O PRINCÍPIO EDUCATIVO DO TROTE UNIVERSITÁRIO E O PRINCÍPIO INTEGRATIVO DAS RECEPÇÕES DE CALOUROS Gabriel Gouveia* Março de 2010 “Deus, tu que hás criado os camponeses para servirem aos cavaleiros e estudantes, que puseste em nós ódio a eles, deixa-nos viver às expensas do seu trabalho, aproveitar de suas mulheres e matá-los por fim; pelo nosso senhor Baco, que bebe e levanta o seu copo, pelos séculos dos séculos, amém” O trecho acima era um hino comum entre os estudantes das universidades inglesas no século XIII. Em uma primeira passada de olho parece um disparate, algo que temos orgulho de ter sido enterrado nas trevas da Idade Média, porém se olharmos com um pouco mais de atenção e puxarmos na memória fatos recentes podemos encontrar semelhanças quase que “evolutivas” das tradições do passado medieval. As primeiras assembléias (universitas) de mestres e estudantes datam do início do século XI. O perfil dos universitários era majoritariamente de filhos de grandes comerciantes (a nascente burguesia) e um punhado de filhos de nobres. Aquela classe procurava através da entrada e seu controle econômico das universidades, conquistar privilégios que eram naturais ao clero e nobreza. Dentro da academia, não muito diferente da sociedade à volta, a estrutura social era rigidamente hierárquica, porém, diferente de hoje, os estudantes ditavam o que deveria ser ensinado e o ritmo de ensino dos professores. Longe de ser um princípio democrático, isso ocorria devido ao poder patronal que os estudantes exerciam sobre a estrutura universitária, pois eram seus financiadores diretos, um prelúdio da era que estava por vir após a revolução francesa (logo os formandos que egressavam e se tornavam “doutores” tomaram o controle também acadêmico). Entre os estudantes também havia uma hierarquia em que os veteranos tinham poder sobre os ingressos. Aqueles detinham o direito de cobrar destes tributos em dinheiro, bebidas ou prostitutas. Em algumas universidades os ritos de passagem passavam por ingerir quantidades exageradas de bebidas alcoólicas, se banhar em excrementos etc. Uma prática comum em instituições de regime de internato na Idade Média como profilaxia de parasitismos se tornou uma tradição mesmo quando medidas sanitárias mais efetivas se universalizaram: o confisco e queima de roupas dos calouros e a tonsura completa do corpo. Estas práticas constituíam o “trote”, uma das modalidades de marcha dos cavalos, porém não natural, mas ensinada pelos domadores à custa de chicotadas. Porém, as práticas de subordinação não se limitavam ao início imediato dos cursos. Até a entrada de uma nova turma, os estudantes não podiam freqüentar as mesmas salas que os veteranos, sendo obrigados a assistir aulas de dentro dos “vestíbulos” (espécie de vestiário). No Brasil o trote já nasce violento, herdeiro direto da “praxe” portuguesa. A primeira vítima mortal data de 1831 na Faculdade de Direito de Olinda. Os mais atentos já notaram similaridades com os fatos atuais, inclusive com as imagens transmitidas em 28/02/2010 em conhecido programa televisivo. Porém o senso comum já arraigou tais atividades como tradicionais e naturais. O trote, combatido e praticamente erradicado em seus países de origem, permanece como cultura no Brasil muitas vezes disfarçado de forma de integração. Como toda “tradição” repete-se sem se discuti-la, sem buscar as suas origens. Nesta origem o caráter educativo do trote é bem claro: mostrar que há uma ordem natural do funcionamento da universidade, que há uma estrutura de poder em que calouro vale menos que veterano, que por sua vez vale menos que professor. Ao calouro resta a esperança de que o trote não seja “violento”, e o consolo que no ano ou semestre seguinte haverá a oportunidade de estar do outro lado, podendo dar seu “toque pessoal” ao submetimento dos próximos calouros. Este comportamento se estende também de certa forma ao restante da sociedade ao longo do curso, em atividades com princípios idênticos aos dos ilustres estudantes ingleses do século XIII (quem não se lembra do episódio dos formandos da UEL no ano de 2008?). Vários exemplos mais locais poderiam ser relatados, mas o objetivo do texto não é apontar culpados ou “denuncismos”. O primeiro intuito é provocar uma reflexão sobre nossas próprias práticas do dia-a-dia, questionar o que é sólido e como este pode se desmanchar no ar. O projeto “Da Janela Lateral...” do Diretório Acadêmico Alfredo Balena O curso de medicina é sabidamente uma escolha dura para qualquer pessoa, especialmente os jovens que se vêem obrigados a tomar uma decisão que direcionará suas vidas ainda na