Reflexões metodológicas
para a análise sociocultural
de redatores em corpora históricos
Célia Regina dos Santos Lopes
Leonardo Lennertz Marcotulio
Márcia Cristina de Brito Rumeu
Alexandre Xavier Lima
Resumo
Este artigo expõe em discussão procedimentos metodológicos produtivos no processo de reconstrução dos perfis socioculturais de redatores de sincronias passadas
da língua portuguesa. Pretende-se pensar
a questão da aplicação de categorias sociais
(gênero, faixa etária, grau de escolaridade,
nacionalidade/naturalidade do autor) aos redatores de missivas manuscritas e de textos
impressos, apontando os percalços e os
caminhos metodológicos implementados no
desenvolvimento de uma sociolinguística
histórica do português.
Palavras-chave: categorias sociolinguísticas; o método na sociolinguística histórica;
os corpora históricos.
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Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier
Considerações iniciais
No âmbito dos estudos sociolinguísticos de orientação laboviana (WEINREICH et alii, 1968; LABOV, 1972), a identificação de
categorias sociais como gênero, idade, região e grau de escolaridade
dos informantes, por exemplo, se justifica em função da relação
estabelecida entre o social e o linguístico. O agrupamento dessas
categorias constitui, assim, o perfil sociocultural dos agentes, o que
proporciona ao linguista um melhor entendimento dos condicionamentos sociais de um fenômeno linguístico variável.
Quando se coloca o foco em textos escritos em sincronias
passadas, o direcionamento teórico-metodológico pode ser mantido, desde que se façam as devidas ressalvas, tendo em vista,
em alguns casos, a escassez de informações disponíveis para
dimensionar as condições de produção destas fontes históricas.
Caso o objetivo da investigação histórica, numa perspectiva
sociolinguística, seja o de descrever a produção linguística de
redatores de um determinado local do Brasil, a categoria social
região parece ser satisfatória, contanto que se faça um levantamento
do local de nascimento desses informantes. O mesmo tipo de
estudo geralmente é feito com outras categorias sociais que são
reconhecidas através do próprio documento ou de fontes secundárias sobre seus redatores.
Por outro lado, essas categorias sociais, tal qual comumente
as conhecemos, podem ser insuficientes em estudos que adotem
uma perspectiva que considere a reconstituição da sócio-história
do português no Brasil e do português brasileiro, inserida num
contexto de discussão sobre a História Social da Escrita, razão
pela qual torna-se pertinente repensá-las.
Não queremos dizer, contudo, que a concepção de perfil
como conjunto de categorias sociais utilizadas por diversos
estudos atuais esteja equivocada. No nosso modo de entender, a
questão que aqui se coloca é que, de acordo com a maneira como
se operacionaliza a ideia de perfil, esta pode responder apenas
parcialmente aos objetivos almejados. Em nosso caso, em função
das necessidades que se apresentam em trabalhos empíricos que
buscam tratar da reconstituição sócio-histórica do português, é
cabível o questionamento sobre o que estamos entendendo por
perfil sociocultural. Em que medida falar em gênero e região, por
exemplo, é dar conta da descrição de um perfil? O problema que
queremos evidenciar, e que nos preocupa, é o de tomar o perfil
como uma mera combinação de variáveis sociais, recortadas e
concebidas como realidades estanques e com sentidos prévios ao
contexto em que ocorrem.
O entendimento do perfil para a análise de corpora históricos sugere um foco privilegiado sobre o indivíduo, o que conduz
obrigatoriamente a uma decisão teórica. Por que não realizar uma
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leitura da produção linguística (texto) em termos de seu contexto de
produção? Por que insistir em fazê-la somente a partir do indivíduo?
Se assumirmos que indivíduo e sociedade são dois conceitos que
estão intimamente imbricados, não sendo, portanto, dissociáveis,
até que ponto faz sentido investigar os redatores apenas em termos
de seus perfis? Em outras palavras, até que ponto a caracterização
individual de um informante não é simultaneamente a caracterização do grupo do qual faz parte?
Devemos ter o cuidado necessário para não tratar do indivíduo desconectado do todo. Repensar, assim, o conceito de perfil
torna-se necessário, levando-se em consideração que o nosso
propósito é entender a escrita a partir de quem a escreveu em um
determinado contexto sócio-histórico.
