Título da mesa: Psicanálise e Arte
Trabalho: Camille Claudel: a arte de ser mulher
Abordaremos a vida e obra da escultora Camille Claudel a partir da expressão
“devastação materna” utilizada por Lacan para se referir ao desejo da mãe em relação à
filha. Essa relação se repete com o homem, o escultor Rodin, seu amante e segundo
nesta devastação.
Elisabeth da Rocha Miranda é psicanalista, mestre em Pesquisa e clínica pela UERJ e
professora do curso de Especialização em psicologia clínica da PUC-Rio de Janeiro.
Camille Claudel: a arte de ser mulher.
Elisabeth da Rocha Miranda
Este trabalho visa levantar questões a respeito da relação da escultora Camille
Claudel e sua mãe. Relação esta que parece tanto mover quanto destruir a vida e a obra
da artista mas antes de tudo mulher.Para tal utilizei-me de suas cartas e de sua biografia.
Camille Claudel nasceu um ano e três meses após a morte prematura,
com 15 dias, de seu irmão mais velho Charles Henri. Sua mãe Louise
permanece enlutada para o resto de seus dias e “nunca beijou um de seus
outros três filhos.” A última carta de Camille escrita depois de vinte e cinco
anos de internação e dirigida ao irmão Paul Claudel é ainda um apelo a um
lugar no desejo da mãe, eterna enlutada. Ela escreve: “eu penso sempre em
nossa querida mamãe. Nunca mais a vi depois que vocês tomaram a funesta
decisão de me enviar a um asilo de alienados. Eu penso no bonito retrato que
fiz dela em nosso jardim. Os grandes olhos onde se lia a dor secreta, o espírito
de resignação... suas mãos cruzadas sobre os joelhos em abnegação completa:
tudo indicava a modéstia e o sentimento de dever em excesso, era bem a nossa
pobre mãe.” Louise, a própria mãe de Camille destruiu este retrato após
internar a filha, cujos endereçamentos lhe eram insuportáveis. Ela mesma órfã
de mãe aos três anos, tornou-se “o contrário de uma mulher do mundo, o dia
todo costurando, modelando roupas, cozinhando, ocupando-se do jardim, dos
animais; nem um momento para pensar em si, nem muito nos outros fora da
família” Sua vida é marcada por tragédias; aos três anos perde a mãe; aos
vinte e seis o irmão Paul Cervaux, suicida-se, aos quarenta anos Louise perde
o pai após um longo e doloroso sofrimento e aos vinte e três perde o primeiro
filho, recém-nascido. Desde o seu nascimento Camille foi mal acolhida por
sua mãe que esperava um menino para repor a perda do filho. Camille, a
menina decepciona e é batizada com um nome que atende aos dois sexos. Para
a mãe, ela sempre foi “uma criatura estranha e selvagem” com uma carreira
que não era edificante para uma mulher. Aos doze anos Camille já trabalhava
a argila, e aos quinze já havia esculpido David e Goliath e Napoleão. Seu
primeiro mestre Alfred Boucher, a apresenta a Paul Dubois, diretor da escola
Nacional de Belas Artes, que reconhece seu talento.
Camille através da arte de fazer surgir seres novos, cujos traços são marcados
para sempre, fixados, congelados na frieza da pedra denuncia sua posição
fantasmática diante do Outro a partir de sua relação com a mãe; excluída se
exclui. É isto que se vê mais tarde quando se isola após ser impedida de expor
a peça “A Idade Madura” ou “O Caminho da Vida” (um homem velho abraça
uma senhora, enquanto uma jovem de joelhos suplicante agarra-se aos seus
dedos. O olhar do homem dirige-se para a senhora, e sua mão tenta escapar da
jovem suplicante) A obra foi encomendada pelo museu de Belas Artes, e paga
em janeiro de 1899. Em junho, já pronta, o diretor suspende brutalmente a
encomenda a pedido de Rodin. Considerada por alguns críticos como a
exposição crua de sofrimento e decadência, a obra na verdade foi acusada de
ter a intenção de denegrir a imagem de Rodin perante a sociedade expondo
sua intimidade, revelando que o mestre seduzia suas jovens alunas e
modelos. Seria um escândalo.
