ISSN 2183-4237 FICHA TÉCNICA Site magazine.resistance.pt Morada Rua Larga, Departamento de Física Universidade de Coimbra, piso F, sala 48 3004-535, Sé Nova, Coimbra Contactos [email protected] Capa Francisco Carvalho Diretor de Design Luís Ribeiro Colaboradores de Design Ana Fonseca, Ana Moreno, Andreia Veloso, Heloísa Sobral, Maria Bárbara, Rodrigo Carvalho, Sofia Rocha, Tiago Sequeira Diretor de Edição Rita Viegas Colaboradores de Edição Adriana Correia, Bruno Marques, Moisés Moreira, Sofia Dias Equipa de Revisão Adriana Correia, Bruno Marques, Moisés Moreira, Rita Viegas, Sofia Dias, Andreia Fernandes Director de Marketing Frederico Borges Gráfica NOZZLE ISSN 2183-4237 EDITORIAL Vivemos num mundo em mudança, não só a nível tecnológico mas também biológico. Não são só os smartphones, tablets e afins que evoluem, também a cooperação entre estas duas áreas é cada vez mais forte e consegue satisfazer grande parte das necessidades da nossa sociedade a nível fisiológico. É aqui que entra a biomédica: uma vertente que tenta estabelecer a cooperação entre a biologia, a medicina e os avanços tecnológicos de modo a proporcionar à sociedade uma melhor qualidade de vida. No 13º Número da Resistance Magazine pretendemos dar a conhecer aos nossos leitores um pouco da história desta área científica mas também os seus usos no dia-a-dia que passam como que despercebidos ao leitor menos atento. Também nesta edição contamos com alguns artigos de opinião, como é habitual, que nos dão a conhecer a “outra face da moeda” em assuntos controversos da actualidade. Rita Viegas 2014, Sports Feature, 1st prize stories, Peter Holgersson Engenharia Biomédica Limito-me a referir que a UC diplomou já 264 Engenheiros Biomédicos (até ao final de 2012/2013) pelo que o número total de Mestres em Engenharia Biomédica formados em Portugal deverá ser já superior a mil. No entanto, os mestrados integrados continuam a preencher todas as vagas que oferecem (as licenciaturas já não…) não se sentido ainda na Engenharia Biomédica a actual crise na procura dos cursos de engenharia. Obtive ainda dados relativos aos cursos do IST e da UM. Os dados do curso do IST foram obtidos no estudo de empregabilidade dos diplomados do IST em Engenharia Biomédica, realizado pelo Observatório de Empregabilidade do IST [4]. Os dados referem-se aos diplomados de 2009 e foram recolhidos no início de 2011 (N=18) [Fig. 3]. Investigadores / Bolseiros de Investigação Bolseiros de Doutoramento Analista / Programador Engenheiro Químico Consultor / Auditor Engenheiro de Software / Desenvolvimento Outros Havia necessidade de graduados em Engenharia Biomédica? O Ensino da Engenharia Biomédica em Portugal Fig. 3 Empregabilidade do IST Também usei alguns dados apresentados em 2011 / 2012 pela Profª. Patrícia Figueiredo, nas aulas de Introdução à Engenharia Biomédica [5]. Os dados relativos ao curso da UM são do estudo de empregabilidade dos seus ex-alunos desde o ano lectivo 2006 / 2007 até ao ano lectivo 2011 / 2012, realizado pelo Gabinete de Alunos de Engenharia Biomédica (N=133) [6] [Fig.4]. Fig. 1 Taxa de distribuição geográfica de graduados em Engenharia Biomédica. A Engenharia Biomédica consiste na aplicação dos princípios das ciências exactas e das ciências aplicadas à resolução de problemas na área da biologia, da medicina e da saúde. Em Portugal, e contrariamente ao que vem escrito na Wikipedia [1], o ensino da Engenharia Biomédica começou em Coimbra em 1992, com a entrada em funcionamento do mestrado em Engenharia Biomédica, um curso coordenado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em colaboração com a Faculdade de Ciências e Tecnologia. Estávamos na era pré-Bolonha. Os cursos de mestrado eram então cursos de especialização frequentados após a conclusão de uma licenciatura de 4 ou 5 anos. Este mestrado em Engenharia Biomédica tinha ainda a particularidade de começar com um curso preparatório de 3 meses propedêutico em que os alunos vindos das Ciências Exactas e das Engenharias frequentavam disciplinas de ciências biomédicas, enquanto alunos com licenciaturas em Bioquímica, Medicina e outras áreas Biomédicas ou Biologia tinham formação na área da Engenharia. A primeira licenciatura em Engenharia surgiu em 2000 na Universidade Católica Portuguesa. Nos anos seguintes abriram outros cursos: em 2001 no Instituto Superior Técnico (IST); em 2002 nas Universidades de Coimbra (UC), do Minho (UM) e Universidade Nova de Lisboa (UNL). Com a adequação dos cursos superiores ao estipulado na Declaração de Bolonha, a grande maioria das universidades públicas optaram, a partir de 2007, pelo formato de mestrado integrado. Hoje a oferta pública de ensino superior na área da Engenharia Biomédica consiste em 5 Mestrados Integrados e 4 Licenciaturas (uma no ensino superior e 3 no ensino politécnico). Foram 328 os alunos que entraram nestes cursos em 2014 / 2015, através da 1ª fase do Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior. Para além dos cursos atrás referidos, há ainda a considerar a existência de 1 mestrado de especialização no ensino superior e um mestrado de continuidade no ensino politécnico. Das 5 Licenciaturas em Engenharia Biomédica criadas entre 2000 e 2002, 3 eram coordenadas por Departamentos de Física (IST, UC e UNL). Tal não sucedeu por acaso. Por um lado, existiam competências tecnológicas nestes departamentos, principalmente nas áreas da física médica (radiações, imagem médica) e da instrumentação. Por outro lado, os cursos destes departamentos (Física e Engenharia Física) não conseguiam preencher as suas vagas, o que começava a ter impacto no financiamento destes departamentos. Face a esta situação, e havendo um “mercado” constituído por alunos com médias elevadas e apetência pelas Ciências Biomédicas (os alunos que se candidatavam e não entravam em Medicina), é fácil compreender o impulso para a criação das Licenciaturas em Engenharia Biomédica. Com isto não quero dizer que a criação das licenciaturas em Engenharia Biomédica foi apenas uma questão de oportunidade. A necessidade existia. As sociedades modernas enfrentam custos de saúde cada vez mais elevados, situação em que o envelhecimento da população desempenha um papel relevante. A tecnologia surge como ferramenta importante no controlo desses custos. Um exemplo são as soluções de monitorização remota, que permitem diminuir o número de consultas e os tempos de internamento, bem como verificar a adesão às terapêuticas. Mas podia também falar das soluções de inteligência computacional para processar a informação gerada pelos testes de genómica ou pela imagiologia médica. Os exemplos são abundantes e explicam porque é que Engenheiro Biomédico é a carreira profissional com maior taxa de crescimento nos EUA (dados de 2011 [2][Fig.1]). O que se pode questionar é se o país precisava de tantos cursos de Engenharia Biomédica. Não pude verificar mas há 10 anos falava-se num estudo, feito pela UM em preparação para a criação do seu curso, em que se mencionava uma necessidade de cerca de 200 Engenheiros Biomédicos. Não sei qual o horizonte temporal em que se inseria esta necessidade. 4 E a empregabilidade? Mas há empregos para os Engenheiros Biomédicos? Ou estão todos em bolsas e a fazer doutoramento? Quantos tiveram que sair de Portugal? E quantos têm profissões ligadas ao curso? Doutoramento Bolsa de Investigação Procuro aqui responder a estas perguntas. Relativamente aos diplomados da UC, utilizei os meus dados obtidos quer a partir da informação contida no grupo dedicado aos antigos alunos do curso de Engenharia Biomédica da rede profissional LinkedIn [3], quer a partir de informações recolhidas junto dos antigos alunos. Abrangem os diplomados até 2012 / 2013 (N=264) [Fig. 2]. Entidade / Empresa Fig. 3 Empregabilidade da UM Consultadoria A comparação entre os três cursos não é imediata nem fácil, devido às diferenças nas amostras e no tratamento dos dados. Pode-se verificar que a percentagem de diplomados fora de Portugal é relativamente baixa. No caso da UC é possível detalhar as actividades destes ex-alunos: 22 são estudantes de doutoramento, 5 estão a fazer post-doc, 2 são investigadores em laboratórios e 18 trabalham em empresas. As percentagens de ex-alunos no sistema científico não diferem muito: IST: 34%; UM: 56.3% (os dados sugerem que 15% são investigadores em entidades/empresas); UC: 35%. Mais importante, a evolução temporal dos dados mostra uma maturação da empregabilidade dos cursos e a crescente aceitação dos Engenheiros Biomédicos no sector empresarial. No caso da UC, a percentagem de ex-alunos dentro do sistema científico chegou a ser superior a 50%. Especialista de aplicação / produto Hospitais: Gestão de Projectos e Equipamentos I&D: Empresas Outros Bolsas de Investigação Estudantes de Doutoramento Post-Doc Desempregados e situação desconhecida Fig. 2 Empregabilidade da UC 5 Há a questão de saber se os Engenheiros Biomédicos estão a realizar tarefas de Engenharia Biomédica. No caso dos diplomados da UC é fácil de responder: 39% não estão. A grande maioria trabalha em diversas de consultadoria. Já a consulta dos dados relativos ao curso da UM mostra que apenas 17,3% da amostra de ex-alunos não está ligado à área da Engenharia Biomédica. Não foi possível obter esta informação para os diplomados do IST. Podemos ver estes dados de duas formas. Por um lado a constatação que não existem em Portugal empregos relacionados com a Engenharia Biomédica para todos os diplomados. Esta situação agudizou-se com a crise económica que, entre outras consequências, terminou com as contratações no sector público da saúde e adiou muitos investimentos privados nesta área. Por outro lado, verifica-se que a formação e as competências adquiridas pelos diplomados em Engenharia Biomédica permitem-lhes desempenhar funções noutras áreas da Engenharia. Isto é um dado muito relevante para um mercado de trabalho em que a flexibilidade e a adaptabilidade são qualidades procuradas e reconhecidas. O que os dados mostram é que os cursos de Engenharia Biomédica têm boa empregabilidade. Importa referir que os estudantes de Engenharia Biomédica podem estabelecer “Student Branches” da IEEE-EMBS nos seus estabelecimentos de ensino [9]. Na realidade basta um estudante para estabelecer um “Branch”! Os benefícios para os estudantes incluem vários recuros relacionados com a Engenharia Biomédica e a possibilidade de receberem suporte financeiro da IEEE-EMBS para a realização de eventos. Miguel Morgado Doutorado em Física e Coordenador do Mestrado em Engenharia Biomédica da Universidade de Coimbra Associações Profissionais A existência de associações profissionais capazes de promover a profissão, apoiar o desenvolvimento profissional e reconhecer a excelência é particularmente importante para os novos cursos. Um curso novo enfrenta sempre o desafio de obter o reconhecimento do mercado de trabalho. Muitos empregadores não conhecem as capacidades e competências dos Engenheiros Biomédicos. Nos últimos anos, a associação mais activa na promoção dos Engenheiros Biomédicos foi o Capítulo Português da IEEE-EMBS [7]. O IEEE é a maior associação profissional do mundo dedicada ao desenvolvimento e inovação tecnológica. A IEEE Engineering in Medicine and Biology Society (EMBS) é a maior sociedade internacional de Engenheiros Biomédicos, congregando 9100 membros em 97 países [8]. O Capítulo Português desta associação organizou em 2011, 2012 e 2013 o Encontro Nacional de Bioengenharia, tendo já anunciado a realização do 4º encontro no Porto, de 26 a 28 de Fevereiro de 2015. Estes eventos têm congregado pessoas e entidades do tecido académico, empresarial e clínico, ligadas às disciplinas da Engenharia Biomédica e sido um espaço para a divulgação e promoção das suas actividades. Têm ainda sido um fórum para a apresentação de trabalhos realizados por estudantes finalistas e recém-graduados dos cursos de Engenharia Biomédica. Referências [1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Engenharia_biom%C3%A9dica. [2] http://www.nytimes.com/2011/04/17/education/edlife/edl-17conted-t.html?_ r=3& [3]https://www.linkedin.com/groups?home=&gid=4706248&trk=my_groups-tilegrp [4] http://oe.tecnico.ulisboa.pt/files/sites/24/JEBIOMED_2012_OEIST.pdf [5] nebm.ist.utl.pt/repositorio/download/2230/1 [6] http://www.gaeb.pt/uploads/1/8/8/0/18802844/estudo_de_empregabilidade_ de_engenharia_biomdica.pdf [7] www.facebook.com/embspt [8] http://www.embs.org/ [9] http://www.embs.org/member-communities/students Todas as referências web foram consultadas em 16-09-2014. 