Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL Jânia Maria Lopes Saldanha1 Rafael Vitória Schmidt2 RESUMO: As transformações por que passaram as economias dos países latinoamericanos a partir do início da década de 1980 resultaram em uma piora da inserção econômica internacional da região. Os baixos índices de crescimento econômico e de melhoria das condições de vida das coletividades, têm posto em questão as mudanças econômicas e o próprio valor da democracia. Esta conjuntura traz à luz a discussão sobre a possibilidade de os processos de integração regional operarem como agentes do desenvolvimento da região, por via da elaboração e implementação de um projeto regional de desenvolvimento e também por meio do estímulo ao aprofundamento do processo democrático. No âmago dessa problemática, encontra-se a necessidade de discutir e viabilizar formas de participação efetiva da sociedade civil na construção desses processos, tendo em vista sua interdependência, como condição precípua de sucesso da integração regional. PALAVRAS-CHAVE: Integração; Desenvolvimento; Democracia; Sociedade civil; Globalização. 1. INTRODUÇÃO O objeto deste artigo é o exame da possibilidade de constituição de processos democráticos e de estratégias regionais autônomas de desenvolvimento, como tarefas interdependentes, no âmbito dos processos de integração latino-americana. Ventilando novos paradigmas de democracia e desenvolvimento, procura-se demonstrar a necessidade de participação da sociedade civil como condição essencial ao êxito das tentativas de integração regional. Procedendo a um recorte espaço temporal nessa análise, observa-se que, na maioria dos países da América Latina, com o insuficiente desempenho econômico1 Professora do Curso de Direito e do MILA-Mestrado em Integração Latino-Americana da UFSM, Coordenadora da FADISMA-Faculdade de Direito de Santa Maria. Doutora em Direito. Advogada. 2 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas. Estudante do Curso de Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria (MILA/UFSM), área de concentração Direito da Integração. Professor da Faculdade Atlântico Sul. Bolsista da CAPES. Endereço eletrônico: [email protected]. 45 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL social da democracia liberal e da economia de livre mercado, começam a surgir sinais de descontentamento e indiferença das populações em relação aos resultados da democratização e das transformações econômicas, observadas a partir do início dos anos oitenta. Paralelamente a este fenômeno, os processos de integração econômica na região têm caracterizado-se, em geral, pela ausência de estratégias regionais de desenvolvimento, que deixam margem a políticas estatais de desenvolvimento que, além de desarticuladas entre si, na maioria das vezes, correspondem aos particularismos de cada facção detentora do poder estatal, prejudicando uma perspectiva de integração e de desenvolvimento de longo prazo. Ademais, a maioria das iniciativas latino-americanas de integração apontam para um déficit democrático devido, por um lado, ao seu caráter eminentemente econômicocomercial, relegando aspectos sócio-político-culturais que necessitam ser considerados e, por outro lado, ao seu caráter intergovernamental, que permite apenas a representação política das demandas do poder econômico e exclui do debate temas como a institucionalização e a supranacionalidade, condições necessárias à possibilidade de participação cidadã da sociedade civil. Delineia-se, portanto, a precariedade das bases sobre as quais se assentam a democracia e o desenvolvimento tanto no âmbito latino-americano quanto no âmbito interno aos seus países. Assim, discute-se a possibilidade de os processos de integração, como condição essencial ao seu êxito, potencializarem as interações entre democracia e desenvolvimento econômico nos cenários nacionais e internacional latino-americanos. Considerando, então, a necessidade de um repensar epistemológico, para dar sentido e significado ao trato que tem sido dado à questões como “globalização”, “democracia” e “desenvolvimento”, no que concerne aos processos de integração latinoamericana, optou-se por utilizar como referências pensadores do campo da sociologia e da economia, tais como Boaventura de Sousa Santos, Alain Touraine, Zygmunt Bauman e Paul Hirst e Grahame Thompson para construir uma teoria abrangente, envolvendo e