OS ESCRAVOS E A ASSISTÊNCIA
HOSPITALAR NO FUNCHAL SÉCULOS XV-XIX
Alberto Vieira
1996
Funchal Madeira
[email protected]
http://www.madeira-edu.pt/ceha/
A historiografia tradicional da escravatura insiste nas condições infra humanas em que
viviam os escravos. Toda a atenção incide sobre as difíceis condições de vida: privados
da liberdade e dos mais elementares meios de sobrevivência. Para isso contribuíram as
teses abolicionistas, que marcaram por muito tempo os rumos da investigação sobre a
escravatura, desviando a atenção dos historiadores para isso. Hoje as investigações
parcelares sobre as diversas áreas onde a escravatura existiu reprovam essa unicidade de
comportamentos. Em alguns casos é evidenciada a faceta humanista do senhor dos
escravos. À violência do acto de posse sobrepõe-se o trato fácil e familiar de mútua
correspondência.
A Madeira é um deles. Aqui a escravatura a partir de meados do século XVI se assume
pelo carácter patriarcal, o escravo joga um papel diferente. Ele é, muitas vezes, mantido
como uma forma de ostentação, sendo, por isso mesmo, cumulado de afecto familiar. O
escravo era mais um elemento da família em condição semelhante aos criados, por isso
fruía de todos os privilégios da casa. E este afecto poderia ser recíproco: escravos(as)
com uma relação privilegiada com os seus proprietários. Os testemunhos disso
encontramo-lo nas doações testamentárias e nos encargos de missa por morte1.
Os códigos que legitimavam a escravatura definiam os deveres dos proprietários: deviamlhes protecção até à morte, de comer, vestir e dormir. Nisto incluía-se a situação de
doença e velhice. Mas aqui poderá questionar-se o modo do seu cumprimento e das fugas
possíveis. O elevado número de libertos em avançada idade, a rara presença de óbitos de
adultos em contrapartida com a dos jovens e crianças poderá ser mais um aferidor a
testemunhar em favor do seu incumprimento. Mas, o contrário, também sucede. É o caso
dos elevados encargos suportados por alguns proprietários com os cuidados de saúde aos
seus escravos. Esta situação, pouco estudada até ao momento na historiografia sobre os
escravos, é agora o nosso motivo de atenção2.
Através da compilação das informações reunidas nos livros de receita e despesa da
Misericórdia do Funchal (1598-1816)3. Nestes livros deparamo-nos com duas situações:
as esmolas dadas pelos senhores para o enterramento dos seus escravos, a lista dos
doentes de ambos os sexos, entrados no hospital, com a indicação do tipo de cura, do
tempo de internamento e das consequentes despesas suportadas pelo proprietário.
Reunimos, ainda, os libertos que aparecem em idênticas condições. Aqui, mais uma vez,
se testemunha as difíceis condições em que viviam, sendo poucos os que dispunham de
meios para assegurar os encargos com a doença e morte. A designação genérica de pobre
é, por demais, elucidativa.
À parte esta questão importa salientar a importância dos escravos e libertos no conjunto
dos apoios prestados pelo hospital. Daqui poder-se-á inferir da dimensão assumida por
este grupo social no quotidiano madeirense e da sua evolução nos três séculos em causa.
Eis mais um complemento para a definição da escravatura na Madeira, que pode lançar
nova luz sobre o fenómeno no espaço atlântico.
1. O QUOTIDIANO MADEIRENSE SÉCS. XVI-XVIII
A prestação de cuidados de saúde é indissociável da forma como em cada época a
sociedade encarava o doente e as suas doenças, da situação dos métodos de cura e das
instituições definidas para isso. A isto associam-se as condições de sobrevivência das
populações, donde resulta a maior ou menor vulnerabilidade às doenças infecciosas. De
uma forma breve aludiremos a algum desses aspectos imprescindíveis para a
compreensão do caso particular da presença dos escravos no hospital da Misericórdia do
Funchal.
Por determinação de Inocêncio VIII (1485) foi definida uma nova e adequada estrutura
de assistência hospitalar. As mercearias e hospitais menores deram lugar a uma nova
estrutura que centralizou todos estes serviços. Na Madeira, criaram-se as Misericórdias
do Funchal, Porto Santo, Santa Cruz, Machico e Calheta, mas foram os hospitais da
Misericórdia do Funchal que mais se evidenciaram nos cuidados de saúde4. São eles: o
dos lázaros, o novo e o velho.
