1 TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E BORDERLINE Nahman Armony Um aspecto evidentemente comum destas duas categorias é a transgressão e a destrutividade. O artigo se propõe a examinar as possíveis diferenças e semelhanças destes comportamentos nos dois quadros clínicos. Mas será que podemos chamar a “tendência anti-social” de quadro clínico? Essa expressão, diz-nos Winnicott, não é um diagnóstico; ela pode ocorrer em neuróticos, psicóticos e normais1. Porém em outro local2 Winnicott escreve: “Perversidade faz parte do quadro clínico (sublinhado meu) produzido pela tendência anti-social”. A tendência anti-social, portanto produz um quadro clínico. O que encontramos neste quadro clínico são atos anti-sociais: roubo, perversidade, destrutividade, etc. Na verdade a tendência anti-social não tem outra manifestação fenomênica que não os atos anti-sociais. Já no borderline o ato anti-social é apenas uma das muitas manifestações do quadro clínico. Tentarei mostrar as diferenças entre a conduta anti-social da tendência anti-social e a conduta anti-social do borderline. Para isso precisarei discorrer sobre ambas as categorias. A tendência anti-social faz parte da família da psicopatia. Ela começa na infância e pode ou não se estender à idade adulta quando ganha outros contornos e outros nomes. Em um extremo da linha da psicopatia estão as condutas perturbadoras do ambiente que ainda podem ser consideradas 1 Ver o artigo “Tendência anti-social” IN “DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE”, p. 408. Citação completa: “A tendência anti-social não é um diagnóstico. Não se pode compará-la diretamente com outros tipos de diagnóstico, tais como neurose e psicose. Pode ser encontrada tanto em indivíduos normais quanto em neuróticos ou psicóticos”. 2 “Moral e educação”, artigo que consta do livro “O AMBIENTE E OS POCESSOS DE MATURAÇÃO” 2 normais (a referência aqui é a infância) e em outro extremo está o psicopata criminoso (a referência é o adulto). A seqüência vai da tendência anti-social “normal”, passa pela tendência anti-social que já foge à normalidade (roubo e destrutividade repetidamente exercidos) podendo então já ser chamada de desajuste. No grau seguinte ela é considerada incontrolável sendo então chamada de delinqüência e finalmente, já referida a um adulto reincidente será chamada de psicopatia. Winnicott fala claramente que a delinqüência ao se tornar um modo de vida, com seus ganhos secundários, suas conexões e fixações, dificilmente será revertida. Isto vale a fortiori para a psicopatia. O borderline está na linha da psicose, ou segundo André Martins do psicóide3. Citando Winnicott: “Os psicanalistas experientes concordariam em que há uma gradação da normalidade não somente no sentido da neurose, mas também da psicose”4. Nessa gradação da linha psicóide temos em um extremo a esquizofrenia desorganizada e no outro o borderline próximo da normalidade, a quem denominei de borderline brando. Embora existam várias concepções de borderline acredito que todos nós concordamos que seu quadro clínico inclui impulsividade, tendência ao ato, baixa resistência à frustração, cisão, instabilidade emocional, etc. A partir destas características apresentam uma grande diversidade de sintomas. Um borderline do qual tratei e que me serve como paradigma apresentava os seguintes sintomas: conversão histérica, depressão, ansiedade, condutas anti-sociais perversas, somatizações diversas, idéias paranóides e de auto-referência e outras. Para além (ou 3 Martins, André – Tese de doutorado. “Pulsão de morte? Natureza e cultura na metapsicologia freudiana”, p.213-214. 4 Winnicot, D.W. – “CLASSIFICAÇÃO: EXISTE UMA CONTRIBUIÇÃO PSICANALÍTICA À CLASSIFICAÇÃO PSIQUIÁTRICA?” In “O ambiente e os processos de maturação”. Porto Alegre, 1982, Artes Médicas. 