© A outra ponta do homem, Floriano Martins, 1998, 2013
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A OUTRA PONTA DO HOMEM
1998
Tudo é sombra… a luz é uma desnuda sombra.
Humberto Díaz-Casanueva
A Gracco Sílvio
Morto.
A noite reverbera no vazio.
Seu corpo na rua, monstruoso hálito.
A dor é o contato com o segredo, carnoso mistério da perversão.
A dor lhe é quase a última gota de luz.
Escorre pelo revés, estremecimentos ulteriores de sua prosternação.
Sangue germinado por toda a língua, não lhe faltam tremores de visões.
A dor é uma queda permanente.
O homem oprimido com seu espelho.
Horror inaudito de nomes, formas.
A dor, uma possessão mascarada – ondulações e cascos do abismo –, não passa de uma criatura
humana.
Porém a morte não é sempre a dor.
De que morre afinal um homem?
Sofre com seus animais espantosos, escrituras encrespadas, viscosas.
Pobre mímico da própria memória.
Apregoa o desfolhamento de tudo, ainda que morra de sacrossanta rigidez.
Então o que faz sobre o mundo entre sílabas em chamas, carnívoras?
O homem não sustenta a linguagem em seu gorjeio contra o tempo.
Devir transfigurado, onde seu nome?
Imaginário perfeitamente castrado.
Sua imensidão começa no açoite, alarde de métodos, perfeição de chagas.
Um sorriso da morte cada vez mais humana.
Tudo é transfiguração.
O homem é a condenação do ser.
Não pode haver equilíbrio em sua queda.
Na rua o morto, por que lhe ronda a morte até a exalação de seu sentido?
Desprende o corpo matéria destroçada, lembranças de Sebastian em Suddenly last summer, mimo
do fracasso da psicanálise em Tennessee Williams.
A morte uma expansão da nostalgia.
O morto começa a caminhar, anjo sem as chaves secretas, cavalo no deserto.
Crânio desfeito em leitos de sangue.
Sombra azarenta de germes.
O morto e seu batismo por desfiguração.
Onde é possível tanta indigência?
Corpo enlouquecido sem sentido.
Limite transubstanciado da palavra.
Cofre de memoráveis ruínas, o morto anônimo no ardil de sua evidência.
Vida enfeitiçada por violento fulgor.
Ferocidade do cadáver sem palavras.
Noite sem água.
Noite sem sombras.
Noite em seus farrapos implacáveis.
Não há carne lúcida na gotejante deformidade.
O ventre do enigma torna-se um vaivém de farpas pegajosas, latejo implacável da ausência.
Por quem chora o morto?
Que lufada vê passar o corpo desfeito no vazio da noite?
Quase um enigma do êxtase, rosa encanecida em vertigens sublimes.
Póstuma escuridão, queda óssea do canto.
Sobre a mesa o amor visível, larvas de estalidos no mármore quebradiço.
Sombra escorrida do morto, como preservá-la?
Uma rua em sigilosas fendas.
Dentro de cada um sobrevive igual sigilo, desfigurado em pânico semblante.
Aparição de fulgores, pranto, suor, a morte, o que nos traz, apregoada em vertigens?
O morto é o mesmo, a mesma a morte, as reverberações do dia, o sorridente caos.
Verso fulminante de sua pele, latejo abissal das cicatrizes, sempre despidas em trêmulas raízes,
sonâmbulo espelho.
Fulminante o assombro musgoso da aflição.
Esvaziada dentro da morte, a rua agônica.
Nos olhos em sangue – pretéritos sempre – três macacos assediados por víboras.
Vultos em progressão delirante sobre o corpo daquele Sebastian, sempre outro.
Dentes cravados em seus pés, canto descarnado e cifrado, o verbo em óleos, frenesi dentro de um
círculo, o morto feroz de abismos que se põem em vôo.
– Adeus, seres monstruosos, adeus!
A morte sucede por causa de forças dissolventes, suores imperfeitos, estados letárgicos do sonho.
A morte sucede por nudez evidente, resgate de ossos, gotejo do vazio.
Três macacos mutilam o cérebro de um corpo inundado de morte.
Memória exaurida no centro fosfórico da rua, limites da retidão sibilante.
Ali meditaram as três insólitas figuras.
Esvaziada a rua em sua fruição, luto.
Grotesco o silêncio demarcado.
O morto arrasta consigo um espólio de papiros.
O que se passa com a rua?
Estreita-se a condição humana, disfarçada sempre.