Não obstante, a existência dos hospitais funchalenses os cuidados assistenciais pouco
evoluíram pela falta ou pouco número de cirurgiões e físicos em oposição ao dos
barbeiros e curandeiros. Até ao século XVIII a Medicina praticada na Madeira, a
exemplo da demais regiões5, era, acima de tudo popular, assente mais na mediação dos
santos curandeiros e peregrinações do que no recurso à Medicina.
No caso madeirense as fortes ligações com o mundo inglês levou a que cedo a medicina
tradicional fosse suplantada pela científica. Alguns médicos ingleses fixaram-se no
Funchal e outros que por cá passavam com destino às colónias garantiram a sua
afirmação. A partir do último quartel do século XVII isso era uma constante.
Hans Sloane é um exemplo entre muitos. Em 1687 na sua passagem pelo Funchal refere
que "as pessoas têm grande consideração pelos médicos ingleses" e ele não se coibiu a
fazer alguns tratamentos6. O mesmo valoriza a competência dos médicos locais.
Opinião diferente tem o médico madeirense José Fernandes da Silva. No seu tratado Carta critica sobre o método curativo dos médicos funchalenses escrito em 1755, como
resultado da sua experiência em face da epidemia de sarampo (Julho a Dezembro de
1751), critica severamente os cuidados de saúde usados7. Na verdade, a plena afirmação
da medicina científica só teve lugar a partir da revolução vintista, com o regresso à ilha
de um grupo de médicos formados nas escolas inglesa e francesa, que, mais tarde, deram
origem à Escola Médico-Cirúrgica do Funchal (de 1837 a 1910)8.
2. FACTORES PROPICIADORES DA DOENÇA
Nas sociedades do antigo regime a proliferação das doenças está indissociavelmente
ligada às condições de higiene e à dieta alimentar. As doenças infecciosas são resultado
disso, sendo responsáveis pelos elevados índices de mortalidade9. A evidente falta de
higiene e a má-nutrição são os principais factores propiciadores do rápido avanço das
epidemias. Tal como afirma Massimo Levi-Bacci, "La desnutriçión incrementa la
frecuencia, la gravedad y la duración, de las infecciones y deriva en una mortalidade
elevada"10. A posição é unânime entre todos os estudiosos da Demografia do Antigo
Regime: a alimentação é decisiva na qualidade de vida11. E no caso da Madeira ambas as
situações andaram de braço dado.
O Funchal, não obstante ser uma cidade arejada servida de três ribeiras, não pode ser
considerado um burgo exemplar quanto às questões da salubridade. Às insistentes
reclamações das autoridades municipais12 somam-se os testemunhos dos visitantes em
nada abonatórios para os hábitos de higiene dos nossos antepassados. A esta ingente falta
de higiene adiciona-se outro factor - tão importante para abrir as portas à doença -: a
fome. A pobreza calórica da dieta alimentar associada às dificuldades no abastecimento
de víveres foram uma constante nestes três séculos de História Madeirense13. Tendo em
conta que a dieta alimentar assentava essencialmente nos cereais mediterrânicos e o facto
de a ilha estar sujeita, a partir de princípios do século XVI, ao abastecimento de fora não
é difícil encontrar no historial madeirense assíduas referências à escassez crónica de
cereal e à fome14.
Esta conjuntura resulta de uma multiplicidade de factores. Ao nível interno, a
disponibilidade de culturas mais rentáveis (a cana e a vinha) retirou espaço à
cerealicultura, criando uma situação de forte dependência do mercado externo. Para todo
o período fala-se que a produção local dava apenas para 3 a 4 meses do ano, ficando a
ração dos restantes meses e a porção da sementeira dependente das exportações. Estas
faziam-se a partir dos Açores, Canárias e, depois, dos EUA e Europa. Mas aqui, o
abastecimento estava sujeito às condições do mercado fornecedor mas, acima de tudo, às
vulnerabilidades das rotas de canalização do produto. As conjunturas de afrontamento
entre os principais estados europeus (nomeadamente Inglaterra e Irlanda), a guerra de
independência dos Estados Unidos da América (1776-1773) estiveram na origem dessas
dificuldades, na segunda metade da centúria oitocentista. Note-se que o mercado norteamericano firmara-se desde finais do século XVII como o principal fornecedor de cereal
em grão ou farinha a troco de vinho15.
