As análises ambientais na Geografia: o sistema GTP e suas possibilidades. Leandro Pessoa Vieira Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia – UFBA e-mail:[email protected] Resumo: Este artigo pretende explicitar o referencial teórico de uma pesquisa que tem como objetivo analisar as implicações ambientais promovidos pelo cultivo e processamento de mamona (ricinus communis L.) na microrregião geográfica de Irecê - Bahia. Observa-se na ciência geográfica uma lacuna teórico-metodológica que possibilite abordagens multidimensionais e transversais, sobretudo quando se trata da questão ambiental. As teorias existentes possuem limites que são facilmente observáveis, pois possuem viés dicotômico na análise da relação sociedade-natureza. Desta forma, surge a necessidade de novas abordagens de ordem geográfica para realçar a um só tempo, a globalidade e a interatividade dos sistemas ambientais. A proposta teórico-metodológica elaborada por Claude e Georges Bertrand (2009), para análises ambientais, o sistema GTP – Geossistema, Territórrio e Paisagem, busca contemplar esta reivindicação. Este modelo teórico direciona a análise por uma tríade de conceitos bastante utilizados Geografia e a partir de uma análise geográfica integrada e possibilita a compreensão de fenômenos que possuem origens múltiplas e por muitas vezes difíceis de serem delimitados. A ótica do GTP permite uma análise sistêmica na perspectiva da complexidade e surge como uma teoria interpretativa do meio ambiente com base na ciência geográfica. Palavras-chave: Analise ambiental. Geossistema. Território. Paisagem. GTP. Introdução Este trabalho pretende explicitar o referencial teórico de uma pesquisa que tem como objetivo analisar as implicações ambientais promovidos pelo cultivo e processamento de mamona (ricinus communis L.) na microrregião geográfica de Irecê Bahia. Nesta área está ocorrendo uma reorganização produtiva diante da atual configuração geopolítica mundial em torno da necessidade de diminuição da dependência da matriz energética fossilista. Desta forma o discurso ecológico e ambientalista é evocado para julgar as conseqüências da manutenção das taxas atuais de queima de combustíveis fósseis em escala global. Emerge então, a necessidade busca de fontes energéticas alternativa à fossilista. Neste contexto surge uma produção energética, via biomassa, introduzida numa lógica global de utilização de insumos agrícolas para a produção de combustíveis, originando assim os agrocombustíveis. Desta forma as paisagens rurais podem ser alteradas em ambientes onde a atividade agrícola não possui esta finalidade, configurando novas monoculturas ou agrossistemas. De acordo com a publicação da pesquisa de produção agrícola municipal do IBGE (2010), em 2008, a microrregião geográfica de Irecê é responsável por 51% da produção nacional e por 65% da produção estadual de mamona. Esta reorganização pode tornar vulnerável o ambiente da microrregião geográfica de Irecê, devido a diversos fatores tais como: a utilização de agroquímicos para a manutenção da cultura de mamona que podem contaminar o aquífero cárstico de Irecê; a pressão no solo pela permanência de apenas um tipo de atividade realizada; dependência dos agricultores a uma racionalidade distante de sua realidade com perda de sua autonomia na tomada de decisões, dentre outros. Assim a pesquisa possui relevância por contribuir para o entendimento de problemas ambientais a partir de uma análise geográfica integrada, que possibilite a compreensão de fenômenos que possuem origens múltiplas e por muitas vezes difíceis de serem delimitados, tentando abranger sua totalidade que não se esgotará na análise. Para abordar os problemas fundamentais para a compreensão da dinâmica espacial que ocorre na microrregião geográfica de Irecê será utilizado o modelo teórico elaborado por Claude e Georges Bertrand: o sistema GTP - Geossistema, Território e Paisagem. Desta forma este artigo tem como objetivo evidenciar a operacionalidade deste modelo, de fonte geográfica, nas análises ambientais que agrega uma tríade de conceitos