Silêncio das cicatrizes traçadas nos pulmões do kyrie eleison.
Paradoxos impetuosos: morte, obsessão sangrenta do cotidiano e uns olhos desaparecidos no
vazio.
O que nos toca por fazer com a vida?
Mistério súbito à procura de sentido, três macacos impostores, sangue perdido.
Sebastian em sua plenitude: intocável na ternura, acossado nas maneiras, como Paolo em sua rosa
promulgada.
O homem é o assombro que se abre dentro de si.
O homem é o homem e seu conjuro.
A morte é uma porta incessante.
A vida, uma sombra aterradora.
Os três monos, a intimidade do caos.
O corpo destroçado, uma quebradeira do possível.
Tudo é misterioso na claridade.
O morto – quem? – em seu desespero da língua, açoites do entendimento.
A carne rota, velha trilha fatigada.
A morte acaso cumprira sua morada?
O poeta estendido, um ninho de arbítrios.
Agora lhe toca ser o próprio fantasma, The last rose of summer: palavra assombrosa, livro agitado,
fratura profética dos desígnios do homem na terra.
Arpão de metáforas, estrondo da memória, o homem docemente exausto, rocio de dores, marcas
pegajosas, rosto apagado ante o espelho, atroamento do imaginário, corpos dessangrados.
Eis o trabalho monstruoso: cuidar de si mesmo.
O homem saiu de si, de seu caos de súplica, cólera de larvas, sua tocha bebedora de tudo.
O homem saiu do súbito fundo das coisas, de seus corpos sonoros, das tendas corrosivas do
sentido, de suas raízes humanas.
O homem é o verme do homem.
Seu espelho é o espelho do próximo, jamais o dele próprio.
Tem morrido de cicatrizes alheias.
O homem é tudo.
Não morre o homem.
O homem está pronto.
Sempre estará.
O homem não é ninguém.
Deo gratias.
Igualmente selvagem foi a morte do outro, o poeta e sua intenção comum.
A poesia é sacrílega.
Vazia: a rua.
Conjuro: a memória.
Tempestuosa solenidade: três macacos embriagados pela frivolidade voluptuosa.
Ardente, o corpo em seu derrame de sentidos.
Seus lábios não dão conta da boca, sopa de salivas, o raio da língua, acumulação da palavra em
suas vertigens.
É a morte um luminoso mandato?
O homem o provedor do inferno.
Sua vida um desenlace de trevas.
Olhos lascivos da lentidão, vontade de ser, pranto, ossos do relâmpago, o morto em meio ao nada.
Quem teria sido tão precioso em seu devir?
O morto sou eu.
Dilatação do ser, meus olhos vão sumindo, pobre cego.
Também o
corpo, milenária dor.
A morte é uma agulha soberba, uma solidão vantajosa ante a perfeição da agonia, suas visões de
macacos devorando os livros, seus inchaços da metáfora.
Graças a Sebastian, uma página apaixonada por sua queda: – a rosa dissecada é o velho livro
destroçado pelas serpentes da falação.
A solidão aligeira o peso da morte.
Com quem dialoga o corpo restado em suas raízes exterminadas?
Adagas do silêncio, seu ardoroso vagido, ninguém dissipa os monturos de sombras, selo tão
próximo de nós, tantos inconclusos.
Escuto as cicatrizes refletidas, passos por todo o corpo, peso das feridas.
O morto é um espaço tenebroso, abismo da semelhança, terríveis fungos doem na memória de
todos.
O que se passou com a carne, tábuas imensas, o jorro de palavras, páginas do desejo, a tragédia do
espanto, marcas em desamparo, branquíssima agonia cativa do ser?
O que se desprendeu do homem a cada morte?
Passa o morto ante nós sem que ressuscite.
Trilha de macacos em suas flautas ossudas, escultura sonora degolada.
Amontoarão noites em débil cortejo.
Adormecida rua na indigência branca da memória, come algumas sombras e bebe o vento nas
sementes oníricas, caindo de carne em carne, no calabouço esculpido sem alento.
A música de três troços vãos dilatados, delito de ossos, tumba de gemidos.
O olhar do morto quer sair à rua sem fundamento, o irreconhecível acaso, pó de tudo, formas
açoitadas pelo vento.
Três macacos com seus despojos de carne e sonho, dor madeirada em ícone.
Humanos céus, vigas dos lamentos, três macacos comunicam – lodo nas flautas – que a morte não
é sua ganância, que a rua sofre de aparências, vésperas armadas.