A par disso as insistentes dificuldades com o abastecimento de cereal conduziram a uma
revolução na dieta alimentar, com o aparecimento de produtos, oriundos de África ou
América, como o milho, inhame e a batata. Note-se, por exemplo, que em 1847 a crise de
fome, foi provocada por uma doença que assolou a batateira16. Em pouco tempo a batata
havia tomado o lugar do cereal.
Nos dados avulsos, que conseguimos compilar, é evidente a relação entre a seca, fome e
as epidemias. As três foram uma constante da sociedade funchalense no decurso dos
séculos XVII e XVIII. A impotência do homem perante estas situações está manifesta no
constante apelo a Nossa Senhora do Monte, o orago da aflição de todos os madeirenses.
O quadro comparado dos anos de seca e fome testemunha esse panorama pouco favorável
do quotidiano madeirense. Dentro desta ambiência poderá situar-se o facto de a dieta
alimentar dos madeirenses ser deficiente em calorias e pouco variada.
É de acordo com estes parâmetros cronológicos, definidos no quadro, que deverá
entender-se a elevada mortalidade da Madeira17. A partir de 1538 é possível estabelecer
esse movimento. E foi isso que fizemos para a cidade do Funchal, pois era aqui que essas
dificuldades mais se faziam sentir.
As fomes só se sentiram com maior rigor na última década do século XVII, altura em que
a mortalidade de livres e escravos aumentou. Na verdade, neste momento junta-se um
surto epidémico agravado pela fome que, por sua vez, é resultado de uma estiagem
prolongada. O número de doentes assistidos no hospital aumenta na mesma proporção.
Depois de um período de relativa acalmia os óbitos retornam ao seu movimento
ascendente, a partir da década de 20 do século XVIII, atingindo no período de 1741 a
1780 o seu pico. Todavia esta situação não é corroborado pelas entradas no hospital, o
que poderá resultar do facto de estes dados estarem incompletos.
As fomes e doenças contagiosas (sarampo 1751 e 1768) da segunda metade são as
responsáveis por esta elevada mortalidade. Visualizando a respectiva curva escravos
conclui-se que o período a partir de finais do século XVII é definido por uma elevada
mortalidade, atingindo-se os valores mais elevados nas décadas de 1691-1700 e 1741 a
50.
Já tivemos oportunidade de questionar a fiabilidade dos registos e aqui mais uma vez
encontramos testemunhos que corroboram a nossa afirmação. Confrontadas as listas das
esmolas dadas pelos proprietários para o enterramento dos escravos a cargo da
Misericórdia constata-se isso mesmo. No período de 1630 a 1750 são referenciados 1438
escravos, enquanto nos paroquiais temos apenas 637 óbitos destes. Isto quererá dizer que
os dados disponibilizados pelos registos paroquiais, no que concerne aos óbitos deste
grupo, não merecem qualquer fiabilidade18. A situação só tem correspondência com o
movimento de entrada de escravos no hospital para o período de finais do século XVII.
Por exemplo, com a crise do sarampo (1751 e 1768) em que foi elevada a mortalidade
dos escravos é pouco significativo o número dos que foram assistidos pelo hospital.
OS ESCRAVOS NO HOSPITAL
Os livros de receita e despesa da Misericórdia do Funchal, permitem-nos rastrear o
movimento dos hospitais da cidade, que parece centralizar o serviço de todo o
arquipélago. A partir dele é possível saber-se das condições de prestação dos cuidados de
saúde e os principais beneficiários. Assim, existe um capítulo para o registo das entradas,
seguindo-se outros para os diversos tipos de curativo e indicação dos que não tinham
"remédio" nem cura possível para a época: os incuráveis. A par disso a Misericórdia
mantinha a função assistencial aos pobres (aqui atingindo, de modo especial, os libertos)
em vida e na morte. Neste último caso encarregava-se do seu enterro. Os escravos
também foram contemplados nesta situação, comprometendo-se o proprietário ao
pagamento da respectiva esmola.
No que concerne aos cuidados hospitalares não é possível fazer-se o diagnóstico dos
doentes e tão pouco uma resenha exaustiva dos curativos. Nos livros disponíveis apenas é
referida a entrada, o período de permanência e as consequentes despesas em estadia e
curativos. Destes últimos só são referidas as unturas. Acresce, ainda, que os dados
compilados estão incompletos, por falta de livros para o período de 1596 a 1800. Daqui
resulta a impossibilidade de estabelecer com toda a exaustão o tema que nos propomos
tratar. A partir dos dados disponibilizados para os anos de 1596 a 1760 foi possível
estabelecer a situação que se segue.