Pelo que vemos, até o momento, a discussão maior que se
necessita fazer é acerca dos conceitos de individual e social, de indivíduo e sociedade. Nesse sentido, nosso objetivo, aqui, é levantar
questionamentos iniciais que nos permitam pensar que, para
trabalhos que busquem reconstituir uma sócio-história do português, devemos pensar, em um primeiro momento, nas formas de
abordagens sobre este indivíduo, as vantagens do procedimento de
caracterização de seu perfil e sua pertinência para os propósitos de
nossos estudos sócio-históricos. Acreditamos no potencial analítico de um cruzamento de perspectivas, que relacione a trajetória
de vida dos sujeitos (que vai mais além das categorias tradicionais
de perfil), o contexto de produção dos textos (em que momento foi
escrito, o que foi escrito, para quem foi escrito, em que condições
e com que finalidades foi escrito) e o mapeamento e descrição das
redes de escrita (diálogos estabelecidos e possíveis interlocutores).
Isto seguramente nos permitirá localizar a produção escrita de
um indivíduo num contexto de produção mais amplo, o que, por
sua vez, nos garante a possibilidade de uma conceituação alterna
de perfil sociocultural.
Nesse sentido, este trabalho busca apresentar e justificar alguns procedimentos metodológicos que temos adotado em nossas
pesquisas, no que se refere à identificação de perfis socioculturais
de redatores de sincronias pretéritas. Relataremos as dificuldades
encontradas e as decisões tomadas para a aplicação de categorias
sociais aos redatores tanto de textos manuscritos, quanto de textos
impressos, assim como a relevância de proceder tais abordagens
para o objetivo maior da investigação na temática mencionada.
A seguir, apresentaremos notícias de diferentes experiências metodológicas que têm sido desenvolvidas mais afins com
a perspectiva aqui discutida. Estamos conscientes de que a não
homogeneidade de nosso texto é uma prova de que essa discussão
deve ser realizada.
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Notícias de metodologias utilizadas para a identificação
de perfis socioculturais de redatores de textos manuscritos
No que se refere às metodologias que aqui serão descritas
para os textos manuscritos, constamos de dois estudos específicos que versam sobre a análise das formas de tratamento. Tais
estudos foram realizados a partir de cartas, o que nos exige que,
em função do fenômeno linguístico escolhido e do gênero textual
em questão, se proceda não só à identificação dos perfis socioculturais dos redatores (missivistas), assim como dos destinatários
das trocas interativas.
A opção pelo estudo diacrônico a partir de um corpus constituído por cartas não é gratuita. A carta, como gênero discursivo
primário (BAKHTIN, 1997), configura-se como uma circunstância espontânea de comunicação verbal. Estruturada em um eixo
que pressupõe um autor, um destinatário e um tema-íntimo, a
carta-missiva segue um padrão composicional reconhecido há
muito no mundo ocidental. Em geral, o local, a data, a saudação
inicial, o corpo do texto, a despedida e a assinatura estão sempre
presentes. São essas propriedades características da carta que
permitem a identificação do perfil sociocultural do remetente na
sua relação com o destinatário. Apesar das aparentes vantagens
desse gênero, as cartas não reproduzem dados de fala. Este é,
sem dúvida, um problema fundamental que se tem procurado
minimizar nos estudos de linguística histórica, perpetuado na
máxima laboviana da “arte de fazer o melhor uso de maus dados”
(LABOV, 1994, p.11) ou, melhor dizendo, “fazer um bom uso dos
dados disponíveis”.
A carta é um tipo de fonte documental que permite mais
facilmente identificar as categorias sociais tradicionalmente
conhecidas pelos que levam em conta o modelo sociolinguístico
laboviano. A partir dela e com as informações composicionais do
próprio gênero inicia-se o trabalho de garimpo para a identificação da origem do remetente, sua idade, seu nível sociocultural e
papel social assumido em determinado contexto histórico. Além
disso, a carta pessoal, por exemplo, pelo seu caráter mais íntimo
ou espontâneo, pode facilitar a identificação de fatos linguísticos
em processos de mudança. É preciso ter mente, entretanto, que se,
por um lado, a carta transmite a inovação e mudança linguísticas,
por outro, conserva fórmulas fixas em que se perpetuam “tipos
relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 1997, p. 279
apud SOTO, 2007, p. 100).
Apesar de apresentar algumas variações em sua estrutura
composicional ao longo do tempo, as cartas se caracterizam por
alguns traços prototípicos que podem interferir, sobremaneira, na
análise de fenômenos linguísticos quando se parte desse gênero
como fonte para o estudo da mudança linguística. Em termos
da estrutura textual, o gênero epistolar, no geral, apresenta uma
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1
Obviamente que as
partes constitutivas do
gênero epistolar apresentam variações de nomenclatura em função
do tempo, dos autores e
dos inúmeros manuais
que ga n ha ra m força
no Ocidente a partir
da ars dictaminis (disciplina retórica centrada
na redação de cartas e
documentos). Há diversos tratados da história
da epistolografia (o tratado de Anônimo de
Bolonha, de 1135; o de
Erasmo de Rotterdam,
de 1520; e o de Justo
Lípsio, escrito em 1590).