O dia claro queima suas dessemelhanças, respira aos borbotões as esplêndidas palavras repetidas.
Corpo de Sebastian, espantoso reflexo da desfiguração.
A morte não passa de uma nostalgia de mitos?
Vermes visíveis, cansaços de sombra, quem foi Sebastian, o de todos, salpicos do desterro, vapores
do ser?
Vozes encarniçadas, corpo de escombros, aterradoras figuras que perderam o duelo, sua jornada
inumerável, jade solitário, formas tesouradas do vazio, imagens desvalidas, telhados do nada.
Saboreia a noite o rastro do morto.
Repete sua caveira a abundância da dor.
O poeta acaso seria um homem caído?
Pelas ruas sorria Sebastian, em seu aroma forte de incrível apaixonado pela vida.
Flui o rosto da morte como uma larga tempestade.
Morte.
Há morte para os deuses, morte para os santos.
Morte e suas agulhas cegas que
nos rasgam as entranhas.
Morte para tudo.
Em todas as partes da terra.
Ramos da riqueza dos infernos, mármore da oferenda dos céus, trâmite da miséria do ser.
O homem é a múmia do homem.
Árvore de duendes, o poema, única sombra não vencida.
Lavoura de instintos, os mortos tão distintos, bestas que não buscam se ver.
Sobre a cidade, a rua comum, bem próximo à solidão o ventríloquo das sombras, véspera de tudo,
petrificada origem, sobre a cidade e seu derrame de fanáticos, cargos e destituições, tablado
insustentável de perdas e disfarces.
O homem não passa de um pavor da distância?
O morto deseja sua romaria, a sociedade de lágrimas e a saciedade de seus musgos.
O morto deseja a própria morte.
É a Parca, a soberba de suas imagens, leito de misérias feitas em pedaços.
Nada mantém sobre a terra.
Tudo foi instrumento da carne.
Rua de tempestades, fogo de macacos.
Caminhos de reminiscências, chave de seus limites, iluminação mortal.
É certo que não há urgência estética, que a noite morre sem dor alguma.
A queda é nada, opróbrio do acaso.
Mesa brilhante, metáforas ensimesmadas, a eternidade não resultou tão selvagem.
O homem é o cardápio do homem.
Sonha com sua metade profunda a la carte.
Hölderlin, Hölderlin, mais do que Sebastian, mais do que Paolo, abrasado pela carga desmedida de
sua profecia.
Hölderlin e sua vigília da loucura.
Trakl e sua vigília da solidão.
Cage e sua vigília da dissipação do homem – transfigurações dos grãos da humanidade em nós.
O que apazigua a morte?
E a vida?
A dor atravessa o tempo, eis como se mostra: pergaminhos arrogantes, troços do acossado,
semblantes de moinhos deslidos, rostos fechados, língua perdurável, olhos em círculos,
majestosa aparência de macacos, provas, descarnadas provas, o homem cruzado por suas
provas, quanta morte morte morte!
Esvaziada a rua, o morto é o pranto do sentido. Verbo de uma túnica insondável.
Amorosa a morte, seus frutos sob o teto das testemunhas, corpos esfriados pela idade convertida
em mito.
Fala por si mesma a morte, Sebastian, ao afirmar o corpo, radiante ruína.
De que morre o sudário?
De que morrem as provas do renascido e seu desígnio?
O homem é tudo no homem.
Quem fala na rua com o morto?
Suplico tua piedade oh insubstituível, fome de meus miolos, escrevo poemas encarregados da dor,
bênção de quedas, o horror é bastante mortal, mãe, sinto a realidade dos tremores, o clarão –
quem fala com seu coração elegíaco, com seu pensamento escuro ardente renascido? –, não
quero defender-me, repito meus versos, apenas o que tenho, até a morte, irremediável,
escravidão do desejo, suplico, a morte é minha humanidade, a humanidade inutilmente
perseguida, peregrina, é mais do que vício rejeitado a miséria florida, peregrina minha, não há
indignação na semelhança, diversidade profanada, mística perdida, a humanidade é uma arma
monstruosa – Sebastian e sua ração de trevas, por que não me falas de tua doçura fustigada? –,
fósforo, fósforo, tudo é fósforo na exceção desenfreada, grito intemporal, falação de vermes,
condenados reduzidos violentos, os macacos e sua farsa pueril, te suplico, peregrina
insubstituível, até o último verso, até as sílabas triunfantes de teu catre, deixa-me só, jamais
entre os três, que seja fúnebre minha glória, seja trágica, longe porém da falácia dos macacos,
não há piedade para minha doçura, sim, nem lógica na morte, macacos afastam ainda mais a
eternidade do homem, ninguém mais importa a quem seja, a morte é sem fim, o homem uma
situação violenta, torpe tragédia, peregrina, a tua uma sombra sem remissão.