inter-relacionado os referidos temas. Procura-se, ainda, lidar criticamente com as teorias e conceitos, de forma a verificar a possibilidade de sua utilização em processos de integração latino-americana. Desse modo, pretende-se demonstrar - assumindo o risco de cometer equívocos – que a construção do processo democrático e de um projeto regional de 46 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL desenvolvimento “nos” processos de integração latino-americana e, concomitantemente, “através destes”, no âmbito interno aos Estados, poderá ser um modo de países em desenvolvimento, ainda situados ou na periferia ou na semiperiferia do capitalismo e de uma presumida “globalização” – aqui não considerada como um fenômeno “irrefreável” –, diminuírem os efeitos perversos de um sistema internacional controlado pelos desvarios do mercado. 2. AS INTERAÇÕES DA DEMOCRACIA E ECONOMIA NA AMÉRICA LATINA E SEUS REFLEXOS SOBRE A SOCIEDADE CIVIL A PARTIR DA DÉCADA DE 1980 A década de 1980 marcou, na América Latina, o início de um processo de profundas mudanças políticas e econômicas que engendraram a necessidade de reformulação das então vigentes relações entre política, economia e sociedade civil no continente. Nesse período, a maioria dos países da região experimentou uma grave crise econômica que conduziu os governantes a reavaliar suas estratégias de crescimento com base na substituição de importações, introduzindo, progressivamente, caracteres da economia de livre mercado. Paralelamente, esse período caracterizou-se pelo fim de diversos regimes autoritários na região e pela transição, de formas mais ou menos semelhantes entre os Estados, à democracia representativa. As mudanças observadas no continente faziam eco a transformações econômicas e políticas mundiais. Com o grande declínio dos regimes autoritários e totalitários, associado, no final dos anos 80 e início dos anos 90, à queda do Muro de Berlim e de quase todos os regimes socialistas do mundo, iniciou-se o que se convencionou denominar “nova ordem mundial”. A partir desse momento, dado o malogro do socialismo “realmente existente”, estabelecem-se ideologicamente a democracia liberal e a economia de mercado como formas pretensamente universais de organização das sociedades. A evolução dos processos econômicos dos países da região, tida como reflexo da conjuntura mundial, caracterizou-se pela configuração de uma nova inserção econômica internacional da América Latina, como receptora de fluxos financeiros de curto prazo e 47 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL como mercado em expansão para os EUA.3 Esta especificidade, comum à região, é considerada uma das causas dos baixos índices de crescimento e dinamismo das economias nacionais nos últimos vinte anos, que repercutem, por sua vez, sobre os índices de qualidade de vida das populações envolvidas. A gravidade da situação econômica regional, com suas conseqüências sociais, encontra paralelo no deficiente desempenho da democracia. Esta afirmação fundamentase no fato de que, nas democracias pós-ditatoriais da América Latina, a adoção da mera democracia político-formal vem sendo insuficiente para promover o desenvolvimento econômico e social necessário à melhoria das condições de vida das populações. As afirmações acima vêm sendo confirmadas por inúmeros estudos. Um deles, por exemplo, é o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) intitulado “O desenvolvimento da democracia na América Latina”, publicado em abril de 2004. Segundo este documento, o crescimento do PIB latino-americano no período pós-ditaduras, por exemplo, foi inexpressivo: em 1980, o PIB per capita era de 3.739 dólares; em 2002, passou para apenas 3.952. Os níveis de pobreza tiveram uma leve diminuição em termos relativos; mas um acréscimo em termos absolutos: em 1990, 190 milhões de latino-americanos eram considerados pobres; em 2001, o número de pobres aumentou para 209 milhões. A desigualdade social, o desemprego e a informalidade do trabalho, nessa esteira, aumentaram substancialmente.4 A partir destas constatações, a aludida pesquisa demonstrou, estatisticamente, a descrença e a decepção da maioria da população com o desempenho da democracia latino-americana, conforme os dados a seguir: 54,7% dos cidadãos estariam dispostos a aceitar um regime autoritário se este resolvesse a situação econômica de seus países e respondesse às suas demandas sociais e 56,3% avaliam que o desenvolvimento é mais importante que democracia.5 Estes dados permitem, por enquanto, fazer duas observações fundamentais: a) fica demonstrada a magnitude da desilusão e a ausência de sentido, para a maioria dos latino-americanos, dos valores e processos da democracia burguesa. Esta 3 MEDEIROS, Carlos Aguiar de. Globalização e a inserção internacional diferenciada da Ásia e da América Latina. In: TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José Luís (Org.). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petróplis, RJ: Vozes, 1997, p. 281. 4 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. AL prefere expansão a regime democrático. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/cidadania/reportagens/index.php?id01=287&lay=cid>. Acesso em: 18 mar. 2005. 5 Foram entrevistados cerca de 19 mil latino-americanos, em 18 países da região. 48 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL forma de organização social e política, mimetizada em conseqüência dos processos de dominação a que a região vem sendo submetida ao longo de sua história, atesta, nas últimas décadas, a sua incompetência em solver minimamente as carências da grande massa das populações do continente. Diferentemente do sucesso que obteve nos países desenvolvidos, a democracia liberal não atende às necessidades de desenvolvimento e inclusão social de sociedades política, econômica e culturalmente tão distintas daquelas e, por isto, torna-se dispensável, aos olhos da maioria das pessoas; b) o desenvolvimento econômico é um fator, embora não suficiente, indispensável ao desenvolvimento do processo democrático, sendo a recíproca desta assertiva também verdadeira. A interdependência entre esses dois âmbitos acentua-se na relevância da sociedade civil como principal agente, por um lado, e principal afetado, por outro, dos resultados das interações ocorridas nesse conjunto. Conseqüentemente, uma participação política eficaz da sociedade civil é condição sine qua non da possibilidade de (r)estabelecimento de estratégias de desenvolvimento nacional e regional pertinentes à melhoria das condições sociais das populações e da inserção econômica internacional da região como um todo. Nos termos acima, como, então, construir e implementar um projeto regional de desenvolvimento conjuntamente ao desenvolvimento de processos democráticos, sendo ambos adequados às necessidades sócio-econômico-político-culturais comuns às coletividades latino-americanas, sem, no entanto, homogeneizá-las econômica e politicamente, deixando de respeitar as suas singularidades? Quais as formas de tornar a sociedade civil, no âmbito dos processos de integração, protagonistas desse desenvolvimento? Estas questões são preocupantes e merecem acurada análise. Sendo que a democracia pode estimular a integração e favorecer o desenvolvimento econômico e social, o descontentamento da maioria da população constitui uma ameaça não somente ao processo democrático latino-americano, mas compromete também o futuro de qualquer processo de integração regional enquanto estratégia de desenvolvimento. 3. A SOCIEDADE CIVIL EM BUSCA DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO 49 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL Todo estudo que abarque uma discussão acerca da democracia requer, previamente, um posicionamento acerca do conceito e abrangência desta idéia. Alain Touraine estabelece que a democracia depende de um equilíbrio na relação entre três dimensões: o Estado, o sistema político e a sociedade civil. Assim, a cada uma destas dimensões corresponde um determinado elemento que lhes atribui um papel específico, a saber: ao Estado compete a observância dos direitos fundamentais, ao sistema político cabe a representatividade e à sociedade civil corresponde o exercício da cidadania.6 Parece razoável a teoria do sociólogo francês, não obstante seja necessário contextualizá-la no âmbito dos processos de integração latino-americanos, especialmente no que diz respeito às possibilidades de construção de uma integração que tenha o ser humano no centro de suas preocupações. Os Estados, de fato, não dispõem mais de todos os aparelhos necessários à manutenção do respeito aos direitos fundamentais, pois, enquanto as instituições políticas permanecem teimosamente locais, o poder é cada vez mais global – pelo menos supostamente. Ademais, o sistema político, nesse