Os tratados epistolares
se multiplicaram nos
séculos XVI e XVI. Para
maiores detalhes ver as
obras citadas em Koch
(2008), Simões (2007),
Marcotulio (2008) entre
outros estudos que fazem menção à história
do gênero.
2
SÁ, José d’Almeida
Correia de. Vice-reinado de D. Luiz d’Almeida
Portugal, 2º Marquês do
Lavradio, 3º Vice-rei do
Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.
macroestrutura constituída pelas seguintes partes: a seção de
contato inicial (em que costuma figurar a saudação e a captação
da benevolência), o núcleo da carta (o corpo do texto, a razão pela
qual a carta está sendo escrita, predominando um pedido de algo
concreto, notícias ou uma ordem a ser cumprida etc.) e a seção
de despedida. Nessas partes constitutivas1, principalmente na
saudação houve desde a origem do gênero grande preocupação
de conferir respeito aos papéis sociais e às posições de emissor
e receptor, construindo laços de boa vontade com o receptor e
estimulando sua cooperação (BAZERMAN, 2005 apud MARCOTULIO, 2008).
É preciso ter em mente, nesse sentido, as dificuldades de
interpretação de fenômenos tipicamente “textuais” que podem
mascarar qualquer descrição diacrônica. Certos usos linguísticos podem estar correlacionados ao tipo de texto em que foram
localizados, uma vez que existem fórmulas fixas, estruturas relativamente estáveis ou propriedades convencionalizadas que se
repetem em determinado gênero particular (LOUREDA LAMAS,
2004). Este é mais um desafio do pesquisador que se aventura
na análise de fontes documentais o passado: observar até que
ponto a identificação de um dado mais conservador ou inovador
localizado no documento realmente evidencia uma etapa de um
processo de mudança sistêmica da língua ou se trata apenas de
uma peculiaridade daquele tipo de texto.
Marcotulio (2008) trabalhou com cartas do Marquês do
Lavradio, português e vice-rei do Brasil, escritas no Rio de Janeiro
no terceiro quartel do século XVIII a diferentes destinatários. As
cartas de Lavradio, que se encontram no Arquivo Nacional do
Rio de Janeiro, chamam a atenção não só pela quantidade, mas
também pelo grande número de relações sociais existentes. Além
de ser um rico material para análises linguísticas, estas cartas
também despertam o interesse de historiadores e outros pesquisadores interessados no Brasil Colônia, pelas valiosas informações
veiculadas.
Quanto à metodologia utilizada para a identificação e
caracterização do perfil sociocultural do remetente das cartas,
como se trata de um personagem ilustre, os dados biográficos
não resultaram de difícil alcance. Além de dicionários de famílias
portuguesas, dicionários sobre personagens e momentos importantes do Brasil Colônia e de grandes enciclopédias portuguesas
e brasileiras, o autor ainda contou com diversos títulos da historiografia luso-brasileira que retratam o período em questão, assim
como uma biografia do Marquês do Lavradio produzida por um
de seus descendentes, o 6° Marquês do mesmo título2. Assim,
informações como idade, grau de instrução, data de nascimento, local
de nascimento, razão pela qual foi escolhido para o posto de vice-rei e
informações relativas ao recebimento do título de Marquês do Lavradio
foram facilmente obtidas.
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A consulta às fontes secundárias permitiu que Marcotulio
(2008) percebesse a existência de uma problemática histórica
sobre a questão das hierarquias político-administrativas no Brasil
Colônia, na qual as cartas encontradas apresentavam-se como
mediadoras de conflitos estabelecidos. Desde uma perspectiva
teórica, o rei de Portugal tinha o vice-rei do Brasil como uma
figura que representava a extensão do poder régio na Colônia e,
por essa razão, esse seria o poder máximo na América Portuguesa.