para abordagens ambientais integradas e complexas. Meio ambiente e Geografia A Geografia por ser considerada uma ciência que tem como objeto transfronteiriço (TOMASONI, 2004) da abordagem das relações sociedade e seu meio, comumente é associada como uma forma de conhecimento possível para analisar a complexidade dos processos ambientais. As diversas dimensões deste tipo de análise: política, natural, econômica, social podem ser, de acordo com a perspectiva integradora, estudadas conjuntamente em um determinado fenômeno ambiental. É importante considerar que a análise ambiental é apenas um dos itinerários possíveis da Geografia. Segundo Mendonça “tornou-se muito difícil e insuficiente falar do meio ambiente somente do ponto de vista da Natureza quando se pensa na problemática sociedadenatureza do presente” (2001, p.117) e por esta condição a análise ambiental de um fenômeno se torna uma importante contribuição à sua compreensão. Para Boaventura de Souza Santos (2009) algumas distinções dicotômicas repercutem academicamente em uma forma de conhecimento fragmentado que limitam a compreensão da realidade. Dentre as análises dualistas nas ciências, alguns elementos surgem como separados por essência, tal como a distinção Natureza x Sociedade. Algumas ciências obtiveram sérios problemas com esta distinção, como a Geografia que se fraturou em uma ciência dicotômica, na qual é possível se observar o que ficou conhecido genericamente como Geografia Física e Geografia Humana. Para realizar uma análise integrada do meio ambiente é indispensável à consideração da multidimensionalidade do espaço-tempo. Esta propriedade pode ser alcançada através do diálogo interno da Geografia e com outras ciências, através de seus conhecimentos específicos que não podem ser isolados e devem ser compreendidos dentro de uma totalidade. Porém, observa-se na ciência geográfica uma lacuna teórico-metodológica que possibilite abordagens multidimensionais e transversais, sobretudo quando se trata da questão ambiental. As teorias existentes possuem limites que são facilmente observáveis, pois possuem viés dicotômico na análise da relação sociedade-natureza. Não consideram este par como dialético dentro de uma organização espacial, ou seja, fragmenta ao invés de estabelecer conjugações. Teoria geossistêmica e sua contribuição parcial nas análises ambientais Um dos problemas fundamentais para a deficiência das teorias científicas nesta temática é a analise por uma única via de movimento. Como um dos exemplos é possível citar a teoria geossistêmica. Criada com a influência da teoria sistêmica elaborada por Ludwing von Bertalanffy em 1901 (RODRIGUES, 2001), o precursor da utilização do termo geossistema1 foi geógrafo russo Sotchava, no início da década 1960 (Bertrand e Bertrand, 2009). Para Sotchava (APUD MONTEIRO, 2001) o geossistema pode ser considerado como “potencial ecológico de determinado espaço no qual há uma exploração biológica, podendo influir fatores sociais e econômicos na estrutura e expressão espacial”. 1 Outros termos também podem são utilizados como sinônimos de geossistema dentre os quais é possível destacar: Unidade de Paisagem, Sistema Geográfico, Sistema Territorial Natural (Bertrand e Bertrand, 2009). Esta definição revela a perspectiva naturalista da utilização deste conceito na ótica do autor russo. Ao mesmo tempo em que há a pretensão de analisar as interações das dimensões existentes de um dado espaço, Sotchava (1977) considera os fatores sociais e econômicos como secundários e desprovidos de dinâmica própria, considerando apenas a possibilidade da influência dos fatores sociais e econômicos sobre um “sistema natural”, não desviando da abordagem dualista entre sociedade-natureza através da causalidade linear e unidirecional. De acordo com Ferreira (2010) a critica mais contundente ao modelo geossistêmico de Sotchava é a imprecisão dos recortes espaciais expressado na ausência taxonômica. Classificação esta proposta por Bertrand em 1968, quando elabora seu esquema taxonômico de análise das unidades de paisagem. Como o próprio autor