processo, tem pequena margem de manobra para atender às demandas coletivas. Muitas vezes, aliás, a própria representatividade da política é mitigada, dada a tendência de conduzi-la conforme os humores de um mercado global supostamente “irrefreável” ou “irresistível”. A sociedade civil, por sua vez, tem o exercício da cidadania transfigurado em participação no mercado de consumo. Cada vez mais, os direitos do cidadão são substituídos, na prática, pelos direitos do consumidor – tanto de bens como de valores ou idéias. Por outro lado, a ineficiência e a inércia do Estado e da classe política, associadas a um modelo de desenvolvimento inadequado às necessidades e peculiaridades nacionais e regionais, contribuem para o descrédito dos cidadãos na política e nas instituições democráticas, outrora aptas à condução da vida da sociedade com suficiente autonomia. Octavio Ianni já dizia que “a política mudou de lugar”7, mas o que parece ter sido deslocado, na linha de análise acima desenvolvida, foi o poder. Não é demais frisar a situação da política em tempos de “globalização”: enquanto o poder torna-se cada vez mais global, a política continua local.8 As determinações de um poder externo, sejam 6 TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Petrópolis: Vozes, 1996. p. 42-46. Cf. IANNI, Octavio. A política mudou de lugar. In: DOWBOR L.; _____ e RESENDE, P.E. A. (Orgs). Desafios da Globalização. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. p. 17-27. 8 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. passim. 50 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. 7 Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL elas implícitas ou explícitas, resultam num clima de incerteza que assola as sociedades, em todas as partes do mundo. A insegurança grassa frente a uma forma de democracia que se tornou redundante, ou até mesmo reforça os mecanismos desse novo “poder global”, em detrimento daquelas pessoas que continuam presas ao “local”. Desse modo, as sociedades não mais encontram no Estado e nas instituições da democracia representativa as garantias mínimas necessárias à manutenção e incremento da coesão social. Cria-se, portanto, um contexto de desagregação do tecido social: quando o Estado e a democracia representativa perdem o sentido do bem comum, as pessoas são jogadas, individualmente, à sua própria sorte, e têm de buscar, isoladas, os meios de sobreviverem ao caos. Em outras palavras, pode-se dizer que a utopia da “boa sociedade” não é mais condição para a “boa vida”; ao contrário, verifica-se a privatização dos meios de garantir o bem-estar. Esse processo, não é demais ressaltar, ocorre em detrimento da maioria dos indivíduos, tendo em vista que não dispõem de referidos meios de vida, que antes eram fornecidos pela sociedade. Estando o Estado e suas instituições “engessados” e a sociedade desamparada e sem poderes para a construção autônoma de seus projetos de futuro e, conseqüentemente, destituída de uma perspectiva coletiva – não passando de um aglomerado de interesses privados –, de que forma podemos falar em democracia e desenvolvimento? Um aspecto possível de análise está na consideração do papel da sociedade civil na construção do processo democrático e de novas alternativas de desenvolvimento. Mas por que meios? Em uma conjuntura na qual os poderes globais operariam em contraponto a uma política local, no dizer de Zygmunt Bauman, não há instituições políticas reminiscentes daquelas que a democracia moderna desenvolveu para a ação política eficiente do cidadão.9 Desse modo, enquanto o conceito de “poder global” já tem materialidade, o de “cidadania global” ainda não passa de uma quimera. Este fato adverte, entre outras coisas, para a necessidade de criação, em âmbito supranacional, de instituições políticas e econômicas que permitam a ação da sociedade civil. 9 Ibid., p. 172. 