O vice-rei do Estado do Brasil estaria, assim, subordinado somente
à Coroa, ao passo que todos os governadores e capitães-generais
das capitanias do Brasil estariam, por sua vez, subordinados ao
vice-rei. Entretanto, na prática, não era assim que o sistema funcionava. Com o intuito de garantir que o poder predominasse no
lado europeu do Atlântico, o rei D. José I, através das atuações do
Marquês de Pombal, não deixava claros os limites da atuação de
Lavradio. Essa indefinição em torno do poder que detinha o vicerei permitia a leitura de que o vice-rei somente seria responsável
por sua capitania, no caso o Rio de Janeiro, por essa ser a nova sede
da Colônia a partir de 1763, e pelas capitanias subordinadas a essa,
e não toda a extensão da Colônia. Dessa forma, o rei não perdia
totalmente o controle da situação, uma vez que não depositava o
poder em únicas mãos. Tanto o vice-rei, quanto os governadores
e capitães-generais ficavam, assim, subordinados à Coroa.
Nesse sentido, ocupar a posição de vice-rei no Brasil Colônia não isentava o seu titular de relações perenes marcadas pela
tensão e pelos conflitos, o que representaria uma possível posição
de desconforto. Ser detentor de um título que teoricamente conferia
poderes, sem, contudo, exercê-los de fato, representava estar em
uma constante zona de conflitos, em que todos os atos deveriam
ser criteriosamente medidos para que os interesses fossem garantidos. Essa era a situação vivenciada pelo Marquês do Lavradio em
sua gestão como representante da Corte na América Portuguesa.
Esse quadro subjacente de relações e de tencionamento político circunscreve o eixo central do trabalho de Marcotulio (2008).
Na busca de evidências linguísticas que permitissem um melhor
entendimento dessa problemática, o autor optou por estudar as
formas de tratamento que eram utilizadas por Lavradio, em cartas
a diferentes destinatários da esfera pública, por acreditar que elas
fornecem indícios de como as relações entre formas linguísticas
e papéis sociais se construíram ao longo dos tempos. Para tanto,
de modo a obter resultados mais confiáveis, Marcotulio (2008)
decidiu analisar, também, as formas de tratamento encontradas
nas cartas familiares, de modo a atestar se haveria a presença, no
âmbito privado, de um personagem político.
Essas informações permitiram que o autor realizasse um
recorte histórico a partir do qual foram selecionados os destinatários
que participassem da cena, isto é, que ocupassem algum posto político-administrativo no Império luso-brasileiro. A caracterização
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Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos
Carta destinada ao
Conde de São Vicente,
em 23 de junho de 1770.
3
social dos destinatários também foi possível através da consulta
a fontes secundárias. As cartas foram escolhidas sob a condição
de que veiculassem alguma informação relativa à política/modo
de governar no Brasil Colônia, para que estivessem evidentes os
limites do poder do vice-rei no trato com seus interlocutores. A
partir daí, o autor analisou, desde uma perspectiva sociopragmática (BROWN & LEVINSON, 1987), como as formas de tratamento
poderiam atuar, nos diferentes eixos hierárquicos sociais, como
estratégias de atenuação a favor da polidez linguística, contribuindo para o trabalho de construção das faces dos participantes
da interação.
Quanto ao âmbito privado, não foi tarefa fácil a seleção
dos destinatários. Em princípio, através de uma rápida consulta
às cartas pessoais do Marquês do Lavradio, pareceu simples a
escolha de alguns dos membros de sua rede familiar, uma vez que
o grau de parentesco encontrava-se explícito na seção de contato
inicial de cada carta, como em: “Meu Irmaõ, eSenhor domeuCoração”3. Dessa forma, aparentemente, se poderia saber qual era a
relação familiar estabelecida entre o remetente e o destinatário.
Entretanto, analisando outras cartas, Marcotulio (2008) verificou
que as relações de parentesco indicadas pelos rótulos usados por
remetente e destinatários, em muitos casos, não correspondiam
à realidade histórica, uma vez que subvertiam / ampliavam os
limites dos laços familiares tais como são conhecidos hoje, como
o fato de chamar os genros de “filhos”, a sogra de “mãe” etc.,
observado no seguinte excerto da carta do Marquês do Lavradio
destinada ao seu tio D. Tomás de Almeida, em 20 de fevereiro de
1770: “eultimamente euRecomendo aVossaExcelência | este negoçio
com aquelle ardor comque VossaExcelência deve supor | eu meintereço hoje por huns genroz, ó para melhor dizer filhos | que
asestimaveis Serconstançias, que atodoz ouso Repetir dellez, |
os fazem ser inseparaveis domeuCoraçaõ.”
