sido considerado em análises linguísticas e pragmáticas como sendo discurso indireto, prossegue a autora. Obviamente, a habilidade de fazer esse tipo de coisa aumenta imensamente o potencial estratégico dos comunicadores, do que decorrem em numerosas funções para a representação do discurso. Essas funções dependem em larga extensão do tipo de atividade ou gênero, bem como dos interlocutores. Elas permitem que se incorpore um ponto de vista ou opinião em perguntas, sem endossá-las, porém, convidando o entrevistado a reagir. Podem, assim, pelo menos na superfície, manter um posicionamento neutro e imparcial requerido pelo código profissional. Em resumo, o apoio teórico desta dissertação tratou, em especial, de três áreas para mostrar como a argumentação persuasiva é construída no texto: (i) o enfoque critico da análise do discurso, pelo qual se desvenda o conteúdo que subjaz ao texto; (ii) a LSF, que proporciona a teoria e a metodologia para a análise do editorial, que, por sua vez, conta com (iii) recursos utilizados pelo autor do editorial para persuadir seu leitor: a noção de frame; os modos textuais, envolvidos na argumentação secreta; a inserção subreptícia de informação; o posicionamento Fundamentação teórica 32 ideológico do autor através dos sistemas de avaliatividade; e a atribuição desse posicionamento a outras vozes que são introduzidas no texto. Metodologia 3 METODOLOGIA 3.1 Dados 33 3.1.1 A Folha de S. Paulo O jornal Folha de s. Paulo foi criado em 1960 como resultado da fusão de três jornais: Folha da Noite, Folha da Manhã e Folha da Tarde. Ele pertence ao Grupo folha, também proprietário dos jornais Notícias Populares, Agora São Paulo, da Agência de notícias Agência Folha, do DataFolha, da Publifolha e do Universo Online. Atualmente contra com uma tiragem média que varia entre 310 e 320 mil exemplares diários . Em 1984, implanta o Manual da Redação. 3.1.1.1 O editorial da Folha de S. Paulo Desde 1981, a Folha possui um projeto editorial, de circulação interna, como sistematização, e que fixa três metas: informação correta, interpretações competentes sobre essa informação e pluralidade de opiniões sobre os fatos. Pela primeira vez, um manual de jornalismo condensa uma concepção de jornal, da política editorial às fases de produção. A Folha de S. Paulo publica diariamente dois editoriais, cada editorial com em média 500 palavras distribuídas em 7 a 11 parágrafos. O corpus inicial investigado constitui-se de vinte e três editoriais desse jornal, que, de alguma forma, tratavam das eleições presidenciais, e que estão disponíveis na internet, publicados entre os dias 19.09.06 a 28.10.2006. Metodologia 34 Quadro 3.1 – lista de editoriais Cód. Data Título do editorial Assunto T1 19.09.06 Desmandos sem fim escândalo do dossiê T2 21.09.06 Rede de impunidade modo de ação de grupos petistas T3 23.09.06 Operação dossiê operação dossiê T4 24.09.06 Degradação intenção do PT de manter-se no poder T5 25.09.06 Sismo sob o PT incerteza sobre reeleição T6 28.09.06 É preciso debater participação nos debates televisivos T7 29.09.06 A reta da chegada Margem estreita entre candidatos T8 30.09.06 Os dois pólos divisão do eleitorado T9 01.10.06 De eleitor a cidadão democracia T10 02.10.06 Segundo turno resultado da eleição T11 03.10.06 Punição pelo voto não reeleição de políticos T12 08.10.06 De volta à rotina falta de propostas T13 09.10.06 Polarização popular perfil do eleitorado T14 10.10.06 O primeiro debate debate televisivo T15 11.10.06 Alckmin e a esfinge favoritismo de Lula T16 12.10.06 Exposição total início da campanha na mídia T17 15.10.06 Estelionato à vista ajuste fiscal T18 18.10.06 Resposta já origem do dinheiro T19 19.10.06 Reacomodação políticas públicas T20 21.10.06 Evasivas sabatina pela Folha T21 22.10.06 Mais debate prestação de contas T22 25.10.06 Poucas diferenças ausências de propostas T23 26.10.06 A ascenção de Lula favoritismo de Lula O meu objetivo é analisar um editorial referente ao pleito com o propósito de desvelar a mensagem subjacente ao texto. Trata-se de um editorial intitulado 'Desmandos Sem Fim', publicado no jornal Folha de São Paulo, em 19.09.06, ou seja, quinze dias antes do primeiro turno da eleição presidencial. Trazemos, a seguir, o texto do editorial, na íntegra (com 493 palavras): Metodologia 35 Desmandos sem fim COMPRA DE DOSSIÊ CONTRA TUCANOS REQUER APURAÇÃO RÁPIDA E ISENTA; DE NOVO, PETISTAS ESTÃO ENVOLVIDOS EM AÇÃO GRAVÍSSIMA DEPOIS DO episódio Waldomiro Diniz, do escândalo do mensalão, dos dólares no baixo-ventre e da devassa na vida privada de um caseiro, é espantoso que petistas estejam envolvidos em mais um