ressalta, a noção de escala temporo-espacial é indispensável para o estudo das paisagens e revela que a base geral de sua elaboração foi a taxonomia das análises geomorfológicas de Tricart e Cailleux . O geossistema surge na proposta de Bertrand, como a maior das três unidades inferiores2. Fonte: Bertrand (2009) Figura 1: Geossitema de acordo com Bertrand - 1968 2 Na taxonomia elaborada por Bertrand as unidades superiores são compostas, na ordem de grandeza espacial decrescente, por: Zona, Domínio e Região Natural. E as unidades inferiores pelo: Geossistema, Geofácies e Geótopos. (Bertrand e Bertrand, 2009) Bertrand salienta que as unidades inferiores se constituem em “uma boa base para os estudos de organização espacial porque é compatível com a escala humana (2009, p.42)”. Para Bertrand (BERTRAND E BERTRAND, 2009, p.93) o geossistema é um volume que se inscreve nas três dimensões do espaço, e se define por sua massa, isto é por uma certa quantidade de matéria e energia e por uma certa energia interna. Distinguem-se três tipos de componentes: componentes abióticos (litosfera, atmosfera e hidrosfera) que formam o geoma; componentes bióticos ou biomassa (fitomassa e zoomassa) que constituem o bioma e componentes antópicos. Desta forma, analisando a definição gráfica (figura 1) e escrita dos geossistemas para o Bertrand conclui-se que este está situado numa determinada porção do espaço, sendo resultado da combinação dinâmica e interativa de diversos elementos físicos, biológicos e antrópicos, no qual coexistem ordens e desordens, e que fazem da paisagem um conjunto único e indissociável e em constante evolução, sendo reorganizada frequentemente. Comparando com a concepção de Sotchava, a definição de Bertrand aproxima-se com mais intensidade das análises geográficas, sobretudo pela consideração dos recortes espaciais possíveis e da ênfase da influência da atuação humana. As análises de fluxos, interações e processos são evidenciadas. Ainda assim, a teoria geossistêmica possui limites que são identificados pelo próprio autor, ao reconhecer que nestas abordagens pode haver determinações naturalistas nas análises, pois A inserção do fato antrópico no geossistema se limita, então, ao menos no estado atual da pesquisa, a levar em conta o impacto econômico e social sobre o complexo territorial natural, isto é, as modificações impostas as geófacies e aos geohorizontes e suas conseqüências sobre os estados e o comportamento do geossistema (BERTRAND E BERTRAND, 2009, p.98). A ação humana, na teoria geossistêmica, continua sendo situada por uma única direção. Há permanência da ‘ótica dicotômica da relação sociedade-natureza. As ações da sociedade são visualizadas como “impactos” da sociedade sobre o ambiente e são descontextualizados como se não houvesse processos societários que são manifestados na ação sobre o geossistema, sendo que para Bertrand e Bertrand (2009, p.321). A clássica expressão: “impacto do homem sobre o meio” deve ser revista. De um lado, o homem é uma entidade filosófica enquanto que o que está em jogo no meio ambiente é a ação complexa das sucessivas sociedades humanas que constroem materialmente e simbolicamente seu território. Esta antropização se inscreve no tempo da história ecológica e social. E podemos identificar as fases. De outro lado, impacto significa uma ação brutal que se exerce do exterior do objeto considerado. As sociedades humanas não podem ser consideradas como estando fora de uma “natureza” (por sinal indefinível) e suas intervenções não são sempre brutais ou destruidoras. Elas criam um sistema híbrido que é seu próprio ambiente e que evolui sem cessar. Os questionamentos que emergem são: por estas limitações, a teoria geossistêmica deve ser olvidada? Descarta-se esta teoria por ela se mostrar insuficiente para analisar a multidimensionalidade de um fenômeno geográfico? Esta teoria pode se tornar uma importante ferramenta nas análises geográficas desde que considerado suas limitações. Este conceito é naturalista e não é possível considerá-lo como social. Sua operacionalidade e sua importância fundamental