Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma
publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp
(Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde,
Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de
Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida
para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a
formação de profissionais de saúde (universitária e
continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a
Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à
pesquisa qualitativa.
Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an
interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo
State University (Laboratory of Education and
Communication in Health, Department of Public Health,
Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences
Institute), focused on Education and Communication in the
healthcare practices, Health Professional Education (Higher
Education and Inservice Education) and the interface of
Public Health with Philosophy and Human and Social
Sciences. Qualitative research is emphasized.
Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una
publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp –
Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y
Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de
la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias,
campus de Botucatu), destinada a la Educación y la
Comunicación en las practicas de salud, la formación de los
profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la
Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las
Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación
cualitativa.
EDITORES/EDITORS/EDITORES
Antonio Pithon Cyrino, Unesp
Lilia Blima Schraiber, USP
Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp
EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/
EDITORAS ASISTENTES
Margareth Santini de Almeida, Unesp
Túlio Batista Franco, UFF
Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação
EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA
Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP
Charles Dalcanale Tesser, UFSC
Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp
Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP
Eunice Nakamura, Unifesp
Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp
Márcia Thereza Couto Falcão, USP
Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL
Silvio Yasui, Unesp
Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp
Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ
EDITORAS DE CRIAÇÃO /CREATION EDITORS/EDITORAS
DE CREACIÓN
Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP
Mariângela Quarentei
Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación
Eduardo Augusto Alves Almeida, USP
Eliane Dias de Castro, USP
Gisele Dozono Asanuma, USP
Renata Monteiro Buelau, USP
Capa/Cover/Portada: Radilson Carlos Gomes, Foto Saúde
P
ES
M
FA
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL
BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO
Adriana Kelly Santos, UFV
Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal
Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES
Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp
André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ
Andrea Caprara, UECE
António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal
Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ
Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa
César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia
Charles Briggs, UCSD, USA
Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS
Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp
Denise Martin Coviello, Unifesp
Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México
Elen Rose Lodeiro Castanheira, Unesp
Eliane Dias de Castro, USP
Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz
Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN
Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr
Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Inesita Soares de Araújo, Fiocruz
Jairnilson da Silva Paim, UFBa
José Carlos Libâneo, UCG
José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI
José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP
Laura Macruz Feuerwerker, USP
Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS
Leonor Graciela Natansohn, UFBa
Luciana Kind do Nascimento, PUC/MG
Luis Behares,Universidad de la Republica Uruguaia
Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ
Magda Dimenstein, UFRN
Mara Regina Lemes de Sordi, Unicamp
Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei
Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz
Maria Cristina Davini, OPAS/OMS, Argentina
Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES
Maria Dionísia do Amaral Dias, UNESP
Maria Isabel da Cunha, Unisinos
Maria Ligia Rangel Santos, UFBa
Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz
Marilia Freitas de Campos Tozoni Reis, Unesp
Marina Peduzzi, USP
Miguel Montagner, UnB
Marli Elisa Dalmaso Afonso D’André, PUCSP
Nildo Alves Batista, Unifesp
Paulo Henrique Martins, UFPE
Regina Duarte Benevides de Barros, UFF
Reni Aparecida Barsaglini, UFMT
Ricardo Burg Ceccim, UFRGS
Ricardo Fabrino Mendonça, UFMG
Ricardo Rodrigues Teixeira, USP
Richard Guy Parker, Columbia University, USA
Robert M. Anderson, University of Michigan, USA
Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE
Roberto Passos Nogueira, IPEA, DF
Roger Ruiz-Moral, Universidade de Córdoba, Espanha
Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar
Roseni Pinheiro, UERJ
Russel Parry Scott, UFPE
Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC
Simone Mainieri Paulon, UFRGS
Sérgio Resende Carvalho, Unicamp
Vânia Moreno, Unesp
PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO
Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto
gráfico-textual
Mariângela Quarentei, Unesp
Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação
Identidade visual/Visual identity/Identidad visual
Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign
Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración
electrónica
Adriana Ribeiro
ISSN 1807-5762
Radilson Carlos Gomes - Foto Saúde
O
FURACÃ
O
D
O
H
NO OL
DESMONTAGEM
CIAS
BIOCIÊN
PRODUÇÃO DE
ENCONTRO
ESTILOS
DE V
ARRISCA IDA
DOS
TECNOLOGIA
O
CAMP
E
D
O
ALH
TRAB
CON
DIÇ
ÃO
HUM
ANA
COMUNICAÇÃO
SAÚDE
RESIDÊNCIA
RIA
Ó
T
S
HI
DINAMICA EDUCATIVA
PROFISSIONAL-PACIENTE
PEDAGOGIAS CULTURAIS
IDENTIDADES EMERGENTES
GRUPO PSICOEDUCATIVO
EDUCAÇÃO
FOTOGRAFIA
METODOLOGIAS ATIVAS/
PARTICIPATIVAS
PROVIMENTO
DE MÉDICOS
DISPOSITIVO
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, out./dez. 2013
Interface - comunicação, saúde, educação/
UNESP, v.17, n.47, out./dez. 2013
Botucatu, SP: UNESP
Trimestral
ISSN 1807-5762
1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde
3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação
5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde
I UNESP
Filiada à
A
B
E
C
Associação Brasileira de
Editores Científicos
comunicação
saúde
educação
v.17, n.47, out./dez. 2013 ISSN 1807-5762
757
editorial
artigos
759 Residências em Saúde:
o que há nas produções de teses e dissertações?
debates
913 Como o Brasil tem enfrentado o tema
provimento de médicos?
