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DESCONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DA TRANSFORMAÇÃO
SOCIAL POR MEIO DA EDUCAÇÃO CIDADÃ:
A INEXISTÊNCIA DE IDENTIDADE ENTRE
EDUCAÇÃO E POLÍTICA
Marcelo Ubiali Ferracioli.
[email protected]
Programa de Pós-graduação
em
Educação
Escolar,
Mestrado, UNESP / FCL /
Araraquara.
Os Fóruns Sociais Mundiais (FSM) surgiram com o discurso de
constituírem-se enquanto uma tentativa da sociedade de debater e elaborar
estratégias de combate aos ditames do capitalismo e neoliberalismo. Como
desdobramentos destes fóruns surgiram inúmeros outros, alguns deles
temáticos. Este foi o caso dos Fóruns Mundiais de Educação (FME).
O Fórum Mundial de Educação, que teve sua primeira edição no ano de
2001 na cidade de Porto Alegre, foi realizado com o propósito de reunir
movimentos sociais e governos de todo o mundo para a proposição de
alternativas à excludente globalização neoliberal e à mercantilização da
educação. Tais propostas seriam no sentido da luta pela educação pública para
todos como direito social inalienável, num cenário já antigo de intervenções dos
grandes grupos econômicos mundiais nesta área (TOMMASI; WARDE;
HADDAD, 1996). Estes princípios foram declarados na “Carta de Porto Alegre
pela educação pública para todos”, documento elaborado como resultado das
discussões naquela oportunidade1.
Na segunda edição do Fórum Mundial de Educação, realizado em 2003,
também em Porto Alegre, outro documento foi redigido2 reafirmando os
propósitos da Carta de 2001 e adicionando outros. Dentre esses novos
elementos, destacam-se os princípios da Escola Cidadã e da Cidade
Educadora, que são afirmados como utopias a serem buscadas pelos
movimentos educacionais mundiais em todos os seus âmbitos.
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cf FÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃO (2001)
cf FÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃO (2003)
2
Tanto os princípios da Escola Cidadã quanto da Cidade Educadora são
desdobramentos de um ideário mais geral denominado Educação Cidadã.
Estes princípios foram debatidos no Fórum Mundial de Educação de 2003,
disseminando-se e tendo grande ressonância no Fórum Mundial de Educação
de 2004, realizado na cidade de São Paulo. Tal ressonância foi tão significativa
que eles foram eleitos como temáticas do evento de 2004, condensadas em
um único enunciado que se tornou o lema daquele fórum: Educação Cidadã
para uma Cidade Educadora. No discurso de seus propositores, a Escola
Cidadã é apresentada como aquela que se constitui e exercita-se como um
centro de direitos e deveres, no sentido de viabilizar a cidadania de todos que
estão em contato com ela. São elementos constituintes desta escola a
liberdade, a autonomia, a coletividade e a democracia (GADOTTI; ROMÃO,
2001).
Nota-se que o ideário da Educação Cidadã, que se expressa nos
conceitos de Escola Cidadã e da Cidade Educadora, tem encontrado grande
repercussão no Brasil. Isso significa que, de uma forma ainda inicial e com
conseqüências pouco claras, já chegou à realidade concreta de alguns de
nossos municípios e, portanto, já influencia de alguma forma as práticas dos
educadores nas escolas. Um reflexo claro disso pode ser constatado na última
e recente edição do Fórum Mundial de Educação, realizado na cidade de Nova
Iguaçu - RJ, nos dias 23 a 26 de março deste ano, que teve como tema geral a
continuidade das discussões do Fórum de 2004, expresso claramente em seu
subtítulo Educação Cidadã para uma Cidade Educadora II e contando com a
presença de mais de 30 mil participantes3.
Diante desse quadro atual de efervescência de idéias e modismos no
campo da educação e especialmente das políticas educacionais, existem
questões aqui que necessitam de análises cuidadosas, que possam gerar
sínteses mais completas e mais críticas sobre o que acontece hoje com a
educação escolar e seu papel na história e na sociedade. Apenas assim é
possível conhecer a que se prestam realmente tais propostas.
Um importante aspecto que poderia ser analisado é o papel da
educação no processo de transformação social. Não é raro encontrar nos
3
cf FÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃO (2006)
3
diversos textos referentes aos temas aqui apontados a colocação da educação
como instrumento por excelência de transformação social; a exemplo da carta
“Declaração de Porto Alegre” do segundo Fórum Mundial de Educação, 2003.