desmando gravíssimo. As primeiras investigações sobre uma tentativa primitiva de comprar informações de um empresário ligado à chamada máfia dos sanguessugas envolvem o Partido dos Trabalhadores e um assessor direto do presidente da República. A impressão é que a seqüência de escândalos que varreu as cúpulas do governo federal e do PT em pouco mais de um ano não foi capaz de mudar comportamentos. Nem cogitações maquiavélicas acerca dos riscos evidentes de manobras escusas às vésperas de uma eleição em que Luiz Inácio Lula da Silva tem grandes chances de ser reconduzido ao Planalto parecem prevalecer. Duas pessoas - um militante do PT de Mato Grosso e um advogado contratado pelo comitê de Lula - foram presas pela Polícia Federal na madrugada de sexta-feira, em São Paulo, com R$ 1,7 milhão em dinheiro. O montante seria trocado por um dossiê supostamente envolvendo os candidatos do PSDB ao governo paulista, José Serra, e ao Planalto, Geraldo Alckmin, no esquema de venda de ambulâncias superfaturadas. O advogado detido afirma ter sido contratado pela Executiva Nacional do PT para negociar a aquisição do material; disse que no pagamento também estaria contida uma entrevista concedida dias antes a uma revista pelo pivô do escândalo dos sanguessugas, o empresário Luiz Antonio Vedoin - que também foi preso na capital mato-grossense. O mais grave no depoimento do advogado é que ele aponta, como o suposto interlocutor no PT da compra do dossiê, para Freud Godoy, até ontem assessor especial da Presidência e responsável pela segurança pessoal de Lula. Godoy admite ter tido contatos com o denunciante, mas nega ser o autor da compra dos papéis. A direção do partido também se desvincula da ação torpe. Metodologia 36 Evidentemente, não se pode tomar como fato a versão apresentada por uma pessoa diretamente envolvida na operação clandestina. O depoimento do advogado, no entanto, tem pontos que coincidem com outras evidências - e até agora não surgiu nenhuma hipótese alternativa acerca da motivação que levou a dupla a negociar com o empresário das ambulâncias. É por isso que esse episódio, que mistura gangsterismo com disputa eleitoral, precisa de uma investigação exemplar, rápida e isenta. A velocidade com que os escândalos se repetem na política é razão direta da impunidade. O Congresso absolveu os mensaleiros; o PT se esquivou da depuração interna e abençoou os rebentos do valerioduto; Lula fechou-se na posição de quem ignora o que se passa no gabinete ao lado. Vista sob esse ângulo, a desfaçatez dos que ainda ousam carregar malas de dinheiro sujo para comprar delações é só rotina - uma rotina que, se não for extirpada pelas instituições republicanas, vai lançar à vala comum a própria democracia. Procedimentos de análise 4 37 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE A análise do editorial seguirá as seguintes etapas: Etapa 1 – Inicialmente será estabelecida a Configuração Contextual (HALLIDAY & HASAN, 1989), através das variáveis de registro, ou contexto social, nos termos da LSF, que são Campo (o que está se passando), Relações (quem está envolvido em quais relações) e Modo (o papel da linguagem), e que afetam a interpretação de um texto. O estabelecimento do contexto é necessário para garantir a atribuição das categorias, que assim podem ser consideradas exercendo papel de avaliação positiva ou negativa no texto. Etapa 2 – Procurar-se-ão no texto os elementos que concorrem de maneira implícita, para a persuasão do leitor. Tais elementos são as categorias de análise que propomos para o editorial em foco: (a) o enquadre como promotora de coerência (BEDNAREK, 2005); (b) os modos textuais (REYNOLDS, 2000) (c) o 'dog whistle' e a Avaliatividade (COFFIN; O'HALLORAN, 2006); (d) o contrabando de informações (LUCHJENBROERS & ALDRIDGE, 2007). O texto será dividido em parágrafos, colocados em quadros (veja 'a'), em cuja direita (veja 'b') enumeraremos os casos mencionados em (i) a (iii), sublinhados no texto. Os quadros estão identificados por numeração de 5.1 a 5.11 na parte superior. Faremos um comentário para justificar a classificação estabelecida. Apresentamos um exemplo da análise: Quadro 4.1 - PRIMEIRO PERÍODO DO PRIMEIRO PARÁGRAFO - Análise do editorial (a) DEPOIS DO episódio Waldomiro Diniz, do escândalo do mensalão, dos dólares no baixo-ventre e da devassa na vida privada de um caseiro, (b) (i) modo textual (ii) contrabando de informação (iii) enquadre Procedimentos de análise 38 Comentário: O texto inicia-se com uma narração (REYNOLDS, 2000), situada em um adjunto adverbial de tempo, termo sintático acessório, mas que cumpre sua função de 