Nesse sentido, foi necessário que o conceito de família fosse
lido não somente como um grupo ligado ao casamento, à consanguinidade e à coabitação, mas, como sugere Moraes Silva, em
seu dicionário de 1789, como núcleo familiar, parentes e aliados,
uma vez que, durante o século XVIII, “o sentimento de pertencer
a uma família ultrapassava, portanto, os laços consanguíneos e
se manifestava entre os parentes rituais e aliados” (VAINFAS,
2000, p. 216). Mais do que família, as relações de Lavradio com os
“parentes” tinham ligação com as questões da Casa Nobiliárquica,
muito mais pertinentes do que o conceito de família. Os próprios
casamentos de suas filhas, comentados em algumas cartas, eram
estratégias para se garantir prestígio e riquezas para a Casa
Lavradio perante os nobres da Corte.
Tornou-se necessária, assim, a elaboração da genealogia dos
destinatários do Marquês do Lavradio, para que houvesse uma
maior fidedignidade na análise das relações. Remontou-se, então,
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Dr. João Pedreira do
Couto Ferraz e Zélia
Pedreira de Abreu
5
O patriarca da família
Pedreira Ferraz – Magalhães é o informante
do gênero masculino,
João Pedreira do Couto
Ferraz, nascido no Rio de
Janeiro, a 10 de agosto de
1826. Filho do casal Guilhermina Amália Correia de Lima Pedreira e
Luís Pedreira do Couto
Ferraz que, servindo
como Desembargador
Afranista da Relação,
residiu na Corte, onde
constituiu família composta por sete filhos. Um
dos seus filhos é o missivista João Pedreira do
Couto Ferraz que iniciou
a sua carreira política
a partir da advocacia,
bacharelando-se, em
1848, na Academia de
Olinda. Foi nomeado,
ainda jovem, pelo Imperador Dom Pedro II,
Moço da Câmara, promovido Veador da Casa
Imperial e, por mais de 50
anos, exerceu a função
de Secretário do Supremo
Tribunal Federal. Difundiram-se, em família,
formas específicas de
tratamento do Conselheiro Dr. João Pedreira
do Couto Ferraz como
Conselheiro Pedreira, Dr.
Pedreira ou Pai Pedreira.
4
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a sua estrutura social familiar, de modo a estabelecer o condicionamento das formas linguísticas a partir dos diferentes graus de
parentesco. Assim sendo, considerou-se como pertencente à esfera
privada somente aqueles que tivessem alguma ligação familiar
com o Marquês do Lavradio, direta ou indiretamente, sendo a
relação formada por laços consanguíneos ou por laços afetivos.
A questão da identificação de categorias sociais, como a
idade, o gênero, o grau de parentesco, o nível cultural e o tipo de relação
estabelecida entre os informantes, também é uma preocupação de
Rumeu (2008) que fornece, entre outros aspectos, passos metodológicos para a identificação dos perfis socioculturais dos redatores
brasileiros das epístolas familiares trocadas entre os entes da
família Pedreira Ferraz-Magalhães na realidade sócio-histórica
de fins do Oitocentos e na 1ª metade do Novecentos.
Idas constantes ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
propiciaram-lhe o contato com um conjunto de cartas familiares produzidas por integrantes das ilustres famílias Pedreira
Ferraz-Magalhães. A relevância desse material reside na real
possibilidade de reconhecimento da história da vida privada de
uma família brasileira nascida no Rio de Janeiro que circulou da
capital carioca para outros espaços sociogeográficos dentro e fora
do Brasil. Uma família religiosa que, apesar dos deslocamentos
advindos da pressão social da vida adulta, se manteve unida
pelas cartas ativas e passivas trocadas entre seus membros ao
longo das suas vidas.
Em termos metodológicos, foi possível o meticuloso resgate
das categorias sociais de cada um dos autores dos documentos,
bem como o dos destinatários das cartas, tendo em vista a idade,
o gênero, o grau de parentesco, o nível cultural e o tipo de relação familiar estabelecida entre os “informantes”, detectando, pois, as redes
sociais engendradas nesse jogo discursivo de intimidade familiar.
A reconstrução da história privada da família Pedreira Ferraz –
Magalhães se deu basicamente a partir da consulta a dois livros
escritos por um dos filhos do casal progenitor da família Pedreira
Ferraz – Magalhães (PEDREIRA DE CASTRO, 1943; PEDREIRA
DE CASTRO, 1960) e aos registros escritos nos quais havia referências às datas de nascimento e falecimento dos membros da família
em análise, mais especificamente dos filhos do casal4. Ainda em
relação às fontes secundárias, mostrou-se muito útil a consulta ao
Dicionário das Famílias Brasileiras (BUENO & BARATA, 2001) para
checar as informações sobre as datas de nascimento e falecimento
do progenitor da família (o Dr. João Pedreira do Couto Ferraz5),
assim como para averiguar informações sobre a história de vida
deste informante (BLAKE, 1902): grau de escolarização e atividades
profissionais por ele exercidas no Brasil Império.