3 aquém) destes sintomas encontramos a onipotência, a cisão/compartimentação e a porosidade como importantes suportes do borderline. Uma pessoa da linhagem neuróide se frustrada recalcará o seu desejo infantil de onipotência e acederá a uma potência fixando objetivos distantes e de realização gradativa. Na linhagem psicóide o desejo de onipotência não é recalcado, mas dissociado. O que ocupa o lugar da onipotência não é a potência neuróide, mas a impotência psicóide. O borderline ferido em seu narcisismo sente-se impotente e dissocia sua onipotência. Esta, porém, vai reaparecer logo adiante, sendo então este o momento em que a impotência é colocada numa gaveta, não influindo no impulso de onipotência. No neurótico, não havendo esta dissociação, o fracasso vai atuar diretamente na onipotência transformando-a em potência. No borderline há uma alternância impotência-onipotência que permanecem dissociados. O borderline quer ver imediatamente realizados seus desejos infantis grandiosos. Neste sentido ele pode ser implacável, usando de todos os recursos, inclusive os anti-sociais, aqueles que são contra a lei, para atingir os seus objetivos. E ele o faz sem culpa. Grinker fala de quatro graus de borderline. Influenciado por ele propus em um de meus escritos três tipos de borderline: o borderline próximo à psicose (borderline pesado) o borderline falso-self e o borderline próximo à normalidade da pós-modernidade (borderline brando). Proponho que para essa apresentação pensemos em dois tipos de borderline. O borderline fechado que corresponde ao falso-self winnicottiano, e o borderline aberto do qual Winnicott praticamente não fala. No borderline fechado falso-self a destrutividade aparece em condições protegidas, como vemos no depoimento corajoso de Margaret Little em seu livro sobre seu tratamento 4 com Winnicott. No borderline pesado aberto a destrutividade pode aparecer em qualquer situação. Vejamos agora as diferenças entre borderline e tendência anti-social no que diz respeito às formulações winnicottianas referentes ao desenvolvimento. Para Winnicott o borderline não terá tido uma mãe suficientemente boa na fase de dependência absoluta. Eu preferiria reservar esta fase para a psicose deixando para o borderline a referência de uma fase de transição entre dependência absoluta e relativa mal vivida. A mãe do borderline pode ser pensada como uma mãe instável, ambivalente. Ela inconscientemente deseja manter o filho numa relação de fusão e simbiose e conscientemente o impele para a autonomia das grandes realizações. Estamos numa relação de duplo vínculo. A conseqüência é uma personalidade desorientada, revoltada, lutando desesperadamente contra algo desconhecido que tenta destruir para não ser destruído. Esta agressividade errante é dirigida para o social provocando comportamentos perversos e destrutivos: briga, quebraquebra, estupro, provocações diversas, etc. Trata-se de uma agressividade impulsiva, uma forma de descarregar uma raiva que se alimenta da situação de duplo vínculo, da revolta que ele não sabe contra quem dirigir. Não é um pedido de socorro, não tem o objetivo inconsciente de mobilizar o ambiente, não é um recado. Nisto difere da agressividade e da transgressão da tendência anti-social como veremos a seguir. A tendência anti-social pressupõe um período de dependência absoluta suficientemente bem vivido, com uma mãe suficientemente boa fornecendo um ambiente suficientemente bom para seu bebê. Somente na fase de dependência relativa é que a mãe falha além do necessário quando então o bebê deprivado realiza atos anti-sociais. “... existe agora um amplo 5 reconhecimento da relação existente entre a tendência anti-social em indivíduos e a privação emocional, tipicamente no final da fase de bebê de colo e logo que a criança começa andar, entre um e dois anos de idade” (p.503)5. “Uma declaração abrangente do que é deprivação incluiria tanto a deprivação mais antiga quanto a tardia, tanto o trauma definido quanto uma condição traumática constante, tanto uma deprivação próxima da normal quanto uma claramente anormal”(p.309)6 Antes de prosseguir devo recordar a diferença entre privação e deprivação (essa palavra é um neologismo). Quando falamos de privação referimo-nos a uma falha que existe desde o início da vida do bebê; o bebê privado nunca conheceu um acolhimento suficientemente bom. Já deprivação refere-se a uma criança que teve um atendimento satisfatório e que depois o perdeu, foi