Que política para a cultura?
Renato Janine Ribeiro (na revista Bravo em fevereiro de 2003)
Qualquer pessoa bem informada sabe, hoje, que a educação se tornou um fator fundamental para o
sucesso profissional de cada um, e para o avanço da economia como um todo. E as pessoas mais bem
informadas acrescentariam: a cultura, também. Mas infelizmente desta constatação não saem grandes
resultados. Nem as empresas investem na educação (ou na cultura) tanto quanto deveriam, nem o
Estado prioriza suas políticas no caso que aqui nos interessa, que é o da cultura. Quando um ministro
da Cultura – Jerônimo Moscardo, no governo Itamar Franco – afirmou o caráter essencial da cultura, e
propôs que cinco por cento do orçamento da União lhe fossem destinados, cem vezes mais do que os
0,05% da época, ninguém lhe deu importância, e ele foi ejetado do cargo sob pressão daqueles que logo
fariam o Plano Real.
Discutamos um pouco o que deveria ser uma política de cultura. Antes de mais nada, ela não deveria
ter como principais destinatários ou autores nem os artistas nem os intelectuais. Numa sociedade
democrática (e a cultura pode contribuir para tornar mais democrática a sociedade, enriquecendo o
imaginário das pessoas, assim as capacitando para decidir melhor suas vidas), quem tem mais a ganhar
com a cultura é o povo, ou o público, como um todo. Assim, o próprio fato de que a discussão sobre a
política da cultura se dê nos cadernos culturais dos jornais, ou nas revistas culturais como Bravo, e não
nas páginas centrais dos jornais diários ou das revistas semanais, já mostra que ainda não estamos
convencidos de que a cultura é um assunto político prioritário. E isso se agrava, na medida em que os
próprios ministros e secretários de Cultura parecem falar mais em porcentuais e em leis de renúncia
fiscal do que em cultura.
Façamos um rápido mapa da cultura segundo as famílias políticas. Parece correto dizer que a direita vê
a cultura como entretenimento. Ela faz parte da diversão. Daí que privilegie grandes eventos, como os
que houve em São Paulo nos governos Maluf e Pitta – e que continuaram, com o PT, porque afinal de
contas as pessoas querem se divertir, e não está no manual de instruções da cultura que ela deva ser
chata. O problema é, só, que isso é pouco.
Já a esquerda sempre investe na idéia de cultura como cidadania. A cultura é direito básico e está
incluída na formação de um sujeito livre. Concordo com essa idéia – que faz parte do discurso do PT.
Mas acrescento algo que não costuma estar nas falas políticas: é cultural toda experiência da qual saio
diferente – e mais rico – do que era antes. Seja o que for, um livro, um filme, uma exposição: estou no
mundo da cultura quando isso não apenas me dá prazer (me diverte, me entretém), mas me abre a
cabeça, ou para falar mais bonito, amplia o meu mundo emocional, aumenta minha compreensão do
mundo em que vivo e, assim, me torna mais livre para escolher meu destino.
Parece que faltou falar do centro, que é onde poderíamos situar o PSDB, partido que em 2002, se
perdeu o governo federal, fortaleceu-se nos Estados. Infelizmente ele não parece ter uma idéia clara
sobre o papel da cultura na sociedade – e isso justamente no partido que talvez desfrute da maior
proporção de simpatia entre as pessoas que têm acesso à cultura. O que mais ouvimos das lideranças
tucanas é que a cultura é uma economia. São quem mais fala – mais que a esquerda, o que não espanta,
mas também mais que a direita, o que é curioso – em leis de incentivo. Há honrosas exceções, e o
ministro Weffort apoiou um projeto de pesquisa – do qual participei – vinculando cultura e democracia,
dirigido pelo professor Saul Sosnowski, da Universidade de Maryland. Mas a idéia central dessa
pesquisa, ou seja, que mais cultura implica mais democracia, não parece ter germinado na família
tucana, - nem talvez nas outras.
O que fazer com este mapa assim resumido? O ideal é uma política de cultura que aposte em torná-la
artigo de primeira necessidade. Isso significa tomar o ponto de vista do público, mais que o do artista –
porém o de um público que não seja apenas entretido, mas sim enriquecido, pela cultura. (Se entreter
quiser dizer "matar o tempo", que afinal de contas é um dos sentidos da palavra divertir – significando
"desviar" - , então isso é bem pouco). Darei um exemplo que me impressionou alguns anos atrás.
Na Irlanda do Sul, a independência significou, para se opor bem à Inglaterra protestante, um
catolicismo intransigente. E isso incluiu não se falar de sexo, e sobretudo em homossexualismo. (Um
dos heróis da independência, Roger Casement, que por sinal havia sido cônsul britânico em Santos,
ainda hoje tem negada sua homossexualidade). O resultado disso foi que muitos rapazes irlandeses, ao
perceberem que nada sentiam pelas meninas, achavam que tinham a vocação sacerdotal. Como os
desejos cedo ou tarde se manifestam, esses homossexuais ou se enrustiram ou terminaram abusando
sexualmente de meninos a seu encargo. Muito sofrimento teria sido evitado se a mídia irlandesa falasse
em amor homossexual.
Ora, esse diferencial que a cultura representa, em termos de emancipação humana, entre nós tem ficado
mais ou menos ao Deus dará. O desejável é que uma política de cultura tematize diretamente o
enriquecimento do ser humano que a cultura proporciona. Na verdade, penso que as novelas da Globo
contribuíram bastante para isso, ao difundir país afora a noção de igualdade entre homens e mulheres, e
em certo grau o respeito aos homossexuais masculinos, mais aceitos pelo público do que as lésbicas
(infelizmente, elas continuam tendo uma expectativa de vida, nas novelas, de pouco mais que um mês).
Aprender, vendo uma novela, que há outros rumos na vida além daqueles que o microcosmo nos
ensinou, esse é um êxito da cultura. E além disso todo aquele que escreve na imprensa já deve ter
recebido uma carta dizendo do impacto que alguém sentiu com uma frase, uma página sua: não há
maior prêmio do que esse, para um escritor. Mas o que falta é que esse impacto deixe de ser acaso, para
se tornar projeto – que esse resultado humano da cultura pare de ser eventual, para se tornar sistemático
ou, pelo menos, freqüente.
É querer muito? Parece, pelo menos, que é querer algo que não está nas agendas. Ainda se fala em
entretenimento, um pouco; em mercadoria, muito; em cidadania, vagamente. O discurso da política
cultural parece oscilar, hoje, entre esses dois últimos termos. (O mero entretenimento, como a mera
direita, estão em baixa). Quando se pretende sonhar – e um ministro artista é isso mesmo, alguém que
pode falar ao id das pessoas – vêm as palavras da emancipação. Mas, como isso não basta, e é preciso
agir, vai-se agir com os números, os porcentuais, a economia. Uma ponte não se estabeleceu entre esses
dois mundos. Curiosamente, isso faz que gestores tucanos e esquerdistas da cultura acabem ficando até
bastante perto uns dos outros. A ferramenta predominante, para gerir, acaba incluindo a renúncia fiscal.
O discurso a legitimar uma política cultural precisa sempre passar pela cidadania. Mas nem o
instrumento gera o sonho, nem o sonho cria novos instrumentos. Esse é o grande déficit de nossa
política cultural.
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