6 AFINAL O QUE É O ÉBOLA? O surgimento do vírus Ébola remonta ao ano de 1976 no Zaire (actual República Democrática do Congo). Na altura, o vírus vitimou cerca de 318 pessoas no Zaire e 284 no Sudão. O vírus ressurgiu recentemente atingindo países como a Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri ganhando assim destaque na imprensa nacional e internacional. Taxonomicamente o Ébola é um vírus da família Filoviridae do género Ebolavirus. Actualmente são conhecidas cinco estirpes do vírus Ébola. O Ebola virus (Zaire ebolavirus); Sudan virus (Sudan ebolavirus); Taï Forest virus (Taï Forest ebolavirus, designado Côte d’Ivoire ebolavirus); Bundibugyo virus (Bundibugyo ebolavirus) enquanto o Reston virus (Reston ebolavirus), é infeccioso apenas em primatas não humanos. Morfologicamente é considerado um vírus pleomórfico. Apresenta formas em “6”,“U” ou círculo. Relativamente ao comprimento este pode medir cerca de 14000 nanómetros tendo um diâmetro de 80 nanómetros. Geneticamente o vírus é composto por uma cadeia simples de RNA negativo. O vírus é replicado em células hospedeiras através da maquinaria celular da mesma. No entanto as estratégias de replicação não são inteiramente conhecidas. A transmissão do Ébola pode ser considerada unidireccional, ou seja, prolifera-se de animais para humanos e nunca o contrário, sendo este tipo de transmissão designado por zoonose. O agente patogénico hospeda-se no animal, raramente infetando o mesmo, podendo permanecer indetectável durante anos. Os morcegos são considerados verdadeiros hospedeiros de organismos patogénicos, vistos que são suspeitos de estarem ligados a inúmeras zoonoses, inclusive a do Ébola. Entre estes, merecem destaque o vírus Nipah que infectou cerca de 100 pessoas na Malásia, enquanto a síndrome de respiração aguda, em 2003 declarou o óbito a 774 pessoas. Além destes, os morcegos são suspeitos de hospedar o vírus Hendra cujos casos surgiram na Australia em 1994, bem como o síndrome respiratório do Médio Oriente em 2012 que assinou a certidão de óbito a 298 pessoas, de um total de 721 infectadas. Recentemente, estas duas espécies têm tendência a partilhar o mesmo habitat, fruto da desflorestação de florestas na zona oeste de África para a construção de fazendas ou complexos habitacionais, existindo assim uma maior predisposição para o contacto e consequente infecção. O contágio e consequente infecção em humanos só se verifica quando o vírus entra em contacto directo com o sangue ou fluídos corporais como a urina, saliva, fezes, vómito e sémen de uma pessoa infectada com o vírus Ébola. Objectos como seringas ou agulhas não esterilizadas e que estejam contaminadas também podem ser um veículo de infecção. Animais selvagens infectados que sejam usados com propósitos alimentares também são veículos de propagação do Ébola. No entanto, o vírus não é transmissível por via aérea. Os sintomas associados ao Ébola assentam em estados febris elevados, dor de cabeça acentuada, dor muscular, fraqueza, diarreia, vómitos, dor abdominal, hemorragia. Actualmente não existe uma vacina que combata o vírus Ébola, estando algumas vacinas ainda em fase de investigação e desenvolvimento como é o caso da ZMapp. No entanto, de acordo com algumas opiniões a vacina mais eficaz é a aplicação de medidas simples como uma boa higiene, alimentação e vitaminas C e D nas doses recomendadas, bem como infraestruturas médicas adequadas. Contudo, embora sejam medidas simples, são difíceis de aplicar nos países assolados pelo vírus em parte fruto das dificuldades e desigualdades socioeconómicas, dos mesmos. Bruno Marques 7 Tomar um comprimido e ficar um génio. Por que não? Seremos nós bons o suficiente, ou podemos ainda melhorar? Será que temos nos de restringir a métodos tradicionais, como estudar ou treinar, ou podemos usar a ciência para aumentar as nossas capacidades mentais e físicas mais directamente? Mais, não é o caso que não existe interesse em técnicas que melhorem o desempenho da mente humana. É sabido que uma boa dieta, fazer exercício físico e dormir bem é benéfico para o bom funcionamento mental. Pode-se argumentar que qualquer método educativo é uma forma de aumentar a capacidade de aprendizagem do cérebro, ajudando a que os alunos sejam capazes de compreender mais facilmente assuntos complexos. Se a cultura actual não se opõe à introdução de melhorias da capacidade mental humana, qual será a razão pela qual não vemos um interesse significativo nesta área? O possível argumento libertário diz que os governos mundiais regulam em demasia a acção humana, pondo uma forca no pescoço daqueles que querem trazer ao mundo as suas invenções. Esta própria regulamentação excessiva poderá dever-se a uma cultura adversa ao risco, preferindo incrementações de tecnologias conhecidas àquelas que alterem o paradigma actual. Como libertário tenho a tendência para acreditar neste argumento, mas, como em todas as perguntas que valem a pena responder, a resposta nunca é tão simples e poderá depender de uma multitude de factores. As questões éticas que este tipo de produtos levanta são extensas, de facto, todo o tipo de melhoramentos aplicáveis à espécie humana, e.g., modificação genética, mas muitas não sobrevivem ao escrutínio. Grande parte das objecções levantadas giram à volta de visões sobre qual a relação entre o Homem e a natureza, onde são levantadas preocupações sobre O interesse em ética aplicada a questões de melhoramento humano tem vindo a aumentar na última década devido a avanços biomédicos que sugerem a grande possibilidade de utilizar a medicina e a tecnologia para moldar, manipular, e melhorar muitos aspectos da biologia humana. Uma das áreas na qual este debate se centra é a questão da utilização de agentes farmacêuticos para aumentar a capacidade cognitiva em pessoas saudáveis. Tendo em conta as possíveis consequências sociais, económicas e pessoais, que a utilização destes agentes, chamados de nootropics, poderá trazer, é de notar a falta de interesse académico e empresarial no desenvolvimento e estudo de novos e melhores produtos. Actualmente existem apenas três categorias de nootropics: estimulantes, utilizados medicamente para tratar casos de deficiência de atenção; inibidores de acetylcolinesterase, utilizados para combater os efeitos nefários de doenças como o Alzheimer; e o Modafinil, um único medicamento bastante eficaz na luta contra a narcolepsia. No entanto, de acordo com o estado actual do estudo sobre a sua eficácia quando usados em indivíduos saudáveis, todas as provas apontam para que o seu efeito seja negligivel, mas que nenhuma conclusão pode ser tomada, uma vez que a população utilizada em muitos dos estudos é demasiado pequena para que alguma conclusão possa ser chegada. São à partida óbvias as extensas consequências positivas que o desenvolvimento de nootropics eficazes e baratos podem trazer, mas por que razão não existe maior interesse no seu desenvolvimento? A incubadora de startups mais conceituada do mundo, o YCombinator, nota esse desinteresse num artigo onde explora em que tipo de startups procura investir, notando que o desenvolvimento de novas drogas tem-se tornado mais lento e caro. 8 a alteração do que é chamado de 'natureza humana', ignorando que todos os avanços tecnológicos alcançados pela nossa espécie são tentativas de nos libertar das correntes impostas pela própria natureza. Nesta visão, a invenção da agricultura é vista como não desejada. Também são levantadas preocupações sobre o que é chamado de 'fazer de deus', não pela sua conotação teológica, mas pela excessiva confiança colocada no conhecimento, mostrando ceticismo sobre o que seria feito com o acesso a estas capacidades. Esta objecção é mais uma crítica a uma atitude do que ao próprio assunto, uma vez que é também regularmente levantada em questões de alteração ambiental. No entanto, não é suficiente, uma vez que como crítica pode ser utilizada em qualquer questão levantada sem qualquer alteração. Questões de segurança são talvez as mais pertinentes, já que o risco de consequências malignas é uma possibilidade presente em grande parte das modificações, sejam estas médicas ou não, apesar de não inerente. O sistema de avaliação de risco médico é baseado na comparação do risco do tratamento em relação ao possível benefício na redução do risco de morbidade alcançado pelo sucesso do tratamento. Este modelo é adverso aos produtos aqui discutidos, uma vez que estes não reduzem o risco de morbidade e, visto que os seus benefícios podem ser não-terapêuticos, s u b j e c t ivo s, e dependentes do contexto. Dentro deste sistema, as pessoas para as quais os medicamentos existentes se encontram disponíveis são aquelas que se encontram doentes; o resto vê vedado o seu acesso. Uma pessoa saudável terá pouco uso para medicamentos contra o cancro, mas porque razão não pode esta pessoa obter medicamentos com possíveis efeitos benéficos como o Modafinil, mencionado anteriormente, ou toda a classe dos racetams? A pergunta fica por responder. No entanto, exemplos de outros modelos de avaliação existem. Na cirurgia cosmética, a autonomia do paciente suplanta os possíveis riscos, mesmo quando o procedimento não reduz morbidade. Um modelo similar poderá ser usado no contexto dos produtos de melhoramento cognitivo, com o utilizador a ter o poder de decidir se os benefícios valem a pena, tendo em conta os possíveis riscos, baseando-se nos conselhos de médicos profissionais e na sua própria estimativa de como a intervenção poderá afectar os seus objectivos pessoais. Vivemos numa sociedade de conhecimento. Nesta nossa era, uma pessoa sobrevive e floresce pelo conhecimento que possui e, por consequência de um mundo nunca parado, pela capacidade de se adaptar a novos desafios. Não é necessária uma imaginação fértil para perceber a importância de vitalizar o interesse em produtos e terapias que sejam capazes de melhorar a cognição humana. O retorno exponencial do possível conhecimento e inovação libertado pelo poder racional que ficaria disponível seria tal que talvez fosse possível inverter a estagnação tecnológica das últimas décadas. Mais importante, e a razão pela qual é importante apoiar as mudanças que tornem possível o desenvolvimento destas invenções, é o impacto positivo que teria na vida das pessoas. Talvez não será o caso que ao tomar um comprimido será possível resolver equações diferenciais mentalmente, mas, com acesso a um melhor cérebro, talvez não será tão complicado resolvê-las e continuar a usar essa nova maquinaria para perceber problemas cada vez mais complicados e importantes. João Eira 9 psicomotricidade: uma visão holística do ser humano O desenvolvimento humano não é unifatorial, pelo que está dependente da conjugação de diversos fatores, entre eles os cognitivos, afetivos, motores e psicossociais, num processo que se caracteriza pela sua continuidade e pela sua duração durante toda a vida. Neto, Almeida, Caon, Ribeiro, Caram & Piucco, 2007 Partindo deste pressuposto, surge a Psicomotricidade que tem sido área de convergência de vários campos e conhecimentos que levaram a diversas teorias e práticas de intervir com o corpo (Machado & Tavares, 2010). O corpo é visto, no seu âmago, como a identidade de cada um que se manifesta e expressa através das emoções, sentimentos e movimento que permite a compreensão do exterior através da ação e do movimento (Magalhães, 2008; Fontoura, 2011; Silva, 2012). De acordo com a conceção de Merleau-Ponty, mais do que ter um corpo, a pessoa é o seu corpo. E o corpo, na materialidade orgânica de que se faz, é a pessoa corporeamente sujeito dum tempo e dum espaço (…) Silva, 2012, p. 207 10 Na sua génese, o termo psicomotricidade nasce do campo médico, mais precisamente neurológico, quando surgiu a necessidade de nomear as várias áreas do córtex cerebral que ultrapassavam as regiões motoras. Este avanço permitiu constatar que existiam disfunções graves, mesmo sem que o cérebro estivesse lesionado, ou sem uma lesão completamente localizada, doravante interpretados como distúrbios psicomotores (Lussac, 2008). A psicomotricidade pode ser definida como o campo transdisciplinar que estuda e investiga as relações e influências, recíprocas e sistemáticas, entre o psiquismo e a motricidade do ser humano. Fonseca 2004 O psiquismo é entendido como o conjunto do funcionamento mental, ou seja, integra as sensações, perceções, as emoções, os afetos, as aspirações, os medos, as simbolizações, entre outros; e, ainda, a complexidade dos processos cognitivos, relacionais e sociais. Por sua vez, a motricidade é entendida como o conjunto de expressões mentais e corporais que envolvem funções tónicas, posturais, somatognósicas e práxica. A terapia psicomotora tem preferencialmente duas direções. Por um lado, pretende a procura de significado na profundidade da expressividade corporal, ou seja, a desconstrução da significação inerente e inconsciente à expressão corporal e, por outro lado, pretende a elaboração de princípios de ação, favorecendo o desenvolvimento harmonioso da pessoa (Aucouturier, 1990). A intervenção psicomotora tem como preocupação nuclear a criação de condições que permitam fazer emergir, facilitar e enriquecer o potencial de aprendizagem e adaptação do indivíduo (Fonseca, 2001). Por isso, constitui-se como uma intervenção por mediação corporal, que aborda sistémica e holisticamente o ser humano, proporcionando uma resposta indispensável em situações onde a adaptação se encontre comprometida e onde é fundamental uma compreensão dinâmica do funcionamento do sujeito nos seus vários domínios (Fonseca & Martins, 2001). Tendo em conta esta visão, importa referir que o raciocínio tecnológico tem vindo a marcar um importante avanço em algumas das áreas mais importantes da atividade humana, procurando superar os condicionalismos colocados pela natureza Rodrigues, 2008, p. 12 Desta forma, a superação do corpo foi (e é) realizada em larga medida pelo uso de diferentes técnicas que permitirão a criação de extensões, prolongamentos e ampliações de suas funções Rodrigues, 2008, p. 23 Isto permitirá o melhoramento do papel da Psicomotricidade, proporcionando-lhe ferramentas cada vez mais completas e integradas da compreensão do ser humano, i. e., contribuindo cada vez mais para a compreensão de que o corpo e o movimento são inseparáveis da pessoa como ser holístico, premissa base da psicomotricidade como ponto de partida para o desenvolvimento das estruturas emocional, psíquica, mental e espiritual (Santos, s/d cit in Branco, 2010). Em suma, numa perspectiva holística e integradora de várias áreas de conhecimento, a Psicomotricidade surge como forma de consciência que fornece ao sujeito uma organização, diminuindo disfunções que têm na sua maioria origem psíquica e permitindo aumentar o seu grau de participação e adaptação ao envolvimento (Thurin, 2010). ana inês silva ana sofia barradas Reabilitadoras Psicomotoras Licenciatura em reabilitação psicomotora pela Faculdade de Motricidade Humana “(...) pensar, analisar, compreender, agir, tratar, enfim, encarar o corpo com ou sem deficiência, são coisas que devem ser feitas da mesma maneira, acreditando nos seres corporais que somos e respeitando-os. Todos somos movimento em potencial, apaixonamo-nos e vivemos no mundo das relações, afinal somos todos corporeidade viva e existencializada.” Moreira, Porto, Carbinatto & Simões, 2008, p. 134 11 Dos ganchos às próteses biónicas… Desde os tempos gregos e romanos que existem inúmeras referências históricas de próteses. Por exemplo, existe a referência histórica de Marcus Sergius, um general romano que perdeu a mão direita na segunda Punic War. Segundo consta, este substituiu a mão por uma prótese de ferro, com o propósito de ser capaz de segurar o seu escudo e poder voltar ao campo de batalha. Existem ainda os piratas retratados sempre com ganchos de madeira ou mãos de metal no lugar onde se deveria encontrar a sua mão. Este acabou por se tornar o standart das próteses durante grande parte da nossa história. Contudo, com o avanço da tecnologia e da sociedade, as próteses e a sua necessidade também sofreram grandes evoluções. Até há relativamente pouco tempo, estas eram constituídas por plásticos avançados e compostos de fibra de carbono. Tais materiais tornam as próteses mais leves, mais fortes e mais realistas. Apesar dos avanços tecnológicos ao longo do tempo, as próteses ao longo do tempo têm mantido a mesma estrutura base: o pylon - o esqueleto que fornece suporte estrutural; a meia - porção da prótese que fica em contacto com o membro residual do sujeito, e é responsável por transmitir a força da prótese para o corpo; e o sistema de suspensão mantém a prótese ligada ao corpo, normalmente por sucção. 