Em 1881, com dezessete anos convence o pai a estabelecer a família em
Paris para que ela e os irmãos pudessem aperfeiçoar seus estudos. No entanto
Louis Prosper é obrigado a trabalhar em outra cidade, e só ia para casa aos
domingos. A família nunca perdoou mais este “egoísmo” de Camille. O
afastamento do pai é descrito por seu irmão, o escritor Paul Claudel como um
cataclisma. Em Paris no ateliê de Rodin, Camille logo se sobressai, tornandose sua aluna, modelo predileta e amante. O mestre a mantém à parte, ele a
privilegia. Ela trabalha de forma incansável, dedica-se às suas orientações e
lhe serve sendo responsável pelos pés e mãos das suas obras e nessa época os
dois produzem “a porta do inferno” Até1888 continua morando com os pais
que ignoravam esta relação. Anos depois, sua mãe, escreverá que não quer
mais vê-la, “pois ela tem todos os vícios”, e a acusa de tê-la exposto levando
Rodin e a mulher, para jantar em sua casa, quando na verdade já viviam como
amantes. Sua filha era uma prostituta que fazia o pai sofrer. Paul que tomou
conhecimento do romance com Rodin antes da família, sente-se traído,
reprova a irmã. As referências de Paul à sua irmã possuem um tom enciumado
e de exaltação à sua beleza e genialidade.
Em 1888 Camille e Rodin passam a viver publicamente como amantes
em uma velha mansão que se torna seu novo atelier. A família indignada
recusa o contato público com ela. No entanto Rodin jamais abandona Rose
Beuret que o espera pacientemente, com a certeza de sua volta após cada nova
aventura.Ela faz as mais cruéis caricaturas de Rose. Neste mesmo ano
produz Sakuntala escultura inspirada no conto do poeta hindu Kalidassa.
Uma mulher grávida que procura o marido, que não a reconhecerá, pois ela
perde a insígnia que a nomeava sua rainha e assim a toma como
impostora. Sakuntala se retira em desespero e uma chama em forma de
mulher a levanta e ambas desaparecem. Produz ainda o busto de Paul, de
Rodin, Gigante, Torso de Mulher entre muitas outras. A crítica a reconhece
como uma artista de estilo próprio e genial, a sociedade, porém a condenava, e
isso impedia que ela concorresse aos concursos para obras públicas. Camille
engravida e Rodin a envia de férias para o interior, aos cuidados das
chamadas fazedoras de anjo. Cria aí uma obra belíssima a pequena
castelã, rosto de uma menina dirigindo para cima um olhar morto. Este aborto
a “torna impura e suja” no dizer de Paul. Nesta época duas outras obras
importantes são premiadas; A Valsa e o Clotho. O Clotho é uma das três
Moiras que determinam o destino dos homens, ela tem o poder de fiar a vida e
cortá-la quando quiser.
Por volta de 1893 Camille escreve a Rodin: “eu estava ausente quando o
senhor veio, pois meu pai chegou ontem e fui jantar e dormir em casa(....) A
senhorita Vaissiers me contou toda sorte de fábulas forjadas sobre mim em
Islette. Parece que saio à noite pela janela de minha torre , suspensa numa
sombrinha vermelha com a qual ponho fogo na floresta!!!” Fada ou bruxa,
que na sombrinha vermelha carrega a fantasia amorosa causadora de uma
grande devastação. Metáfora da qual se utiliza para queixar-se; por um lado
das injustas acusações que lhe faz a sociedade por ter um relacionamento livre
com um homem mais velho e que mantém oficialmente uma concubina e por
outro culpabiliza o próprio Rodin por não tê-la assumido como sua mulher
perante a sociedade. Rompe pela primeira vez o romance, em 1892 montando
seu próprio ateliê na ilha de Saint Louis. Durante os sete anos que se seguem
desafia o mestre, negando sua ajuda e desesperadamente tenta conseguir
encomendas. Torna-se alcoólatra e é protagonista de vários escândalos. Expõe
ainda duas vezes, mas não comparece em público, alegando que está feia e
acabada para se expor. Em carta ao primo Thierry “Você não me reconhece
mais, você que me viu tão jovem e tão brilhante no salão de
Chacrise.” Escreve várias cartas a Eugène Blot, dono de uma galeria que
veiculava suas esculturas,mencionando a urgência de dinheiro e as
dificuldades que enfrentava em grande parte por ser mulher. Em uma delas
justifica a recusa em participar do Salão de Outono, por não poder apresentarse em público com as roupas que tem no momento: “sou como pele de asno
ou Cinderela, condenada a cuidar da lareira sem esperança de ver chegar a
fada ou o Príncipe encantado que deve mudar minha roupa de pele ou cinzas
em vestidos cor do tempo”. Pele de asno é outra forma metafórica de referir-se
a posição feminina, a da mulher que espera o príncipe guardando sob as vestes
as insígnias paternas. Trancada em seu atelier, repete incessantemente “o
canalha do Rodin” frase que é escutada pelos vizinhos. O meio artístico antes
tido como ideal, passa a pertencer ao bando de Rodin que a todos seduz e
convence contra ela. Suas idéias e seus desenhos serão roubados, executados,
terão sucesso e seu nome será excluído. “Eu serei perseguida por toda minha
vida pela vingança deste monstro, o perseguidor Auguste Rodin”. Até a
morte, Camille mantém inalterada a certeza delirante de que Rodin a
persegue. Em uma manhã só abre a porta para Henri Asselin que viria posar,
após longa conversa. Ela estava desfeita, tremendo de medo, armada de
vassoura em riste e lhe diz: “esta noite dois indivíduos tentaram forçar a
minha janela. Eu os reconheci, são dois modelos italianos de Rodin. Ele lhes
ordenou que me matassem. Eu o incomodo. Ele quer me fazer
desaparecer.” A partir daí Camille todos os anos, no mês de julho destrói a
marteladas suas esculturas e depois some por algum tempo. O ateliê apresenta
um espetáculo lamentável de ruína e devastação. Henri Asselin recebe uma
carta em que ela comunica “Seu busto não existe mais, durou o tempo que
vivem as rosas” O pai que continua até o fim da vida mantendo-a
financeiramente, insiste com Paul para que interceda junto à mãe a fim de que
esta consinta em se aproximar de Camille “talvez esta louca varrida melhore”.