adolescência. É o vestibular mais concorrido exigindo uma reorganização do ambiente familiar e exercendo uma pressão muito grande sobre o candidato. Já na faculdade, a situação permanece semelhante, são seis anos de estudos intensos e dedicação integral. Talvez por isso, em conjunto ao respeito e reconhecimento milenar que a profissão goza na sociedade, o estudante de medicina carregue tanto respeito a símbolos e tradições (sejam estas quais forem). Não raro os casos que aparecem nos telejornais de trotes e comportamentos violentos de estudantes sejam protagonizados por estudantes destes cursos. Na UFMG, o Diretório Acadêmico Alfredo Balena (DAAB), órgão representativo dos estudantes de medicina, observando o crescente encrudescimento dos trotes, especialmente no ICB, aliado ao seu posicionamento contra o trote embasado por reflexões semelhantes à da primeira parte deste texto resolveu tentar algo diferente. Os novos estudantes que ingressaram na UFMG no primeiro semestre de 2005 dentre as tradicionais (!) e longuíssimas palestras sobre como ser expulso da Universidade e balões carregados de tinta traçantes perceberam um grupo que chamou a atenção. Influenciados pelas recentes experiências do projeto Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde (VER-SUS) e do Estágio Interdisciplinar De Vivência Em Áreas De Reforma Agrária (EIV), o DAAB propunha uma atividade alternativa. Com o objetivo de mostrar a realidade do SUS na cidade de Belo Horizonte, apresentar e aproximar os estudantes ao movimento estudantil e introduzir o debate sobre a formação médica, o projeto “Da Janela Lateral...” se apresentava como uma forma de olhar a cidade e a faculdade por um novo ângulo. Através de uma metodologia simples que consistia em veteranos (ligados ao DA ou não) acompanhando grupos de ingressos a centros de saúde e centros de referência em saúde mental na periferia da cidade em que os próprios profissionais apresentavam o funcionamento da unidade de saúde, a sua história (quase sempre ligada a vitórias de organizações populares dos bairros), e acompanhamento de visitas a casas nas proximidades. Todos retornavam para almoçar juntos e conhecer o restaurante universitário. Pela tarde os grupos se refaziam para discutir sobre a experiência que vivenciaram, mediados por seus facilitadores e posteriormente redivididos de modo a compartilhar as experiências com estudantes que foram para locais diferentes. A metodologia baseada em princípios pedagógicos de educação popular, ancorada na participação ativa dos estudantes, dinâmicas para descontrair e pequenos textos marcantes da História da luta pela saúde no Brasil proporcionavam uma integração de fato. A distância, o desnível e a impessoalidade entre os calouros e os demais membros da universidade, próprios das palestras e trotes, se diluíam em uma aproximação carregada de respeito mútuo, descontração e política. O tradicional elefantinho era contraposto pelo berequetê. O calouro burro era combatido por José, Maria, etc. A prática de andar descalço na rua era substituída pelo duro exercício de expressar uma opinião. Relatos de professores do primeiro período nos mostram que a melhor atividade da recepção (segundo os novos estudantes) era o dia da vivência – curiosamente, a melhor aula da primeira semana foi lecionada pelos discentes. Ao fim da atividade uma grande roda é formada e um abraço é celebrado. Um dos membros do DA em uma das recepções (não conseguiria lembrar em qual delas com exatidão) declara: “Aqui não tem mais calouros e veteranos, somos todos colegas”. Ainda que o trote não tenha ainda se tornado obsoleto, o germe do novo mantém-se forte e o exemplo pedagógico aos poucos torna-se ponto de referência e reflexão dentro da universidade. “O mundo espera por suas exigências. Precisa de seu descontentamento, suas sugestões. O mundo olha para vocês com um resto de esperança. É tempo de não mais se contentarem Com essas gotas no oceano.” B. Brecht * Estudante do 10° período do curso de Medicina da UFMG REFERÊNCIAS E TEXTOS INDICADOS COLTRO, MARCELO. TROTE E CIDADANIA. INTERFACE (BOTUCATU), BOTUCATU, V. 3, N. 5, AUG. 1999 . AVAILABLE FROM <HTTP://WWW.SCIELO.BR/SCIELO.PHP?SCRIPT=SCI_ARTTEXT&PID=S1414-32831999000200017&LNG=EN&NRM=ISO>. ACCESS ON 01 MAR. 2010. DOI: 10.1590/S1414-32831999000200017. NAVARRO, PAULO. DOMINAÇÃO, PODER E LEGITIMIDADE A LÓGICA DOS TROTES. DENEM, 2006 PONCE, ANIBAL. EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES. 8.ED. SÃO PAULO: 1988. 195P. VASCONCELOS, PAULO DENISAR. A VIOLÊNCIA NO ESCÁRNIO DO TROTE TRADICIONAL. 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