12 Apesar dos componentes básicos, por norma, serem iguais, cada prótese tem um design único e específico para um determinado indivíduo, de modo a adaptar-se às necessidades anatómicas do sujeito. As próteses prestam bastante atenção à ligação entre o membro residual e a meia. Após uma amputação, o membro residual de um paciente encolhe ao longo dos meses, uma vez que a inflamação diminui e os músculos começam a atrofiar. Deste modo é preciso, não só uma grande precisão aquando das medições para a produção do aparelho, mas também uma monotorização cuidada ao longo da vida do sujeito. Apesar de todos os recentes avanços tecnológicos, a maior par te das próteses fabricadas hoje em dia são passivas, ou seja, não têm a capacidade de gerar activamente propulsão durante a marcha. Devido a este facto, sujeitos amputados gastam, por norma, 30% mais energia durante a marcha do que o normal. Houve então a necessidade de desenvolver novas próteses anatómicas e fisiologicamente mais próximas de um membro real. Estas novas próteses inspiraram-se, então, na maneira em como o pé e o tornozelo trabalham em conjunto. Quando andamos, os ligamentos e os tendões guardam a energia que é produzida quando o pé atinge o solo. Essa energia é depois usada para impulsionar o pé para a frente. Investigadores reproduziram esta estratégia fisiológica com uma série de molas e um pequeno motor a bateria. A energia cinética da marcha do sujeito é armazenada na mola assistida pelo motor e é posteriormente libertada para ajudar a impulsionar o pé para a frente enquanto empurra o chão. Surgem então as próteses biónicas (cujo nome surge da aplicação de métodos biológicos e sistemas encontrados na natureza à engenharia e tecnologia modernas). Um dos seus propulsores é Hugh Herr, um professor e investigador do MIT que perdeu ambos os membros inferiores aos 17 anos durante uma escalada ao Mount Washington, dedicando assim a sua vida profissional ao desenvolvimento de próteses cada vez mais reais e funcionais. No entanto, este novo tipo de tecnologia traz consigo questões éticas que dividem a sociedade. Muitos questionam: Até que ponto é que um ser humano pode ser modificado e ainda ser considerado humano? Para a maioria o critério baseia-se no facto de a modificação melhorar ou interferir com a capacidade do sujeito se relacionar com outros. No entanto, esta é uma questão ainda bastante recente, não havendo por isso um consenso geral a nível moral, ético e científico. Rita Viegas 13 tamera - um exemplo a ter em conta? Tamera pode considerar-se a terra do amor livre e do estilo de vida simples, mas não só. Ainda há pouco tempo um mero terreno árido e inabitável, esta larga propriedade de 136 hectares é hoje a base da sustentação de 150 pessoas que agora lá habitam, tanto a nível alimentar como energético. A atmosfera de tranquilidade e bem-estar presente convidam-nos a questionar o nosso estilo de vida. Numa sociedade tão apegada aos bens materiais e ao sentido de carreira profissional, será que ainda é possível viver sem estas directrizes? Iniciado em 1995, este pequeno exemplo de sociedade guia-se por noções como o equilíbrio com a natureza e auto descoberta, recorrendo à tecnologia sempre que necessário. Estando a água intimamente ligada à vida, o seu ciclo e armazenamento foi o primeiro a ser tomado em conta: com a ajuda de máquinas, foram construídos canais e reservatórios de água que fazem com que a população tenha acesso a água potável durante todo ano. Esta água permitiu também a criação de plantações, algo que parecia impossível para um terreno seco em pleno Alentejo. Hoje, dominada pelo verde, a região produz grande parte do que consome, permitindo autosustentabilidade a nível alimentar. Este desejo por uma pegada ecológica baixa não se fica por aqui. Em termos energéticos, o aproveitamento da luz solar é o grande pilar, 14 aproveitando o facto de que o Alentejo é uma das zonas com mais sol da Europa. Os exemplos deste aproveitamento são inúmeros. Desde um grande espelho parabólico que acompanha o movimento do sol e redirecciona os raios solares para um depósito de água, fervendo-a em menos de dois minutos, até a um motor Stirling, que utiliza as diferenças térmicas de um fluido para fazer mover um êmbolo para criar electricidade ou bombear água, dependendo do propósito que se quer. É certo que várias sociedades, se não todas, apresentam indícios de mal estar, cenas de violência e opressão, mas qual a causa destes mesmos comportamentos? Em Tamera acredita-se que estes residem na mente humana, e que sem se eliminarem é inútil tentar melhorar a sociedade pois não se conseguirão vencer estes obstáculos. Para esse aperfeiçoamento ao nível social e pessoal, os assuntos não poderiam deixar de ser discutidos abertamente, seja qual for a natureza do problema. A verdade é que quando partilhados, se os problemas não desaparecerem, pelo menos parecem ficar mais leves. Este local não é apenas uma experiência a nível social e tecnológico, um possível protótipo para o mundo, é também um espaço de procura e aperfeiçoamento interior. diniz sá 15 Efeito de Leidenfrost Calma, calma! Não fiquem já assustados com o nome deste efeito, pois certamente já lidaram com ele, mais do que uma vez. O efeito de Leidenfrost é nada mais do que o reboliço de uma gota de água num tacho muito quente onde a gota facilmente desliza. Foi isso que o médico alemão Johann Gottlob Leidenfrost observou e publicou num artigo intitulado “A Tract About Some Qualities of Common Water”, em 1756. Mas em superfícies não planas, o que acontece? Até à entrada deste milénio conhecia-se o comportamento sob superfícies planas deslocando-se basicamente como um Hovercraft. A camada de vapor debaixo da gota permitia-lhe deslocar-se rapidamente em qualquer direção e sentido, desde que fossem garantidas as mesmas condições da superfície do sítio de onde partira. O fator temperatura Porém, só acontece a uma gama de temperaturas muito precisa, acima do chamado ponto de ebulição de filme ou ponto de Leidenfrost. Mas até chegarmos a esta temperatura a gota de água passa três etapas principais: Núcleos de ebulição, Transição da ebulição e Ebulição de filme. Nada de especial, é o que devem estar a pensar, porém, em 2006 foi publicado um artigo na Physical Review Letters de certa forma revelador. O artigo intitulado “Self Propelled Leidenfrost Droplets” (em português, Gotas auto propelidas sob o efeito de Leidenfrost) expunha que diferentes líquidos desempenhavam um movimento auto propelido quando postos em contacto com superfícies quentes com uma topologia assimétrica. No estudo foi observado que as gotas adquiriam uma aceleração até 1 - 2 m/s2, subiam planos inclinados e mantinham uma velocidade de 5 cm/s sob distâncias até 1 m. Na primeira etapa temos o aparecimento de algumas bolhas de vapor isoladas que se vão organizando depois em colunas de vapor mais concisas. Continuando a aumentar a temperatura da placa de aquecimento, a gota entra na etapa da transição da ebulição. Esta apresenta uma curva da relação fluxo de calor em função da temperatura da superfície da placa um pouco paradoxal, isto porque apesar da temperatura da placa de aquecimento continuar a aumentar, o fluxo de calor diminui. Tal facto deve-se principalmente às bolhas de vapor que vão atravessando e surgindo pela gota de água. Como o vapor de água possui uma capacidade térmica mássica menor do que a água no estado líquido, este irá atuar como um isolador retardando assim a troca de energia entre a placa de aquecimento e a gota de água. A última fase inicia-se no ponto em que a própria superfície onde está a gota possui uma temperatura tão elevada que põe em ebulição a camada de água que está imediatamente em contacto com ela. Fazendo assim com que esta camada de vapor, que surge na base da gota, a eleve e ponha o resto da gota num estado de flutuação. Tal como já foi dito, o vapor de água isola a gota da superfície que está a altas temperaturas (aproximadamente acima dos 200ºC), portanto irá aumentar dessa forma o tempo de vaporização da gota. Agora sim, temos uma gota sob o efeito de Leidenfrost! Ilustração 1 Transferência de calor para a água (1atm) À medida que o líquido se evapora na base da gota a pressão, que faz com que a gota levite, expele o vapor lateralmente. Este grupo de cientistas teorizou então que a superfície corrige parcialmente este fluxo de vapor, exercendo assim uma força de viscosidade na gota. Para quem não é muito familiar com forças de viscosidade pode pensar, de forma mais simplificada, que como vai haver um maior espaçamento entre a gota e a superfície no ponto A ao invés do ponto B, irá escapar-se mais vapor por A e, consequentemente, por conservação do momento linear, a gota irá deslocar-se neste caso no sentido esquerda-direita. Basicamente funciona como o recuo de uma arma ou canhão depois de disparado, sendo que aqui o que está a ser libertado no sentido contrário ao do movimento é o vapor de água. Este efeito é independente do material da superfície e da sua geometria precisa, sendo que estudos mais recentes afirmam haver uma correlação entre a profundidade dos cumes da superfície, o tamanho da gota e o impulso dado a esta para se deslocar. Gotas que desafiam a gravidade Devido então, à força de viscosidade exercida pelo fluxo de vapor da gota, esta consegue com facilidade contrariar a força gravítica, subindo planos inclinados. Contudo esta característica não está disponível para qualquer gama de temperaturas, pois um aumento da temperatura da superfície aumenta também a espessura da camada de vapor e consequentemente a gota perde a aderência necessária à superfície para conseguir “trepar” estes cumes [Fig.1]. Mas atenção, a força da gravidade nunca poderá ser desprezada, pois é ela que garante que haja um contacto permanente entre a gota e o serrilhado da superfície. Caso isto não se verifique também não iremos ter uma força de viscosidade aplicada. Desde a publicação deste artigo já surgiram muitos outros, é caso disso, um artigo que relaciona o som emitido pela gota durante a ebulição de filme e o tempo de vida da mesma. É esperado que continuem a surgir novos artigos neste campo científico que abarca tanto a mecânica de fluídos e como a termodinâmica. O efeito de Leidenfrost aplicado Porém, o entendimento desta matéria por si só não basta e já há ideias de algumas aplicações, nomeadamente no arrefecimento de microchips. Nestes pequenos aparelhos, os sistemas de arrefecimento atuais podem ser demasiado complexos ou grandes demais em comparação com a estrutura do chip. Bastaria integrar um circuito fechado com um líquido refrigerante bastando apenas uma superfície serrilhada no local onde exista o calor residual e um condensador para reutilizar o vapor do líquido. Seria um sistema muito eficaz pois não haveria peças móveis, tudo o que bastava era que os canais do circuito atingissem o ponto de Leidenfrost por acumulamento da temperatura residual do chip. Esse líquido refrigerante é que iria tratar de começar a mover-se e arrefecendo o circuito. E agora? Um perfil peculiar Esta gota possui um formato muito específico que lhe dá propriedades ainda mais curiosas. Ela apresenta um perfil convexo no seu topo e côncavo na sua base. A camada de vapor possui uma espessura que varia entre 1mm na extremidade da gota e 2mm no seu centro. Esta camada de vapor está em constante fuga para a atmosfera sendo “recarregada” pela massa de água que está imediatamente acima. 16 Ilustração 2 Perfil de uma gota sob o efeito de Leidenfrost H. Linke, B. J. Alemán, L. D. Melling, M. J. Taormina, M. J. Francis, C. C. Dow- Hygelund, V. Narayanan, R. P. Taylor, and A. Stout. Self-propelled leidenfrost droplets. Phys. Rev. Lett., 96:154502, Apr 2006. Fig.1 - Vídeo Agora podem ir treinando a vossa pronúncia alemã, para quando virem alguém a cozinhar com algum tacho a temperaturas muito elevadas possam expressar: “Esse é o efeito de Leidenfrost!”. Tiago Leal Estudante de Física da FEUP 17 A INACREDITÁVEL “AVALIAÇÃO” DA CIÊNCIA A “avaliação” das unidades de investigação científica nacionais encomendada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) à European Science Foundation (ESF) revelou-se uma fraude. Perdeu-se a confiança num processo que devia ser um pilar do sistema científico nacional, confiança essa que vai demorar a restaurar. Custa a acreditar como é que uma agência que devia velar pela quantidade e qualidade do sistema científico nacional tenha mostrado um tão grande desinteresse pelo destino da ciência, ao colocar em prática um processo que prejudica inequivocamente a investigação nacional. Os Reitores de todas as Universidades já apontaram a falta de crédito da “avaliação”. Escreveram uma carta pública ao ministro Nuno Crato, que não lhes respondeu publicamente. Crato não podia aliás dizer grande coisa, pois contra factos não há argumentos. Ao permanecer silencioso, o ministro fugiu às suas responsabilidades. Quando saírem os resultados da segunda fase (para a qual foram já anunciadas quotas), veremos qual vai ser a reacção dos Reitores. Alguns desses resultados são desde já bastante previsíveis: o financiamento avultado de sectores da biomedicina da área de Lisboa. O processo da “avaliação” foi desde o início mal conduzido, em resultado de pre-concepções erradas dos actuais gestores da FCT a respeito do sistema científico português. Eles acham que esse sistema cresceu demais nas últimas duas décadas e que agora é preciso reduzi-lo (“podando-o” como disse o principal guru do processo de cortes em curso). De facto, o sistema cresceu – e tal era preciso pois estávamos na cauda da Europa – mas não cresceu ainda o suficiente, pois ainda estamos distantes dos padrões médios europeus. Estávamos, na área da ciência, num processo de convergência e a FCT decidiu interromper esse caminho de aproximação ao pelotão da frente. Era preciso envolver mais gente - em particular atribuindo mais bolsas a estudantes - em vez de menos. Fig.1 Ordenação relativa dos centros do país de acordo com os parametros da fct e o resultado da avaliação 18 Sem qualquer lógica (numa atitude não científica, pois foi mantida secreta por muito tempo) a FCT mandou a ESF cortar metade das unidades de investigação portuguesas, com base apenas em documentação. Impôs a priori uma quota de 50% das unidades a passar à 2.