Ilusão de luzes na rua, lua sobrada de outras noites, velha deusa aflita em seus troços míticos e o
relincho da nostalgia.
Rua da lua.
Rua da morte.
O morto sem nome.
Busca o sentido extraviado de seu pêndulo.
Grave e branco.
Corpo e mundo, um sem o outro.
Colheita corrente da vida, por que não tê-la a cada instante?
Rua desfeita.
Acaso não vai além da morte a verdade?
Carnificina de sombras, amantes famélicos da queda, tudo brilha na pedra de seus olhos – gotas
de pedra na rua, zumbidos da escuridão, noite soerguida no enxame de contradições, Sebastian
morrendo em carne viva.
Vida ou morte compartilhada?
Não lhe encontra mais que o som da lira, a mesma de Hermes que Apolo desafinou.
Consome o morto sua própria imagem, ardente a onda sobre seu rosto, alarmada a alma pelo
fulgor, despojos cintilantes impiedosos na tragédia de seus dias.
O morto é ninguém.
O cérebro apodrecido.
Livro irreconhecível, exceto pelos macacos.
O homem mata: é onde termina seu canto.
Morte por asfixia, matança de sentidos, filantropias pentecostais, encargos, estalido de corpos,
arrombamento de sombras, o esmaecimento do barqueiro, faíscas do inferno líquido das ruas,
teatro efêmero: o homem mata, o macaco devasta.
Paolo é ninguém, o mesmo que Sebastian.
Rostos atravessados pela tragédia.
Nada, ninguém.
A pele possui uma vida breve.
Por que a dúvida?
O homem mata.
Sua caçada é humana.
Não arrancou a vida do vento ou do ventre, mas sim do encargo de semear morte em si mesmo.
Arrebatado pela soberba, o homem e o milagre de suas cinzas: soluços na platéia, gargalhadas
no ar, misterioso vôo de tantas obras, gritos sem respiro, mortos de tudo, do desequilíbrio do
fogo entranhável nas páginas dos artifícios, serpentes destroçadas, convulsiva agonia, ira
golpeada, farrapos do desejo, barbárie, sacrifícios, corpo confuso do morto, linguagem de
estigmas, Sebastian, Paolo, mendigos zumbis diante da sabedoria do homem.
Desde a dor até a porta imensa de sua solitária ausência.
Desde a morte até o assobio da memória.
O homem mata.
O morto está mais adentro.
A morte não tem inimigo ou verdugo.
Não há enigma ou igreja ou outras facas na terra ou mesmo outros selos de metáforas.
Agonia do verbo, o nariz do homem aspira ao terror – mercado de carícias errantes, o firmamento
extraviado –, o homem descarnado pelo homem, lobo dragão serpente, também a pedra é seu
firmamento.
Resta o mundo sem Sebastian.
Quem haverá de sofrer?
A quem causa dano sua perda?
Quem olha para trás?
Seu corpo é a barbárie, devir delirante, charco de chagas, olhos da divindade castrada, textos
hostis, catacumbas veneradas em seus uivos, a dor vomita sombras carnívoras, memória
andrajosa caótica demente em suas crepitações.
É contra tudo olhar para trás.
Espelho de asfixias, concha carnosa dos estremecimentos do espírito.
Tudo é transparência, uma vez mais circundada pela miséria, latejo da solidão, depuração da
violência.
Seguir adiante, sem voltar o olhar.
Sebastian é a metade inaudita de Paolo.
Seu verdadeiro abismo e o enigma.
Em farrapos, um.
Desfeito em sonhos, outro.
Pálido o coração obstinado, a transfiguração da pedra, imersão de máscaras no batismo do caos,
triunfo do nada, palidez profunda.
Ambos prontamente homens sem fim.
De carne, de nuvem, de gozo, de acaso.