O primeiro compromisso nela declarado se propõe à:
Estabelecer, como utopia pedagógica, a Escola Cidadã, dever
do Estado, sob controle social, construída por todos e todas,
constituindo-se de um currículo intermulticultural – portanto,
não indiferente às diferenças – potencializadora de vivências
democráticas, com processos de avaliação emancipadora e
produtora de conhecimentos que preparem todos os seres
humanos para o protagonismo ativo, nos contextos específicos
de seus respectivos processos civilizatórios. Fazem parte desta
utopia o desenvolvimento e o apoio a todas as formas de
movimentos pela Educação Popular – propulsora do
processo de transformação política, econômica e cultural
da sociedade. (FÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃO, 2003,
grifo nosso).
Fica evidente o discurso ideológico no texto exposto acima a partir do
momento que se delineia com mais profundidade o caráter da prática
educativa, suas proximidades e distinções com a prática política e, por fim, as
possibilidades que ela possui de atuar no processo de transformação social.
Dermeval Saviani trabalhou esta questão a partir da definição da
natureza da educação e sua relação com a política, traçando suas
similaridades e diferenças. Dessa forma é possível explicitar a contradição
deste trecho da carta de 2003.
O autor coloca que o homem produz seus próprios meios de
subsistência, transformando a natureza e transformando-se neste processo, no
qual cria assim um mundo especificamente humano. Isso se dá através da
produção dos meios materiais de vida, o chamado “trabalho material”. Contudo,
para isso o homem antecipa suas ações e representa mentalmente os objetos
que produzirá, antes de objetivá-los; seria então outra modalidade de trabalho,
chamada “trabalho não-material”. Este se refere à produção do saber sobre a
natureza ou sobre a cultura, enfim, sobre a produção humana em geral. A
educação seria parte deste trabalho não-material do homem, em que não se
separa o produto do ato de produção, pois não há intervalo entre produção e
consumo, ambos ocorrem ao mesmo tempo (SAVIANI, 2003).
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A educação já foi historicamente compreendida como um fenômeno
estritamente técnico-pedagógico ou como um processo que deve ser entendido
sempre como um ato político em todas as suas dimensões. Assim, ele propõe
os seguintes questionamentos: A educação e a política se equivalem? Se
forem diferentes, em que consiste tal diferença? (SAVIANI, 2002)
Em se tratando da especificidade da educação em relação ao fenômeno
político, Saviani (2002) vai à própria essência do fenômeno educativo para
compreender tal distinção. Afirma que o ato educativo é uma relação de não
antagônicos. Assim sendo, o objetivo desta prática é convencer e não vencer o
outro, ou seja, o educador está a serviço do educando, acreditando agir
sempre para o desenvolvimento deste. Da mesma forma o educando não vê o
educador como um adversário, mas sim alguém que está ali para ajudá-lo a se
desenvolver. Até mesmo quando a relação entre educador e educando não é
cordial, a rebeldia do estudante tende a ser encarada pelo professor como um
desafio a ser superado, conduzindo o educando à compreensão de que tal
comportamento só vai prejudicá-lo.
Por outro lado, na política as relações se estabelecem de forma
diferente. A relação política se trava fundamentalmente entre antagônicos.
Dessa forma, o objetivo da prática política, ao contrário da educativa, é de
vencer e não convencer o outro, pois no jogo político se defrontam interesses e
perspectivas mutuamente excludentes. Neste caso, também contrariamente à
educação, seria ingenuidade pensar que um adversário político está em uma
posição oposta simplesmente porque não compreendeu seu erro ou a validade
da proposta contrária. Assim sendo, o fato de um partido político perder uma
disputa não o remove de sua posição, ou seja, ele pode ser vencido e não
convencido.
Saviani (2002) demonstra, portanto, que política e educação são práticas
que não se coincidem por completo, pois cada uma delas possui suas
especificidades que as distinguem, evitando que as dissolvamos uma na outra.
Porém, na dinâmica social, há evidentemente uma dependência recíproca
entre as práticas, ou seja, a realização de uma boa educação depende de
políticas públicas que criem tais condições, assim como, a prática política
depende dos conhecimentos veiculados através da educação aos indivíduos.
Dessa forma, a partir do momento em que se observa estes dois fenômenos
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como sociais e históricos, percebe-se que, apesar de não idênticos, são
inseparáveis, pois em essência não são outra coisa senão modalidades
específicas de uma mesma prática: a prática social. Isso fica evidente logo na
Tese 1 de suas “Onze Teses sobre Educação e Política”, em que o autor diz
que: “Não existe identidade entre educação e política. COROLÁRIO: educação
e política são fenômenos inseparáveis, porém efetivamente distintos entre si.”
(SAVIANI, 2002, p.88).
Contudo, afirma Saviani (2002), esta não é uma relação de igual
equivalência numa sociedade capitalista. A educação não determina a política
com a mesma força com que a política define os rumos da educação. A
sociedade de classes é contraditória, é marcada pela luta entre interesses
antagônicos e por essa medida a prática educativa é em larga escala
dependente da prática política. Numa estrutura social onde o modo de
produção é marcado pelo embate de classes antagônicas, a política, sendo
justamente caracterizada como a relações dos antagônicos, ficará sempre em
evidência em relação àquilo que é específico à educação. Também está
explicito isso na Tese 9, em que coloca que: “As sociedades de classe
caracterizam-se pelo primado da política, o que determina a subordinação real
da educação à prática política (SAVIANI, 2002, p.89).