ª fase, a única que garantia acesso a um financiamento mínimo. A FCT, a meio do processo, decidiu, sem mais nem porquê, diminuir o número de avaliadores, fazendo com que a selecção dos centros (selecção, esclareça-se, entre a vida ou a morte!) se tornasse nas várias áreas e subáreas perfeitamente aleatória. Hoje sabe-se que alguns membros de painéis de avaliação, sem serem especialistas nos domínios em causa, decidiram sobre a extinção de centros, por vezes contra o parecer expresso de especialistas nas ciências em causa. Como se a destemperada 1.ª fase não chegasse, na 2.ª fase tudo piorou: houve de novo falsos especialistas e violação das normas da própria FCT quanto ao número de avaliadores. Eis aqui a mais completa negação da ciência: apontados erros grosseiros, esses erros não só continuaram como se tornaram ainda mais grosseiros. Um dos critérios da “avaliação” – devia ser o principal… - foi a produtividade científica, apurada pela Elsevier. Pois bem: os cortes cegos de 50% da 1.ª fase da “avaliação” contrariaram a imagem clara de boa produtividade nalgumas áreas, fornecida pelas tabelas da Elsevier. Quer dizer, a produtividade não foi levada em conta de maneira efectiva. Já depois de fechada essa fase – isto é, já depois de haver decisões - a FCT decidiu, sem qualquer explicação, mudar uma entrada importante nesses dados, designadamente o número de investigadores a tempo inteiro. A FCT nem sequer pediu desculpa pelo erro. E números que em muitos casos já eram muito bons, dados os escassos financiamentos disponíveis, passaram a ser excelentes. Mas as notas não mudaram para ninguém. É como se os resultados de uma experiência tivessem sido corrigidos de um factor de dois e as conclusões continuassem as mesmas. A Física é, entre todas as áreas científicas, um dos casos mais estranhos. Olha-se para os dados da produtividade e para os resultados e a conclusão só pode ser que não se percebe qual foi a lógica, se é que houve alguma, ao escolher 8 entre os 16 centros que se apresentaram à avaliação. A tabela ilustra esse facto ao mostrar a ordenação relativa (a escala na vertical não indica a pontuação absoluta, mas apenas a ordem) dos centros do país de acordo com os parâmetros da FCT (número de artigos publicados e respectivas citações, por exemplo) e o resultado da avaliação. As linhas a cheio indicam os centros que passaram, e as linhas a tracejado e a pontilhado aqueles que chumbaram, 19 sendo a nota dos que estão a tracejado “Bom” e os que estão a pontilhado “Razoável”. Um simples olhar mostra que não há relação alguma entre a produtividade científica e passagem à 2.ª fase. Centros mais produtivos chumbaram, enquanto centros menos produtivos passaram. Em consequência, se essa avaliação se mantiver, a Física em Portugal vai ficar praticamente acantonada em algumas instituições lisboetas. O Centro de Física das Universidades do Porto e Minho foi chumbado. Dois centros de Coimbra, o Centro de Física da Universidade de Coimbra (que resultou da fusão de dois centros de Coimbra, na lógica de anteriores avaliações da FCT) e o Centro de Instrumentação, Engenharia Biomédica e Física da Radiação, ficaram pelo caminho. Esses cortes arbitrários, entre outros, são maus para todos: para os estudantes, que vêem diminuídas as suas capacidades de escolha (serão obrigados a deslocar-se para Lisboa para fazerem pós-graduações em Física), para as Universidades, que se vêem privadas da acção de alguns dos seus cientistas mais produtivos, e são maus sobretudo para o país, que se torna ainda mais desigual. Há, como não podia deixar de ser, possibilidade de recurso. Muitas decisões estão retidas nessa sede, vendo-se agora a ESF (que, pasme-se, ameaçou com um processo legal uma investigadora espanhola que apontou defeitos na “avaliação” portuguesa!) impedida de participar na reavaliação. Desconhece-se qual é a nova entidade que a FCT contratou para a reavaliação nem qual é o teor do contrato. Se a via do recurso não funcionar, os tribunais serão chamados a repor a justiça, o que não será nada difícil dado o número e o teor das irregularidades administrativas já detectadas, que acrescem aos erros científicos. Vivemos num estado de Direito e uma denúncia ao Ministério Público foi apresentada por uma associação de docentes e investigadores. Vivemos também num estado democrático: os cidadãos podem intervir e os governantes podem ser mudados. Carlos Fiolhais Professor catedrático no Departamento de Física, Universidade de Coimbra trivialidades economia Qual é a diferença química entre o cabelo encaracolado e o liso? portugal e o futuro Todos nós sabemos que são inúmeras as diferenças entre o cabelo encaracolado e o liso. A sua maior diferença encontrase, no entanto, a nível químico, particularmente na estrutura das proteínas que o compõem. A queratina é a principal destas proteínas, sendo constituída por 18 aminoácidos, tendo a cisteína um papel especial devido à sua riqueza em enxofre. Os átomos de enxofre por vezes agrupam-se formando pontes de dissulfeto [Fig.1], causando a curvatura das fibras. Logo, quantas mais pontes de dissulfeto existirem mais encaracolado será o cabelo. Esqueleto polipeptidico CH2 Ponte de Hidrogénio O cabelo cresce a partir dos folículos, sendo que pessoas com o cabelo encaracolado tendem a ter os folículos em forma de gancho, em vez de folículos direitos, como acontece no cabelo liso. Pensa-se que a forma do folículo força a que as moléculas de queratina se juntem cada vez mais aumentando a probabilidade de se formarem pontes de dissulfeto. Ao contrário daquele, no cabelo liso as ligações são formadas entre os átomos que se localizam aproximadamente na mesma posição em cadeias de queratina vizinhas. O H. .. O C CH2 OH CH2 S S CH2 Ponte de dissulfeto No entanto, nem todo o cabelo encaracolado é natural. Para o encaracolar artificialmente usam-se rolos quentes no cabelo enquanto este se encontra molhado causando a formação de pontes de hidrogénio entre as moléculas de queratina. Contudo, as pontes de hidrogénio são, de longe, mais fracas do que as ligações de dissulfeto, e por isso o efeito é perdido quando o cabelo é exposto a água. Contudo, para se fazer uma permanente (encaracolar o cabelo a longo prazo) é necessário aplicar-se uma solução que contém ácido tioglicólico que tem a função de quebrar as pontes de dissulfeto, soltando os fios de proteinas. [Fig.2] Fig. 1 Cabelo De seguida, o cabelo é enrolado em peças cilíndricas e é aplicada uma solução de água oxigenada (H2O2) que ajuda a formar novas pontes de dissulfeto mas desta vez com posições novas. O mesmo pode ser aplicado para alisar o cabelo sendo que neste caso a segunda solução deve ser aplicada com o cabelo alisado. Rita Viegas Fig. 2 Solução Química que ocorre numa permanente 20 Presumindo que o António, estudante do ensino superior, acaba o curso com 23 anos, irá reformar-se aos 61 e morrer aos 80. Isto significa que o António vai trabalhar, e descontar para o Estado, durante 38 anos, disfrutando da sua reforma durante cerca de 19 primaveras. Ora, o futuro de Portugal reside na sustentabilidade económica do País. A maioria da população portuguesa aparenta estar descontente com o presente de Portugal, mas eu estou preocupado com o futuro desta nação como um todo, o agora é irrisório. Será que o António vai descontar o suficiente durante os 38 anos de trabalho para poder usufruir da reforma a seu tempo? Pois bem, o António recebe um salário médio de 2.500€ brutos ao longo dos seus anos de atividade profissional. Isto significa que recebe 30.000€ brutos anuais, excluindo a redução remuneratória de 3.600€ acrescidos de 4.400€ de subsídio de férias, o que dará cerca de 30.800€. No entanto, por uma questão de justiça e colocando as coisas em pratos limpos, temos que excluir os impostos. Temos de retirar a Retenção na Fonte de IRS, os descontos para a Segurança Social e a Retenção na Fonte Sobretaxa. A Retenção na fonte de IRS corresponde a cerca de 4.488€; a Segurança Social a 3.880€; a ADSE a 910€ e a Retenção na Fonte Sobretaxa a 504€, tudo isto dizendo respeito a valores anuais. Tirando este valor de impostos aos 35.000€, ficamos com 24.220€ líquidos anuais. O António paga anualmente 10.038€ de impostos. Pois bem, multiplicando este valor pelos seus 38 anos de trabalho, ficamos com 381.444€ referentes apenas a impostos. Com um salário de 2.500€ brutos mensais, a previsão de reforma é de 1.378€ líquidos [2]. Esta reforma multiplicada por 12 meses e 19 anos corresponderá a 314.184€. Este valor claramente mostra que o António vai receber mais de reforma do que alguma vez pagou de impostos, com uma diferença positiva de 67.260€. Neste estudo [3], o António, que trabalha no setor público, é casado e com 2 filhos, pagaria mais em impostos do que receberia na reforma. De salientar que o valor da reforma inclui uma inflação de 3%. pagar estes apoios sociais. Fazendo contas como se a Pensão de Invalidez fosse 374,10€ [4] e o rendimento social mínimo e o rendimento social de inserção fosse de 239,43€, podemos calcular que seriam necessários 9 e 6 meses de impostos da Maria para pagar uma pensão de invalidez e o rendimento social mínimo, respetivamente. Analogamente, seriam necessários 0,44 meses e 0,29 meses de impostos do António. Acrescidos a este valor estão os custos da Educação e Saúde Pública para os 23,1% da população não ativa. Sabendo que a população não ativa em idade ativa é 1.587.441[1], e presumindo que a população ativa é composta por Antónios, são necessários 13,37% e 85,6% dos ordenados da população ativa para pagar a Pensão de Invalidez e o Rendimento Social Mínimo, respetivamente. Se a população ativa fosse composta por Marias era necessário 259,53% e 166,1%, respetivamente, ou seja, a população portuguesa teria de ser maior do que realmente é. Uma vez que o ordenado médio português é 1212,3€ [1] brutos, a percentagem seria de 33,25% e 21,29%, respetivamente, da população portuguesa. O que significa que de 1/5 a 1/3 dos nossos impostos são alocados para o estado social. Frederico Borges Referências: [1] - www.pordata.pt [2] - www.bpipensoes.pt [3] - http://www.pwc.pt/pt/fiscalidade/simulador-irs.jhtml [4] - www.seg-social.pt/ De forma análoga, a Maria, em tudo igual ao António, exceto em salário: de 800€, iria descontar 520€ anuais em impostos. Fazendo um raciocínio análogo, descontaria 19.760€ ao longo dos 38 anos de trabalho. Recebendo uma reforma de 500€, receberia do estado 9.500€ durante os supostos 19 anos de vida de pensionista, donde retiramos, que a Maria paga mais 10.260€ de impostos ao longo da sua vida do que receberá em reforma. Mais ainda, note-se que, anualmente, o António paga 910€ de ADSE e a Maria 312€. Será que estes valores são suficientes para cobrir as despesas que o Estado tem com o António e a Maria? Aparentemente sim, porque além destes impostos pagos, o António e a Maria também pagam IVA de 23% em todas as transações que realizam. No entanto, sabemos existe 76,9% [1] de população ativa em idade ativa, que suportam financeiramente os restantes 23,1% da população que vivem através de pensões de invalidez, rendimento social mínimo ou rendimento social de inserção. Ou seja, os impostos do António e da Maria têm que 21 O Meu Corpo, os Meus Direitos MY LIFE MY HEALTH MY EDUCATION MY CHOICE MY FUTURE MY BODY MY RIGHTS A Amnistia Internacional, no início da campanha “O Meu Corpo, os Meus Direitos”, aquando da celebração do Dia Internacional da Mulher, destacou quatro casos que merecem a nossa atenção dentro da temática desta campanha, mostrando ser essencial agirmos imediatamente para que situações como as que seguidamente vamos descrever, não voltem a acontecer. Sahar Gul, do Afeganistão, contou-nos como com apenas 11 anos foi levada de casa, vendida e obrigada a casar com o que viria a ser o seu futuro marido, Ghulam Saki de 30 anos. “Casei-me com apenas 11 anos. Era muito pequena e não fazia ideia nenhuma do que era a vida de casada e o que acontecia depois de uma pessoa se casar. Quando as mulheres chegaram a minha casa para me levar, comecei a chorar. Não queria ir com elas. Mas ninguém se preocupou com as minhas lágrimas, ninguém me ouviu. Eu não queria ir viver noutro sítio, com outras pessoas. Estava tão assustada”, lembra. Algum tempo depois do casamento, Sahar desapareceu durante alguns meses, o que levou, após muita insistência por parte dos seus pais e dos seus vizinhos, a que a polícia local investigasse o seu desaparecimento, acabando por a encontrar na cave dos seus sogros, às escuras e quase inconsciente. Os seu sogros espancavam-na, queimavam-na com cigarros ou ferros em brasa e arrancavam-lhe as unhas e os cabelos, tudo isto porque Sahar se recusou a ter sexo com outros homens. O seu marido e cunhado fugiram e ainda se encontram em fuga. Por outro lado, os seus sogros foram detidos, acusados de tentativa de homicídio e condenados a dez anos de prisão. Porém, houve recurso por parte dos condenados que aquando da decisão de instância superior, no Tribunal de Cabul, viram a sua pena ser anulada. Apesar de um novo recurso os ter condenado a 5 anos de prisão, são histórias como esta, em que a violação de um direito humano é completamente banalizada e as autoridades pouco ou nada fazem para intervir, fundamentando a sua inacção por se tratarem de questões familiares, que a nossa intervenção é fundamental para mudarmos esta negra realidade. Sahar tem agora 16 anos e vive com a mãe num abrigo para mulheres. O seu objectivo de vida passa por se tornar activista dos direitos das mulheres, acabar com a violência no Afeganistão e pretende seguir a carreira política no seu país. Outro assunto urgente de direitos sexuais e reprodutivos é a realidade dura, cruel e injusta que as mulheres nepalesas vivem no seu país. Ora, no Nepal há uma generalizada discriminação de género que limita a capacidade das mulheres tomarem decisões sobre a sua saúde sexual 22 e reprodutiva e as impede de aceder aos cuidados básicos de saúde, como, por exemplo, ir simplesmente a um posto médico. Também há uma outra situação terrível com a qual as mulheres deste país se vêm confrontadas ainda muito jovens. Falamos do prolapso uterino (útero descaído), uma condição extremamente debilitante que impossibilita a execução das árduas tarefas diárias a que estão obrigadas. É o caso de Kopila, 30 anos, uma mulher brahmin que casou aos 17 e tem neste momento 4 filhos e alguns abortos feitos a mando do marido. Após 10 a 12 dias do nascimento dos seus filhos, Kopila já estava de novo a trabalhar, carregando muitos pesos, desde troncos de madeira a fardos de erva ou estrume e, assim, como resultado destas práticas, Kopila começou a sentir os primeiros sintomas de prolapso uterino. “ Doze dias após o parto, eu já estava