'contrabandear' (LUCHJENBROERS & ALDRIDGE, 2007) uma informação importante para a argumentação que começa a ser tecida. Notemos que, através da narrativa, o editorial introduz julgamento negativo sobre acontecimentos que,embora ainda não inteiramente comprovados, são do conhecimento do leitor. é, segundo Kitis e Milapides (1969), parte da crypto-argumentação, ou seja, o argumento que é inserido no texto sob a aparência de narrativa. Por outro lado, o enquadre (frame) é disparado por essas menções, o que o faz completar um quadro muito mais vasto do que os descritos (BEDNAREK, 2005). Análise 5 39 ANÁLISE Iniciamos a análise, estabelecendo a Configuração Contextual, nos termos de Halliday e Hasan (1989) para, em seguida, procedermos a análise propriamente dita. 5.1 Etapa 1 - Configuração Contextual Como se trata de apontar elementos que subrepticiamente estabelecem um contexto negativo para o Partido dos Trabalhadores, é importante esclarecer as três variáveis de registro – Campo, Relações e Modo - a fim de garantir maior certeza nessa avaliação que as categorias ajudam a estabelecer no texto. Campo: Trata-se de um editorial escrito onze dias antes da eleição presidencial brasileira, ao qual concorria Lula (pelo PT – Partido dos Trabalhadores). Foi um período em que a mídia tratou da denúncia de vários fatos criminosos. envolvendo membros do PT. Relações: De um lado está o editorialista da Folha de S. Paulo e de outro, os leitores desse jornal. Notemos, conforme alertam Coffin e O’Halloran (2006), que esse leitor está diariamente exposto a determinado posicionamento do periódico, e portanto está munido do enquadre (BEDNAREK, 2005) necessário para entender mensagens na maioria das vezes implícita. Modo: Modalidade escrita. Linguagem formal. Presença de recursos característicos dessa linguagem como a nominalização, com propósitos persuasivos e de escamoteação do agente, e léxico de Julgamento negativo, porém contido sem cair no vocabulário de baixo calão. Análise 5.2 40 Etapa 2 – Aplicação das categorias ao editorial Quadro 5.1 – TÍTULO - Análise do editorial Desmandos sem fim avaliação negativa Comentário: O título é construído sob a perspectiva de uma avaliação de julgamento negativo (MARTIN, 2000). Quando 5.2 – LIDE - Análise do editorial COMPRA DE DOSSIÊ CONTRA TUCANOS REQUER APURAÇÃORÁPIDA E ISENTA; DE NOVO, PETISTAS ESTÃO ENVOLVIDOS EM AÇÃO GRAVÍSSIMA enquadre Comentário: O Lide cita fato presente no enquadre que o leitor traz para o texto para insinuar um envolvimento do PT (BEDNAREK, 2005). Quadro 5.3 – PRIMEIRO PERIODO DO PRIMEIRO PARÁGRAFO – Análise do editorial DEPOIS DO episódio Waldomiro Diniz, do escândalo do mensalão, (i) modo textual; (ii) contrabando; dos dólares no baixo-ventre e da devassa na vida privada de um de informação e caseiro, (iii) enquadre Comentário: O texto inicia-se com uma narração (REYNOLDS, 2000), situada em um adjunto adverbial de tempo, termo sintático acessório, mas que cumpre sua função de 'contrabandear' (LUCHJENBROERS & ALDRIDGE, 2007) uma informação importante para a argumentação que começa a ser tecida. Notemos que, através da narrativa, o editorial introduz julgamento negativo sobre acontecimentos que,embora ainda não inteiramente comprovados, são do conhecimento do leitor. É, segundo Kitis e Milapides (1969), parte da crypto-argumentação, ou seja, o argumento que é inserido no texto sob a aparência de narrativa. Por outro lado, o enquadre (frame) é disparado por essas menções, o que o faz completar um quadro muito mais vasto do que os descritos (BEDNAREK, 2005). Quadro 5.4 – SEGUNDO PERÍODO DO PRIMEIRO PARÁGRAFO - Análise do editorial é espantoso que petistas estejam envolvidos em mais um desmando declaração monoglóssica gravíssimo. Comentário: As informações de Julgamento negativo, no início da oração – num adjunto adverbial -, o editor tem preparado um terreno propício para uma declaração Análise monoglóssica. Assim o faz, através de 41 ‘é espantoso’, sem se preocupar em modalizar essa expressão. Notemos que as informações negativas iniciais ajudam a criar um ‘mundo textual’ (DOWNING, 2003), ou seja, não necessariamente provadas factualmente, mas predispõem o leitor a aceitar a declaração monoglóssica que é apresentada aqui. Quadro 5.5 – TERCEIRO PERÍODO DO PRIMEIRO PARÁGRAFO - Análise do editorial As primeiras investigações sobre uma tentativa primitiva de comprar (i) contrabando informações de um empresário ligado à chamada máfia dos de Informação; sanguessugas envolvem o Partido dos Trabalhadores e um assessor (ii) metáfora e (iii) enquadre. direto do presidente da República. Comentário: O texto insere uma informação