Prefácio
Conhecer as memórias de um grupo é certamente um modo efetivo (e afetivo) de
estabelecer uma aproximação. A viagem feita por Edna Alencar a 19 comunidades
de Mamirauá em 1993 aproximou os macaqueiros recém-chegados (como apelidaram
a equipe dos primeiros responsáveis pela implantação da Reserva), aos moradores
daquela área destinada a fazer parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá.
Lembranças são sempre seletivas. A memória depende do interesse por guardar,
registrar e repassar eventos, tenham sido eles presenciados ou recebidos na forma
de relatos. Em um ambiente instável como a várzea do Rio Solimões, onde os lugares
são traçados pela vontade e a força desse rio grande, qual pode ser a motivação
para repassar para outros um passado que tem, como recorrência, transformações
dramáticas na paisagem? Qual é o interesse mesmo em narrar o passado quando o
tempo não tem a referência do espaço, mas o toma por companheiro de movimento
e alteração?
Como fundamento para uma história, pode-se querer saber de que depende a
memória dos moradores de Mamirauá? Não é privilégio desse contexto excepcional,
mas uma constatação comum, o fato da formulação de qualquer história e, antes
dela, de registros de memórias, não serem operações triviais. A própria dificuldade
de guardar o passado, o esforço presente em cada ato de recordar, evidencia a
necessidade de haver uma intenção deliberada para motivar o esforço presente na
recordação.
Nesta pesquisa, a aproximação alcançada pelo compartimento de memórias foi
interessada, e o afeto, construído como uma derivação do trabalho mesmo. Esse é
um constrangimento rotineiro do trabalho antropológico. Mas, quando o esforço
do trabalho tem a companhia do afeto, a aproximação interessada se torna sincera.
Os relatos de lembranças e sua justaposição para compor as histórias de cada lugar
foram incentivados por um interesse de pesquisa legítimo, sem dúvida, mas, por
isso mesmo exige que se diga qual era a intenção inicial quando se propôs a tarefa
de coletar depoimentos dos moradores sobre o passado de suas comunidades.
A então Estação Ecológica Mamirauá estava no começo do que viria a ser um longo
processo de implantação. Os relatos de lembranças, como Edna Alencar esclarece
em sua introdução, foram provocados por perguntas pré-formuladas feitas aos
moradores a respeito do passado de suas localidades. Tratava-se de obter informações
que permitiriam entender não só a origem dos grupos, mas principalmente o seu
uso do ambiente, a sua territorialidade, sua mobilidade, suas necessidades espaciais,
enfim. Em 1993, a presença humana em unidades de conservação era uma ideia
muito questionada. A categoria de Reserva Extrativista, contemporânea dessa
inovação, já nasceu com essa proposta. Mas a manutenção das populações locais, e
não a sua exclusão, em uma unidade de conservação na época classificada como de
uso indireto requeria uma argumentação particular. A mudança de classificação ainda
não havia sido feita – o modelo contingente da categoria de reserva de
desenvolvimento sustentável foi regulamentado anos depois. Era preciso pensar nas
condições de compatibilidade entre conservação e presença humana, pensar na
possibilidade de fazer o zoneamento de áreas para contemplar diferentes fins e,
principalmente, avaliar a ocupação futura da reserva em termos compatíveis com a
tendência histórica do crescimento demográfico e do padrão de ocupação territorial
de sua população. Em síntese, era preciso conhecer a dinâmica territorial dos
moradores. Essa era uma questão básica para o planejamento de uma proposta
socioambientalista inédita, sem modelos anteriores para seguir.
As respostas tiveram a destinação política desejada, mas, além dessa problemática
precisa, interessava-nos a também saber o que a implantação daquela unidade de
conservação significaria para a vida da população local. As narrativas coletadas
por Edna Alencar mostram claramente o dilema que as comunidades viviam.
Inteiramente dependentes do suprimento de recursos naturais para sua
sobrevivência, enfrentavam uma situação de redução drástica de estoques (de
peixe especialmente), causada sobretudo pela ação de exploradores de fora que
operavam novas tecnologias em escalas insustentáveis de exploração. As perguntas
sobre seu passado invariavelmente os levavam a fazer comparações com o seu
presente, como é de se esperar. Em 1993, o passado era lembrado como um
tempo de fartura, de abundância, e o presente, por contraste, tinha a marca da
escassez. Para corrigir isso, aderiram ao projeto socioambiental e apostaram no
que este poderia lhes oferecer. A resposta viria depois. Passados 15 anos da data
desta pesquisa, é possível dizer que a RDS Mamirauá não só assegurou o
abastecimento de pesca ao longo desse período, como oferece hoje a segurança
de um futuro sustentável. Em uma pesquisa de opinião realizada em 2006, Edila
Moura obteve de uma amostra representativa de moradores de Mamirauá uma
avaliação positiva sobre a criação da Reserva. Os depoimentos de 1993, aqui
registrados, marcam essa inflexão no futuro dos moradores. O passado narrado
aqui parece mais antigo do que foi, porque o presente que tinha por contraponto
felizmente não se prolongou. O futuro alcançado foi outro.
Também foi sorte as narrativas oferecerem mais do que se esperava da pesquisa.
Se a memória é coletiva, como ensina Halbwacks, então o coletivo deve se expressar
nas suas memórias – pode ser possível ler, nas narrativas, o que as memórias
dizem sobre o coletivo de seus enunciadores. No entanto, na época da pesquisa,
Mamirauá ainda não apresentava um coletivo próprio. Estava apenas começando
a se formar. A constituição de uma fronteira de legitimação social do decreto de
criação da unidade de conservação exigiu um trabalho longo de envolvimento da
população, pois não era intenção criar fronteiras guardadas por restrições, mas
por adesão.
Durante a primeira fase de implantação de Mamirauá, as ações foram limitadas à
mesma área abordada por Edna Alencar em sua pesquisa. As 19 comunidades
cujas histórias são narradas neste livro fazem parte do que recebeu o nome de
área focal. Atualmente, as fronteiras territoriais dessa área são reconhecidas
regionalmente e para isso concorreram as assembleias anuais de moradores, as
ações de extensão localizadas e o zoneamento e as normas de uso dos recursos
definidos com base na integração demorada de pesquisas científicas e consultas a
moradores e usuários. Antes disso, o que havia eram 19 territórios comunitários
mais ou menos interligados, construídos por processos históricos próprios e é isso
que estas narrativas ajudam a desvendar.
Estas memórias, pacientemente coletadas e editadas, apresentam comunidades
delineadas por redes de parentesco, sem fronteiras muito demarcadas. Os lugares
cujas histórias são narradas, são lugares de pequenas parentelas, marcadas pela
mesma instabilidade do ambiente a que se sujeitam. Sobreposta à sua história, dividida
por eles próprios em marcações de tempos – o tempo do patrão, tempos de secas e
cheias excepcionais, o tempo do MEB –, está a história de Mamirauá, o tempo da
Reserva, que este livro ajuda a contar.
Deborah Lima
UFMG
Edna Ferreira Alencar
É graduada em História, com Mestrado e Doutorado em
Antropologia Social e Cultural pela Universidade de Brasília
(2002). Atualmente é professora da Universidade Federal
do Pará, atuando junto ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia (PPGA) e Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (PPGCS).
É Pesquisadora Colaboradora do Instituto de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá/MCT, e desde os
anos 1990 tem realizado pesquisa junto as populações
residentes na Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá, e nos últimos anos com populações residentes
na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, ambas
administradas pelo Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá/MCT.
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