a cortar madeira com um machado. O meu marido pediu-me água e tivemos uma discussão. Ele bateu-me com toda a foça. Não sei se o meu útero descaiu enquanto estava a cortar madeira ou se foi quando ele me bateu. Mas foi nesse dia que o problema apareceu. Isto foi há seis anos”, conta. Embora quisesse consultar um médico, Kopila só o pode fazer com a autorização do marido. Como não a obtém, vai secretamente com o seu irmão ao posto médico, onde o seu útero é colocado de novo no sitio e lhe é recomendado que descanse. Apesar de resolvida a situação temporariamente, o mais provável é o útero voltar a descer devido às condições a que está sujeita, sem a hipótese de descanso, sob pena de ser criticada e ostracizada pela própria família. Ora, se por um lado o prolapso uterino está normalmente associado a pessoas com mais idade, no país em questão a incidência é em mulheres muitos jovens, a maior parte das vezes ainda com 20 e poucos anos, como é o caso de Kopila. O Nepal precisa urgentemente de um plano de acção para erradicar o mais depressa possível estas violações dos direitos sexuais e reprodutivos, sendo para isso necessário, uma vez mais, uma consciencialização dos governos para a gravidade e urgência da situação. E, bem mais perto de nós, passa-se a próxima história que vamos contar. Em 2012, Savita Halappanavar foi hospitalizada com uma gravidez em risco de perda do feto. Por isso pediu nessa altura que lhe fosse permitido abortar, mas tal foi-lhe negado. Acabou por entrar em choque séptico e morreu ao fim de poucos dias depois de ter dado entrada no hospital. Apesar de uma investigação ter concluído que a morte de Savita se deveu a negligência médica, não tendo os médicos reconhecido que o seu estado clínico se estava a deteriorar, este caso voltou a chamar as atenções para as restritivas leis contra o aborto que estão em vigor na Irlanda. O aborto é ilegal na Irlanda, com exceção única nos casos em que exista um risco “real e substancial” para a vida – em vez de para a saúde – da mulher. Esta exceção foi regulada por um acórdão do Supremo Tribunal Irlandês, em 1992, emitido no caso de uma rapariga de 14 anos que ficou grávida em resultado de uma violação e à qual foi diagnosticado risco de suicídio. A interrupção voluntária da gravidez continua a ser ilegal para as mulheres que engravidam na sequência de violação ou incesto; caso a sua saúde esteja em risco ou ainda quando são detectadas más formações fetais. A lei consagra penas que podem ir até aos 14 anos de prisão pelo crime de aborto ilegal. Devido a este quadro legislativo, mais de 150 mil mulheres foram ao Reino Unido, entre 1980 e 2012, para fazerem um aborto – esta é uma média de 12 por dia. Só em 2012, o Ministério da Saúde britânico registou 3.982 mulheres que viajaram para o Reino Unido para interromper voluntariamente uma gravidez. A julho de 2013, no parlamento irlandês, foi aprovada uma lei do partido trabalhista que descriminalizava o aborto caso o nascimento representasse uma ameaça para a saúde ou vida da mãe. Infelizmente, a lei fundamental irlandesa atribui o mesmo valor à vida da mãe e do feto não vivo. Em Portugal o aborto foi despenalizado em 2007, no entanto este assunto ainda não é totalmente claro. O médico pode-se declarar objector de consciência, e não realizar o aborto. Este é um tema que tem muitos adeptos de ambos os lados e portanto gera discórdias acesas, no entanto julgamos que há uma questão fulcral. Uma mulher quando não quer ter um filho, não o tem, seja com ou sem ajuda médica. Esta é uma prática ancestral, que existe, sempre existiu, entre portas fechadas, mãos sujas e sangue. Quantas mulheres já não morreram porque decidiram não querer ter um filho? Não se tratará portanto de sermos contra ou a favor do aborto em si, pois não é por sermos contra ou a favor que ele deixará de existir… Trata-se essencialmente de sermos contra ou a favor da saúde feminina, sermos contra ou a favor da liberdade da mulher em ser dona do seu próprio corpo. (Próximo número da revista) Ana Filipa Santos e Ana Bastos Núcleo Amnistia Internacional de Coimbra 23 direito Bioética da Entre uma qualquer forma de sociedade e uma sociedade política distingue-se a organização de um Estado cujo escopo assenta na proteção e garantia dos seus indivíduos. Entre um Estado tirano e um Estado de Direito democrático releva a interpretação do conceito de bem comum. Naturalmente sujeito a subjectividade, o entendimento de bem comum pode ser simplificado, bifurcando-se da seguinte forma: bem comum utilizado como meio para atingir interesses particulares, ou bem comum enquanto fim em si mesmo. Esta última é a conceção em que radica um Estado cujo propósito termina e se inicia na dignidade da pessoa humana. A vida, valor jurídico absoluto e inviolável, é a pedra angular que fundamenta o complexo de normas que se articulam e conjugam a ordem juridical. O Direito é, portanto, indispensável à ordem juridical que, por sua vez, é indispensável à harmonia da vida em comunidade de homens. De entre múltiplos princípios-base a ter em conta, poderemos enumerar o do livre consentimento do paciente, da plenitude na informação que lhe é fornecida, a boa fé ou o da proporcionalidade na intervenção. Proponho uma reflexão quanto a este último; no domínio da justiça é a proporcionalidade entendida como máxima aberta, o que pressupõe a formulação de um juízo, que deverá englobar uma ponderação dos valores em conflito, atendendo ao seu circunstancialismo. Mas quais são mesmo os valores a levar à colação em cada caso? O imperativo categórico de Kant firmou o valor intrínseco da vida humana, que constitui indubitavelmente o epicentro a partir do qual se desdobram as estruturas lógicas do pensar em sociedade. Questiono, no entanto, se não podemos e devemos considerar também o valor intrínseco de outras formas de vida. Não será o planeta Terra, anterior e posterior à nossa existência, digno de enfoque? Não terão as montanhas e os mares, os insetos e as aves uma importância tão fundamental quanto indispensável ao equilíbrio do ecossistema? Desvanecer-se-á a infinitude do pensamento do Homem (naturalmente também a evolução da ciência), se se desvanecer a Natureza e os seus recursos. De forma a contornar uma indesejável sobre-exploração industrial, cumpre talvez determinar, tendo sempre como matriz a melhoria do bem-estar individualizado e a qualidade de vida em geral, quais os momentos em que é estritamente necessária a intervenção científica e em que situações se resvala para o que é conotado indispensável na nossa sociedade ocidental mas que, considerando sensatamente, é luxo. Emprego a palavra luxo no sentido daquilo que, para além de comportar irresponsabilidade pelos vindouros, não se traduz no puro acesso à felicidade do Homem, antes o empurra para a idealização de objectivos inalcançáveis, para um rolo de consumo que não termina nem se pretende que termine. Partindo da tutela da vida humana e da propriedade, o Direito tem vindo a constituir-se ao longo da história, expandindo-se em crescendo. É seu intento acompanhar as tendências e mundividências de cada era. O progresso da biociência e da tecnologia levanta novas fronteiras porquanto conflui com um valor indivisível como é o da vida. Por um lado, não pretende o Direito olvidar o progresso científico. Por outro, qual é a via? O que é mesmo o progresso? Requer-se que o Direito intervenha, que auxilie na tremenda tarefa de delimitação do conceito. Van Rensselaer Potter utilizou pela primeira vez a expressão “bioética”, em 1971, com referência ao estudo sistemático da conduta humana, do seu comportamento observado à luz de valores e princípios morais, quando colocado no domínio das ciências da vida e dos cuidados de saúde. Por se considerar indivisível a unidade física e psico-somática do indivíduo, urge, por motivos de justiça interjecional (que legado queremos deixar às gerações futuras?) ponderar qual a barreira limítrofe que a ciência não deverá transpor de forma a salvaguardar a complexidade de elementos que compõem a existência humana. Clarifico que jamais tomarei posição a favor de um retrocesso ou pacto tecnológico. A minha perspetiva subsume-se antes a uma ética científica criteriosa, estudada para que funcione verdadeiramente ao serviço do Homem e da humanidade, e nunca o inverso. Sofia Dias 2014, Sports Feature, 1st prize stories, Peter Holgersson 25 empreendedorismo NIS-Negócios de Impacto Social Solucionar problemas sociais durante muito tempo foi uma tarefa delegada aos governos e organizações da sociedade civil, no entanto, nos últimos anos temos observado o surgimento crescente de negócios dedicados a ocuparem esse papel. Cada vez mais empreendedores estão buscando desenvolver soluções para questões que afligem principalmente a população de baixa renda, e ao contrário do que se pode pensar, esses empreendedores não buscam unicamente o lucro, mas estão movidos pelo desejo de promover uma transformação social relevante buscando ir além de qualquer externalidade positiva que um negócio tradicional poderia proporcionar. Esses empreendedores são na verdade criadores de “Negócios de Impacto Social - NIS”, que nada mais são empresas que oferecem, de forma intencional, soluções escaláveis para problemas sociais da população de baixa renda. Conceito este cunhado pela ARTEMISIA www.artemisia.org.br/, uma organização fundada em 2004 com sede em São Paulo e Recife, que é pioneira na disseminação e no fomento de negócios de impacto social no Brasil. Em 2011, Michael Porter respeitado pesquisador da Harvard Business School, articulou o conceito de criação de valor compartilhado, no qual um negócio não deve gerar apenas valor económico, mas também valor social, para a sociedade na qual está inserido. Este conceito vai de encontro ao que se propõem os negócios de impacto social, uma vez que a criação de valor compartilhado não significa simplesmente responsabilidade social ou filantropia, mas sim uma nova forma de obter sucesso económico, no qual o papel de atender as reais necessidades da sociedade deixa de orbitar a periferia do que a empresa faz e passa a ser o centro do negócio. Porter chega a afirmar que este pode ser o momento para uma nova concepção de capitalismo. 26 A criação de negócios de impacto social, envolve vários aspectos chave, tais como o foco na baixa renda: no qual os produtos e serviços são desenhados de acordo com as necessidades e características da população de baixa renda, a intencionalidade: no qual possuem missão explícita de causar impacto social, o potencial de escala: que podem ampliar seu alcance por meio de expansão do próprio negócio; de sua replicação em outras regiões por outros atores; ou pela disseminação de elementos inerentes ao negócio por outros empreendedores, organizações e políticas públicas, a rentabilidade: que possuem um modelo robusto que garante a rentabilidade e não dependem de doações ou subsídios, o impacto social relacionado à atividade principal: no qual o produto e/ou serviço oferecido diretamente gera impacto social, ou seja, não se trata de um projeto ou iniciativa separada do negócio, e sim de sua atividade principal (core business), e por último a distribuição ou não de dividendos: pois em um negócio pode ou não haver distribuição de dividendos a acionistas, não sendo, porém, esse um critério para definir um NIS. A ARTEMISIA trabalha com o conceito de pobreza definido por Amartya Sem, nobel em economia, o qual a definiu como sendo a privação das capacidades básicas de um indivíduo, e não apenas o fato de possuir renda inferior a um patamar preestabelecido. A partir dessa perspectiva, os negócios podem gerar impacto social em cinco principais dimensões: diminuição do custo de transação; redução das condições de vulnerabilidade; ampliação das possibilidades de aumento de renda; promoção das oportunidades de desenvolvimento;e fortalecimento da cidadania e dos direitos individuais. Exemplos de negócios de impacto social, já são encontrados em várias partes do mundo, tais como o Grameen Bank em Bangladesh que tornou-se no primeiro banco especializado em microcrédito, cujo foco é gerar impacto social a partir da redução da pobreza, ao criar oportunidades de negócios para a parcela mais pobre da população, sobretudo mulheres, através do acesso ao crédito; a Nuru Energy na África, que através de um designer inovador desenvolveu lâmpadas LED portáteis, modular e recarregáveis, capazes de reduzir até 85% os gastos das famílias com iluminação; as Clinicas del Azucar no México, que são uma rede de clínicas de cuidados para diabetes de baixo custo, que proporcionam cuidados médicos preventivos e de apoio para mexicanos de baixa renda; a Vivenda no Brasil, que é uma empresa que fornece kits de reformas habitacionais para moradores de favelas urbanas, de forma simples, rápida e acessível, o que gera um impacto na diminuição da insalubridade dos moradores; e até mesmo a SPEAK Social em Portugal, uma escola de línguas e culturas de baixo custo, que tem por objetivo possibilitar que qualquer pessoa aprenda uma nova língua além de promover a integração de imigrantes nas cidades onde vivem, enfim são inúmeros os exemplos que podem ser citados. Escolas de negócio e tecnologia em todo o mundo como Harvard, Stanford, Columbia, Berkeley e INSEAD, já estão engajadas com o tema de negócios de impacto social. No Brasil, há 10 anos a ARTEMISIA trabalha na disseminação e no fomento dessa nova forma de fazer negócios e desde 2011 tem alcançado as principais universidades através do “Movimento CHOICE”, que é a maior rede de universitários engajados em negócios de impacto social do Brasil, e tem por objetivo disseminar a discussão sobre o tema nas universidades. Os “Embaixadores”, como são chamados os membros da rede 27 atuam na organização de workshops, palestras, cases e games a fim de estimular o perfil empreendedor do estudante através da disseminação de NIS. O Antonio Oliveira, ex-aluno da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Militar de Engenharia (IME) estuda atualmente na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra (FCTUC) participa do Movimento CHOICE como Embaixador, e está incumbido do desafio de disseminar a temática em Coimbra. A ARTEMISIA, tem atuado também como Aceleradora, selecionando empreendedores em potencial, e oferecendo-lhes suporte intensivo na busca de soluções para a consolidação de seus modelos de negócio, tendo acelerado mais de 40 negócios de impacto social, além de já ter capacitado 523 Embaixadores e mobilizado mais de 50 mil universitários, contribuindo para a