Mas Louise é irredutível e assim se manterá até a morte. Em março de 1913,
Louis Claudel morre aos 87 anos. Informada por carta pelo primo Charles
Thierry ela responde “O pobre papai nunca me viu como eu sou; sempre lhe
fizeram crer que eu era uma criatura odiosa, ingrata e má. Era necessário
para que o outro pudesse tudo usurpar” e afirma que a família vai logo
interná-la em uma casa de loucos, por acreditarem que ela é nociva ao
sobrinho quando reclama seus bens “por mais que eu me encolha em meu
pequeno canto, ainda sou demais” Sua internação em Paris ocorreu uma
semana após a morte do pai. Louise estava livre e conseguiu um atestado com
médico amigo da família e vizinho de Camille .O laudo de internação certifica
que a senhorita Camille Claudel sofre de perturbações intelectuais muito
sérias; tem hábitos miseráveis, é absolutamente suja, nunca se lava, vendeu
todos os seus móveis, passa sua vida completamente fechada, só sai à noite, e
tem sempre o terror do bando de Rodin, e que seria necessário sua
internação em uma Casa de Saúde.
Camille vive a desordem absoluta , como não-toda fálica mistura-se com
suas obras e atua a sua realidade psíquica que revela a posição da mulher que
não encontra um lugar para ser o falo, visto que não o tem. Preterida pela mãe
e pelo amante, ela não tem lugar no desejo do Outro. Camille trai o pai na
medida em que se apaixona por Rodin em detrimento de sua própria obra. Ela
fracassa em superar o mestre, para o pai. Assim já não pode pertencer ao clã
Claudel, devastada perde a dignidade em sua guerra com o grande homem que
lhe custou os olhos da cara. Em uma de suas cartas escreve “teria feito melhor
comprando belos vestidos e belos chapéus que realçassem minhas qualidades
naturais do que me entregar à minha paixão pelas construções duvidosas e os
grupos mais ou menos ásperos”, ou ainda “esta arte está mais de acordo com
as grandes barbas e caras feias do que com uma mulher relativamente bem
dotada pela natureza”.
Camille Claudel nos trinta anos em que passa prisioneira em um
asilo escreve constantemente à mãe. Suas cartas eram repetidos apelos
desesperados para que esta a tirasse do asilo, mas a resposta era implacável.
As cartas da mãe de Camille para o diretor do asilo, proíbem que ela se
corresponda com quem quer que seja, “pois suas cartas poderiam servir
àqueles que faziam campanha contra a família Claudel devido a permanência
da escultora no asilo. Segundo sua mãe Camille tem idéias as mais
extravagantes, suas intenções são sob o ponto de vista das família sempre
muito más, ela nos detesta, e está sempre pronta a nos fazer todo mal que
puder” Aos pedidos endereçados à família , tanto por Camille quanto pelo
diretor do asilo , sua mãe oferece uma soma maior em dinheiro para que ela
permaneça internada. Sua mãe tinha horror de qualquer aproximação com esta
filha que só trazia a vergonha e desonra.
Podemos ainda observar nestas cartas a presença de forma acentuada da
pulsão oral. Elas se constituem de listas e listas de alimentos, guloseimas, que
lhe são enviadas por um fornecedor. Esses alimentos enviados pela mãe nunca
foram acusados de estarem envenenados. Revelam também um pedido
constante de vir a viver perto da família, com promessas de não causar
problemas, propondo se submeter a presença de uma empregada etc Em 1930
uma última carta, esta dirigida a Paul “ hoje 3 de março é o aniversário de
minha internação! Faz 17 anos que Rodin e os marchand de objetos de arte
me enviaram para fazer penitência nos asilos. Eles é que mereciam estar
nesta prisão, pois eles apoderaram-se da obra de toda minha vida através de
B. que conta com sua credulidade e a de mamãe e de Louise. Eles diziam:
nós nos servimos de uma alucinada para encontrar nossos temas! É a
exploração da mulher o esmagamento da artista de quem se quer expremer
sangue! Tudo isto no fundo sai da cabeça diabólica de Rodin. ...
