cap.
1
OURO
Era o domingo anterior
a Pentecostes, e celebrávamos
nosso triunfo. A festa era para o Roque e o Mário. Os dois eram
só alegria. Passeavam pelo jardim de braços dados, e as folhinhas que caíam das árvores dançavam em volta deles. À luz
do sol, elas irradiavam um brilho cor de ouro. “Parece confete
dourado de Natal”, pensei, emocionado. Mas o Mário e o Roque
pareciam nem estar ligando para a chuva de ouro. Para eles, só
importava uma coisa: estavam juntos de novo.
Mário conseguira voltar do deserto de gelo. Havia superado
a fratura, a ruptura do ligamento cruzado, a pena de si mesmo — e
a raiva e o ódio de seu melhor amigo. Pois é, maldição! Roque
tinha sido culpado pelo acidente do Mário. Ele havia atirado o
amigo, que estava em sua melhor forma, direto no inferno. Mas
depois ele lutou pelo Mário. Roque, o mago, não desistiu até Mário
encontrar de novo sua intuição e tornar-se o camisa 10
mais feroz que já existiu
no mundo inteiro. Pois
é, e foi por isso que o
Mário lhe retribuiu
tudo o que ele fez,
conversando com o
pai do Roque, o craque do
futebol brasileiro, e depois o ajudando nos treinos até ele entrar novamente em forma e
ser recontratado pelo Bayern de Munique. Pois é, e foi por isso
que o Roque continuou morando aqui, junto de nós. Por isso, ele
não precisou se mudar para nenhum outro país. Por isso, pôde
continuar jogando no Feras Futebol Clube e, por isso, agora
somos um time completo de novo.
Não, não é verdade. Agora somos mais ainda. Somos
melhores e mais fortes do que antes. Havíamos derrotado o pior
dos inimigos: o ódio. E nada no mundo poderia nos separar. Nem
agora, nem nunca, em toda a eternidade. Temos certeza disso.
Por isso, estávamos celebrando, e justamente no lugar mais bonito que existia para mim, Ioiô, o que dança com a bola. Para
mim, o menino do abrigo cuja mãe bebia demais.
— Uh-la-la! Seu prrato está fazendo um carra muito triste! — disse Edgar, o pinguim, suspirando. O mordomo dos pais
do Marcos usava um aventalzinho branco de babados sobre o
fraque, e parecia uma Mary Poppins careca. — Mas não apenas
seu prrato! O-ooh, Monsieur du Soleil!
Edgar olhou para mim como se todo o gelo do Polo Sul
tivesse derretido. Depois colocou um monte de salada de batata
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— Ó mano, mano! — suspirou ele, feliz da vida. — Você
viu aquele passe de sonho, tipo arco de vassoura de bruxa?
Eu quis falar alguma coisa, mas o Max se adiantou.
— É claro que vi! Por mil trovões! — disse o homem do
chute mais forte do mundo, sentando-se ao meu lado. — O Mário
pegou a bola num voleio e mandou ela por cima do campo inteiro.
— Cavumm! Uuusch! E catata-vuum! É isso? — disse o
Zezinho, a sétima cavalaria, dando risada. O irmãozinho de sete
anos do Júlio “Fort Knox” sorriu para mim. Ele também se sentou ao meu lado, como os outros Feras. Estavam agachados ou
no meu prato, um monte que com certeza era mais alto que o
Everest, com as salsichas mais suculentas do universo por cima,
e regou tudo com um dilúvio de ketchup. Desmoronei com o peso
do prato, e caí no gramado como um saco de areia. Ufa, já era a
terceira porção. Logo, logo eu ia explodir. Maldição! E ainda por
cima, aquela mousse francesa de chocolate cremosa, chamada
“Edgar, Le Pinguine”, ainda estava inteirinha, em cinco tigelas
gigantes, sobre a mesa ao lado da churrasqueira.
— O-ohh! O senhorr não está se sentindo bem? Está
doente? — perguntou ele.
— Como é? O quê? — perguntei, arrotando tão alto que
parecia um trovão.
Edgar franziu a testa em rugas bem profundas.
— Excusez-moi, o senhor está bem?
— E como ele está! — disse o Marcos, rindo. Depois se
sentou ao meu lado no gramado, sorriu para mim e, como se fosse
um sinal, arrotou junto comigo, bem alto e escandalosamente!
— Oh, sujeira vaporenta dos demônios! Ioiô, que dia!
O invencível deitou-se de costas e cruzou os braços atrás
da cabeça. Olhou para cima, para o céu de primavera, e limpou
do rosto o confete dourado que flutuava à nossa volta.
deitados em volta de mim. Suas camisetas negras brilhavam com
a luz dourada do sol, e, um depois do outro, todos contaram a
história inteira pela centésima vez...