construção de um ecossistema cada vez mais pulsante de atores engajados nessa nova causa. Afinal, entre ganhar dinheiro e mudar o mundo, é possível ficar com os dois! ANTONIO OLIVEIRA Embaixador do Movimento CHOICE. Estudou na UFRJ e no IME e atualmente é estudante na FCTUC RED ITALIAN HUNTER entrevista por RAFAEL SILVA 28 Resistance: Antes de mais, como surgiu a ideia para o vosso nome? RIH: O nome surge da grande obra cinematográfica “The Deer Hunter”. Neste filme existe aquela mítica cena em que o De Niro e o Sr. Walken estão a jogar à roleta russa com os vietnamitas. A origem do revolver, utilizado no jogo, é debatida por muitos e numa obra de fan-fiction este é de origem italiana onde o escritor lhe dá o cognome de “Italian Hunter”. Acrescentámos a palavra 'Red' como forma de ilustrar a prevalência de sangue nessa mesma cena. R: Que tipo de banda são os RIH? R: A vossa música é toda instrumental. Como surgiu esta ideia? É algo com que se identificam? RIH: Antes de mais o instrumental é a nossa verdadeira raíz porque quando nos juntámos não tínhamos voz. Isto resultou num grande trabalho na parte da conceção instrumental das músicas, tendo-se demonstrado algo cativante para todos, dado o desafio que é passar uma mensagem sem usar palavras. R: Como decorre o vosso processo criativo? RIH: Todas as músicas são desenvolvidas e estruturadas em conjunto. As ideias de base surgem geralmente de jams ou são malhas concebidas em casa, individualmente, e trazidas para o ensaio. R: Quais têm sido as críticas e a recepção do público em geral ao vosso primeiro trabalho? RIH: Podemos dizer que o nosso público se tem vindo a afirmar e que a receção do nosso trabalho tem sido mais positiva do que imaginávamos. Há um certo feedback do público que se reflete na intensidade das nossas atuações, que acabam por se estender para além do previsto. R: Por que razão optaram por disponibilizar o vosso EP para download gratuito? RIH: A ideia da distribuição livre online tem o propósito de chegar a um público maior e mais diversificado. No entanto, deixamos em aberto a possibilidade de as pessoas contribuírem para o nosso projeto (no download do álbum pelo bandcamp). R: Que futuro acham que bandas que estão neste momento a dar os primeiros passos no mundo da música, terão? RIH: Nos dias de hoje há uma parafernália tecnológica, referimonos aqui a redes sociais e a instrumentos de gravação, que veio beneficiar em muito a criação e difusão de novos projetos. Apesar disso, é muito difícil ser-se músico a tempo inteiro, sendo por isso necessário ter um emprego paralelo para garantir a subsistência. RIH: A nossa música revela o grande apreço que temos pelo rock progressivo / psicadélico. Como intérpretes sentimos também afinidade pela música instrumental e pela improvisação. Ao vivo procuramos passar a intensidade idealizada nos ensaios e a criação espontânea em jams. R: Como se decidiram a juntar e a formar a banda? RIH: Apresentámo-nos ao vivo pela primeira vez a convite de Luís Quintais, em 2012, embora tenhamos começado a ensaiar em finais de 2011. Nessa altura estudávamos na faculdade, embora nos tivéssemos conhecido ainda no secundário. Seguiram-se dois anos de ensaios e concertos, até que finalmente decidimos compilar o material composto e amadurecido durante esse período no EP “Foreign City Lights”. R: Vocês são apenas três. Sentem que a “química” existente se estragaria com a junção de outro elemento? RIH: Não acreditamos, de todo, que se estragaria a química que foi construída até agora, mas antes que a entrada de um novo membro daria origem a uma nova química. Pretendemos mesmo, num futuro próximo, alterar a formação da banda, passando o nosso baixista à sua função de origem, a de guitarrista, deixando vago o seu lugar no baixo. R: Coimbra tem uma tradição muito grande musicalmente. EM que medida esse facto vos influenciou? RIH: Tivemos oportunidade de ver ao vivo e conhecer pessoalmente grandes artistas de Coimbra, que em muito contribuíram para a nossa formação enquanto músicos e que nos motivaram a criar um projeto musical. R: Quais as vossas influências no mundo da música? O que nos juntou foi o som de Doors, Led Zeppelin e Pink Floyd. Tiago: Tenho grandes influências em King Crimson devido à composição musical que na altura era bastante inédita e ainda hoje o é. (...) Fred: Os Beach Boys terão sido a primeira banda a cativar-me para o mundo da música. Ainda antes da adolescência já ouvia muito rock dos anos 60 e 70 e penso que, em particular os Rolling Stones me motivaram imenso a querer aprender a tocar guitarra elétrica e a dedicar-me ao Rock. No plano da atualidade gostava de destacar artistas como Anna Calvi ou os Tame Impala do “Innerspeaker”. Gosto também de estar a par da música que se faz em Portugal. Gonçalo: Fora os já referidos fui beber alguma inspiração aos Delta Blues, ao Hendrix e mais recentemente ao Waits. Nesta nova geração, dos 90’s para a frente, posso referir alguns individuais como Pj Harvey, Dan Auerbach, Jack White, M. Ward e ainda algumas bandas como Radiohead, BRMC , aJigsaw e os incontornáveis Dead Combo. R: Na vossa opinião, quais os maiores obstáculos que uma banda encontra no início da carreira? RIH: Acima de tudo uma das principais dificuldades é conquistar um público. Salientamos também os custos de início quer em material, quer em deslocações e ainda a necessidade de estabelecer uma grande rede de contactos para se chegar a sítios mais concorridos. Falando de Coimbra, pensamos que há falta de um circuito de espaços com condições adequadas para concertos. Não basta haver duas ou três entidades que dinamizem a atividade musical numa cidade, é necessário criar um hábito junto do público. R: E em termos de concertos, estão em grande actividade? Expectativas para o futuro? RIH: Este ano a nossa prioridade é apresentar o nosso EP ao vivo. Em paralelo, quando não estamos a preparar os concertos vamos esboçando a alteração do alinhamento da banda e compondo novas músicas. R: Alguma dica que queiram deixar aos possíveis leitores que estejam a formar uma banda? Tiago – Não o façam!! Fred – Desistam da faculdade ou preparem-se para chumbar a muitas cadeiras! Gonçalo – O país precisa de bandas! 29 RESISTANCE FEST Na noite de 29 de Novembro, o Resistance Fest voltou para mais uma noite no Salão Brazil. Depois da primeira edição, que se realizou com sucesso, voltamos agora com a nossa própria editora, a Resistance Records (criada com o intuito de trabalhar com as bandas emergentes da cidade de Coimbra). Assim, com o retorno ao mesmo espaço e novas bandas, ansiosas por atuar, podemos contar com estilos variados como o Rock, Indie e até Pop. Realizou-se ainda a Febrada Resistance no Pátio das Químicas, onde se pode conviver com as bandas, partindo mais tarde para o Salão Brazil. Com todas as condições reunidas, o relógio marcava 22h quando se deu o inicio do espetáculo. Por último, e não menos importantes, foi a vez de Strange Coats, compostos por José Mano (bateria), André Martins (baixo), André Ventura (guitarra) e Miguel Menano (guitarra/voz), que nos surpreenderam com a sua sonoridade instrumental. Originalmente iniciaram com o vocalista e o guitarrista principal que são velhos amigos, aos quais rapidamente se juntou o baterista, e após alguns meses encontraram o baixista ideal. Deslumbraram-nos com novos temas do seu novo EP, com lançamento previsto para este mês de Dezembro, no qual se pode esperar uma evolução positiva com uma sonoridade mais coesa. Para terminar, o baterista brilhou-nos com um solo. Composta por Rui Pedro Martins (bateria), Bernardo Franco (baixo) que teve um inicio de carreia no coro, Francisco Frutuoso (guitarra) e Zé Maria Costa (guitarra/voz), Flying Cages abriram a noite e com as suas músicas de sonoridade bem robusta conseguiram colocar o público ao rubro. Um grande concerto vindo de uma banda que, apesar da tenra idade, já demonstra uma maturidade aprazível, em palco, deixa boas previsões do seu futuro. Para o inicio do ano de 2015 pervê-se o lançamento de um novo álbum. reportagem De seguida subiram ao palco, já quase a festejar o seus 5 anos de existência, no seu formato original, Joana Corker e Ricardo Jerónimo que davam voz a Birds Are Indie. Mesmo sem o Henrique Toscano, terceiro elemento da banda, readaptaram os seus temas e apesar de alguns percalços apresentaram-nos as suas músicas. Com a sua simplicidade, energia e ritmos caraterísticos conseguiram contagiar o público. Estes ainda nos apresentaram dois novos temas, onde Jerónimo se estreou no piano. Comprovaram assim que o que mais persiste, ainda, é o amor. Por último, e em nome da Resistance, gostaria de agradecer a todos os presentes e participantes neste evento. Aproveito para agradecer aos Flying Cages, aos Birds Are Indie e aos Strange Coats pelos grandes espetáculos que proporcionaram e pela grande disponibilidade e cooperação que demonstraram ao longo da preparação do evento, aos Santos da Casa pela informação prestada, pela divulgação e apoio ao evento, aos que ajudaram na organização da Febrada da Resistance e, por último, mas não menos importante, ao Salão Brazil, pela disponibilidade do espaço e pela paciência e empenho que os seus técnicos tiveram na preparação deste evento. Tiago Aryan Texto & Fotografia 30 31 reportagem Cinema Música Literatura Banda Desenhada Crónicas 2014, Sports Feature, 1st prize stories, Peter Holgersson Millennium 1.The Girl with the Dragon Tattoo Depois do enorme sucesso do filme de Niels Arden Oplev em 2009, o “thriller” de David Fincher, The Girl with the Dragon Tattoo é a adaptação americana do primeiro volume da trilogia “Millenium” de Stieg Larsson. A história centra-se em Mikael Blomqvist (Daniel Craig), jornalista e fundador da revista Millennium. Este dedica a sua vida a revelar o crime e a corrupção que contaminam a sociedade sueca, e como consequência ganha vários inimigos, sendo até dado como culpado num caso de difamação. Parenthood As séries viciam pelas emoções que despertam. Parenthood, que agora inicia a sua sexta e última temporada, retrata a vida da família Braverman, um casal idoso, Zeek and Camille, e os seus quatro filhos de meia idade (por ordem decrescente de idades: Adam, o pai de família e o mais sensato de todos; Sarah, a mãe solteira; Crosby, o solteirão inveterado; e Julia, a advogada que ganha para a 24 Frames / s A verdadeira história começa quando Mikael é procurado por Henrik Vanger (Christopher Plummer), empresário de renome obcecado em compreender as razões que levaram ao desaparecimento da sua sobrinha, há mais de 40 anos. Vanger acredita que alguém da família poderá estar relacionado com o desaparecimento de Harriet, cujo corpo nunca foi encontrado. O poderoso empresário faz então uma proposta irrecusável ao jornalista: dá-lhe acesso total à sua vida, documentação pessoal e dados familiares em troca da solução para o caso. Com a ajuda de Lisbeth Salander (Rooney Mara), uma hacker profissional com um passado misterioso, Mikael vai encontrar a história da sua vida. Com uma sucessão de acontecimentos empolgantes que prendem o espectador à tela, Daniel Craig despe o fato de James Bond e contracena com Rooney Mara (nomeada para o Oscar de melhor atriz no papel principal), com uma representação digna de registo. Para os amantes de thrillers misteriosos e da badalada lista de sucessos do realizador David Fincher (“Fight Club”, “Seven”, “The Social Network”), estamos na presença de mais um belo exemplar da sétima arte, tendo até ganho o Oscar para melhor montagem. família), que entre várias voltas na vida enfrentam eles próprios os vários desafios de serem pais. Nestas três gerações encontramos problemas, soluções, derrotas e vitórias com que todos nós nos conseguimos de alguma maneira identificar. São abordados temas como cancro, adopção, divórcio, homosexualidade, relações inter-raciais, choque de gerações, autismo, guerra, entre outros, e o impacto que os vários obstáculos têm na família. Com uma representação de se lhe tirar o chapéu e diálogos tão bons como em poucos lados se encontram, esta é uma série da NBC que num episódio nos faz passar de lágrimas de tristeza a sorrisos de alegria, tal é a envolvência que cria, apresentanto uma abordagem realista mas sobretudo positiva da vida. Geralmente de tom leve mas nada supérfluo, Parenthood apresenta um retrato fiel da essência humana nos tempos modernos. 34 Liliana Rebelo Adriana Correia The Grand Budapest Hotel Deparamo-nos com mais uma nobre jogada de Wes Anderson. The Grand Budapest Hotel satisfaz-nos se estivermos à espera de encontrar, na sala de cinema, mais um filme que não foge ao insólito estilo do realizador contemporâneo; surpreende-nos se não estivermos a contar com a nebulosa narrativa que nos aguarda na grande tela. O luxuoso Hotel de Budapeste é, no presente da história, local de paragem obrigatória para Zero - Mr. Moustafa (Tony Revolori - F. Murray Abraham) La Haine Datado de 1995, La Haine é um filme francês realizado por Mathieu Kassovitz, cujos protagonistas são três jovens adolescentes de origens étnicas distintas. Vince, Hubert e Saïd residem num bairro social na periferia de Paris, que ressaca dos confrontos policiais que surgiram após Abdel ter sido espancado durante um interrogatório policial, ficando em coma. que, em modo flashback, conta, em conversa de jantar com um jovem escritor (Jude Law) - que acreditamos ser o próprio Stefan Zweig, a quem Wes agradece o argumento -, como chegou a proprietário do maior hotel que a capital Húngara já deteve. Acontecimento sobre acontecimento, andamos para trás e para a frente no tempo e ficamos a saber que M. Gustave (Ralph Fiennes) deseja, acima de tudo, honrar o Grand Budapest Hotel pois é este mesmo que alberga o seu passado e presente. O futuro talvez, mas apenas na memória de quem lhe é fiel. Um quadro é roubado e tornase protagonista causando conflitos de morte e paixões que não jazem com as personagens. O filme retrata a sede de justiça, bem como a sensação de impotência sentida pelos habitantes do conjunto habitacional, representada pelos três jovens, onde a instabilidade e a sensação de uma falsa segurança imperam, podendo o caos despoletar a qualquer momento. La Haine, é um filme de contrastes que relega o espectador para um estado retrospectivo onde reanalisa a estrutura da sociedade e onde demonstra o verdadeiro Eu que é camuflado pelo status social, profissão ou o local onde habita. 