Esse grau de refinamento de amostras de textos produzidos
por informantes seguramente identificados em relação à sua origem
brasileira e ao seu nível de escolaridade (culto) permitiu a confecção
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de um estudo de painel (LABOV, 1994) para sincronias passadas
em que foi possível resgatar a progressão da mudança linguística
(a implementação de Você no sistema pronominal do Português
Brasil) em função da análise do comportamento linguístico do
indivíduo, através da sua produção escrita, em distintas faixas
etárias da sua vida (juventude, adultez e velhice). A opção pela
análise de cartas familiares é justificada por se tratar de um gênero
textual cujo grau de formalismo é menor, visando à estruturação
de uma investigação com uma maior probabilidade de expressão
dos contextos linguísticos favoráveis ao aparecimento de formas
nominais e pronominais de tratamento no Português Brasileiro.
Rumeu (2008) confeccionou um estudo de painel, nos moldes
Labovianos (1994), em virtude do conjunto de textos que tinha
em mãos: cartas familiares produzidas por brasileiros cultos de
uma mesma família no decorrer de suas vidas cujos perfis socioculturais foram identificados. Foram as amostras de cartas que
apontaram para o tipo de estudo sociolinguístico mais produtivo:
estudo de painel voltado para a diacronia. Ficou-se à mercê do
que resistiu à ação do tempo no interior dos arquivos públicos,
confirmando a argumentação de Labov (1994) em relação a esse
ser um dos percalços na vida do linguista-pesquisador que se
volta para estudos sociolinguísticos diacrônicos.
A construção de uma sociolinguística histórica do Português
Brasil, nos moldes de Lobo (2001), com base na reconstituição da
história de vida dos informantes (missivistas), corrobora o controle
das díades que sustentam a dinâmica das cartas pessoais trocadas no seio da família Pedreira Ferraz – Magalhães. As díades
controladas evidenciam as relações familiares travadas entre pais
e filhos, entre avô e netos, entre irmãos, entre tia e sobrinhos e entre
amigos como remetentes e destinatários das missivas da família
Pedreira Ferraz – Magalhães.
Ainda em relação aos procedimentos metodológicos adotados para o trabalho com textos de sincronias passadas, algumas
questões suscitadas pela análise dessas cartas se mostraram
relevantes: O que é ser um informante culto, em fins do séc. XIX e
na 1ª metade do séc. XX? O que é ser um padre ou uma freira nesse
contexto sócio-histórico do Brasil? Quais são os seus papéis sociais
vinculados a ordens religiosas engajadas em trabalhos voltados
para a educação no Brasil e no exterior? Qual é a função social da
mulher (mãe e esposa) e também da mulher religiosa, na sociedade
brasileira oitocentista e novecentista?
No que se refere à íntima relação entre as categorias gênero
e faixa etária dos informantes conjecturadas por Labov (1994, 1972
[2008]), o foco metodológico do estudo de painel voltou-se para as
seguintes questões: a variável gênero poderia representar um fator
de progressão (avanço) ou de regressão (retrocesso) na direção da
implementação de uma nova variante (Você) no sistema linguístico? A opção por Tu ou por Você na trajetória linguística da vida
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dos informantes estaria correlacionada ao papel social assumido
por homens e mulheres na realidade sócio-histórica e linguística
do Português Brasileiro oitocentista e novecentista? A discussão
dessas questões sociais guiou a interpretação dos resultados
quantitativos da análise de painel para sincronias passadas do
PB. Nesse sentido, Rumeu (2008) pensa ter esclarecido, com base
em Lavov (1972 [2008, p. 326]), o seguinte: (“(...) uma compreensão
plena da mudança linguística exigirá várias investigações que não
estão intimamente ligadas ao quadro social, assim como outros
estudos que mergulhem na rede dos fatos sociais. (...)”).
Esse mergulho na rede de fatos sociais a que Labov se refere é
justamente a análise linguística com base na confecção de uma
metodologia de pesquisa que conduza à depreensão do perfil
sociocultural dos informantes.
Notícias de metodologias utilizadas para a identificação
de perfis socioculturais de redatores de textos impressos
Os textos impressos vinculados aos periódicos também
impõem desafios para a construção de corpora, não apenas pelas
condições de transcrição, mas, sobretudo, na identificação dos
perfis dos informantes. A complexidade da estrutura está intimamente associada à complexidade da sociedade. Se grupos sociais,
por meio de categorias sociais, instituem uma língua, poderíamos
identificar estruturas linguísticas ou epilinguísticas que revelam
esses perfis. Com o testemunho que nos restou, o registro escrito,
surgem algumas questões que norteiam os trabalhos com corpora
diacrônicos: Quais são as pertinentes categorias sociais presentes
em outras sincronias? Qual a forma que tomam na língua? O que
revelam sobre o falante?