contrabandeada (LUCHJENBROERS & ALDRIDGE, 2007) forma subreptícia na declaração, através da metáfora “máfia dos sanguessugas”, que, embora seja um adjunto adnominal – termo acessório da oração – tem como objetivo acessar o enquadre semântico (FILMORE, 1975, 1982; MINSKY, 1975) para que todas as informações relevantes associadas a esse enquadre fiquem imediatamente disponíveis para inferências suplementares. O que vem a seguir é um objeto direto que aponta, mesmo que indiretamente, para o propósito do texto que é alcançar o presidente da República. Quadro 5.6 – SEGUNDO PARÁGRAFO - Análise do editorial A impressão é que a seqüência de escândalos que varreu as cúpulas do governo federal e do PT em pouco mais de um ano não foi capaz de mudar comportamentos. Nem cogitações maquiavélicas acerca dos riscos evidentes de manobras escusas às vésperas de uma eleição em que Luiz Inácio Lula da Silva tem grandes chances de ser reconduzido ao Planalto parecem prevalecer. (i) enquadre; (ii) cryptoargumentação; (iii) uso de nominalização ‘impressão'. Comentário: Os fatos ocorridos são do pleno conhecimento do público leitor, já que amplamente divulgados pela mídia, incorporam-se no enquadre (BEDNAREK, 2005) que o leitor traz em sua interação com o texto. Todos esses fatos são desabonadores, realizados por membros PT. Em seguida há uma referência às “manobras escusas” que o PT estaria fazendo para incriminar os dois candidatos do PSDB. A retórica é apresentada no nível interpessoal para expressar um argumento no nível do “não-dito”: o nível da coerência subjacente do texto. Assim, o discurso é transformado em uma sedutora argumentação secreta (crypto-argumentação), contribuindo para a ideologia do texto (KITIS & MILAPIDES, 1997). Assim, mesmo Análise 42 não sendo claramente citado, é como se o nome de Lula estivesse integrando a informação. Notemos também o uso de 'impressão' para atenuar a afirmação: tratase de mera impressão pessoal; não se pretende declarar fato real. A questão é que essas 'impressões' entram para o enquadre do leitor. Quadro 5.7 – TERCEIRO PARÁGRAFO – Análise do editorial Duas pessoas - um militante do PT de Mato Grosso e um advogado contratado pelo comitê de Lula - foram presas pela Polícia Federal na madrugada de sexta-feira, em São Paulo com R$ 1,7 milhão em dinheiro. O montante seria trocado por um dossiê supostamente envolvendo os candidatos do PSDB ao governo paulista, José Serra, e ao Planalto, Geraldo Alckmin, no esquema de venda de ambulâncias superfaturadas. (i) contrabando de informação; (ii) mundo textual e (iii) heteroglossia. Comentário: Notemos que o nome de Lula começa a ser citado, embora como termo acessório, um adjunto adnominal. Notemos também o cuidado do editorialista, que, por enquanto, utiliza-se de escolhas lexicais modalizadores como: 'seria', 'supostamente', selecionando declarações heteroglóssicas, nos termos de White (2003). Por outro lado, novos contrabandos se imiscuem no texto, criando um 'mundo textual', nem sempre de conformidade com o mundo factual. Assim, por exemplo, as duas pessoas ainda não foram julgadas e, além disso, o fato de um cidadão portar R$1,7 milhão em dinheiro na madrugada não caracteriza necessariamente um crime. Quadro 5.8 – QUARTO PARÁGRAFO – Análise do editorial O advogado detido afirma ter sido contratado pela Executiva Nacional do PT para negociar a aquisição do material; disse que no pagamento discurso também estaria contida uma entrevista concedida dias antes a uma relatado. revista pelo pivô do escândalo dos sanguessugas, o empresário Luiz Antonio Vedoin – que também foi preso na capital mato-grossense. Comentário: O editorial, que até agora usava declarações modalizadas para atenuar suas afirmações, traz agora a voz de outro para relatar fatos pelos quais não pode testemunhar. Embora os fatos apontados pelo advogado detido possam ser apenas especulações, a questão é que essas informações contrabandeadas passam a fazer parte do enquadre do leitor, impondo-lhe uma linha de raciocínio que servirá de base para que o resto do texto faça sentido. Análise 43 Quadro 5.9 – QUINTO PARÁGRAFO – Análise do editorial O mais grave no depoimento do advogado é que ele aponta, como o suposto interlocutor no PT da compra do dossiê, para Freud Godoy, até ontem assessor especial da Presidência e responsável pela segurança pessoal de Lula. Godoy admite ter tido contatos com o denunciante, mas nega ser o autor da compra dos papéis. A direção do partido também se desvincula da ação torpe. (i) discurso Relatado e (ii) declarações monoglóssicas Comentário: Continua o apoio no discurso relatado, para introduzir