35 Confessemos que são 100 minutos que podem demorar a passar. Estamos a reter demasiados pormenores em cada frame. Tal pode-se tornar desconfortável para quem procura puro e célere entretenimento ou, pelo contrário, complexo e reconfortante para quem anda por aí a tentar entender a raciocínio de Wes Anderson. The Grand Budapeste Hotel abre alas no Berlin International Film Festival deste ano e sai a vencer o Urso de Prata, deixando-nos a nós, espectadores, à espera de grandes feitos para 2015. Margarida Jacinto Exponenciado pela rebeldia e necessidade de afirmação, o ódio e a revolta trilham o percurso dos três adolescentes que culmina com uma simplicidade, no mínimo cruel. La Haine, é um filme a ver e rever. Bruno Marques 24 Frames / s LAZARETTO (2014) - Jack White No passado dia 10 de Junho, Jack White presentou-nos com o seu mais recente trabalho, “Lazaretto”, um LP com 11 faixas. Desde o seu lançamento que o disco tem vindo a recolher boas críticas de quem o ouve (alcançando a quinta posição no top português), vendendo algo como 138 mil cópias apenas na primeira semana. A par do lançamento do CD, foi feita também a distribuição em vinil, tendo vendido cerca de 40 mil discos, marca que chegou para bater o anterior recorde da Billboard, fixado em 1991 pelos Pearl Jam com “Vitallogy” (34 mil discos). O som possante e revigorante do blues-rock característico de White está bem presente neste trabalho, iniciando-se com duas faixas que encaixam bem nesse perfil, “Three Women” e “Lazaretto”, música que empresta o nome ao álbum. Depressa o estilo muda com a melodiosa “Temporary Ground”, num registo mais calmo. Segue-se a faixa “Would You Fight For My Love”, faixa SYRO (2014) Aphex Twin Nos últimos anos houve vários retornos históricos em diferentes géneros musicais. Depois do aclamado regresso por parte de fãs de post rock e shoegaze dos Godspeed You! Black Emperor em 2012 e dos My Bloody Valentine no ano passado, respectivamente, este ano é a altura de fãs do rock alternativo dos Pixies, da electrónica de Aphex Twin e do rock progressivo dos Pink Floyd poderem ouvir algo novo de antigos heróis. Enquanto que o regresso dos Pixies aos álbuns de estúdio intitulado Indie Cindy foi infelizmente desapontante comparado com os seus antecessores, Aphex Twin não manchou o legado. Embora o último álbum de Aphex Twin fosse já de 2001, Richard D. James, o músico por detrás do projecto, na verdade tem lançado material sob outros nomes nos últimos anos. E isso nota-se. Aphex Twin deixou-nos pouco mais de uma hora de electrónica muito variada e bem 78 rotações / min 36 esta que teve o seu videocplip gravado e lançado recentemente. Sensivelmente a meio do álbum podemos ouvir “High Ball Stepper”, uma invulgar composição rock instrumental, com várias transições e mudanças que marcam o estilo do artista. O trio de músicas seguintes, “Just One Drink”, “Alone In My home” e “Entitlement”, leva-nos de novo de volta ao imaginário do rock mais clássico. As duas últimas são bonitas canções num registo mais suave e sereno. “That Black Bat Licorice” dá-nos o click que nos relembra que isto é um álbum de Jack White, numa música que convida ao ligeiro abanar de cabeça. Terminamos o álbum com duas músicas, “I Think I Found The Culprit” e “Want And Able”, que vêm no seguimento da onda mais melodiosa do blues rock experimental do artista. Foi com este conjunto de canções que Jack White matou a fome aos seus fãs, que desde 2012, com “Blunderbuss”, não ouviam material novo. White dirigiu assim os seus esforços para fazer um álbum consistente e imprevisível, deixando-se notar a sua vontade de inovar na composição e na exploração de novos caminhos. Rafael Silva misturada com Syro, levando-nos de volta à música que ele lançou nos anos 80 e 90 que marcou fortemente a electrónica ambiente na altura, mas igualmente com um certo amadurecimento e maior complexidade. Destaque para o fecho do álbum com uns belos 5 minutos de piano em “aisatsana[102]” (uma das críticas a fazer ao álbum são os títulos das músicas que são, ou parecem ser, horrendos e completamente sem sentido). Richard D. James afirma que há mais música por lançar, sendo por isso de esperar novos álbuns de estúdio nos próximos anos. E, pelo que se observa por esta amostra, ainda bem. FElipe Trenk EL PINTOR (2014) - Interpol Em Setembro de 2014, os Interpol regressam oficialmente aos LP’s com El Pintor (anagrama de Interpol), cerca de 4 anos depois do lançamento do seu predecessor, que coincidiu com a saída do carismático baixista Carlos Dengler. Por isso mesmo, a expectativa para saber como é que essa mudança se iria reflectir no processo de elaboração do novo álbum era significativa. All The Rage Back Home é o primeiro single do álbum: rock directo e eficaz, liderado pela característica guitarra de Daniel Kessler, agora acompanhada por um baixo simples composto pelo vocalista Paul Banks. A melancolia de My Desire e a energia de Anywhere (talvez o melhor momento deste álbum) são uma lembrança viva de tempos passados. Em sentido oposto, Same Town, New Story e Breaker 1 não devem ficar muito tempo na memória dos ouvintes, revelando-se algo ocas. My Blue Supreme e Everything is Wrong sobrevivem à custa dos seus S T R E E T- H O P (2014) - Sacik Brow Sacik Brow, rapper oriundo do Algarve, disponibilizou o seu projecto a solo intitulado Street-Hop, para download gratuito. O Ep é composto por 6 temas dos quais destaco: Aparências, O Início e O Assalto onde o rapper demonstra capacidades descritivas inegáveis. O rapper de Quarteira apresenta um flow rápido e balançante à medida que dribla pelos instrumentais. Um verdadeiro storyteller que relata de forma crua, transparente e sem censura o seu íntimo tal como o quotidiano que respira. O street rapper conta ainda com a presença de produtores de renome, nacional e internacional no seu recente Ep. Destaco Madkutz e LG Experience que produziram para NGA e Nas, respectivamente. 37 refrões de fácil memorização, sem passar disso mesmo. Mais coerente é Ancient Ways, em que Banks despreza costumes antigos, algo irónico já que El Pintor é o retrato de um grupo em busca da sua identidade, desvanecida algures pelo seu caminho. A penúltima faixa do álbum é Tidal Wave, de agradável simplicidade, e finalmente Twice As Hard marca a despedida de El Pintor sem causar grande impacto, uma despedida privada de emoção. O grupo de Nova Iorque ressurge rejuvenescido, com uma energia que parecia apagada nas suas últimas aparições. Não se espere o baixo pulsante e tantas vezes disfuncionalmente genial de Carlos D. (ainda recentemente Sam Fogarino admitiu ao NME que Carlos D. era parte fundamental do som de Interpol), mas El Pintor acaba por ser melhor que o seu antecessor. O lado menos positivo é que soa a uma tentativa dos Interpol voltarem a ser Interpol. Gonçalo Louzada Sacik, recolhe agora os frutos de uma árvore próspera que semeou no ano de 2002, altura da gravação do seu primeiro tema. Após participar no Festival Electric Waves no Ser Humano – Hip-Hop por uma causa e actuar com Dillaz no BlackJack em Faro, Sacik Brow prepara agora o lançamento da sua segunda mixtape Made in Ghetto vol.2 Street-Hop de Sacik Brow é um projecto a reter. Bruno Marques 78 rotações / min the three-body problem 2008, Liu CixiN-. Existe uma razão pela qual a história e a mitologia chinesas são território especulativo para muitos de nós, por isso, quando Cixin Liu abre The Three-Body Problem no meio da miséria que caracterizou a Revolução Cultural Chinesa, é como se fossemos logo transportados para um mundo estrangeiro. Um fenómeno na China, Cixin Liu pretende explorar a maneira pela qual a humanidade tende a trabalhar em maneiras que garantam a sua própria destruição. No seio da Revolução Cultural, Ye Wenjie vê-se obrigada a trabalhar numa instalação científica secreta cujo objectivo é estabelecer contacto com outras espécies inteligentes que possam existir no Universo, ou arriscar a pena de prisão. Num dia como muitos outros, Ye Wenjie, sem nenhuma outra pessoa se aperceber, estabelece contacto com uma civilização que se encontra à procura de planetas viáveis para se expandir. Tendo perdido a fé na raça humana depois de assistir em primeira mão ao que ela consegue fazer no seu pior, Ye Wenjie responde à mensagem e transmite as coordenadas exactas do planeta Terra. saga #1 2012, Brian K. Vaughan , Fiona Staples Saga, é um graphic novel que tem tudo para dar errado: uma história cliché de guerra entre um planeta e uma lua, e de dois soldados que se apaixonam contra todas as probabilidades. No entanto, Brian K. Vaughan consegue pegar em tal história e torná-la em algo espetacular. Este primeiro volume introduz-nos a guerra entre uma planeta e uma das suas luas, que devastou ambos e acabou por se desenvolver noutros planetas desta galáxia, envolvendo deste modo todo o tipo de alienígenas nesta guerra. Alana e Marko, dois soldados, um do planeta e um da lua, apresentam-nos ambas as culturas e discrepâncias entre estas duas frentes, combatendo todas as probabilidades e apaixonando-se no meio do que se assemelha a devastação. Contudo, a sua história é contada por uma terceira pessoa, a sua filha, que surge como que um símbolo de resistência. É com esta premissa que seguimos toda a acção ao longo do volume, cuja acção se desenrola rapidamente mas de maneira muito bem conseguida. Sem dúvida uma série a seguir rita viegas Quando não se comporta como um típico livro de ficção científica, The Three-Body Problem lê-se como se de um thriller se tratasse. A acção é rápida, e o mistério faz querer virar página atrás de página, mas The Three-Body Problem peca em ter personagens pouco desenvolvidas, fazendo com que seja necessário voltar atrás para perceber quem é quem. Peca também na parte final do livro, em ter uma secção inteira onde são abandonadas as leis cientificais que foram tão bem seguidas inicialmente pelas leis imaginárias onde civilizações inteiras vivem em 11 dimensões e um espelho capaz de englobar um planeta é construído a partir de um protão e acaba por ganhar inteligência. transmetropolitan 1997-2002, Warren Ellis Num futuro mais ou menos distante, Spider Jerusalem, repórter renegado em reforma perseguido pelo editor irado que lhe exige um contrato não cumprido e sem dinheiro para drogas, volta à sua metrópole de origem, onde usará o poder das palavras e da javardice hardcore para combater políticos corruptos e a complacência de um povo feito manso pela satisfação de todos os prazeres básicos. A história nunca se torna aborrecida, o escritor ultrapassa os limites que julgávamos ver na issue anterior. Spider Jerusalem, baseado no jornalista Hunter S Thompson, é um dos melhores anti-heróis da idade moderna, sendo a voz da razão enquanto persegue a auto destruição a passos apressados, retratando o seu extremamente exagerado consumo de drogas. Warren Ellis traz-nos aqui uma obra prima de ficção cientifica, uma critica social sem igual. Na cidade todos os problemas actuais são hiperbolizados ao máximo. Há uma cura para todos os efeitos secundários de todas as drogas levando ao consumo constante da maior parte dos cidadãos, um fetiche mais estranho que o anterior a cada canto, uma literal feira de religiões e cultos (que vai dar no mesmo) onde cada um pode escolher uma fé como quem vai comprar enchidos. Mostrando-nos os nossos problemas exagerados no futuro, Ellis reflecte-nos a sua essência como a temos hoje em dia. A nossa preguiça de agir, a nossa incessante procura por mais e mais, pegas alienígenas, etc. Se não tiverem mais nada que fazer, (e mesmo que tenham, duvido que seja assim tão importante quanto isso), façam um favor a vocês mesmos e leiam Transmetropolitan. Consegue-se perceber a razão de este ser o fenómeno que é na China, muitos livros piores são eles também fenómenos noutros países, mas os problemas de The Three-Body Problem são tais que classificações de novo clássico de ficção científica parecem prematuras. Fica por ver a qualidade das sequelas. João eira manuel garrido literatura 38 39 banda desenhada A Invenção mais perigosa do mundo Quando pensamos em tecnologias com o potencial de destruir facilmente a nossa espécie, rapidamente nos surgem na cabeça as imagens icónicas dos cogumelos de fumo criados por uma bomba nuclear. Mas e se a tecnologia com o maior potencial de retirar a nossa espécie deste universo for vista hoje como benéfica? A tecnologia de que aqui falo é a Inteligência Artificial, ou I.A. Apesar de regularmente romantizada em trabalhos artísticos, grandes perigos emergem da criação de uma máquina capaz de pensar. Imaginemos a seguinte situação: algures no futuro, um grupo de investigadores cria uma I.A. capaz de criar uma I.A. mais inteligente. Essa nova I.A. por sua vez é capaz de criar outra ainda mais inteligente, assim sucessivamente. Esta 'explosão de inteligência', o nome deste evento teórico, é problemática, já que o seu resultado poderá não ter os melhores interesses da humanidade em mente. Uma boa analogia seria pensar no diferencial cognitivo entre um ser humano e uma formiga. Nenhuma formiga entra na consideração das nossas decisões, e não é certo que uma I.A. terá alguma por nós. Também não é automático que a solução se encontre em programar a I.A inicial de forma a que esta tenha o nosso melhor interesse em mente, uma vez que é bastante difícil definir ao certo qual é esse interesse. Será que o objectivo final é maximizar a felicidade humana? Então o que impede dessa I.A. de enfiar pequenos objectos nos pontos de prazer do nosso cérebro? Embora vários grupos científicos se dediquem a encontrar a solução a este problema, ela é difícil de encontrar, e não é certo que exista. Terá de nos servir de consolação o facto de que a produção de uma I.A. com essa capacidade está longe de acontecer, mas, sendo ela possível, o mero passar do tempo resolverá os problemas que impedem a sua construção. João Eira O “LADO B” da aprendizagem O acto de aprender, hoje em dia está indissociável da obtenção de um emprego, sendo aparentemente, única e exclusivamente necessário para tal. Aprender é um estímulo constante, visto que promove o desenvolvimente do espírito crítico, bem como a reflexão sobre determinado tema que poderá resultar na reestruturação ou fortificação de uma linha de pensamento Embora nos últimos anos tenha ocorrido uma ou até na formação de uma nova. Além de massificação no acesso ao ensino superior, o incutir, ou pelo menos potenciar, valores acto de aprender tem sido desvalorizado e como o respeito, tolerância e compreensão, relegado para posições não prioritárias. Em assim como uma maior consciencialização parte, culpa da crise financeira actual, uma das inúmeras realidades existentes, o acto de vez que, actualmente, ter