Justifica-se o trabalho histórico com impressos ao lado dos
manuscritos pelo fato de terem servido de modelo de erudição
para o século XIX. Como Lima (2010) procurou ratificar, os impressos em periódicos faziam parte do cotidiano do carioca. Jornais,
como a Gazeta de Noticias, publicavam cerca de 17 mil cópias e
ainda circulavam em saraus da sociedade do Rio de Janeiro. As
diversas seções nos jornais (Folhetins, Avisos, Publicações a Pedido
etc.) entretinham, informavam e formavam os redatores/leitores
da época.
Um esforço diferenciado é necessário, a começar pela
tarefa de localização dos periódicos. Não são muitos acervos que
guardam periódicos antigos e, às vezes, por condições naturais,
o material encontra-se deteriorado. No Rio de Janeiro, contamos
com o acervo da Biblioteca Nacional que reúne periódicos antigos
de todo Brasil.
Localizado o material, os principais desafios para a caracterização dos perfis dos informantes são a identificação da autoria, da
escolaridade e da origem do redator, a ausência de original preservado e de
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informações sobre o alcance dos textos, condições essenciais para realizar qualquer afirmação sobre a norma pertencente àquele grupo.
Na etapa de levantamento de textos para a formação dos
corpora, longas listas de material se formam devido à quantidade
de periódicos que surgiram a partir das primeiras décadas do
século XIX. Os periódicos surgiam rapidamente, como também
desapareciam, acompanhando as ideologias em um momento de
extrema instabilidade política. Jornais diários, de tema geral, com
ampla circulação, são sempre candidatos ideais para compor os
corpora. Contudo, além do veículo, deve-se optar por um gênero
vinculado ao periódico.
Lima (2010) optou pelas crônicas folhetinescas de França Junior.
Tais crônicas são um importante testemunho da vida da nascente
burguesia carioca dos oitocentos. Descrevem e ditam costumes,
como também servem de modelo para outros redatores/leitores
que faziam parte das redes de leitura e escrita daquele período. A
localização desse informante é o resultado de um longo exercício
filológico, em que foram necessárias visitas a diversos acervos,
levantamento no acervo geral e busca na seção de periódicos
da Biblioteca Nacional. Desse expediente, localizou-se o livro
Folhetins (1878) de França Junior, coletânea de folhetins (crônicas)
publicados na Gazeta de Noticias. Até chegar a esse informante e
a esse jornal, tateou-se em cada periódico, identificando folhetins
e, o mais difícil, identificando os autores desses textos.
No século XIX, era comum os autores não se identificarem
nos seus trabalhos, ou lançarem mão de codinome ou pseudônimo. No periódico Gazeta de Noticias (1877), além de França Junior,
havia outros colaboradores da seção Folhetim. Quase todos usavam
codinome, como, Tralgadabas, Nemo, Prouhdome, Varuna; ou abreviavam algum nome importante para a identificação, como, Luiza B.,
S. Saraiva etc. Alguns ainda usavam pseudônimos, dificultando
ainda mais a identificação. O que provavelmente era sabido por
todos, como J.X.F.S., ocultou-se com o tempo. A saída para esses
casos tem sido observar se há alguma publicação com o mesmo
nome, ou se há algum outro testemunho (anúncio de venda de
livro, comentário de outro cronista, notícia) no periódico que
permita identificar o autor. Quando não encontramos nenhuma
outra referência, somos obrigados a descartar os informantes.
Embora encontrar outra publicação de um redator não seja
condição para identificarmos sua origem, sua escolaridade e outras
informações sociais, geralmente, encontram-se dados biográficos
de redatores justamente naqueles redatores que foram expoentes
em seu tempo e deixaram uma contribuição significativa para a
sociedade que faziam parte. É o caso de França Junior. O autor tem
uma extensa colaboração nos jornais, exerceu funções públicas,
escreveu peças de teatro e conta com várias edições de seus textos
folhetinescos ainda em seu tempo, tanto em outros jornais, como
também em livro (LIMA, 2010), prova de que seu texto alcançou
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uma considerável repercussão na época. Se o texto fez sucesso,
era sinal de que poderia servir de modelo para outros redatores.