em cena, um assessor especial e responsável pela segurança de Lula. Através de fatos ligados a essa pessoa – Gogoy -, há declarações monoglóssicas: 'o mais grave', 'denunciante', 'torpe'. Todo esse relato tem a função de tecer uma argumentação subjacente, através da qual o leitor é persuadido a, implicitamente, julgar Lula como o responsável por esses fatos julgados negativamente. Quadro 5.10 – SEXTO PARÁGRAFO – Análise do editorial Evidentemente, não se pode tomar como fato a versão apresentada por uma pessoa diretamente envolvida na operação clandestina. O depoimento do advogado, no entanto, tem pontos que coincidem com outras evidências - e até agora não surgiu nenhuma hipótese alternativa acerca da motivação que levou a dupla a negociar com o empresário das ambulâncias. É por isso que esse episódio, que mistura gangsterismo com disputa eleitoral, precisa de uma investigação exemplar, rápida e isenta. concessão feita ao enquadre do leitor. Comentário: O editorial inicia o parágrafo com 'evidentemente', e de fato, não se pode acreditar em pessoa diretamente envolvida na operação clandestina. Esta é uma concessão feita pelo editorial em respeito ao enquadre do leitor, que pode estar exatamente pensando nessa evidência. Porém, o trecho sublinhado tem uma segunda função: a de permitir a entrada no texto de evidências até então não contrariadas. Não deixa de ser um artifício inteligente, o uso dessa dupla função através de um enunciado apenas. E, tendo, dessa forma, colocado os necessários alicerces, o editorial pode fazer a declaração efetiva: "É por isso que esse episódio, que mistura gangsterismo com disputa eleitoral, precisa de uma investigação exemplar, rápida e isenta." Análise 44 Quadro 5.11 – SÉTIMO PARÁGRAFO – Análise do editorial A velocidade com que os escândalos se repetem na política é razão direta da impunidade. O Congresso absolveu os mensaleiros; o PT se esquivou da depuração interna e abençoou os rebentos do valerioduto; (i) contrabando Lula fechou-se na posição de quem ignora o que se passa no gabinete de informação e ao lado. Vista sob esse ângulo, a desfaçatez dos que ainda ousam (ii) enquadre. carregar malas de dinheiro sujo para comprar delações é só rotina uma rotina que, se não for extirpada pelas instituições republicanas, vai lançar à vala comum a própria democracia. Comentário: Um novo componente é adicionado ao texto. Componentes adicionais de significado são derivados dos enquadres de referência associados com cada escolha lexical (FILMORE, 1975, 1982; MINSKY, 1975). Do ponto de vista da linguistica/semântica cognitiva do significado lexical, o sentido de uma palavra não está divorciado do seu contexto de uso. As associações que o falante traz para o discurso nos descritores que ele usa para falar sobre pessoas, ações e eventos influenciam o modo que os ouvintes avaliam a informação que lhes é apresentada (LUCHJENBROES & ALDRIDGE, 2007). Nesse sentido, é extremamente eficaz, o resumo que o editorial faz dos desmandos do PT, finalizando com a exposição da meta, que procurou em todo o texto: a atribuição da responsabilidade pelos atos que foram expostos. Discussão dos resultados 6 45 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS A análise do editorial ‘Desmandos Sem Fim’ demonstrou que ele está permeado de recursos persuasivos, confirmando o que disseram Rabaça e Barbosa (1987) para quem o gênero jornalístico é um texto opinativo, escrito de maneira impessoal e publicado sem assinatura. Além de partilhar da opinião do jornal (FOWLER, 1991), é por ele que a ideologia entra quando esse atinge e confirma interesses, preocupações e pontos de vista do leitor. A compreensão desse gênero abriu caminho para uma análise mais aquilatada. Averiguei, ainda, que outros recursos foram utilizados pelo editorial para, sem um confronto direto, convencer o leitor dos desmandos que o PT teria cometido. Através do contrabando de informação, feita com uso de uma léxico-gramática adequadamente selecionada, o artigo imiscui informações de cunho avaliativo negativo do PT - petistas envolvidos em ação gravíssima; cogitações maquiavélicas; compra de dossiê etc. - iniciando por meio de termo acessório da oração - adjunto adverbial de tempo: “DEPOIS do episódio Waldomiro Diniz...” - em texto marcado por modalização. Assim, aos poucos, o leitor tem seu enquadre enriquecido com fatos que incriminam membros do PT - membros graduados e ligados diretamente ao Presidente - até que o próprio nome de Lula é declarado monoglossicamente – [...] advogado contratado pelo comitê de Lula...foram presas Com R$ 1,7 milhão...Freud Godoy responsável pela