formação superior aprender é o principal precursor para uma não é sinónimo de emprego. alteração de mentalidades. Embora concorde com a necessidade de formar Desta forma haverá uma maior predisposição pessoas qualificadas para desempenharem para compreender o porquê e as respectivas determinada função no mercado laboral, motivações de diferentes realidades tanto a discordo quando esta formação qualificada nível social, cultural, religioso, político, sexual, se assume como o principal factor motivacional ideológico e/ou económico. Sendo quase para a aprendizagem. Ou seja, a obtenção de imperativo perceber as raízes de determinada conhecimento não se cinge apenas à valorização realidade, embora nem sempre se partilhe da relação mercado laboral - pessoa mas essa perspectiva. também da relação pessoa - pessoa bem como a nível pessoal. Sendo, para mim, o verdadeiro É através da aprendizagem, deste “lado B” benefício da educação tal como o principal da aprendizagem, mais humanístico e menos motivo para que se ambicione uma. corporativo, que reside a arma mais eficaz para tentar destronar a perpetuação de certos 40 preconceitos e desigualdades que abraçam a sociedade actual. É também, através deste “lado B” da aprendizagem, que é possível incutir um senso de igualdade, aceitação e compreensão em relação ao que consideramos diferente, desconhecido. Embora seja uma mais valia, não quero sobrevalorizar o saber académico, até porque o vejo como um complemento de outras formas de saber. A intersecção e transversalidade de e entre “saberes” reflecte-se numa mais valia que é superior à soma dos mesmos, isto é, o total é mais do que a soma das partes. Independentemente da origem da educação, institucional ou auto-didacta, a aprendizagem apresenta regalias inegáveis e inigualáveis, além de que aumenta a probabilidade de adquirir um emprego com um salário apelativo e boas condições laborais. No fundo,o acto de aprender e o que deste resulta, ajuda a pintar um quadro onde a miscelânea de “cores” e respectiva co-existência possa ser vista como a regra ao invés da excepção. Onde nenhuma “cor” destoa. Bruno Marques Aquele saber que não vem nos livros Antes de mais bom início de ano para os meus amigos, para os meus colegas, para aqueles que eu insisto em chamar de meus colegas mesmo sabendo que já abandonei o Departamento de Física há 3 anos e para todos os caloiros mesmo os de Antropologia. Adiante, é um facto que as pessoas estão mais dispostas a ler qualquer coisa que esteja organizada por tópicos: toda a gente adora listas. Eu nem estou preocupado convosco, recebo o mesmo independentemente do que escreva (a saber, duas sandes de fiambre, um Sucol e uma maçã – o chamado lanche de corta-mato), o que me importa é que também me é mais fácil debitar por tópicos porque, com a minha idade, se tento formular ideias muito longas funde logo um fusível e Ora, começar logo a aldrabar já se tornou recorrente nos meus artigos (ver “Abrir cervejas no tampo da mesa”, um artigo sobre sair por cima, à homem (!) em qualquer situação), mas pessoas desinteressantes não contam histórias interessantes, a menos que sejas o Forrest Gump, portanto mais vale soltar umas petas e seguir sem olhar para trás. No seguimento das matérias que realmente importam sobre as quais já aqui dissequei (o hino à masculinidade acima referido, uma análise sobre diferentes tipos de parvoíce e até um texto sobre a dificuldade em escrever textos) vou passar de seguida a enumerar uma série de dicas úteis para evitar a abordagem por parte de qualquer tipo de pessoas que te querem impingir coisas, pedintes, turistas, caloiros a recolher dinheiro para os seus “doutores”, etc. Estratégia (E.) nº1 – Finge que não falas português. Não te ponhas a falar inglês também, a menos que tenhas uma pronúncia mesmo horrível. Caso tenhas de improvisar uma língua verdadeiramente estranha experimenta declamar uns versos de Psy, esse poeta. E. nº2 – Táctica do urso: deita-te no chão e finge-te de morto. Nota: em alguns casos podem limpar-te os bolsos e fugir. E. nº3 – O tédio: responde à abordagem com discursos do género “Em mil nove e setenta e cinco, eu tinha acabado de chegar à aldeia vindo das províncias ultramarinas. Trazia na mala uma caixa robusta que me havia sido ofertada por um ancião que durante vinte dias e vinte noites abrigara o meu batalhão debaixo do seu tecto. Minto! Foi no mês passado e era um tupperware que a minha mãe me tinha colocado no saco de viagem. Esta minha cabeça já não é o que era, etc etc..” E. nº4 – Finge que falas ao telemóvel. Se a pessoa que te está a abordar insistir em esperar, simula uma discussão das feias. E. nº5 – Procura tralhas nos bolsos e tenta tu também impingir-lhes as tuas coisas. Qualquer coisa vale: talões de multibanco, canetas com a tampa roída, invólucros de rebuçados ou cotão. E. nº6 – Foge a correr. João Pedro Ferreira 41 a súplica das horas vãs Parte I Lembro-me muitas vezes daquela casinha para onde fomos morar quando o pai nos deixou. Ficava no primeiro andar de um prédio muito antigo, mesmo por cima da mercearia do Sr. Osvaldo, na Rua da Alegria. Era bem pequenina, mas muito bonita, toda emersa numa atmosfera dourada onde sobressaiam os vasinhos pendurados nas janelas como se fossem cair a cada instante. Os móveis que a habitavam quando chegámos eram apenas uma escrivaninha velha e uma pequena cama de ferro esmaltado onde dormíamos todos: a Aninha e a Paula atravessadas ao fundo da cama e eu e a mãe para a cabeceira. De vez em quando resmungávamos uns com os outros entre coices e empurrões, mas aquele calor humano, tão terno e protector, depressa nos amolecia e não tardava a deixarmo-nos cair no sono. A mãe era sempre a primeira a acordar. Levantava-se cuidadosamente e, aprontando-se num ápice, ia depois acordar serenamente a Paula e a Aninha, que já tinham as suas canecas de leite à espera em cima da mesa. A dose que me tocava ia sempre encontrar-me à cama, onde, ainda sonambulamente, sorvia o leite açucarado de um biberão velho cuja tetina desfeita potenciava um caudal assinalável. A mãe era uma mulher bonita e ainda jovem - magra, mas muito bem apresentada – com aqueles cabelos dourados que costumava trazer soltos. Os seus olhos pareciam umas enormes avelãs com um furo de minhoca no meio, as fartas pestanas eram longas e negras e os lábios pálidos, mas sempre quentes e suaves. Às vezes ouvia-se vozes de homens na rua e percebia-se que eram para ela, mas ela nem se aproximava da janela e não lhes ligava nenhuma. Chegou a haver falatório por causa de um Alberto, que foi para a botica gabar-se de que «já falou para a Lurdes durante uns tempos, depois de o Antunes ter dado à sola», mas a mãe nunca ligou a isso. Na escola os colegas diziam-me muitas vezes que o pai tinha fugido, que ouviam os pais deles dizerem que era um covarde e que um homem a sério não teria feito o que ele fez, muito menos tendo os filhos pequenos para criar. Tenho poucas recordações do meu pai. Lembro-me dele como um homem alto e espirituoso, de rosto vincado e pose séria, porém, de trato muito afável e bem-disposto. Na casa grande onde vivíamos antes, tínhamos cada um o seu quarto, menos eu e o Luís, que tínhamos um beliche - a cama dele era a de cima – e o pai ia todas as noites ler-nos uma história. E lia durante horas a fio, pois a tanto o solicitávamos. Mais o Luís, porque às vezes eu adormecia, mas o pai não parava de ler, pois sabia que enquanto houvesse leitura o Luís não pregava olho e também não se contentava só com algumas páginas. Era especialmente por ele que o pai tinha o cuidado de comprar novos livros sempre que possível e de todas as noites ler para nós. Foi graças a esta insaciável avidez do Luís que eu aprendi a gostar dos livros - e especialmente daqueles ternos momentos. O pai tinha sempre muitos livros, arrumados numa estante que enchia a parede do escritório até ao tecto e já estava lotada com livros enfileirados ao alto e uns por cima dos outros. A colecção crescia a cada dia, pois nós não aceitávamos cá repetições. Daí que ele tivesse que comprar muitos livros que, apesar de velhos no aspecto e no uso, para nós eram sempre novos, pois são sempre novos os livros que ainda não lemos. Todavia, uma noite a mãe mandou-nos ir para a cama mais cedo do que o habitual. Pressentia-se o seu ar de consternação, ainda mais evidente pelo esforço que fazia para o esconder. Estranhamente, nessa noite não houve leituras e o Luís ainda não tinha regressado. A meio da noite ouvi a voz do pai, no sussurrar intenso de quem deseja fazer-se ouvir gritando baixinho, e a mãe ia soluçando num choro abafado. Percebi que havia pessoas a andar pela casa e que alguns amigos do meu pai entravam e saiam apressadamente, com ar aflito. Eram amigos que eu conhecia das visitas que nos faziam aos domingos de manhã e de quando lhe levavam uma garrafa de vinho fino ou uns doces nas quadras festivas. A mãe não parava de tentar engolir o choro e a mulher de um dos compinchas estava sempre agarrada ao braço dela e a passar-lhe a mão pela cabeça, como a mãe fazia à Aninha quando ela não queria pentear-se. Não sei por quê, intuí que a mãe estava deitada no quarto e que o pai ainda não tinha chegado. E nem sinais do Luís. A partir de então já não houve mais leituras. Nem Luís. Era a Paula quem aconchegava os irmãos à noite e ela tinha pouca paciência para nós. Penso que isso acontecia por a mãe a ter saturado da nossa presença ao impor-lhe a obrigação de cuidar dos irmãos mais novos, pelo que ela nos ganhou um visível asco, inflamado sobremaneira quando as amigas da mesma idade iam lá para casa fechar-se no quarto dela para passarem o dia a darem risinhos muito agudos que só elas podiam saber a que se deviam. Eu e o Luís tentávamos deslindar aquele mistério a todo o custo, munindo-nos para o efeito de arregalados esgares através de quaisquer brechas ou orifícios que nos concedessem sequer um vislumbre daquela dimensão incompreendida, com tanto de apetecível como de inaudito, e que nos deixava progressivamente eufóricos e perplexos. Desde então o pai só ia a casa trocar de roupa, depois comia à pressa e saía a correr. Vi-o muitas vezes da janela a entrar para um carro que ia buscá-lo à porta de casa. O tempo foi passando, o pai nunca estava, a mãe só chorava e o Luís não aparecia. A Paula continuava a receber as amiguinhas no quarto trancado, mas o ruído das reuniões, apesar de ainda se fazer sentir, tinhase tornado surdo, quase inaudível, e a partir de certa altura a Aninha foi autorizada a entrar em algumas. O que lá se passava nunca soube e encontrando-me sozinho também não voltei a ter interesse em saber. Aquelas aparições do pai, com tanto de súbito na chegada como na partida, eram cada vez menos frequentes. Tudo do que me recordo da última noite em que vi o pai é da chuva copiosa de um fim de Outono exigente e de o ver galopar pelas escadas abaixo carregando consigo a mesma mala de couro castanho que levava das vezes em que a mãe nos mandava para a cama muito cedo e ia para o quarto chorar. Quando ele saiu batendo firmemente a porta houve um silêncio fatal, lancinante, imediatamente transformado num coro admiravelmente sincronizado de prantos e berraria. (Continua na próxima edição.) 42 43 Pedro Archer Barbosa Coimbra, Agosto de 2014 O nosso mundo como o conhecemos Muito se tem falado e muito se fala sobre tecnologia. Desde dos últimos dispositivos “tcha-ram” presentes no mercado, aos avanços da mesma nas mais diversas áreas, até ao impacto desta nas nossas vidas. No passado dia seis de Novembro o jornal Público divulgou dados estatísticos, apurados pelo Eurostat, que indicam que Portugal está muito à frente da União Europeia no que toca à utilização das redes sociais. Ainda, segundo dados revelados pelo mesmo, 65% dos agregados familiares têm atualmente Internet em casa. De ter em consideração ainda é a utilização desta fora das “quatro paredes”. Quer seja na rua, nos cafés, nos parques, nos ginásios, nas escolas, em concertos (e a lista goes on and on), a utilização da Internet e dos dispositivos móveis é constante e abrange todas as faixas etárias. O que muitas pessoas não percepcionam é o quão dependentes estão deste mundo e quais as implicações que isso acarreta. O relógio despertador deixou de existir, o papel com a lista das compras também, o hábito de comprar o jornal também foi substituído, tudo em prol da utilização de um único dispositivo que contém estas e muitas outras funcionalidades. O ter “à mão” uma panóplia de aparelhos digitais que respondem às nossas questões rapidamente, tenham elas qualquer teor, não é necessariamente positivo se as aceitarmos tal com o são. Economiza algum tempo, é de reconhecer, mas daí a tomar a resposta como exata e correta vai um longo caminho. Pensemos por exemplo nos sistemas GPS, quantas vezes não levaram um condutor para caminhos e estradas que nada tinham a ver com o seu destino? 44 Pensemos ainda nos sistemas inteligentes que permitem a comunicação homem-máquina, via áudio, em que a pessoa não necessita de digitar o que quer que seja, basta falar para o sistema e este devolve uma resposta (ou lista, ou playlist, entre um rol de outras possibilidades). A facilidade de interação neste caso quase que torna o dispositivo “transparente”, no sentido em que a sua utilização não recorre ao método, sentar, digitar, analisar e selecionar. Ele está lá e devolve o que pretendemos sem qualquer trabalho minucioso da nossa parte. Nos dias de hoje é ainda absolutamente tolerável partilhar o que quer seja, seja um prato de comida, seja uma ida à casa de banho. É também “completamente normal” uma pessoa apaixonar-se virtualmente ou ter inclusive uma consulta médica em casa, sem qualquer contacto paciente-médico. Deve ser realmente alvo de reflecção - a tecnologia transforma-nos seres melhores, ou mais estúpidos? Com isto não quero dizer de todo que os recursos tecnológicos trazem apenas efeitos colaterais negativos, pelo contrário. Quero apenas deixar a mensagem de que deve existir um equilíbrio e acima de tudo uma consciência assertiva em relação à sua utilização. É fundamental pensar e agir por si e acima de tudo considerar os tão esquecidos métodos “tradicionais” de pesquisa, trabalho, leitura e diversão. Já dizia Sam The Kid em uma das suas músicas: “Não te esqueças de onde vens ou és esquecido”. Sempre quiseste ver um artigo teu publicado mas não sabias como? Agora já sabes! [email protected] Márcia Tavares Se estiver interessado em colaborar com a Resistance Magazine, teríamos todo o gosto em publicar um artigo seu! Submissão em magazine.resistance.pt 45