Contudo, o que se tem hoje é o periódico. Não se têm as provas dos jornais, muito menos os manuscritos. Não se sabe como
realmente França Junior escreveu. A ausência do original faz com
que se estabeleça a diferença do autor França Junior e do redator
França Junior, que podem ser a mesma pessoa, como podem ser
entidades diferentes. O autor é o criador da obra manuscrita,
enquanto o redator é o responsável pela sua apresentação final
vinculada a algum suporte. Assim, o informante em questão é o
redator França Junior, pois só se tem o produto final de sua criação,
o que também é importante, uma vez que o leitor só tinha acesso a
esse produto. A distinção entre autor e redator poderia ser desfeita
com a comparação de impressos e manuscritos. No entanto, ainda
não foram localizados manuscritos de França Junior.
Barbosa (2005) parece ter encontrado uma maneira de aproveitar os testemunhos desses informantes cujos perfis socioculturais desconhecemos. Primeiro é necessário criar corpora com o
maior número possível de informantes reconhecidamente eruditos. Depois, identificar um critério objetivo de erudição e conseguir mensurá-lo. A seguir, usar esse material como parâmetro
de erudição. Para isso, Barbosa pensou na latinização da grafia,
uma vez que havia, no século XIX, uma exacerbação desse modelo
de escrita. Quanto mais latinizada a escrita, mais erudito seria o
redator. Se também fosse possível, seria pertinente encontrarmos
um fenômeno sintático em que pudéssemos contrapor oralidade
versus escrituralidade – neste caso, as formas sintética e analítica
do gerúndio. Lima (2010) colabora e ratifica a metodologia, quando
levanta mais um informante (França Junior) para compor o parâmetro de erudição e testa a metodologia nos folhetins desse autor.
Os resultados acenam positivamente para esse recurso
que tenta superar a aparente escassez de fontes confiáveis para a
reconstrução histórica da norma carioca em sincronias passadas.
Considerações finais
A discussão sobre a relevância da composição do perfil
sociocultural de redatores de sincronias passadas permite tecer
duas breves reflexões:
1ª)Tanto nas cartas produzidas pelo marquês do Lavradio,
subsidiando a análise do condicionamento das formas
nominais de tratamento a partir dos diferentes níveis
hierárquicos e dos graus de parentesco dos informantes,
quanto nas cartas pessoais da família Pedreira FerrazMagalhães, fundamentando o estudo da variação das
formas pronominais Tu e Você, voltou-se o foco para a
conexão entre as formas linguísticas e a função social
do informante. É claro que esse encaminhamento não
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foi ingênuo, uma vez que se queria defender a ideia de
que a língua é movida pelo social. Nesse sentido, se faz
necessário repensar a validade da aplicação exclusiva das
categorias sociais para a depreensão do perfil sociocultural dos redatores em sincronias passadas do português,
sem que se leve em conta o cenário sócio-histórico do
qual os indivíduos participavam.
2ª)Por outro lado, acredita-se que as marcas linguísticas
oferecidas pelo próprio texto, como a latinização da
grafia, conforme constatado por Lima (2010) em relação
aos folhetins de França Júnior, podem contribuir para a
identificação de perfis socioculturais de redatores através da constituição de um parâmetro objetivo para a
caracterização da norma culta oitocentista, tomando-se
os folhetins cariocas do século XIX como referencial de
expressão dos escritores cultos.
A proposta de Barbosa (2005) de identificar um critério
objetivo de erudição (a latinização da grafia) e mensurá-lo para a
análise das fontes documentais se mostrou um excelente caminho
de investigação. A partir desse princípio norteador definido por
Barbosa (2005), podem-se utilizar, quem sabe em um futuro
próximo, outros critérios (talvez não tão objetivos) como é o caso
das próprias características linguísticas dos textos. Partindo do
que se conhece do português brasileiro hoje, é possível organizar
taxinomicamente os documentos em função da presença mais
incisiva ou ausência total de traços linguísticos que apareçam
como prenúncios ou vestígios do que agora sabemos configurar o
português brasileiro ou uma de suas variedades (o uso do futuro
perifrástico com ir + infinitivo, a presença de a gente no lugar de
nós, pronome reto depois de verbos causativos, pronome tu com
verbo na terceira pessoa do singular, entre outros fenômenos).
Abstract
This article presents a discussion on the methodological procedures in the productive process of reconstruction of socio-cultural profiles of writers from the
past synchronicities Portuguese. It is intended to reflect
about the implementation of social categories (gender,
age, educational level, nationality, place of birth of the
author) to writers of handwritten letters and printed
texts, pointing out the struggles and methodological
approaches implemented in the development of a
Portuguese Historical Sociolinguistic.
Keywords: sociolinguistic categories; sociolinguistic method in history; historical corpora.
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