segurança pessoal de Lula... – sem dúvidas, com um objetivo maior. É notável a presença de trechos narrativos, carregados de julgamento negativo sobre os petistas - ‘é espantoso’; ‘petistas envolvidos em ação gravíssima’; ‘compra de informações’ - que têm a função de insinuar uma argumentação secreta, a crypto-argumentação, que de maneira subreptícia convence o leitor da verdade de um mundo, na verdade um mundo ‘textual’ - nem sempre de acordo com o mundo factual. Para tanto, contribui o fato de o leitor da Folha de S. Paulo, estar sendo exposto diariamente às opiniões e crenças desse jornal. Assim, funciona aqui o que Coffin e O’Halloran chamam de ‘dog-whistle poltics’, a avaliação de fatos entendida somente por aqueles a quem são dirigidos, ou seja, os leitores ‘preparados’ pelo jornal. Discussão dos resultados 46 Por outro lado, notemos o recurso de colocar na palavra de outros – no discurso relatado – a opinião que se quer calar na mente do leitor: “O advogado afirma”, “disse”; “o pagamento estaria”; “ele aponta como o suposto”. Também não poderia deixar de mencionar a palavra ‘impressão’. Um processo mental, com objetivo de atenuar a afirmação: trata-se de mera impressão pessoal; não se pretende declarar fato real. A questão é que essas ‘impressões’ entram para o enquadre do leitor. Após o que muita coisa pode ser declarada sem o risco de ter feito uma declaração de fato. A análise foi concluída apontando as associações que o falante traz para o discurso nos descritores que ele usa para falar de pessoas, ações e eventos e como influenciam o modo que os ouvintes avaliam a informação que lhes é apresentada, por exemplo, o contrabando de informações (LUCHJENBROERS & ALDRIDGE, 2007). A fundamentação teórica que embasou a análise mostra o quanto um texto guarda em seu bojo, embora nem todos possam aquilatar o seu valor em relação à persuasão que, se não entendida pode cercear a percepção da realidade. Considerações finais 7 47 CONSIDERAÇÕES FINAIS É através da leitura e da escrita que se inicia o processo de consciência dos direitos e deveres do cidadão. A leitura e a escrita são a base para uma leitura crítica do mundo e, se desejamos uma educação que almeja a mudança social e que possa promover mudança na sociedade (PENNYCOOK, 1994), é necessário a adoção de um conceito de leitura que privilegie a negociação e a construção de interpretações "situadas". A leitura é uma prática social, e para assim podermos considerá-la, é preciso contar com uma abordagem que dê conta dos vários tipos de conhecimento que interagem nos processos interpretativos: conhecimento linguístico-textual, conhecimento prévio do mundo, de práticas sociais gerais e discursivas (FAIRCLOUGH, 1992; BAYNHAM, 1995 e MOITA LOPES, 1996). Parte-se do pressuposto que o leitor crítico, necessariamente, lançará mão desses vários tipos de conhecimento nas suas tentativas de "desvelar" os discursos/ideologias dos textos, e se engajar em um processo social caracteristicamente crítico. Vemos que a linguística, hoje, conta com teorias robustas, reunindo conhecimentos de várias áreas, e que nos permite uma abordagem crítica e consciente do processo de leitura. Dizer apenas que se deve ser um leitor consciente não possibilita alguém a assim sê-lo. Precisamos de embasamento teórico que nos ensine a 'enxergar' um texto, produto resultante de processos complexos de informação, interação e recorrência à escolhas léxico-gramaticais adequadas. Espero, assim, ter conseguido mostrar a necessidade e a importância desse conhecimento para a formação de um leitor crítico. O passo seguinte será transformar esse resultado em prática didático-pedagógica ensejando melhor conscientização do educador no seu trabalho com os alunos. Esta dissertação, que reconheço precisar ainda de pesquisas futuras com certeza, ampliou minha perspectiva para vôos mais ambiciosos. Referências 48 REFERÊNCIAS AMARAL, L. Manual de Jornalismo. São Paulo: Alfa-ômega. 1978. BACCEGA, M. A. Televisão e escola: Uma mediação possível? São Paulo: SENAC, 2003. BAHIA, J. Jornal História e Técnica. São Paulo: Ática. 1990 BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. BARTLET, F.C. Remembering. Cambridge University Press, 1932. BAYNHAM, Mike. 