Assim sendo, fica explícito porque hoje não temos as plenas condições
de educar, o que não se deve a uma incapacidade intrínseca ao educador ou
ao estudante, mas sim ao sucateamento cada vez maior do ensino público.
Saviani (2002) encerra sua reflexão afirmando que para se atingir a plenitude
da educação e do desenvolvimento humano é necessária antes a superação
do antagonismo de classes. Nesse sentido, ser idealista em educação significa
agir como se tal sociedade já fosse uma realidade, por outro lado ser realista
em educação implica reconhecê-la como um ideal a ser atingido.
É
educando
–
socializando
o
conhecimento
sistematizado
e
historicamente acumulado – que a educação cumpre seu papel político na
sociedade, mas isso não significa que possua este status de único e natural
caminho para a transformação social. Duarte (2000, p. 179), nesse sentido
afirma que:
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[...] a ideologia da classe dominante, para esconder o fato de
que o capitalismo não tem condições de resolver os principais
problemas dos dias de hoje, vem utilizando como instrumento
de retórica a difusão da idéia de que a grande responsável pela
eliminação da barbárie crescente seria a educação e, em
especial, a educação moral dos indivíduos, muitas vezes
também chamada de educação para a cidadania.
Esta análise de Duarte permite refletir sobre o discurso da carta de 2003,
no sentido de uma possível roupagem de proposta transformadora, que na
verdade não passaria de mais uma expressão da ideologia neoliberal que
procuraria transmitir uma visão de que é possível a humanização do
capitalismo, atribuindo à educação esta tarefa estruturalmente inexeqüível.
Duarte (2001, p 85-86) diz ainda que tais tendências contemporâneas acabam
por:
[...] abandonar qualquer perspectiva de totalidade e de um
projeto social e político que aponte para a superação da
sociedade capitalista. Nesta perspectiva todos estamos imersos
na mesma realidade e dela não podemos nos distanciar para
fazer uma crítica verdadeiramente radical à sociedade
contemporânea. Pode-se, com sinceridade, aceitar que tal
concepção origine outro tipo de coisa que não a adesão
incondicional ao capitalismo contemporâneo?
A partir desta perspectiva é possível concluir que conceitualmente o
discurso da Educação Cidadã, no que se refere ao seu papel determinante
para a transformação social, carrega problemas relativos à raiz da atividade
educativa, como visto em Saviani. Este quadro sugere que tal movimento
amplamente difundido não passaria de mais uma roupagem ao imperialismo
neoliberal presente nas novas pedagogias e políticas educacionais hoje,
apesar de seu discurso aparentemente emancipador e combativo.
Evidentemente que este breve estudo não permitiu uma conclusão
categórica da questão; e nem se esperava isso. Buscou-se aqui, através da
análise de um aspecto significativo da Educação Cidadã, apenas explicitar a
necessidade de pesquisas mais aprofundadas sobre este movimento, que
demonstrem quais são seus reais fundamentos e finalidades.
REFERÊNCIAS
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DUARTE, N. Educação e moral na sociedade capitalista em crise. In:
CANDAU, V. M. (Org.). Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. Rio
de Janeiro: DP&A, 2000. p. 175-189.
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neoliberais e pós-modernas da teoria de Vigotski. 2. ed. Campinas: Autores
Associados, 2001.
FÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃO. Carta de Nova Iguaçu. Nova Iguaçu,
2006. Disponível em: <http://www.forummundialeducacao.org/ni/> . Acesso em
07 maio 2006.
FÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃO. Carta de Porto Alegre pela educação
pública. Porto Alegre, 2001. Disponível em:
<http://www.paulofreire.org/fme2001.htm>. Acesso em: 07 maio 2006.
FÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃO. Declaração de Porto Alegre. Porto
Alegre, 2003. Disponível em:
<http://www.forumsocialmundial.org.br/dinamic.php?pagina=fmeducacao_por>.
Acesso em: 07 maio 2006.
GADOTTI, M.; ROMÃO, J. E. (Org.). Autonomia da escola: princípios e
propostas. 4. ed. São Paulo: Cortez, Instituto Paulo Freire, 2001. (Guia da
Escola Cidadã, v. 1).
SAVIANI, D. Escola e democracia. 35. ed. Campinas: Autores Associados,
2002.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8. ed.
Campinas: Autores Associados, 2003.
TOMMASI, L. de; WARDE, M. J.; HADDAD, S. (Org.). O banco mundial e as
políticas educacionais. São Paulo: Cortez, PUC-SP, 1996.
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