Mônica Sampaio de Carvalho; Maria Fátima de Sousa
Daniela Dallegrave; Ricardo Burg Ceccim
777 Efeitos de intervenção psicoeducativa sobre
a utilização de serviços de saúde por homens idosos
Lilian Maria Borges; Eliane Maria Fleury Seidl
927
929
931
933
789 O uso da argumentação científica na opção
por estilos de vida arriscados no cenário da aids
Renata Bellenzani; Maria Ines Baptistella Nemes;
Vera Paiva
835 Formação e qualificação: um estudo
sobre a dinâmica educativa nas equipes de saúde
mental do Rio de Janeiro, Brasil
Maria Paula Cerqueira Gomes; Ana Lúcia Abrahão;
Flávia Fasciotti Macedo Azevedo; Rita de Cássia
Ramos Louzada
847 Identidade da agente comunitária de saúde:
tecendo racionalidades emergentes
937 O impacto da extensão universitária
sobre a formação acadêmica em Odontologia
Cristina Berger Fadel; Danielle Bordin; Eunice Kuhn;
Luciana Dorochenko Martins
947 O trabalho de campo como dispositivo de ensino,
pesquisa e extensão na graduação de Medicina
e Odontologia
Carlos Dimas Martins Ribeiro; Ivia Maksud; Lilian
Koifman; Márcia Guimarães de Mello Alves; Mônica
Villela Gouvêa
959 Metodologias participativas no ensino da
administração em Enfermagem
Carmen Elizabeth Kalinowski; Reinaldo Miguel Dolny
Massoquetti; Aida Maris Peres; Liliana Müller
Larocca; Isabel Cristina Kowal Olm Cunha; Luciana
Schleder Gonçalves; Riciana do Carmo Calixto
Natália Hosana Nunes Rocha; Marisa Barletto; Paula
Dias Bevilacqua
859 Por uma educação que se movimente como maré
e inunde os cotidianos de serviços de saúde
Dagmar Estermann Meyer; Jeane Félix; Michele de
Freitas Faria de Vasconcelos
Alcindo Antônio Ferla; Lisiane Bôer Possa
Laura Camargo Macruz Feuerwerker
Marco Aurelio Da Ros
Réplica
espaço aberto
George Moraes De Luiz
803 Comunicação profissional-paciente e cuidado:
avaliação de uma intervenção para adesão ao
tratamento de HIV/Aids
debatedores
969 Metodologias ativas de ensino-aprendizagem
para educação farmacêutica:
um relato de experiência
Jane Beatriz Limberger
873 Os domínios da Tecnologia Educacional
no campo da Saúde
Grasiele Nespoli
977
livros
Denise Mourão Falci; Soraya Almeida Belisário
987
teses
901 Contribuição ao estudo do imaginário social
contemporâneo: retórica e imagens das biociências
em periódicos de divulgação científica
991
notas breves
885 A inserção do profissional de educação física
na atenção primária à saúde e os desafios
em sua formação
Madel Therezinha Luz; Cesar Sabino; Rafael da
Silva Mattos; Alcindo Antônio Ferla; Barbara
Andres; Rafael Dall Alba; Anderson dos Santos
Machado; Richard Assimos
criação
995 Uma desmontagem humanizada através de
fotografias em Saúde Coletiva
Carlos Alberto Severo Garcia Júnior; Radilson Carlos Gomes
DOI: 10.1590/1807-57622013.0982
editorial
Interface – Comunicação, Saúde, Educação nos 15 anos da Rede SciELO
Os editores dos periódicos científicos da América Latina, Caribe, Espanha, Portugal e
África do Sul tiveram muito a comemorar neste ano: os 15 anos de intensa atividade e
expansão da Rede SciELO de bibliotecas nacionais de acesso aberto aos periódicos científicos
mais importantes dos países que a integram. Neste curto espaço de tempo a Rede SciELO
tornou-se uma referência mundial de publicação de acesso aberto, como foi destacado por
todos os convidados internacionais que participaram do evento comemorativo de seus 15
anos, realizado em outubro último em São Paulo.