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Paulo, 19.09.06, 493 palavras Desmandos sem fim COMPRA DE DOSSIÊ CONTRA TUCANOS REQUER APURAÇÃO RÁPIDA E ISENTA; DE NOVO, PETISTAS ESTÃO ENVOLVIDOS EM AÇÃO GRAVÍSSIMA DEPOIS DO episódio Waldomiro Diniz, do escândalo do mensalão, dos dólares no baixo-ventre e da devassa na vida privada de um caseiro, é espantoso que petistas estejam envolvidos em mais um desmando gravíssimo. As primeiras investigações sobre uma tentativa primitiva de comprar informações de um empresário ligado à chamada máfia dos sanguessugas envolvem o Partido dos Trabalhadores e um assessor direto do presidente da República. A impressão é que a seqüência de escândalos que varreu as cúpulas do governo federal e do PT em pouco mais de um ano não foi capaz de mudar comportamentos. Nem cogitações maquiavélicas acerca dos riscos evidentes de manobras escusas às vésperas de uma eleição em que Luiz Inácio Lula da Silva tem grandes chances de ser reconduzido ao Planalto parecem prevalecer. Duas pessoas - um militante do PT de Mato Grosso e um advogado contratado pelo comitê de Lula - foram presas pela Polícia Federal na madrugada de sexta-feira, em São Paulo, com R$ 1,7 milhão em dinheiro. O montante seria trocado por um dossiê supostamente envolvendo os candidatos do PSDB ao governo paulista, José Serra, e ao Planalto, Geraldo Alckmin, no esquema de venda de ambulâncias superfaturadas. O advogado detido afirma ter sido contratado pela Executiva Nacional do PT para negociar a aquisição do material; disse que no pagamento também estaria contida uma entrevista concedida dias antes a uma revista pelo pivô do escândalo dos sanguessugas, o empresário Luiz Antonio Vedoin - que também foi preso na capital mato-grossense. O mais grave no depoimento do advogado é que ele aponta, como o suposto interlocutor no PT da compra do dossiê, para Freud Godoy, até ontem assessor especial da Presidência e responsável pela segurança pessoal de Lula. Godoy admite ter tido contatos com o denunciante, mas nega ser o autor da compra dos papéis. A direção do partido também se desvincula da ação torpe. Evidentemente, não se pode tomar como fato a versão apresentada por uma pessoa diretamente envolvida na operação clandestina. O depoimento do advogado, no entanto, tem pontos que coincidem com outras evidências - e até agora não surgiu nenhuma hipótese alternativa acerca da motivação que levou a dupla a negociar com o empresário das ambulâncias. É por isso que esse episódio, que mistura gangsterismo com disputa eleitoral, precisa de uma investigação exemplar, rápida e isenta. A velocidade com que os escândalos se repetem na política é razão direta da impunidade. O Congresso absolveu os mensaleiros; o PT se esquivou da depuração interna e abençoou os rebentos do valerioduto; Lula fechou-se na posição de quem ignora o que se passa no gabinete ao lado. Vista sob esse ângulo, a desfaçatez dos que ainda ousam carregar malas de dinheiro sujo para comprar delações é só rotina - uma rotina que, se não for extirpada pelas instituições republicanas, vai lançar à vala comum a própria democracia. Anexos 55 [T2] Folha de S. Paulo, 21.09.06, 515 palavras Rede de impunidade LULA PERDEU CHANCES QUE TEVE PARA ACABAR COM O MODO DE AÇÃO AUTORITÁRIO E CORRUPTO DE GRUPOS PETISTAS NO GOVERNO JORGE LORENZETTI, diretor de banco público, colaborador de uma fundação agraciada com R$ 18 milhões em recursos federais e churrasqueiro presidencial, era “analista de risco e mídia” da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva; Oswaldo Bargas, exsecretário do Ministério do Trabalho que, segundo “Época”, formou dupla com Lorenzetti para oferecer à revista um dossiê contra os tucanos, atuava no programa de governo. Ricardo Berzoini, ex-ministro que só anteontem se lembrou de que fora avisado da negociação com o semanário, preside o PT e chefiava a campanha à reeleição. Expedito Veloso, o mais novo personagem do enredo, deixou ontem a diretoria de Gestão de Riscos do Banco do Brasil. Esse é, passado o momento inicial da chamada crise do dossiê, o primeiro esboço do “dispositivo” petista posto em marcha na tentativa de comprar informações contra adversários. A responsabilidade de Berzoini, demitido ontem da coordenação da campanha, não desaparece quando diz que desconhecia o conteúdo da conversa de um subordinado com a imprensa. Se soube do encontro, mas não procurou informar-se do assunto a ser abordado, no mínimo se omitiu. Conceda-se a Berzoini em um ponto. Dentro do grande mapa das falcatruas em que seus correligionários foram flagrados ao longo do governo Lula, a alegação do presidente petista de que não sabia de nada ganha sentido. Do mesmo modo que o presidente da República diz ignorar o que ocorria nos gabinetes vizinhos, as arapongagens de subordinados teriam passado ao largo do chefe da campanha do PT. Tanta desinformação poderia soar a descontrole. A repetição “ad nauseam” dos desmandos, no entanto, vai revelando uma certa ordem no caos aparente. Nessa lógica, a ignorância a