deprivada do que já tinha tido. A mãe suficientemente boa na fase da dependência relativa terá de falhar para que a individuação possa ocorrer. É um paradoxo: a falha não é uma falha, mas uma necessidade; ela falhará se não falhar. Poderá, porém, falhar um pouco além do necessário e certamente o fará, pois ela não é uma mãe infalivelmente boa, mas sim uma mãe suficientemente boa. Este um pouco a mais provocará no filho manha, dificuldades na alimentação, problemas de sono, bagunça, amolação, enurese, teimosia, etc. Todos estes comportamentos, desde que não excessivos e, portanto, passageiros e controláveis pertencem àquela tendência anti-social que ainda pode ser denominada “normal” e que é precursora do TAS tout court. Esta ocorrerá 5 Winnicott, D.W. – “ A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL” In “Da pediatria à psicanálise” Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves, 1978. 6 “The comprhensive statement of deprivation, one that includes both the early and the late, both the pinpoint trauma and the sustained traumatic condition and also both the near normal and the clearly abnormal”. WINNICOTT, D.W. – “THE ANTISOCIAL TENDENCY” In “ Trough Paediatrics to Psycho-Analysis”. Basic Books, Inc., Publishers, New York, 1975. 6 quando a falha materna for excessiva (e aí podemos falar de uma mãe não suficientemente boa). Neste caso, diz-nos Winnicott, a ausência da mãe supera a capacidade do bebê em manter no psiquismo a lembrança da mãe. Aqui temos uma diferença da mãe do borderline que permanece presente, embora instável. Na tendência anti-social propriamente dita a criança passa sistematicamente a roubar e/ou apresentar um comportamento destrutivo. O roubo da criança de TAS tem a intenção inconsciente de reaver a mãe no objeto roubado e de chamar a atenção sobre si, tentando recuperar o cuidado perdido. A criança rouba não propriamente o objeto, mas a mãe que lhe pertence e que se formou no seu espaço subjetivo durante a fase de dependência absoluta. Winnicott: “Ao roubar açúcar o que uma criança busca é uma mãe boa, a sua própria, de quem possa obter toda a doçura a que tem direito. De fato, toda essa doçura lhe pertence, pois ele a inventou a partir de sua própria criatividade primária...”7 Destrutividade: não tendo recebido a atenção da mãe e, portanto, não tendo tido os limites carinhosos dos braços da mãe, a criança fica a mercê de seus impulsos amorosos cruéis e de sua agressividade instintiva desordenada. O lar deixa de ser um lugar de estabilidade. Seus atos agressivos e destrutivos têm a finalidade de chamar a atenção, sim, mas principalmente de tentar recuperar a estabilidade e os limites de que necessita para poder se desenvolver sem ansiedades excessivas. Ele então provoca o ambiente, obrigando-o a levá-lo em conta e a tomar providências. Este ambiente pode ser “o corpo da mãe, os braços da mãe, a relação parental, o lar, a família, incluindo primos e parentes próximos, 7 WINNICOTT, D.W., citado por JAN ABRAM em “A linguagem de Winnicott”, p.44. Ed.Revinter, Rio de Janeiro, 2000. 7 a escola, a localidade com suas delegacias de polícia, o país com suas leis”8 (Winnicot: “Da Pediatria...” “A tendência anti-social” p.505). Vemos então que a atividade anti-social da TAS tem uma intencionalidade, manda um recado, tem uma significação, é um apelo, um pedido de socorro, convoca uma mobilização e uma modificação do ambiente. São, como diz Winnicott, atos compulsivos, repetitivos, plenos de sentido. Diferem dos atos anti-sociais do borderline que obedecem não à compulsividade, mas à impulsividade. São atos de descarrego, sem apelo, sem recado, sem intencionalidade. Originam-se em sentimentos de desespero, desorientação e desamparo produzindo uma raiva que não localiza seu objeto provocador, difundindo-se, por isso mesmo, pelo social, diferindo da tendência anti-social que embora também se espalhe pela socialidade conhece melhor, em algum nível, seu objeto motivador. Novembro/2005 8 WINNICOTT, D.W. – “A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL” In “Da pediatria à psicanálise”. Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1978.