Um regressa às escrituras de seu duplo, cartas à mãe: garras revoltas, miolos de merda, urinas do
abismo dessangrado do ser, ovos melancólicos, não há espanto, é a besta humana, a concha de
seus peidos e suspiros, enigmas viscosos do cu e sua anteface falaciosa, com mais vigor a besta
amanhece, rejuvenescida pela merda, por seu caldo de entranhas, discurso coberto de
misericórdia e bostas de ratos, o sacrossanto pavor da indecência gera seus mitos, suas galinhas
aturdidas, ossamentas líquidas, ninhos em trapos do eterno retorno, iras funerárias, gorjeio de
rochas, provisões de pus, fome desvelada, o caos sustenta o mundo, mãe, o desejo é carnívoro,
tudo é armadilha para que se morra, equilíbrio inesperado, perfeição magnânima de Deus, cada
vez mais macaco em seu disfarce obsceno de homem, pletora retórica da divindade absoluta, seu
vagido trágico, teatro da queda, escuridão venerada no fustigo do verbo, encarnado, inocente
como a escuridão espantosa do instante, bailado da ferocidade, escombros da própria inocência,
tudo é inocência, bosque de merda inocente nas chaves secretas de seu pântano, espelhos
musgosos, mãe, toda aparição é fulminante, não se pode olhar com o pranto, com o tremor da
evidência, proscrito o verdor do musgo, a alquimia do desejo, sobre a mesa os mortos, o ímpeto
de Deus, os espaços de sua mutação, caos mutilado, pedra enferrujada da memória, desnuda
reverberação, por que veio?, morte, merda, Deus, minha alma derramada sobre os charcos, eu
porque estou estás está estamos estais estão, o mesmo que nada ninguém nunca, desenfreada
mortalha de cada vértebra do relâmpago.
Regresso de Paolo ante a aniquilação do espírito de Sebastian.
Que verdade busca o leitor?
A verdade está sumida dentro do poema.
Porém a verdade não é ninguém.
Fortuita, mostra-se como o último dos seres.
Archote assediado por mil sombras.
A verdade não tem raízes.
É uma víbora espantosa, trágica espada do homem, seu olhar, a verdade está sumida dentro bem
dentro.
Também o leitor é ninguém, plenitude cifrada, progressão do caos de toda escritura humana,
idade de látegos lamúrias latejos luzes lacônicas livros leviatãs lesmas, serrim de alucinações,
círculo da baba, cloaca do grotesco, o pássaro de um, a bigorna do outro, signos do sangue
imundo do homem, de Deus, de suas maçãs desfiguradas, esmeralda dos fundamentos
apodrecidos, tudo em tudo, o poema, Deus, Sebastian, Paolo, o leitor: língua dissolvente,
apaixonada por seus filhos.
Ventre dissecado em seus livros, pranto de sombras – velhas sufocadas rígidas –, quase humanas,
à semelhança da dor, plenas da agonia terrestre, homem reatado por sua obsessão de ser
possível, ímã da última solidão, flores de vertigem, sonâmbulas, e a conseqüência de sua ferida,
nunca a mesma, busco entre elas prolongar a queda, roída pelos sentidos tomados de
serpentes, impenetrável eu, emaranhado eu eu eu, o verbo em sua profundidade de centelhas,
onde o corpo do anjo?
Quem recolhe sua imagem putrefata, seu encanto pela queda imensa da alma?
Os três macacos e seus risos sulfúreos, nenhum faz sangrar o morto mais do que a própria
pronúncia de trevas: a dor é a mãe desmembrada, cartas de extravios.
Nenhum é semelhante à visão de Sebastian.
Esplendor demasiado, três macacos brincam com as provisões da misericórdia, engessam seus
medos, pernas e miolos, zombam da noite submersa na cloaca da poesia, mãe transfigurada,
ovos com suas asas de improviso.
A noite masca Sebastian em sua ramalhada.
O fulgor e sua grande velocidade, fungos da linguagem exposta a seu abismo.
O homem não tem dado conta de suas palavras, dos motivos de sua vida entre elas.
Onde a revelação do humano em nós?
Há um largo silêncio entre o morto e sua morte: súbito a cena torna-se vulgar, anônima, anjo
sacrílego, e Sebastian não passa de seu desamparo, crepitar dos versos dissimulados na
conjuração.
A morte seguirá cantando, a poesia.
Deusa austera, bela. Paolo rompendo a noite esvaziada na matança do outro, seu revés, seu
cumprimento da solidão, Paolo que sabe que a morte nada diz.
Mãe dos despojos, petrificada mordaça, condenação de látegos o verbo, os espelhos da calamidade
humana, borrões ilegíveis da dissipação.