é a consideração de processos temporais que não exclui a antropização, e por isso faz conectar o tempo dos processos naturais com o tempo dos processos sociais (mesmo sem explicar estes últimos). Diante da tecnificação e economização do mundo, houve uma desnaturalização da história “natural” (LEFF, 2010) e a teoria dos geossistemas pode auxiliar na desconstrução deste pensamento. Os processos naturais não deixaram de acontecer isoladamente, sem a interferência social. É evidente que os processos sociais intensificaram e/ou alteram a dinâmica “natural”, mas não são os únicos a serem considerados. E para atribuir o caráter social de um trabalho que se pretende espacial e geográfico não é possível reduzir a análise a um único conceito naturalista. Desta forma conectando este conceito a outros com entradas sociais mais relevantes como território e paisagem buscam-se compreender a complexidade, diversidade e simultaneidade dos processos espaços-temporais que caracterizam um fenômeno ambiental. Território, Paisagem e a complementação espaço-temporal da análise ambiental A análise ambiental realizada por um conceito unívoco e de evocação naturalista se torna enviesada. O ambiental é o campo da dialética sociedade-natureza e não há motivos para se estudar esta relação por um único caminho ou por um conceito exclusivo. A ótica naturalista tende a tratar as ações da sociedade através de uma perspectiva maniqueísta. As designações “fator antrópico” e “impacto” são (re) significados e postos sobre o ponto de vista dualista e numa visão causalística linear, sem abordar a recursividade relacional causa-efeito3. Retornando ao conceito de geossistema, é possível identificar que o espaço-tempo considerado é o do natural. O tempo que se considera é o tempo das fontes, das características bio-físico-químicas e dos ritmos naturais que estão sendo antropizados. Outros “tempos” e as temporalidades sociais não estão situados. Problematizando a condição do espaço-tempo, Gonçalves (2006, p.135) afirma que Hoje o tempo de quem comanda a ação é mais rápido e, assim, os efeitos de sua ação tendem a ser mais imediatos em escalas cada vez mais ampliadas. Os ciclos biogeoquímicos, a biocenose de cada biótopo, assim como os ritmos socioculturais de cada lugar, sempre próprios ficam cada vez mais submetidos a ação de quem está fora e medindo sua ação em termos de rendimento monetário e exigindo de todos que suas vidas tomem o mercado como parâmetro e assim, que a quantidade torne-se mais importante que a qualidade. Por isto para a compreensão da relação sociedade-natureza é imprescindível proceder a investigação da multidimensionalidade do espaço-tempo. Considerado isto é importante afirmar que as análises para o referido problema não podem possuir uma primazia espacial, sendo que os tempos e as temporalidades devem ser ponderados, de forma equilibrada com o espaço, já que estes formam um par dialógico, assim com a Natureza-Sociedade e não podem ser analisados separadamente. Surge, assim, a necessidade de utilização de conceitos que promovam a consideração das diversas dimensões espaço-temporais e que possibilitem ênfase das relações societárias e que permitam analisar processos originados distante do espaço de 3 Sobre o princípio da recursividade, de acordo com Morin (2010) uma causa gera um efeito e retorna de forma causal a causa que o produziu. referência da pesquisa. Os conceitos de território e paisagem irrompem, e agregam ao conceito naturalista de geossistema, circunstanciais sociais, indispensáveis a este tipo de análise. Território De acordo com Sposito (2004), “não se pode pensar o território a-historicamente, pois sempre que ele é estudado, a categoria tempo comparece de imediato como uma referência necessária. (p.111)”. Para Bertrand e Bertrand (2009 p.123) “a natureza não pode ser mais apreendida a partir de cronologias estritamente naturalistas. O movimento da natureza deve ser inscrito no movimento da história humana e vice-versa.” Desta forma, conceitos que possibilitem a apreensão do tempo histórico como atuante é de fundamental