51 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL 4. A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA COMO INSTRUMENTO DO PROCESSO DEMOCRÁTICO E DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO Os processos de integração regional constituem fenômenos peculiares ao século XX, especialmente em sua segunda metade, quando evidenciam-se os primeiros traços do que hoje convencionou-se denominar “globalização”. Por coincidência ou não, observa-se que a maioria dos processos de integração regional surgem com índole predominantemente econômica, em detrimento de outros aspectos sob os quais é possível realizar essa integração, tais como o político, o social e o cultural. Embora se proclame, muitas vezes, que a integração econômica vem como uma resposta aos desafios da globalização, no caso dos projetos latino-americanos, essa resposta tem sido, na melhor das hipóteses, tardia, ou mesmo – o que é mais provável – não tem passado de mera adaptação à tão propalada nova “lógica” global do capitalismo. Confrontando esse argumento dos “fundamentalistas” do mercado, alguns pensadores da economia, como os ingleses Paul Hirst e Grahame Thompson, advertem que, a rigor, a globalização é, em grande medida, um mito, uma ideologia entre cujos resultados está o cerceamento do poder de decisão dos Estados e das organizações regionais e internacionais, em favor de interesses econômico-financeiros que operam em escala internacional. Com rigor e riqueza de detalhes, os autores misturam uma certa dose de ceticismo em relação a processos econômicos globais e de otimismo no que concerne à viabilidade de estratégias político-econômicas nacionais, regionais e internacionais. Apresentam, inclusive, argumentos contra a idéia de que a economia internacional é ou está se tornando “globalizada” a saber: 1) não existe “um conceito coerente de economia mundial em que forças e agentes supranacionais sejam decisivos”; 2) o fato de que as relações econômicas se intensificaram a partir da década de 70 “não é em si prova da emergência de uma estrutura econômica nitidamente ‘global’”; 3) as mudanças da economia mundial nas últimas décadas encontram grande similaridade com a internacionalização da economia ocorrida de 1870 a 1914; 4) “as transnacionais realmente globais são, relativamente, poucas e que a maior parte das corporações multinacionais bem-sucedidas continuam a operar a partir de nítidas bases nacionais”; e, finalmente, 5) existem possibilidades de regulação econômica por meio da cooperação 52 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL internacional, de processos de integração econômica do desenvolvimento de políticas públicas nacionais.10 A partir de uma perspectiva sociológica, Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, ao admitir a materialidade da globalização econômica, ressalta não somente a existência desta, mas de inúmeras formas de globalização: Aquilo que habitualmente chamamos de globalização são, de fato, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização. Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações.11 Dentre as “globalizações”, no entanto, prevalece, adquire hegemonia sobre as demais, aquela cuja ênfase é eminentemente econômica. Dessa forma, no raciocínio de Santos, a imposição, através dos mecanismos do poder econômico, da globalização hegemônica, mitigando os efeitos benéficos de outras formas de globalização – tais como, por exemplo, a da cidadania, a dos direitos humanos ou a da cultura – estabelece o imperativo da criação de alternativas emancipatórias às populações excluídas e marginalizadas nesse processo, engendrando, a partir de então, a globalização contrahegemônica.12 Não obstante às coerentes posições dos autores relatadas acima, é questionável se estes pontos de vista podem ser aceitos como referências aplicáveis aos processos de integração latino-americana, no que tange ás interações destes com a questão da globalização. Em outras palavras, a pergunta é: aceitas as teses acima, seria possível atribuir aos processos de integração latino-americanos a responsabilidade de participar da criação e implementação de novos paradigmas para a democracia e para o desenvolvimento nos cenários nacional e internacional? Considerando a admissibilidade das teorias e da possibilidade acima questionada, para que se atinja tais propósitos, no entanto, as questões da democracia e do desenvolvimento devem estar intimamente ligados a um projeto de integração voltado para a realização dos anseios das coletividades e para a diminuição das 10 HIRST, Paul; THOMPSON, Grahame. Globalização em questão: a economia internacional e as possibilidades de governabilidade. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 303-304. 11 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: _____ (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. cap. 9, p. 433. 12 Ibid., p. 433-438. 