De acordo com este quadro19 poderá afirmar-se que a maioria dos escravos e libertos
assistidos pelo hospital não se apresentava em condições de alto risco, pois é reduzido o
número daqueles com doenças incuráveis e dos que aí faleceram. Além disso poucos dão
entrada no hospital, a maioria vem apenas para fazer unturas ou outros curativos, o que
quererá dizer que o seu estado não inspirava especiais cuidados.
A situação não é uniforme, nem se adequa ao movimento dos cidadãos livres e tão pouco
aos surtos epidémicos que tiveram lugar nos séculos XVII e XVIII. Uma excepção
apenas: o final do século XVII, definido por uma constante de fomes e epidemia, foi o
momento mais alto da assistência hospitalar aos escravos e libertos, e também o de maior
número de mortos, a ter-se como certos os enterramentos feitos pela Misericórdia. O
mesmo já não poderá dizer-se dos surtos epidémicos de 1751 e 1768: mantém-se o
número elevado de mortos, sem consonância com o registo de assistência hospitalar.
Será esta ausência do escravo resultado de uma secundarização em favor dos livres a
quem deveria ser dada prioridade? Eis uma questão a que só os próprios poderiam
responder e que a formulamos como possível via para aclarar esta situação.
Registe-se, ainda, que a presença de escravos é mais evidente em condições normais do
que nas conjunturas epidémicas. É o caso, por exemplo, das décadas de 20 e 40 do século
XVIII. Além disso a reduzida dimensão do número de escravos assistidos no hospital não
é indicativo de que eles tenham permanecido imunes, pois a mortalidade é elevada, como
se pode comprovar pelos valores das décadas de 1691-1700, 1741-70. Note-se, ainda, que
os escravos não são assíduos na frequência ao hospital, sendo reduzido o número dos
internados no hospital por mais de uma vez. Situação repete-se com os que se
submeteram ao tratamento com unturas:
Visto o quadro dos doentes, à luz do sexo, constata-se um certo equilíbrio. A diferença é
notória apenas na relação de cada grupo com os livres. O mesmo já não poderá dizer-se
quanto à cor da pele. No grupo dos negros e mulatos dominam os homens. Se encararmos
a situação, após as correcções dos escravos que surgem por mais de que uma vez,
constata-se algo de diferente: no caso dos pretos e mulatos o sexo masculino ultrapassa os
60%; no global os doentes do sexo masculino assumem uma posição igual, apenas se
invertendo quanto aos enterros.
No grupo dos libertos a situação inverte-se: aqui é maior a percentagem de mulheres. E
isto repete-se quando encaramos o movimento global e a situação corrigida. Apenas com
os mulatos e os não identificados o sexo masculino surge numa posição maioritária.
Tudo isto quererá testemunhar que dentro do grupo das mulheres as escravas são mais
propícias às infecções, do que os congéneres do sexo masculino. Além disso pode-se
afirmar que as maleitas que sofrem são de carácter prolongado e inspiradoras de extremos
cuidados, o que provocava maior número de internamentos. Tudo isto é mais evidente
com o grupo dos libertos.
3. ASSISTÊNCIA NA MORTE
Outro campo de intervenção da Misericórdia era o serviço de enterrar os mortos,
assegurado aos irmãos, pobres e todos os mais que o solicitavam por testamento20. Este
serviço era gratuito aos pobres, sendo aos demais, onde se incluíam os escravos, feito
mediante uma esmola. Esta não é fixa, dependendo das exigências do acto fúnebre e das
posses de cada um. No caso dos escravos o seu valor oscilava entre 200 e 600 réis21,
sendo o mais comum 320 e 400 réis. Nos forros, tirando uma maioria que surge na
situação de pobres, o padrão era mais elevado: 1000 a 2000 réis.
O confronto destes dados com os exauridos dos registos paroquiais permite-nos aferir a
fiabilidade dos paroquiais e ao mesmo tempo testemunhar que o resultado final da
mortalidade era a junção dos dois, uma vez que só eram registados nos paroquiais aqueles
que usavam a cova da fábrica. Caso fossem para a capela de Misericórdia o registo faziase aí. Por isso esta nova situação permite-nos corrigir os dados já avançados sobre os
óbitos de escravos, estando encontrada a resposta para as dúvidas que em outra altura
colocamos22.
