Cap 33 IDADE CONTEMPORÂNEA DOM BOSCO (1815-1888) e PADRE USERA (1810-1891) Ramiro Marques O século XIX foi um século de revoluções: 1830, revolução que culmina com a abdicação de Carlos X; 1848, revolução operária de Paris e revoltas várias em Viena, Berlim e Palermo; 1851, golpe de estado de Luís-Napoleão Bonaparte; 1870, motins populares em Paris; 1873, revolução republicana em Espanha. O período revolucionário prolongou-se até ao final do terceiro quartel do século XX, com a revolução soviética de 1917, a guerra civil espanhola de 1939, a revolução chinesa de 1949 e a revolta de Maio de 68 em França. O século XIX foi um período de contrastes, de conflitos e de instabilidade. O desenvolvimento do capitalismo provoca as primeiras revoltas operárias. As ideias socialistas conheceram uma grande expansão em toda a Europa e o marxismo deu os primeiros passos que iriam culminar nas tragédias totalitárias que percorreram todo o século seguinte. Como sinal desses contrastes, a enorme disparidade de propostas filosóficas e políticas do século: do liberalismo ao socialismo democrático, do autoritarismo ao comunismo, do racionalismo ao romantismo, por tudo isso passou o século XIX. Chateaubrien, Herder, Hegel, Comte, Kierkegaard, Stirner, Feuerbach, Tocqueville, Marx, Nietzsche e muitos outros fizeram a grandeza e a pluralidade de um século inquieto, instável e perturbador. João Bosco nasceu em Becchi, na Itália, em 1815 e viria a falecer, em Turim, em 1888. Filho de gente humilde, João Bosco foi ordenado padre aos vinte e seis anos de idade, após o que passa a viver em Turim, onde inicia uma importante obra de protecção e acolhimento das crianças pobres da rua. O seu encontro com um rapaz de dezasseis anos, pobre e analfabeto, órfão de pai e mãe, iria orientar a sua vida para a educação das crianças mais desprotegidas. Quatro dias depois do primeiro encontro, Bartolomeu Garelli trouxe mais seis rapazes interessados em aprender a ler e a escrever. As semanas passavam e o número de rapazes crescia. João Bosco resolveu criar o primeiro "Oratório Festivo" com esse grupo de rapazes pobres, a quem ensinou a ler e a escrever ao mesmo tempo que os iniciava na doutrina cristã. Seguiram-se cinco anos de deambulações pelas ruas de Turim, a recolher jovens e a dar-lhes uma orientação cristã. Quando o grupo se alargou a mais de 400 rapazes, foi possível fixar o "Oratório Festivo" numa propriedade em Valdocco. Em 1841, estava criada a "Ordem dos Oratórios", uma espécie de colégio interno que acolhia jovens abandonados e a quem Dom Bosco ensinava a ler e a escrever, mas também artes e ofícios, a fim de poderem sair de lá capazes de exercerem uma profissão. Não se pense que as escolas de Dom Bosco eram locais onde apenas se rezava e ensinava a ler e a escrever. Dom Bosco desenvolveu uma programa educativo multidimensional, com uma componente cultural e recreativa muito forte. O teatro, a música, o canto e os passeios de Verão faziam parte das actividades das escola e à semelhança da catequese e das aulas de religião assumiam um relevo tão grande como a Aritmética, a Escrita e a Leitura. Ao fim de algum tempo, as escolas de Dom Bosco desenvolveram programas de educação profissional que ficaram conhecidos como os melhores do seu tempo. Em 1859, nascia a "Congregação Salesiana" e em 1872 era fundado o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, o primeiro dedicado à educação dos rapazes e o segundo às raparigas. Em 1876, o Papa aprovava a ordem dos "Cooperadores Salesianos", destinada a colaboradores leigos. Quando Dom Bosco morreu, com a idade de 73 anos, havia escolas inspiradas na sua obra pedagógica em vários países da Europa e na América Latina. A pedagogia de Dom Bosco inspirou-se na caridade cristã e no seu amor pelos outros. A afectividade, a mansidão e a caridade são as traves mestras da sua pedagogia. Embora a figura e a obra de São Francisco de Sales (1567-1622) tenha inspirado a acção pedagógico de Dom Bosco, não existe um verdadeiro quadro teórico na sua pedagogia. Quando decidiu dar um nome à associação de escolas, Dom Bosco não hesitou e optpu por Salesianos, em homenagem a São Francisco de Sales, a quem consagrou o "Oratório". "As directrizes da sua acção educativa expô-las-á muito brevemente em três pequenos mas densos textos: "O Sistema Preventivo na Educação da Juventude" (1877), a "Carta Circular sobre os Castigos" (1883) e a "Carta de Roma" (1884)" (1). A disciplina era assegurada através da vigilância atenta e constante do director e dos mestres, a par de muita afectividade e muita actividade cultural e recreativa. Sobre os castigos, Dom Bosco afasta as repreensões severas, as humilhações e as chicotadas, ainda tão comuns nas escolas do seu tempo. Prefere a doçura da palavra e a linguagem do coração. Dom Bosco sintetizou o seu sistema pedagógico no trinómio "razão, religião e