53 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL desigualdades sócio-econômicas. De outro modo, mesmo quando um processo de integração econômica obtenha relativo sucesso econômico-comercial, se esses resultados não são socializados, os benefícios da integração servem a pequenos grupos econômicos e políticos, deixando a grande maioria das pessoas à margem do processo. Em resposta a essa problemática, um dos caminhos possíveis aponta para o incremento do processo democrático como uma alternativa de contrabalanço aos efeitos perversos de um processo de regionalização que, qual um microcosmo da globalização, é social e economicamente excludente. A fim de atingir esse desiderato, a melhor forma de inclusão é criar mecanismos que permitam, no âmbito regional, a atuação política e econômica efetiva dos cidadãos, outrora possível através do aparelho estatal. Desse modo, impõe-se a tarefa de institucionalização dos processos de integração, o que, em outras palavras, significa a construção de um espaço público apto a interpretar e responder às demandas coletivas, assim permitindo o acesso da sociedade civil ao âmbito decisório do processo. Esse “espaço” será, portanto, democrático, porquanto é devolvida à sociedade o seu âmbito de vivência e realização plena, com igualdade de condições e respeito às diferenças. Porém, essa evolução se dará de forma conflitiva, devido às inerentes contradições do sistema capitalista e, em conseqüência, do Estado e do processo de integração, especialmente se estes dois últimos forem democráticos. Assumindo essa perspectiva, a integração terá mecanismos políticos e econômicos dotados de suficiente poder para enfrentar alguns dos problemas que o livre jogo do mercado global cria para as sociedades, atualmente inseguras e confinadas numa esfera de atuação sem perspectivas que não a de adaptação às tendências externas. Isso não significa, todavia, que esse novo “poder” estará inteiramente nas mãos da sociedade civil, mas que – em alusão à teoria de Touraine – a lógica deste mesmo poder seja “ascendente”, ou seja, que proceda da sociedade civil, passando pelo sistema político e chegando às instâncias decisórias máximas do processo de integração. A necessidade de que o poder passe pelo sistema político, como mediador necessário entre a sociedade civil e as instituições do processo de integração inspira a preocupação com a institucionalidade da atuação desse sistema político. Desse modo, é fundamental a criação de um parlamento cujo caráter seja supranacional. Isto porque, quando o Estado-nação não dispõe mais de mecanismos aptos a tutelar a participação 54 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL democrática dos cidadãos, parafraseando Habermas, é necessário ao processo democrático encontrar alternativas para além do Estado nacional.13 Em suma, o desenvolvimento do processo democrático latino-americano, bem como a elaboração de um projeto regional de desenvolvimento, por princípio, não podem partir de um decreto ou concessão “de cima a baixo”. Ao contrário, estes objetivos devem ser fruto de uma construção, ou melhor, de conquistas nas quais a sociedade civil vai adquirindo destaque, através de seu acesso, participação e decisão nas instâncias/instituições econômicas, políticas e jurídicas do processo de integração. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os desdobramentos dos processos democráticos, econômicos e de integração merecem atenção especial quando relacionados ao contexto latino-americano, tendo em vista um conjunto, por um lado, de características que são peculiares a esta região, e, por outro, de singularidades que permeiam suas coletividades. Estes elementos interferem decisivamente sobre premissas, o desenvolvimento de considerações e o resultado de análises. Nesse sentido, fatores como a história, a cultura, a economia e as necessidades das populações da região compreendida sob a idéia de “América Latina”, sem dúvida, indicam os conteúdos aos quais deve corresponder uma crítica competente sobre as possibilidades de superação de deficiências e, principalmente, de aproveitamento de potencialidades dessa região quando o assunto é “integração latinoamericana”. Por sua vez, o fenômeno da globalização – embora ainda não exista consenso sobre o seu conceito e seu alcance, bem como não se consiga delimitar com precisão suas características – é, se não diretamente identificável, é pelo menos sensível no que tange aos seus resultados, tanto os “desejáveis” quanto os “indesejáveis”. Assim sendo, cabe o seguinte questionamento: em que medida os processos de integração econômica latino-americanos têm representado uma atitude consciente frente à globalização – abarcando os diversos sentidos desta palavra – ou têm sido mera forma de adaptação, irrefletida, aos paradigmas da globalização econômica? 