respeito do que se faz nos escalões inferiores do partido e do governo interessa aos chefes hierárquicos. O nada saber é o mecanismo que inibe que a “queda de um aparelho” venha a comprometer toda a organização. Táticas herdadas da guerrilha urbana, solidariedades forjadas em décadas de luta entre grupos sindicais e acesso facilitado aos cofres e aos contratos públicos -aos financiadores da política, portanto- se amalgamam para formar a rede “lulo-petista”. Os grupos se movem com relativa autonomia, parecem fazer o que bem entendem, conspurcam as fronteiras entre Estado e partido, mas estão todos conectados entre si a sustentar um projeto de permanência no poder. Lula teve várias oportunidades para liquidar esse submundo corrupto e autoritário instalado na máquina federal; teve meios para patrocinar depuração radical em seu partido. A imposição de uma derrota cabal ao modo “companheiro” de gerir o Estado era necessária. Mas o presidente preferiu o despiste e a acomodação. Foi o maior patrocinador da impunidade, alimento da desfaçatez que levou um grupo de “companheiros” a tentar comprar delações com dinheiro sujo em plena reta final da campanha. Agiu bem o TSE ao abrir investigação sobre o caso do dossiê. O melhor antídoto contra a delinqüência em rede é o estabelecimento das responsabilidades de cada um -o que o tribunal tem todas as condições de fazer. Anexos 56 [T3] Folha de S. Paulo, 23.09.06, 510 palavras Operação dossiê CREDIBILIDADE DA POLICIA FEDERAL ENFRENTA SUA PROVA DE FOGO; LANCE DECISIVO É IDENTIFICAR ORIGEM DO DINHEIRO. IMPESSOALDADE é o que se espera – mais, é o que se exige – da Polícia Federal na condução dos inquéritos acerca do chamado escândalo do dossiê. Não é trivial apurar todas as circunstâncias da trama criminosa que, partindo do núcleo da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à reeleição, deslanchou um plano para desmoralizar adversários através da compra de informações com dinheiro sujo. O que está em jogo são as condições eleitorais, legais e políticas para um eventual segundo mandato do presidente da República. Toda sorte de pressão é esperada quando falta apenas uma semana para a votação. A favor da corporação pesa o seu comportamento recente. A Polícia Federal evoluiu institucionalmente ao longo do governo Lula. Hoje ela investiga delitos e planeja ações com mais eficiência. Suas "operações" anticrime, que foram se multiplicando com o passar do tempo, têm tido impacto positivo no combate a bastiões simbólicos da impunidade - juízes, políticos e empresários não deixaram de ser investigados e detidos pela PF. Os agentes federais, no entanto, nunca tiveram de lidar com uma situação politicamente tão espinhosa quanto a deflagrada pela prisão, na capital paulista, de dois petistas com R$ 1,7 milhão na semana passada. O episódio do caseiro Francenildo Costa, cujo sigilo bancário foi violado pela Fazenda em março deste ano, é o que mais semelhanças guarda com o das diatribes dos "companheiros" Jorge Lorenzetti, Oswaldo Bargas "et caterva". Daquela feita, porém, a pressão política caiu bastante depois da demissão de Antonio Palocci Filho, e o trabalho da PF acabou subsidiando denúncia aparentemente vigorosa do Ministério Público contra o ex-titular da Fazenda. Agora, é o presidente da República, que não pode ser afastado como se afasta um ministro, que está no centro da crise. O balanço preliminar da ação da Polícia Federal contra o "dispositivo de inteligência" da campanha lulista tem altos e baixos. A corporação logrou detectar o ato ilícito ainda em gestação e agir com rapidez para deter os suspeitos em flagrante, minimizando a chance de destruição de provas. Foi parcial, porém, ao mostrar apenas parte das evidências capturadas. Exibiu as fotos que supostamente comprometiam José Serra, mas proibiu a divulgação de imagens do dinheiro apreendido com a dupla do PT. Suspeita também foi a decisão de aumentar o controle da cúpula da PF sobre o caso, afastando do inquérito o delegado que deteve os petistas em São Paulo. A prova de fogo da Polícia Federal ainda aguarda o lance decisivo: a revelação da fonte do dinheiro para remunerar o "dossiê" contra candidatos tucanos. Não há razão para demora nesse procedimento. Os bancos devem dar ciência imediata ao Coaf - órgão da Fazenda que monitora lavagem de dinheiro- sobre cada saque acima de R$ 100 mil. Daí a se identificarem o sacador e suas conexões com o resto da quadrilha, não há de ser difícil. Uma falha da PF nesse caso -um flerte com a politicagem- e vai para o ralo a credibilidade conquistada pelo órgão até aqui. 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