Versão online: http://www.lneg.pt/iedt/unidades/16/paginas/26/30/185 Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial III, 1237-1239 IX CNG/2º CoGePLiP, Porto 2014 ISSN: 0873-948X; e-ISSN: 1647-581X Abordagens geológicas na obra de Machado de Assis: lampejos da cultura científica no Brasil do século dezanove Geological approaches in Machado de Assis writings: flashes of the Natural Sciences in the Brazilian Culture of the Nineteenth Century L. A. Chieregati1 Artigo Curto Short Article © 2014 LNEG – Laboratório Nacional de Geologia e Energia IP Resumo: Na segunda metade do Século XIX, antes mesmo da fundação dos primeiros cursos de geologia e mineração no Brasil, Machado de Assis, o “Escritor Número um do Brasil” mostrava ser entusiasta da geologia. A partir de 1873, entre romances e escritos menores são encontradas abordagens sobre aspectos variados da geologia e mineralogia, bem como sobre física, astronomia e outros temas das ciências naturais, os quais se destacam pela precisão dos conceitos e forma de abordagem. Machado de Assis talvez tenha sido o primeiro autor a utilizar o termo “aluvião” no sentido de imensidão, grande quantidade: “...durante esse tempo ia o poeta tirando do bolso uma aluvião de papéis...” (Histórias da meia-noite, 1873). Em gemologia, diferentemente da maioria dos autores que em geral restringem-se aos clássicos “diamantes, rubis e esmeraldas”, na obra de Machado há frequentes referências a minerais menos comuns na literatura novelesca, como opalas, granadas e pedra-da-lua. É maravilhoso constatar sua referência à safira como mineral ao invés de gema ou pedra preciosa, repassando ao leitor uma informação mais profunda sobre o assunto “... onde o roupão era preso por um pequeno broche de safira. Um botão do mesmo mineral fechava em cada pulso as mangas estreitas...” (A mão e a luva, 1874). Em outras obras Machado de Assis demonstra erudição aprofundada sobre conceitos geológicos mais comuns, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), na qual ele traça um paralelo entre o caráter de seu personagem Lobo Neves e a resistência das rochas ao intemperismo “... sim, essas camadas de caráter, que a vida altera, conserva ou dissolve conforme a resistência delas”. No trabalho são apresentados outros exemplos da erudição científica e geológica do escritor ao mesmo tempo que se tenta responder a uma intrigante pergunta: de onde proveio a cultura geológica de Machado de Assis?. Palavras-chave: Brasil, Literatura, Geologia, Divulgação das geociências. Abstract: In the middle of the nineteenth century, even before the establishment of the first courses on Mining and Geology in Brazil, Machado de Assis, so called the Brazil’s Number One Author, proved to be an enthusiast on geology. From 1873 to the early 1900’s, the author’s novels and tales show a dozen of references to geological and mineralogical subjects, as well as on physics, astronomy and other natural sciences. Machado de Assis was, perhaps, the first author using the term alluvium with the meaning of great amount of “During this time the poet was taking an alluvium of paper out of his pocket”, (Midnight Tales, 1873). While many authors have a restrict knowledge on minerals and gems, Machado de Assis does not restrict himself to mentioning just the classic diamonds, emeralds and rubies. In his works we can easily find abundant reference to less common minerals in literature such as opals, garnet and adular moonstone. It is so beautiful the way he reinforces sapphire as a mineral instead of the commonest reference as precious stone “… where the robe was closed by a small brooch of sapphire. A button of the same mineral closed in each wrist the narrow sleeves” (The hand and the glove, 1887). In many other novels, Machado de Assis exhibits his erudition on mineralogy and geology, but none like in Assis’ bestseller, The posthumous memoirs of Bras Cubas (1881), where he compares Mr. Lobo Neves’ character with the rock resistance to weathering processes: “… yes, those layers of character, that life changes, preserves or dissolves according to their resistance”. This paper presents a number of Machado de Assis’ references to geological subjects and tries to answer an intriguing question: Where does his geological culture come from?. Keywords: Brazil, Literature, Geology, Promoting geosciences. 