13 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional e o futuro da democracia. In: _____. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001. p. 79. 55 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL Se a integração latino-americana constitui uma simples reprodução de uma presumida “lógica” do mercado global, podemos deduzir que ela reproduzirá também os mecanismos de poder da globalização hegemônica, justamente aqueles que têm mitigado as formas de ação política das sociedades, interferindo no conteúdo e no alcance de suas decisões e projetos. Desse modo, a integração, conseqüentemente, impossibilita formas democráticas de participação e sujeita à exclusão política, econômica, social e cultural a grande maioria das pessoas. Por outro lado, se entendida a integração regional como uma alternativa de contraposição aos efeitos perversos de um sistema mundial no qual as relações de mercado ganharam demasiado peso – ou seja, sob uma perspectiva contra-hegemônica – a integração latino-americana representa uma oportunidade ímpar de (re)construção, agora em âmbito regional, das pontes que ligavam as pessoas às instituições dotadas de poder para interpretar e pôr em prática os interesses das coletividades. Ainda, essa tese inclui a possibilidade de elaboração e implementação de um projeto regional autônomo de desenvolvimento, no qual prepondere a sustentabilidade econômica, política, ambiental, social e cultural de seus resultados a médio e longo prazo. A contribuição dos processos de integração, na linha de pensamento do parágrafo anterior, tornaria possível o redimensionamento do processo democrático latino-americano, cuja abrangência transcenderia a da tradicional política estatal para compreender, concomitantemente, o âmbito supranacional da política regional. Desse modo, a sociedade civil poderia contar com uma nova esfera de ação política efetiva que, se ainda não à exata altura de uma presumida “dimensão global do poder”, poderia, ao menos, constituir um espaço público de discussão e elaboração de uma agenda regional que leve em conta as necessidades sócio-econômico-culturais das populações. Esse processo contribuiria ao restabelecimento de uma perspectiva coletiva, mesmo que sobre matérias específicas, possibilitando à sociedade civil um aumento da confiança nas instituições. Ademais, a sociedade civil, através de sua atuação nas instâncias decisórias do processo de integração, faria rebrotar a autonomia e a confiança necessárias ao exercício de uma liberdade positiva, fermento de toda a democracia e desenvolvimento. Admite-se que, certamente, não será fácil a tarefa de “ligar os motores” do processo de integração e da sociedade civil como partícipes da construção da democracia e do desenvolvimento latino-americano. Talvez até mesmo as propostas e as 56 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana - UFSM – Volume 2 – Número 2 – 2006. Saldanha e Schmidt - A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA, A DEMOCRACIA E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COMO PROCESSOS INTERDEPENDENTES E A NECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA SOCIEDADE CIVIL conclusões a que se chega sobre este problema estejam equivocadas. No entanto, é certo que a construção de um processo democrático para além do Estado nacional e a implementação de um projeto regional de desenvolvimento, fundamentados em novos paradigmas, são tarefas que, além de interdependentes, devem ter na sociedade civil seu ator principal. Este fato, logo, merece ser analisado e providências têm que ser tomadas, como condição de possibilidade para um crescimento econômico, uma democracia e um processo de integração regional compatíveis com as idéias de liberdade, desenvolvimento sustentável e inclusão social. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. _____. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. _____. O futuro da democracia. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. 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