A mulher que morreu de topada Este texto é do Luis Fernando Veríssimo, que cedeu para os Conselhos Profissionais da Saúde utilizarem no Dia da Saúde. Foi feita encenação no Brique da Redenção, em Porto Alegre. Tragédia em um ato (O velório da Dona Saúde. Ela está estendida sobre uma mesa, que faz a vez de caixão. A única outra peça de cenário é um banco de praça, ou cadeiras imitando um banco de praça. O marido da Dona Saúde está ao lado do "caixão". Chega uma mulher e abraça o marido.) 1ª Mulher: - Que desgraça. Que tristeza. Pobre da dona Saúde. Marido: - E pobre de mim, que fico sem Saúde. (A 1ª mulher vai espiar a morta. Entra outra mulher e também abraça o marido.) 2ª Mulher: - Que tragédia. Que pena. A Saúde, quem diria... Marido: - Pois é. O que fazer? Foi uma fatalidade. (A 2ª mulher vai espiar a morta. Entra um homem e também abraça o marido.) 1° Homem: - Meus pêsames. Que choque. Perder a Saúd e assim... Marido: - Obrigado. Eu sei. Preciso me consolar. (O 1º homem vai espiar a morta. Entra outro homem e também abraça o marido, antes de ir espiar a morta.) 2° Homem: - Meus sentimentos. Que horror. E logo a Saúde, que parecia tão... saudável. Marido: - Nem tanto, nem tanto. Há anos ela não vinha bem. E culminou com a topada. 1ª Mulher: - Ela morreu de topada?! Marido: - Bem, a topada foi só o começo. Ela morreu por falta de atendimento médico. 1ª Mulher: - Hmmm... 2ª Mulher: - A velha história... 1° Homem: - Ó Brasil, ó Brasil... 2º Homem: - Mas conte como foi. Marido: - Bem, foi assim. Nós estávamos passeando na pracinha e... (Ele olha em volta, procurando alguma maneira de recriar a cena, e acaba dirigindo-se à morta) Meu bem, levanta um pouquinho e me ajude a mostrar como foi. (A morta se levanta e eles simulam uma caminhada na pracinha, de braços dados. De repente ela dá uma topada numa pedra invisível.) Saúde: - Ui. Ai. Marido: - É "ui" ou "ai"? Saúde: - Qual é a diferença? Doeu. Marido: - "Ai" é mais que "ui". É dor de "ai" ou dor de "ui"? Saúde: - De "ai", de "ai". Acho que quebrei o dedinho. Marido: - Isso só um profissional pode dizer. Sente aqui no banco que eu vou chamar um... (Um homem está passando pelo local; pode ser um dos homens já em cena, fazendo outro papel) 3º Homem: - Precisam de ajuda? Eu posso dizer se o dedinho quebrou ou não. Marido: - Você é um profissional? 3º Homem: - Sou, de educação física. Marido: - Afaste-se da minha mulher. 3º Homem: - Mas eu conheço o corpo humano. Posso... Marido: - Não ponha um dedo nesse dedinho. Ela precisa de um médico. (Enquanto eles falam a Saúde se contorce no banco para examinar seu dedinho do pé e sente outra dor). Saúde: - Ai. Ui! Marido: - É "ai" ou é "ui"? Saúde: - É "ai". Acho que destronquei alguma coisa aqui atrás. Ai . Ai! Marido: - Fique calma. Eu vou buscar ajuda. (Uma mulher está passando pelo local e se oferece) 3ª Mulher: - Eu posso ajudar. Sou treinada para ajudar pessoas com... Marido: - Suas credenciais, por favor. Registro médico. 3ª Mulher: - Não tenho. Faço terapia ocupacional. Marido: - Afaste-se da minha mulher. Não toque em nada. 3ª Mulher: - Mas... Marido: - Em nada, ou eu processo você por charlatanismo. (No banco, toda torta, a Saúde começa a chorar.) Marido: - O que é isso, agora? Saúde: - É choro. Eu estou nervosa. Marido: - Você precisa de atendimento psiquiátrico. (4º homem está passando e se oferece). 4º Homem: - Pode deixar comigo. Eu vou acalmá-la Marido: - Credenciais 4º Homem: - Como, credenciais? Eu sou psicólogo. Posso ajudar. Marido: - Não chegue perto da cabeça da minha mulher! (levantando a mulher por um braço) Venha, querida. Vamos para um hospital. Você precisa de atendimento profissional. Esta pracinha está cheia de amadores. Uma ameaça à saúde pública. (Mas a Saúde, com o dedinho machucado e toda torta, não consegue dar dois passos e cai.) Saúde: - Ui, ui, ui. Ai, ai, ai. Marido: - É "ui, ui, ui" ou é "ai, ai, ai"? Saúde: - É ai, ai, ai, ai, ai! Acho que quebrei outra coisa. (4ª mulher está passando e se oferece.) 4ª Mulher: - Deixe-me ajudar. Marido: - Registro médico. 4ª Mulher: - Eu sou fisioterapeuta. Posso... Marido: - Pode nada. Não toque na minha mulher. Não chegue perto de um osso. (nota que a Saúde está quieta) Saúde. Saúde! O que está havendo com você? Saúde (mal podendo produzir o som): - Iamm...Iomm... Marido: - É "iam" ou é "iom? Saúde (desfalecendo): - Brrrm... Marido: - "Brrrm" em que sentido? (Entrou a 5ª mulher, que esteve assistindo esta cena.) 5ª Mulher: - Ela perdeu os sentidos. Pode ser o coração. Marido: - Como você sabe? Você é médica? 5ª Mulher: - Não, sou enfermeira, e sei o que fazer nestes casos. Marido: - Não se aproxime da minha mulher. Ninguém se aproxime. Vou levá-la para um hospital. (Entrou 5º homem.) 5º Homem: - Eu ajudo. Podemos levá-la no meu carro. Marido: - Você está dirigindo uma ambulância? 5º Homem: - Ambulância? Não. Estou dirigindo o meu carro. Está estacionado ali e... Marido: - Carteira de motorista. Todos (em uníssono): - O que?! (Dona Saúde levanta-se do chão e caminha, resignadamente, para o "caixão", onde se deita de novo. Todos cercam o caixão.) Marido: - E foi assim que a Saúde morreu de uma simples topada, e falta de atendimento médico. Coitadinha da Saúde. Todos (em uníssono): - Coitadinha... 1ª Mulher: - Ó Brasil, ó Brasil... O Ato. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo" Michel Foucault