A linguagem a encalhar nas cicatrizes do movimento.
O olhar é a impiedade do olho.
Um gesto é a impiedade do corpo.
O homem é a impiedade da humanidade.
Três macacos cegos à margem do homem efêmero, cobertos de cinzas, memória carbonizada pelo
flagelo do mito.
No entanto, tudo é homem.
Não há como deter o homem.
É homem a vergonha do homem.
É homem a miséria do homem.
É homem o genocídio.
É homem quem sofre a humanidade do homem.
O homem e seus restos ao sol, linguagem, sonho, poesia.
Não é um animal a quem agrade padecer nas sombras.
A nostalgia é penitencial.
Os três macacos sonham com o vazio.
Sebastian é um homem cortado por sua mãe.
Telhados ressonantes, precipícios, lonjuras.
Terra de gritos, brotos do inferno, caos de Deus, onde o homem?
Eis o que consta de sua carta carcomida, de sua peça desvalida inteiramente de humanidade,
triunfo trivial dos três macacos, letras que são deuses e sua dissimulação, filha obscura, a noite
despojada na sede de seus náufragos, morte morrendo, imagens arrancadas pela dor, Sebastian
em farrapos, Paolo com sua morte invisível, lá dentro do ser os vivos, desgraçados, os vivos,
com seus espelhos suas máscaras seus mortos, os vivos e sua tempestade de gritos, rosto
traído, espuma dos pés, plenitude do lodo, língua ao revés, memória estraçalhada, os homens
imensos do espelho humano, suas glórias, torrente feudal, suas colônias do animus, traços
plenos de lágrimas e perguntas sem respostas, vírgulas, pontos.
A morte não é ninguém.
A morte é uma ciência, uma poética, uma religião.
Ninguém morre.
Sebastian é os três macacos, Paolo uma folhagem da memória.
Segue a rua em seus apontamentos proverbiais, em seu vício de “tudo é Deus”.
Cai o homem em poema em esplendor em ciência em vazio.
A noite é uma reverberação da própria criatura.
A outra ponta do homem.
Morto, constitui agora um devir de soçobras, bagulhos.
Vigília de indigências, rostos que buscam novas formas, leis do próprio delírio e sombras menos
mortais, adentro sempre.
O homem é a metade de seu canto, a metade de seu mundo devorado pela criação, linhas e raízes
do desejo, pedras negras do sonho, o homem e sua metade dissolvida dentro das visões
dessangradas, seus ecos.
A outra, blasfema entranha, é a aparição de si mesmo, o mito destruído, o horror predileto do ser,
vida ornada de miséria, sonhos macerados, o homem em seu canteiro de imagens, secreta
morada de cinzas.
Para quem crias, besta esplêndida?
Esta é a taça de tua redenção?
Vês a pele imutável da extensão humana?
Ópio soberbo, tudo é perfeito em teu mundo?
Ídolos em seu mercado de cebolas, deuses defendendo enigmas.
Quem foi o homem antes de morrer?
Estratagemas do êxtase, obras saqueadas, psicanalistas usurários, golpes do engano remunerável.
O homem foi o próprio confim do homem.
A tudo manejou.
Em suas mãos a vida é nada.
Não é a dor da conquista, mas sim um arrebatamento de falsários.
O homem e sua alegria destruída, outono na árvore de sonhos, livros mofados, sorrisos reduzidos
à zombaria.
Quem se esconde nele?
Não há provérbios, musgo bíblico, estremecimentos da folhagem, lua falsificada.
O homem parece vivo, sempre.
A morte é nada em suas mãos, mãe imensa desgraçada adormecida, túnica contra a pele, vozes do
tablado, obscuro extravio transfigurado, semelhança com os poços e o átrio da torrente
humana, morto, morte, morto, caminha por último o homem pela passarela de seu presumido
desígnio, a peça escura e sua insuportável lição, o que parece o morto dentro do morto?
Que importa o nome? Paolo, Sebastian.
A morte vai passando em sua plenitude.
Não obstante, que pode fazer o barqueiro sem o rosto?
Lance de sombras, condução dos mortos secretos, Caronte, tudo é visível na queda, tudo é sempre
sentir.
A morte é uma disputa de sombras, conjuro sinistro de seus vultos, noite de espumas, despojos
do olhar.
O revés da escritura é ninguém.
Ninguém é o homem.
Juntemos as páginas.
Todos os mortos estão cobertos de seu revés:
a outra ponta.
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