relevância. Este movimento da história humana está indissociado do caráter jurídico, econômico, cultural e, sobretudo, político das relações societárias. Sendo que estas relações são fundamentadas através do exercício do poder, portanto conflituosas. O conceito de território abrange a interatividade das relações societárias em múltiplas esferas e em diversas escalas espaciais. Nas análises ambientais o conceito território é funcional para analisar as diferentes maneiras pela qual a sociedade se apropria e modifica a natureza por meio das relações de poder. Nesta perspectiva o território não pode ser confundido como base espacial, pois, como afirma Souza (2006, p.335) o território não deve [...] ser simplesmente confundido com substrato espacial material que serve de referência para a territorialização.Os territórios não são “coisas”, matéria tangível, e sim “campos de força” que só existem enquanto duram as relações sociais das quais eles são projeções espacializadas. Esta concepção, deste conceito, embute também o tempo das ações de caráter socioeconômico e político da sociedade inserido nestes “campos de forças”. O tempo do território, além de suas temporalidades múltiplas, é aquele no qual a fonte se torna recurso. De acordo com Gonçalves (2006) este conceito possui centralidade para enfrentar o desafio ambiental contemporâneo e é também útil nas análises ambientais. As ações dos diversos agentes, suas intencionalidades e sua vinculação ao um determinado espaço4 são importantes neste conceito e nas estudos dos ambientes são de fundamental importância para a compreensão dos processos de apropriação da natureza. Sobre a relação sociedade-natureza, Bertrand e Bertrand (2009, p.125) afirmam que a potencialidade e a limitação não estão na natureza da natureza. Os determinantes, se existem, estão na sociedade. Eles exprimem ali [nos geossistemas] a desigualdade das sociedades e dos homens diante da natureza, do território, da paisagem. A natureza tem petróleo, mas ela não tem idéia! O autor situa o território nesta afirmação como determinante para a utilização da natureza. Ou seja, a natureza utilizando o conceito de território se torna recurso, já que através da materialização da idéia pode ser potencializado ou limitado a apropriação e utilização da própria natureza. O emprego do conceito de território nas análises ambientais atribui a dinâmica das relações societárias. Bertrand e Bertrand (2009, p.142) consideram que o território “é de alguma forma a interpretação socioeconômica do geossistema”. é possível complementar nesta afirmação que o uso do conceito de território possibilita a interpretação das relações políticas ocrridas sobre o geossistema. Quando utilizado conjugadamente com o geossistema, o conceito de território possibilita a visualização da centralidade do tempo histórico, fundamental na compreensão da relação sociedade-natureza. Como já ressaltado o tempo dos geossistemas é o tempo do “natural”, colocando o espaço-tempo das sociedades com algo estacionário e desprovido de dinâmica própria, submetido assim ao tempo “natural”. 4 Nesta proposta de análise, o espaço delimitado considerado é o geossistema. Paisagem Este conceito possui um movimento dentro das ciências (inclusive geográfica) que o proporciona múltiplos sentidos. Nos estudos ambientais em geografia ainda se evoca a característica descritiva e análise fracionada. A paisagem, nesta perspectiva, é vista como objeto como uma realidade independente dos olhares e percepções dos sujeitos. Com a introdução de um panorama subjetivo a paisagem se torna um objeto socializado, uma imagem, que só existe através do fenômeno fisiológico da percepção e de uma interpretação sociopsicológica [...] nem por isso deixa de ser uma estrutura natural, concreta e objetiva, isto é independente do observador (BERTRAND E BERTRAND, 2009, p.218). A partir desta consideração percebe-se um dos motivos para uma recorrente exclusão da paisagem nos estudos ambientais contemporâneos. Este conceito está repleto de tensões e desconfortos proporcionados pelas conexões entre noções