O jogo acontecera naquela tarde, o Atlético contra o
Bayern. O time da liga nacional do Bayern. Maldição! Vocês ouviram bem! Foi o jogo de teste do pai do Roque, que passou pela
prova com muita bravura. Pois é! Então, no meio tempo ele foi
agradecer ao Mário. Por mil trovões, é que o Mário havia treinado com ele. Ele fez isso dia e noite, e agora o Ricardo queria
que ele entrasse no jogo. Os outros jogadores acharam que ele
estava brincando. Mas o Michael Ballack entendeu a intenção
do Ricardo. Tirou a camiseta e ofereceu-a ao Mário, que a vestiu respeitosamente e, apesar de ela estar grande demais para
ele — tão grande que mais parecia um vestido, chegando a cobrir
o calção e os joelhos — ele se enfiou nela sem dificuldade. Ele
estava ali, novamente! Era de novo o Mário de antigamente, a
intuição em pessoa, e por isso ele não vacilou nem um segundo.
A bola voou direto para cima dele. Era um chute poderoso do meio
de campo do Atlético. Mas o Mário pegou a bola num voleio, direto
do ar e, com um passe de sonho, tipo arco de vassoura de bruxa,
mandou-a para o espaço em direção ao pai do Roque, o craque
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brasileiro do Bayern. Este fez aquela bicicleta copacabânica de
armário de vassoura, mandou a bola de volta ao ataque, lá do
tiro de meta, exatamente para a intermediária adversária, onde o
Mário apareceu de repente, do nada. Chutou a bola no contrapé
do goleiro, e Ricardo, que sabia muito bem a jogada que o Mário
estava fazendo, colocou-se no lugar certo, no momento certo,
e, com um gingado de dançarino de hip-hop, mandou-a para o
fundo da rede.
— Santa muvuca! — disse o Fabi, rindo, e colocou seu braço
no ombro do Léo, o driblador. — Seu irmão é mesmo uma peste!
— É claro! — disse Léo, sorrindo. — Mas só para aqueles
que estão contra ele.
— Coloco minhas duas pernas no fogo por isso! — chiou
Félix, o furacão, e Vanessa, a destemida, por um instante esqueceu o que estava fazendo.
— Minhas pernas, minha alma e todo o meu coração! —
exclamou com tanta força, que todos ouviram.
Mário ficou vermelho feito um pimentão.
— Ei! Cuspe viscoso de jacaré! O que você quer dizer com
isso? — Roque, o mago, parecia ter levado uma pancada de um
tijolo. — Mário, eu pensei que a Nessie estivesse caidinha pelo Fabi.
O brasileiro zoava diabolicamente. Mas sua alegria foi
seguida pela dor. De uma dor tripla, pois foi atingido por três
pancadas no queixo, uma atrás da outra. A primeira veio do Mário,
a segunda foi um presente da Vanessa e a terceira foi um acréscimo do Raban.
— Erva daninha bolorenta! — xingou o menino dos óculos
de fundo de garrafa. — Roque, contenha-se! Não temos tempo
para essas besteiras!
— É sim! Titica de galinha e anis estrelado! — ralhou o Júlio
“Fort Knox”. — Raban tem razão! Trata-se da Copa do Mundo.
— E ela vai acontecer em exatamente uma semana! —
acrescentou o Félix, que, como sempre, estava profundamente
sério. Ele organizara sozinho nossa participação nas eliminatórias
para a Copa do Mundo Infantil.
Mas aos olhos de Denis, a locomotiva, o torneio já estava
ganho.
— Oh, tapete oriental voador! — exclamou a locomotiva
com tanta emoção, que seu topete moicano até se curvou. — E,
antes de nos classificarmos para o campeonato, ainda vamos
mandar o time do Pinheiro Branco para a lua.
— É, sim! E depois direto para o inferno! — acrescentou
Marcos, o invencível, esticando a mão para bater na mão do
Denis. — E então seremos campeões! Campeões do mundo!
— Pode crer! — sorriu a locomotiva. E entrou na pedida
do Marcos de “Tudo está bem...”.
— É, sim! Quando se é um Fera! — sorriu o Marcos, completando. — E nós somos isso mesmo! Não é mesmo, Ioiô? Ei,
não estou certo?
Marcos, o invencível, ria e me batia nos ombros.
— Oi, mano! Mano! Fala aí, Ioiô! Estamos ou não mais
ferozes do que nunca? E as férias estão começando agora!
Ele se referia ao feriado de Pentecostes, mas para mim
tanto fazia.
— Ei, Ioiô! O que está acontecendo? Está tudo bem?
Marcos deu outra batidinha no meu ombro, mas eu não
disse nem uma palavra. Também não reagi ao piparote. Há muito
eu nem estava prestando atenção ao que eles diziam. Meus
pensamentos estavam em outro lugar. Eles brincavam com os
confetes no ar, que derretiam na minha língua como a mousse
do Edgar, que estava sendo comida o tempo todo.
O sol se pôs e mergulhou o jardim e a mansão em que
o Marcos morava em sua luz dourada vermelho-escuro. Edgar
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pendurou lampiões e lanternas por todos os lados. Eles dançavam
e oscilavam suavemente ao vento. “Parecem vaga-lumes gigantes”,
pensei, admirado, e nem notei a voz dentro de mim que me advertia.