1 CPRM-Serviço Geológico do Brasil. E-mail: [email protected] 1. A descoberta Machado de Assis foi um escritor fantástico; sua erudição e versatilidade levaram- no a abordar as mais variadas facetas do comportamento e do conhecimento humanos ao longo dos seus 53 anos de produção literária. Passados mais de cem anos de seu falecimento, sua obra continua ainda uma fértil fonte de estudos, dando ensejo a mais de 150 monografias – Dissertações de Mestrado e Teses de Doutoramento – defendidas no Brasil e no exterior. Aspectos como humanismo, modernidade, instinto de nacionalidade, metafísica, psicanálise, intersexualidade, feminismo, estética, ética, poesia, contraponto (realismo & alegorias, ironia & humor, arquétipos & mitos) e música estão entre os muitos temas identificados e pesquisados em sua obra. As abordagens de temas científicos, a geologia entre elas, são um aspecto ainda pouco explorado pelos entusiastas da literatura machadiana, talvez por se tratar de tema de restrito domínio público, passando assim despercebidas pela maioria dos leitores. Entretanto, o leitor mais familiarizado irá notar que mesmo antes da instalação da primeira escola de Minas e Geologia no país, esse que é conhecido como “Escritor Número um do Brasil” demonstrou ser um entusiasta da geologia. No momento atual, ao tempo em que se discute Educação em Geociências, seu alcance social e novas formas de inserção do conhecimento geológico na cultura dos povos, um “passeio” sobre a literatura de Machado de Assis pode nos 1238 L. A. Chieregati / Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial III, 1237-1239 revelar agradáveis surpresas. 2. O tempo de Machado de Assis Machado de Assis viveu numa época impar da história brasileira: a passagem do Império para a República. Se a vinda da corte de Lisboa para o Brasil marcou o nascimento do País como nação autônoma, o período do Segundo Império marcou o nascimento do Brasil para as ciências e as artes. As visitas de naturalistas estrangeiros e as expedições científicas e culturais ao Brasil que haviam começado já na época de D. João VI, por provocação da corte, ganharam força durante Segundo Império. Graças à visão progressista de D. Pedro II, promovendo reformas administrativas e favorecendo a vinda de inovações tecnológicas ao Brasil (fotografia, telégrafo e estrada de ferro) foram consolidadas as bases para a modernização do velho Império. D. Pedro II tinha especial interesse pelas ciências naturais, uma herança, talvez, longínqua de seu tutor, o político e cientista José Bonifácio. Evidências desse apreço estão traduzidas na contratação do astrônomo francês Emmanuel Liais para o Observatório Imperial (1871), a criação da Comissão Geológica do Império (1875) trazendo ao Brasil personalidades geológicas de vulto, como Charles Frederick Hartt, Orville A. Derby e a estruturação da Escola de Minas de Ouro Preto, por Claude Henri Gorceix, em 1876. Em meio a esse clima de florescimento científico Machado de Assis, já, então, um reconhecido escritor, era nomeado (1873) Primeiro Oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, pasta à qual estavam subordinados os serviços de geologia da época do Império. Machado de Assis não deixaria passar essa oportunidade em vão. Certamente ampliou seu ciclo de amizades e travou proveitosos diálogos com cientistas e pesquisadores estrangeiros que aqui aportavam em busca de novidades para o Velho Mundo. As impressões aprendidas pelo escritor nessas novas fontes de conhecimento podem ser resgatadas em grande parte de sua obra: da botânica à geologia, da física à astronomia, Machado de Assis navega em seus livros com a mesma facilidade com que destrincha as mazelas da alma humana e as minúcias do cotidiano do cidadão comum. 3. As abordagens geológicas A inserção de termos e conceitos naturalistas na obra machadiana aparece pela primeira vez de forma tímida, numa coletânea de contos publicada em 1873 sob o título Histórias da Meia-Noite. No conto A Parasita Azul encontramos a seguinte passagem: “...disse o Comendador ao naturalista, se este pequeno vingar, hei de manda-lo para a sua terra, a aprender medicina ou qualquer outra coisa em que se faça homem. No caso de lhe achar jeito para andar com plantas e minerais, como o senhor...”. Fica evidente nessa passagem, o entusiasmo de Machado Assis pela História Natural e, em particular, pelas excursões naturalistas que vieram ao Brasil na segunda metade do século XIX. É provável que Machado de Assis tenha sido o primeiro autor a fazer uso do termo aluvião no sentido figurado de imensidão, conforme consta numa passagem de outro conto, Aurora sem Dia, da mesma coletânea: “Durante esse tempo ia o poeta tirando do bolso uma aluvião de papeis”. Em pesquisa efetuada por este autor em dicionários etimológicos foi encontrada, sistematicamente, como exemplo da sinonímia a passagem acima referida. Abordagens a minerais e gemas aparecem em diversos romances e contos (A Mão e a Luva, 1874; Helena, 1876; Iaiá Garcia, 1878; Papéis Avulsos - contos, 1882). Observamos nas citações uma erudição que extrapola a de seus colegas contemporâneos, pois Machado não se restringe aos “clássicos” diamantes, rubis e esmeraldas, mas vai um pouco além, mencionando opalas, granadas e pedra da lua (adulária), gemas de uso menos comum na literatura da época. Digno de atenção é seu cuidado em emitir uma informação de modo preciso como nesta passagem de A Mão e a Luva (Cap. III - Ao pé da cerca) (1874): “...onde o roupão era preso por um pequeno broche de safira. Um botão, do mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas...” (Cap. III - Ao pé da cerca). O uso do termo mineral para designar a safira merece destaque. O mais comum em nossa literatura seria o emprego da palavra pedra ou gema. Além disso, o fato de a menção estar entre vírgulas, num contexto de sintaxe onde elas poderiam ser dispensadas, reforça ainda mais o destaque que o autor quis repassar ao leitor. No período subsequente (década de 1880), Machado de Assis aprofunda-se ainda mais no uso de conceitos geológicos. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), no capítulo 87, apropriadamente intitulado Geologia, ao descrever o temperamento e o caráter de um de seus personagens introduz, a um só tempo, diversos conceitos e fatos do universo geológico: “... havia no Lôbo Neves certa dignidade fundamental, uma camada de rocha que resistia ao comércio dos homens. As outras, as camadas de cima, terra solta e areia, levou-lhas a vida, que é um enxurro perpétuo”. Observa-se aqui a aplicação de dois conceitos geológicos: o do empilhamento de camadas e o dos processos erosivos. No parágrafo seguinte continua abordando a geologia de forma mais explícita e apresenta um dos mais belos aforismos sobre personalidade humana por meio de conceitos da geologia, ao comparar a rigidez do caráter de seu personagem com a resistência que as rochas oferecem às transformações: “O que é novo neste livro é a geologia moral do Lôbo Neves, ... Sim, essas camadas de caráter, que a vida altera, conserva ou dissolve, conforme a resistência delas”. Machado de Assis não se aventura apenas nas Ciências Geológicas; em Histórias sem data (1884) ele experimenta os labirintos da física em dois contos: Noite de Almirante e Ex-Cathedra. No primeiro encontramos uma belíssima alusão ao episódio da “queda da maçã”, que levou Newton a formular a teoria da gravitação universal: “Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre da física lhe explicaria a queda das pedras” (Noite de Almirante, op.cit., p. 155). No segundo conto, discorrendo Geologia na obra de Machado de Assis sobre questões do “coração” Machado dispara: “os dissabores nas relações do coração provinham de que o amor era praticado de um modo empírico; faltava-lhe a base científica” (Ex-Cathedra, op. cit., p. 174). A questão geológica retorna no parágrafo seguinte: “Estava atordoado, deslumbrado, delirante. Foi às estantes, desceu alguns tomos, astronomia, geologia, fisiologia, anatomia, jurisprudência, política, linguística, abriu-os, folheouos...” (Ex-Cathedra, ibid.). Observa-se mais uma vez a importância dispensada aos temas científicos astronomia e geologia que disputam a primazia dentre sete temas, numa época em que praticamente inexistiam publicações científicas que pudessem constar da biblioteca de um cidadão comum. Fechando este texto, mas sem esgotar os exemplos das abordagens geológicas de Machado de Assis, apresentamos aqui uma passagem encontrada em Dom Casmurro (1889) que talvez encerre uma das mais contundentes alusões ao cotidiano do trabalho geológico: “Os amigos que me restam são de data recente. Todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos”. 4. Considerações finais A Geologia é uma das ciências que mais tem fascinado o homem através dos tempos. Contudo, por ser uma das ciências naturais de desenvolvimento mais tardio encontra-se ainda pouco consolidada e difundida no meio social. Assim, se por um lado, é compreensível o interesse que a ciência desperta no maior escritor brasileiro, de outro lado é surpreendente constatar a desenvoltura com que ele maneja conceitos aprendidos 1239 numa época em que começávamos a estruturar o ensino de ciências no País. Nesse contexto, considerando o momento cultural, político e social da época em que viveu, podemos afirmar que Machado de Assis, além de escritor novelista, foi também um cronista do trabalho de sua época. Referências Salvo indicação em contrário, os dados referenciados são da coletânea “Obras completas de Machado de Assis”. Globo, São Paulo, Globo, 1997. Assis, M., 1873. Histórias da Meia-Noite (contos). A Parasita Azul, p. 5. Assis, M., 1874. A Mão e a Luva. Cap. III – Ao pé da cerca, p. 3. Assis, M., 1876. Helena. Cap. V, p. 25. Assis, M., 1878. Iaiá Garcia. Cap. VII, p. 84. Assis, M., 1881. Memórias póstumas de Brás Cubas. Cap. LXXXVII – Geologia, p. 117. In: Os Imortais da Literatura Universal, vol. 16 (1). Abril Cultural, São Paulo, 1971. Assis, M., 1882. O segredo de Bonzo. In: C.A.N. Passoni, (Organ.). Machado de Assis. Contos escolhidos. p. 45. Ed. Núcleo, São Paulo, 1994. Assis, M., 1884. Histórias sem data (contos). Noite de Almirante. p. 155. Assis, M., 1884. Histórias sem data (contos). Ex Cathedra, p. 174. Assis, M., 1889. Dom Casmurro. Cap. II, p. 178. In: Os Imortais da Literatura Universal. vol. 16 (2). Abril Cultural, São Paulo. Assis, M., 1899. Páginas recolhidas (contos). Ideias do Canário, p. 99. In: I. Marques, (Organ.). O Espelho e outros contos machadianos. Ed. Scipione, São Paulo. Assis, M., 1904. Esaú e Jacó. Cap. LXXIII, p. 151.