aparentemente antagônicas e contraditórias tais como objetividade–subjetividade e natureza-cultura, parte-todo. A paisagem é estrutura e sistema a um só tempo (BERTRAND E BERTRAND, 2009). Estrutura devido a sua materialidade adaptada na dialética sociedade-natureza. Sistema, pois, é uma tradução das coexistências de processos naturais e sociais. Os sistemas de produções econômicos estão esteticamente registrados na paisagem. Afinal a paisagem é sempre uma herança (AB’SABER, 2003). É um legado dos processos fisiográficos e biológicos e dos processos históricos de produção societária. A paisagem é ordem e desordem convivendo dialogicamente. É a natureza na dimensão social e a sociedade numa dinâmica natural. A paisagem está “inserida em uma rede coerente de significantes sociais” (BERTRAND e BERTRAND, 2009, p.224). Ela não é e não pode ser considerada como um registro neutro dos fenômenos naturais. A paisagem não é apenas aparência. Nela estão incutidos, olhares penetrados de diversos valores sociais, sejam estes econômicos, estéticos, religiosos, morais, ou seja, a paisagem é um produto social. Mas não se pode esquecer que mesmo as paisagens mais artificializadas permanecem sempre dominadas por mecanismos naturais: energia solar, fotossíntese que elabora a matéria viva, ciclos biogeoquímicos, energia gravitacional, etc. Não há paisagem sem dimensão ecológica. (BERTRAND E BERTRAND, 2009, p.172) Nos estudos ambientais a paisagem pode ser vista como objeto, mas não apenas como tal. E o distanciamento desta visão centralizadora objetiva pode ser obtido considerado no tempo das análises paisagísticas: é o tempo do sociocultural, das múltiplas temporalidades das representações e dos símbolos nas dimensões identitárias. A conexão da paisagem com os outros dois conceitos supracitados possibilitam uma visão transversal, em multiescalas temporais e espaciais de um determinado fenômeno considerado ambiental. O olhar geográfico: análises ambientais no sistema GTP (Geossistema, Território e paiasagem). Como já ressaltado existem déficits teórico-metodológicos e epistêmicos para as análises ambientas. De acordo com a reflexão de Rodrigues (2009, p.176). Vivemos uma crise paradigmática, mais ainda não temos um novo paradigma científico nas abordagens ambientais na Geografia. Uma mudança paradigmática, que provocaria uma revolução científica, seria entender a dinâmica da natureza, a produção e reprodução do espaço, as dinâmicas societárias, em sua totalidade, em suas contradições e conflitos e assinalar a importância do espaço e do território. A autora afirma que há lacunas nas formas de conceber os problemas ambientais na análise científica. Em sua afirmação deixa explícito que o paradigma da complexidade é o fundamento de sua reflexão e que a crise paradigmática a qual ela se refere é a crise da simplificação, da fragmentação, dos isolamentos e dos excessivos reducionismos na ciência. A proposta teórico-metodológica elaborada por Claude e Georges Bertrand (2009), para análises ambientais, o sistema GTP – Geossistema, Territórrio e Paisagem, busca contemplar esta reivindicação expressada pela escrita de Rodrigues. Este modelo teórico direciona a análise por uma tríade de conceitos bastante utilizados na ciência geográfica. E é aí que reside seu diferencial. A interação interna através de conceitos com enfoque diferenciados o que proporciona a superação de problemas limitadores à ciência como as dicotomias5 e as abordagens setoriais multilantes. Os conceitos de geossistema, território e paisagem utilizados conjuntamente em uma análise permite a compreensão dos processos e das dinâmicas naturais e sociais de um fenômeno. Os caminhos se ampliam. A sociedade não é mais analisada como um elemento “impactante” ao ambiente. A natureza possui dinâmicas com a atuação social e estas ações são promovidas com intencionalidades e a partir de contextos (geo)políticos, econômicos, culturais e sociais dinâmicos. Este modelo é uma busca de ordem geográfica para realçar a um só tempo, a globalidade e a interatividade de todo sistema ambiental, tendo a noção de