Tendo em conta o facto de os registos paroquiais disponíveis não estarem completos
pode-se afirmar que na segunda metade do século dezassete os escravos assumem, por
aqui, uma importância desmesurada no movimento da mortalidade. Todavia a partir de
1681-90 esse valor entra numa curva ascendente, que deverá resultar da diminuição da
sua presença na sociedade madeirense, situação por demais evidente a partir de 1721-30.
AS DESPESAS COM A SAÚDE
Os livros em análise são de receita e despesa é, por isso, neste aspecto particular que eles
devem merecer a nossa atenção. Aqui apenas foi possível reunir dados no período de
1598-1674 para os enterramentos e de 1694 a 1778 para despesas de saúde.
Por aqui se confirma que, quer ao nível dos cuidados de saúde, quer nos actos fúnebres, a
Misericórdia tinha uma função fundamental junto dos escravos. Isto atesta do total
cumprimento da sua missão humanitária. Esta situação era reconhecida pelos próprios,
que quando libertos e ao estabelecerem os seus encargos por morte não escondiam a sua
preferência pela Misericórdia.
Quanto à prestação dos cuidados de saúde é de salientar a importância assumida por estes
no conjunto das receitas - ultrapassando situando-se em alguns casos acima dos cinquenta
por cento. Aqui há a considerar o facto de muitos cidadãos livres aparecerem sob a
condição de pobres (o mesmo sucedendo aos libertos), sem meios para assegurar tal
despesa, enquanto o escravo, através do seu senhor, como é óbvio, não poderia entrar
nesse grupo.
Os escravos foram responsáveis por 37% das receitas arrecadadas pelo hospital da
Misericórdia, cabendo a cada um a média de 5363 réis, e por 15% das esmolas
arrecadadas com os enterramentos, com a média de 486 réis. Isto prova o inestimável
apoio dado pelos senhores aos seus escravos, quer na doença, quer na morte, alterando,
assim, a visão desumanizante a que vem sendo definido o fenómeno da escravatura.
A análise da despesa de cada um dos proprietários é ainda mais elucidativa. Assim, para
um total de 976 proprietários de escravos, que aceitaram enterrá-los na capela da
Misericórdia, corresponde a despesa média de 326 réis, enquanto para 576 proprietários
que deram assistência aos escravos na doença a despesa média foi de 2$113 réis.
As despesas hospitalares eram estabelecidas de acordo com o período de permanência e
os tipos de curativos: uma diária custava 100 réis e as unturas não se faziam por menos
de 6$000 réis. De um modo geral o proprietário desembolsava entre 6$000 e 9$000 por
isso. Mas há casos de custos mais elevados: Francisco Lira em 1723 pagou 24$300 réis
pelos curativos de um escravo preto; Francisco Ornelas, em 1759, 19$200 réis por um
escravo; António João Correia, em 1762, 23$600 pelo seu mulato; Manuel Fernandez em
1776 desembolsou pela sua escrava Antónia 18$800 réis. Se tivermos em conta que o
valor médio de venda de um escravo nesta época andava pelos 50$000 réis teremos
definida a importância desta despesa23. Note-se que a estes encargos deverá somar-se a
inutilização dos seus serviços, no período da doença.
Alguns proprietários tiveram de entregar ao hospital quantias elevadas pelos seus
escravos assistidos no hospital: Nuno de Freitas por 12 escravos pagou 83$050, enquanto
António João Correia, por oito escravos, deu 76$500 réis. Este empenho e despesa não é
justificado apenas pela importância económica do escravo.
ESCRAVOS E LIBERTOS. NOVO PONTO DA SITUAÇÃO
Os dados exauridos da documentação da Misericórdia do Funchal permitem-nos aclarar
alguns aspectos da situação da escravatura na Madeira para os séculos XVII e XVIII. No
global deparamo-nos com 1270 proprietários para 1623 escravos. Note-se que o maior
número de proprietários situa-se no século dezassete, sendo de realçar o grupo daqueles
que provêm dos registos pelo o enterro, com cerca de 70%.
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OS ESCRAVOS E A ASSISTÊNCIA HOSPITALAR NO FUNCHAL