Em outra reclama da comida e solicita que a mãe lhe envie os seus pedidos e
que não gaste dinheiro pagando pelo que ela não consome no asilo. Tem
novidades de Paul? De que lado ele está agora? Ainda tem a intenção de me
deixar morrer em um asilo de alienados? É bem cruel para mim. Isto não é
lugar para mim.
Camille culpa incessantemente Rodin por sua internação. Era para ela menos
penoso enfrentar a indiferença de Rodin do que o ódio da própria mãe. Para
todos os assuntos era ponderada, mas enlouquecia ao ouvir o nome daquele
que roubou sua alma/obra. Loucura feminina imponderável, delirante,
enfurecida e enlutada até o fim de seus dias, tal qual sua mãe, que não lhe
perdoou ser mulher.
O masoquismo sublimado graças a outrem, retorna contra o próprio,
quando sofre uma decepção. A agressividade se volta contra o ser que
quebrou sua inspiração, sua sublimação, suas esperanças, mas também contra
ela mesma e portanto contra sua obra, pois esta fazia parte dela. Camille
quando destrói suas esculturas fala de sacrifício humanoe como diz Lacan no
final do Seminário XI o sacrifício visa ao “obscuro desejo do Outro”. Visa ao
desejo do Outro barrado. Só se sacrifica o que tem valor e o que tem valor em
psicanálise é o gozo. A renuncia feminina repousa sobre uma identificação
narcisista com o objeto. “Posição arriscada porque quando o homem falta ou
se volta para outra o que se encontra é o desmoronamento.” Só Rodin está a
altura de um delírio que se cristalizará tanto nas acusações quanto nos ideais.
Henri Asselin nos diz que quando Camille se sente autorizada pela amizade
que nasce entre eles, deixa transparecer claramente o quanto sua mágoa era
grande e profunda. Camille estava obcecada pela recordação deste que
segundo ela acredita se dedica a fazê-la sofrer. Rodin é o segundo, na
promessa sempre não cumprida de dar à Camille um lugar uma palavra que a
acalme em seu ser mulher.
Apesar de todos os esforços de amigos e até de médicos Camille mantém-se
internada e sem esculpir, devido a uma relação devastadora com sua mãe.
Percebe-se que ambas mantém uma posição fixada no impedimento de
qualquer aproximação física. Camille, por um lado é incansável em suas
denuncias e demanda de amor de um lugar como mulher no desejo do Outro.
Sua mãe não tem o que lhe dizer, como diz Lacan não há como lhe dar maior
subsistência como mulher se ela própria é um sujeito feminino e no caso
melancólico. Há entre elas um “continente negro” habitado por um
arrebatamento e por uma demanda tão excessiva quanto impossível.
A mãe é esse “Outro Primordial” assim nomeada a partir do registro pulsional
e da pulsão de morte em particular. É o que Camille escreve em carta resposta
de pêsames à amiga que perdeu a mãe diz: eu vivo em uma angústia mortal
pensando em tudo que pode acontecer em minha casa enquanto eu estou
internada aqui. Que horror se mamãe vier a morrer enquanto eu estou aqui
sem poder nada mudar! e em outra revela o sonho freqüente em que vê a mãe
morta deitada no leito ao seu lado.É o desejo em sua face de horror que traz a
nu o pacto mortífero aí estabelecido.
O homem é segundo na devastação, nos ensina Lacan. Freud também o disse
quando afirma que uma mulher repete com o homem a relação que tem com a
mãe. Para uma mulher o valor fálico é sempre meio emprestado, mas para que
seja assim é preciso que a relação com a mãe seja revestida pelas mascaradas
que recobrem o vazio do feminino.
Aprender a fazer algo com a falta de significante que diga a mulher, a
fazer com o nada, é o caminho para a feminilidade. A obra de Camille
Claudel não lhe foi suficiente para barrar o jogo aniquilante com sua mãe,
pois como ela mesma disse “Há sempre algo de uma ausência que me
inquieta.
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20- Le jour e la nuit de Camille Claudel- Lachenal e Ritter brigitte- FabrePellerin p. 153
21-Brigitte Fabre-Pellerin- Le jour e la nuit de Camille Caludel, editions
Lachenale Ritter 1988
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