que a totalidade não se esgotará por esta via teórico-metodológica. Ao refletir sobre a natureza dos conceitos Haesbaert (2009, p.621) afirma que A “identidade” de um conceito, um pouco como na própria construção de uma identidade social, não se define simplesmente pela concepção clara de um “outro” frente ao qual ele se impõe, mas pela própria definição que este outro lhe concede – portanto na sua interação. Isto significa que as “identidades” conceituais devem ser trabalhadas através das fronteiras, no interior dessas delimitações que aparentemente separam, ou seja nos limiares, nas interfaces sem o às vezes estabelecimento de um recorte de delimitação estanque e bem definido. O sistema GTP segue esta perspectiva. A interação entre os conceitos de geossistema e paisagem, geossistema e território, território e paisagem e dos três conjuntamente ampliam suas lentes objetivas, ou seja, aquilo que lhe dá o caráter de científico. Estes conceitos se tornam complementares nas suas diferenças. E suas diferenças são visíveis nas referências espaciais e temporais embutidas nos conceitos. A proposta do GTP é de relançar a pesquisa ambiental sobre bases multidemensionais, no tempo e no espaço, quer seja nos quadros das disciplinas ou mesmo em formas de construção de interdisciplinaridade. Sua vocação primeira é favorecer uma reflexão epistemológica e conceitual e, na medida do possível, desencadear proposições metodológicas concretas. (BERTRAND E BERTRAND, 2009, p.306) 5 Teoria x prática, epistemologia x método, sociedade x natureza. Para Bertrand e Bertrand (2009) nas análises ambientais há um desequilíbrio do par espaço-tempo. Sendo que as maiores deficiências estão nas referências temporais A partir desta deficiência nas considerações temporais nas análises ambientais o modelo GTP busca evitar a cronologia sem temporalidades, a primazia de um tempo linear e evolutivo, permitindo a análise da ocorrência das simultaneidades sincrônicas e também dos acontecimentos diacrônicos. Os diversos tempos do meio ambiente nos conceitos do GTP, de acordo com Bertrand e Bertrand (2009) estão assim dispostos e permitem as seguintes leituras: O geossistema é o tempo do natural, dos componentes biofísicos. O território é o tempo histórico, social, econômico e político. A paisagem é o tempo do atual e do cultural, mas no sentido de ressurgimento, das múltiplas temporalidades da representação. No GTP, assim como o tempo, a natureza também possui significações diversas. No geossistema a natureza é fonte, no território ela se torna recurso e na paisagem é organização. As sociedades também podem ter leituras distintas no sistema GTP, baseado em sua característica relacional com natureza ou com as próprias sociedades. No geossistema a sociedade é vista como ação transformadora6. Já no conceito de território as relações de poder são evidenciadas, enquanto que na paisagem o que sobressai é a representação. Fonte: Bertrand e Bertrand, 2009. Esquema 1: Leituras conceituais e seu significados relacionais no sistema GTP. Org.: Leandro Vieira, 2011. 6 O que normalmente é chamado de impacto. Para Morin (2010) há coexistência entre a simplificação e a complexidade na perspectiva desta última. Desta forma, o esquema surge como, uma ferramenta simplificadora da linguagem científica através da representação gráfica, mas que pode proporcionar as direções de uma idéia abrangente e complexa. O esquema anterior expressa como é concebido o tempo, a natureza e sociedade na ótica do GTP. Estes três conceitos conjugadamente ou em sua unidade são, a um só tempo, parte e todo, contraditórios e complementares, uno e múltiplo. Esta proposta é uma tentativa de conceber a articulação, identidade e diferença de um fenômeno ambiental, através de uma perspectiva sistêmica. Para Tricart (2006, p. 108) “a abordagem sistêmica é adimensional e concilia o infinito temporal e espacial”. Com o sistema GTP, observam-se as possibilidades de análise do multidimensional, pois o fenômeno ambiental possui diversas dimensões atuantes, condicionantes e que são condicionadas pela dinâmica destas