— Psst, Ioiô! Tome cuidado! — sussurrou-me ela. — São
luzes falsas. Falsas, ouviu bem?
Mas eu nem quis ouvir. A luz das lanternas atraía as folhas
das cerejeiras e meus pensamentos para a sua magia, como
mariposas. Eu só conseguia ver o enorme jardim e a mansão
gigantesca, e imaginava estar no lugar do Marcos, morando ali.
Imaginava que o pai do Marcos era meu pai. Então sua mãe também seria a minha mãe. E naquele dia eu a vi mais de perto, pela
primeira vez. Quero dizer, vocês sabem, ela é maravilhosa, é uma
atriz. O Marcos me disse isso uma vez, mas agora ela caminhava
pelo jardim como uma fada. Seu sorriso mágico transformava tudo
em ouro, e eu contava o número de olhares que ela me dirigia.
Mas sua força mágica batia e voltava na roupa do Valdir.
Era aquele terno de risca de giz com a camisa vermelha de bolinhas, que havíamos dado de presente no seu aniversário junto
com as botinas de couro de cobra. É que, na verdade, ele devia
usar a roupa que combinasse melhor com ele. Pois é, caramba,
afinal, ele era o melhor treinador do mundo. Mas aqui, no jardim,
ao lado da fada e à luz faiscante dos vaga-lumes, aquele terno
parecia um velho saco de batatas. Nele, o Valdir destoava do
mundo, tanto quanto eu nas minhas sandálias remendadas. Ou
quanto essa mulher, que agora estava à minha frente.
Ela era pequena, gorducha e usava uns óculos horríveis
na ponta do nariz vermelho.
— Oi, senhora Barata! — exclamou o Marcos, animado,
e me deu um tapa nas costelas. — Ei, Ioiô, acorda! Sua mãe
chegou!
Eu me encolhi todo, assustado. Naquele instante, os lam-
falsos, da luz que piscava, de vaga-lumes gigantes, e que só
piões estouraram. Não, não eram os do jardim, mas aqueles
senhora Barata. Foi o que eu acabei de lhe dizer.
existiam nos meus sonhos. Acordei como se tivessem me atirado
um jato de água fria e fiquei furioso, com muita raiva.
— Vamos! Estou pronto. Vamos embora! — disse eu à
mulher, que era minha mãe, começando a caminhar em direção
ao portão da saída.
Então, o Marcos me segurou.
— Ei, Ioiô! Espere! Talvez sua mãe esteja com fome, querendo comer alguma coisa.
— Como é? — perguntei, virando-me e fuzilando-o com o
olhar, mas o Marcos ignorou meu protesto.
— Mamãe! — chamou ele, em voz alta. — Temos visita. A
senhora poderia, por favor, dar uma atenção à senhora Barata?
Ela é a mãe do Ioiô.
Ele disse aquilo numa voz tão alta que todos ouviram e, no
instante seguinte, ficaram em silêncio. Afundei no chão de tanta
vergonha, e o olhar com que a mãe do Marcos observou a minha
mãe quase me matou.
— Por favor, mãe! — sussurrei.
Minha mãe ficou vermelha feito um pimentão. Tão vermelha quanto o seu nariz. Ela sentiu como eu me envergonhava
dela e ficou com um nó na garganta, maior que um melão inteiro.
— Nãao, mu-uito o-obrigada! — disse ela, gaguejando. —
Já-á esto-ou satisfeita. Be-em satisfeita m-mesmo.
Minha mãe tentou sorrir, mas o sorriso congelou no seu
rosto.
— Ah, é? Mas que pena — respondeu a mãe do Marcos.
— Mas a senhora bebe alguma coisa, não é? Quero dizer, só um
copinho. Ainda há espaço para ele, não é, senhora...?
— Barata! — acrescentou o Marcos. — Mamãe, esta é a
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— Ah, é, isso mesmo. Desculpe-me. É que o nome é tão
estranho, Barata. A senhora não acha? — comentou a mãe do
Marcos, segurando a taça de champanhe debaixo do nariz dela.
Então, deu um sorrisinho irônico. — Tome! Infelizmente não posso
brindar com a senhora, sabe? Eu não bebo.
Minha mãe mexeu a cabeça, agradecendo. Fez de conta que
não ouviu a ironia nem a falta de consideração. Só ficou encarando
o copo. O líquido dourado cintilava à luz do lampião e ela estendeu
a mão para pegá-lo. Meu Deus! Como aquilo era constrangedor!
— Mamãe, por favor! — sussurrei, segurando o portão do
jardim para mantê-lo aberto. — Eu suplico!
Então, minha mãe se afastou bruscamente do copo de
champanhe.
— Nã-ao, mu-uito o-obrigada! — disse gaguejando, e fugiu
para a rua.
Mas eu fiquei ali, junto ao portão. Lancei um olhar ao
Marcos, um olhar para matá-lo mesmo. Não consegui fazer mais
nada além disso. Sentia-me como um animal ferido. Só queria
me esconder no fundo da floresta.
— Então, está satisfeito? — perguntei, furioso. Depois me
virei e sumi rua abaixo.
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