amabilidade". A razão permite o conhecimento do mundo do trabalho, da vivência social e da natureza. A religião permite o contacto com Deus, fonte de bondade e de sabedoria, e a conquista da vida eterna. A amabilidade é a disponibilidade e entrega totais aos jovens, numa dádiva constante que é amor partilhado. Quais os instrumentos da sua pedagogia? Alegria, familiariedade e assistência. Na escola tinha de reinar a alegria e o jogo tinha um papel importante a desempenhar no recreio e nos tempos livres. Ginástica, música, canto, teatro e passeios eram uma constante. Favoreciam a alegria e davam saúde. Na sala de aula, o professor é um companheiro mais velho e mais sabedor. No recreio é um amigo que participa, em pé de igualdade, nas brincadeiras e nos jogos dos alunos. O ambiente educativo é marcado pela familiariedade e pela afectividade, bem longe da burocracia e dos projectos impostos e artificiais que abafam a criatividade e a liberdade das escolas de hoje. Carinho, amor espontâneo, cordialidade, simpatia e amizade são os sentimentos reinantes nas escolas de Dom Bosco. Ou seja, a escola era uma família e na família não são necessárias muitas regras. Basta que haja amor. A familiariedade gera o afecto e o afecto faz nascer a confiança. Os professores faziam parte da comunidade de vida que era a escola. Viviam com os alunos, comiam com eles e passavam todo o seu tempo junto deles. Notas 1) Sêco, J. (1997). Chamados pelo Nome. Lisboa: IIE, p. 92. Mariano Usera y Alarcón nasceu em Madrid, em 1810 e faleceu em 1891, com a idade de 91 anos. Em 1824, ingressou na Ordem Cisterciense, mudando de nome para Frei Jerónimo. Entre 1825 e 1834, estudou nos colégios da ordem e na universidade, após o que foi ordenado sacerdote. Em 1835, com o desmantelamento das ordens religiosas em Espanha, Frei Jerónimo foi obrigado a abandonar o convento, mantendo-se apenas como pároco. Em 1845, abraçou a vida missionária, rumando para Cuba e para Porto Rico, onde iniciou a sua actividade pedagógica, abrindo colégios para crianças pobres. Na escola elementar, o Padre Usera punha um currículo simples: ler, contar, calcular e religião para as crianças dos dois sexos. Devido á insuficiência de recursos humanos habilitados, Patre Usera foi a Espanha recrutar freiras para ensinarem nos colégios para raparigas. "Após inúmeras contrariedades, as "Irmãs do Amor de Dues" instalam-se definitivamente na escola de Snta Rosália, em 1885, ali permanecendo até 1960, altura em que a revolução cubana as obrigou a abandonar o país - eram então mais de cem repartidas por treze casas. Patre Usera, ao mesmo tempo que as casas da sua Congregação se iam multiplicando, continuou incessantemente o seu apostolado entre os mais desfavorecidos. Em 1883, funda a Sociedade Protectora dos Meninos da Ilha de Cuba", cuja finalidade era proteger todos os meninos de todas as raças, classes e condições da ilha, contra a ignorância, o abandono, a miséria, as doenças, os maus tratos e os exemplos de imoralidade" (1). Não é fácil sintetizar o pensamento pedagógico do Padre Usera. "Tal como Dom Bosco, não foi o padre Usera um teórico da educação mas sim um educador prático, confundindo-se a maior parte das vezes o seu método com a sua própria pessoa. Daí a dificuldade e a simplicidade do resultado. Para o padre Usera, a educação é o desenvolvimento de todas as faculdades do educando; a promoção harmónica, progressiva e integral da pessoa, na linha do humanismo cristão, constitui assim o objectivo primeiro do processo educativo" (2). Tal como Dom Bosco, o padre Usera fez da pessoa do aluno o centro do processo educativo e da afectividade o seu principal instrumento. "Educar no, por e para o amor", sintetiza bem o seu credo pedagógico. "Educar no amor porque só numa atmosfera de carinho, confiança e respeito mútuos poderá haver sinceridade na relação educativa e os educandos se confiarão aos educadores, certos do apoio, compreensão e orientação que neles encontrarão. Educar por amor porque só o educador que ama a sua tarefa e a ela se dedica com generosidade, sem exigir reciprocidade, sem esperar correspondência, poderá contribuir, com a sua presença alegre e dinâmica, para um clima afectivo em todo o ambiente escolar. Educar para o amor porque só no amor a pessoa humana se realiza: no amor a si próprio (dimensão pessoal), no amor aos outros (dimensão social) e no amor a Deus (dimensão religiosa). Por outras palavras: o amor como meio de educação (no), o amor como condição para a educação (por), o amor como objectivo da educação (para)" (3). À semelhança do credo pedagógico de Dom Bosco, também se vislumbra no padre Usera o lugar central que a doçura, o carinho, a afectividade, o companheirismo, a bondade, a alegria e a exemplaridade têm no processo educativo. Notas 1) Sêco, J. (1997). Chamados pelo Nome. Lisboa: IIE, p. 100 2) Idem, p. 101 3) Ibid., p. 102