mesmas dimensões assim como nas suas interações. Acrescenta-se que a análise na ótica do GTP permite uma análise sistêmica na perspectiva da complexidade. O tetragrama organizacional elaborado por Morin (2010) é um importante norte epistemológico para análises de um determinado sistema. Nesta perspectiva todo sistema é guiado pelas noções de ordens, desordens, interações e reorganizações, onde as ordens são as regularidades, as desordens são as desavenças que interagem com as regularidades e indicam para onde o sistema vai. Compreendendo nesta perspectiva de análise sistêmica da relação sociedadenatureza que as regularidades e desavenças podem ser proporcionadas por elementos naturais e/ou sociais. Considerações finais A Geografia possui conceitos operacionais para a análise dos processos ambientais. Mas é importante ressaltar que o termo conceito aqui surge no plural. Plural porque a necessidade de utilização de mais de um conceito pode envolver uma sucessão de eventos e processos espaço-temporais através de perspectivas distintas e complementares, indispensáveis para a compreensão dos processos ambientais. Com o emprego de um único conceito a possibilidade de fragmentação e isolamento de um estudo a uma única via de movimento se torna elevada. Desta forma o conceito de geossistema é essencialmente naturalista. Já o conceito de território é social e enquanto o de paisagem é um híbrido, polissêmico e que a dialética objetividade-subjetividade rege. Estes conceitos permitiram a elaboração do sistema GTP, no qual o fenômeno ambiental pode ser posto através de leituras diferenciadas. O GTP é conectado por tempos e temporalidades diversas, o que permite a problematização mais abrangente do fenômeno ambiental. A pluralidade que os caminhos da utilização destes conceitos são promissores, pois, em um diagnóstico preliminar é possível efetuar a análise neste sistema tripolar por métodos que são aparentemente díspares. O método positivista pode surgir, sobretudo quando se avalia os estados dos geossistemas. O método dialético pode ser inserido com o conceito de território nas análises das interações constituintes nas relações de poder. E o método fenomenológico hermenêutico pode aparecer se for considerada a interpretação sociopsicológica do arranjo paisagístico. No trabalho sobre as implicações ambientais do cultivo e processamento da mamona na microrregião geográfica de Irecê, os geossistemas serão considerados, analisados e avaliados, mas a coagulação será contemplada através dos conceitos território e paisagem (ponto de partida empírico) onde são consideradas dentre outras coisas, as relações de poder e a política. A categoria território possibilita, por exemplo, compreender processos que não estão localizados na área de estudo e que interferem na sua organização, tais como a normatização do PNPB – Programa Nacional de Produção de Biocombustíveis que está inserido em um contexto geopolítico global e que implicam alterações paisagísticas e geossistêmicas no recorte espacial a ser estudado. O sistema GTP surge como uma possibilidade interpretativa do meio ambiente com base na ciência geográfica. É uma tentativa também de ultrapassar as dificuldades das questões conceituais e metodológicas, principalmente devido ao fechamento das análises excessivamente específicas e fragmentadoras. Referências Bibliográficas AB’SABER, Aziz Nacib. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. BERTRAND, Georges. BERTRAND, Claude. Uma geografia transversal e de travessias: o meio ambiente através dos territórios e das temporalidades. Org.: Passos, Messias Modesto dos. Maringá: Ed. Massoni, 2009. GONÇALVES, Carlos Walter Porto-. A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. FERREIRA , Vanderlei de Oliveira Ferreira. A abordagem da paisagem no âmbito dos estudos ambientais integrados. Geotextos. Salvador, vol.6, n.2, dez. 2010. p.187-207. HAESBAERT, Rogerio. Território e Região numa constelação de conceitos. IN: MENDONÇA, Francisco; SAHR, Cicilian Luiza Lowen-; SILVA, Márcia da. 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