Nosso periódico, criado poucos meses antes da SciELO, após seu ingresso na Biblioteca
SciELO Brasil ,em 2005, alcançou um crescimento de quase 500% de suas submissões, em
apenas três anos. Tal mudança representou um enorme desafio de organização de nosso
trabalho editorial em suas diferentes etapas: do julgamento do mérito científico ao projeto
gráfico-textual de cada fascículo. O crescimento das submissões tem se mantido e neste ano
já ultrapassamos a marca recorde de 800 submissões, das quais cerca de 700 são artigos
originais.
Nesses oito anos de presença da Interface na Biblioteca SciELO Brasil, nosso desafio tem
sido acompanhar as propostas de aprimoramento da comunicação científica apresentadas por
ela. Assim, para reduzir custos e prazos entre submissão e publicação, passamos a utilizar os
sistemas de gerenciamento editorial online disponibilizados pela biblioteca (SciELO
Submission, inicialmente, e ScholarOne, a partir de 2013) e a publicação pré-impressão
(ahead of print) dos artigos aprovados. Mais recentemente, adotamos a publicação de press
releases dos artigos publicados em nosso Blog e também no Blog das Ciências Humanas da
SciELO, lançado durante a conferência dos 15 anos, e já no próximo fascículo, em nossa
página na SciELO Brasil. Ao mesmo tempo, a presença mais recente de Interface nas redes
sociais (Blog, Facebook, Twitter) é também resultado de um esforço da SciELO junto aos
editores dos periódicos da rede para aumentar a visibilidade do que têm publicado junto à
comunidade científica e, também, a um público mais amplo, buscando maior impacto social.
A recente seleção da revista Interface para integrar a coleção SciELO Saúde Pública,
coleção temática da Rede SciELO, é outra conquista que queremos partilhar com nossos
colaboradores. A coleção reúne 15 periódicos da área, quatro dos quais brasileiros. Com a
entrada de nosso periódico nesta coleção a produção nacional do campo das Ciências Sociais
e Humanas em Saúde alcançará uma maior visibilidade internacional. A integração a essa
base ocorrerá em 2014, pois exigirá a mudança das normas bibliográficas da ABNT para
Vancouver.
Para ampliar a comentada difusão internacional do que temos publicado em nosso
periódico, em 2013 passamos a subsidiar a tradução de parcela dos artigos publicados para a
língua inglesa, como parte dos esforços para ampliar a difusão internacional da produção
científica nacional.
Para o próximo ano teremos outros desafios à frente, dos quais o maior é a
profissionalização do trabalho editorial. Para atingir esta meta, será preciso buscar um
financiamento público estável e suficiente, dado que descartamos a possibilidade de cobrar
dos autores a submissão e/ou publicação de manuscritos. Neste sentido, é grande nossa
expectativa com o “Projeto para o aperfeiçoamento da gestão e dos serviços de editoração e
publicação dos periódicos brasileiros de saúde coletiva”, sob a coordenação da SciELO e da
Abrasco e com apoio do Ministério da Saúde. Espera-se que, com o esforço coordenado e
articulado destas duas instituições com os periódicos do campo, possamos assegurar a
profissionalização crescente de nosso trabalho editorial.
Antonio Pithon Cyrino, Lilia Blima Schraiber, Miriam Foresti
Editores
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.757, out./dez. 2013
757
DOI: 10.1590/1807-57622013.0983
Interface – Comunicação, Saúde, Educação at the 15th anniversary of the SciELO network
The editors of scientific journals in Latin America, the Caribbean, Spain, Portugal and South
Africa have had much to commemorate this years: the 15 years of intense activity and expansion
of the SciELO network of national libraries with open access to the most important scientific
journals of the countries that form part of this network. Over this short space of time, the SciELO
network has become a worldwide reference point for open-access publication, as was highlighted
by all the guests from many countries who had been invited to participate in the event
commemorating its 15th anniversary, which was held in São Paulo last October.
Our journal was created just a few months before SciELO and, after entering the SciELO Brazil
library in 2005, it achieved growth of submissions of almost 500% in only three years. This
change represented an enormous organizational challenge for our editorial work in its different
stages, from assessing the scientific merit to producing the graphical-textual layout for each
edition. The growth of submissions has been maintained and, this year, we have already
surpassed the record milestone of 800 submissions, of which around 700 are original articles.
Over these eight years in which Interface has been present in the SciELO Brazil library, our
challenge has been to follow along with the proposals for improvement of scientific
communication that it has presented. Thus, to reduce costs and time periods between submission
and publication, we have started to use the online editorial management systems that are made
available by the library (SciELO Submission, initially, and ScholarOne, from 2013) and ahead-ofprint publication of approved articles. More recently, we have started to publish press releases of
articles published in our blog and also in SciELO’s Human Sciences blog, which was launched
during the 15th anniversary conference, and now in the next edition, on our page of SciELO Brazil.
At the same time, Interface’s most recent presence (in the social networks of blogs, Facebook
and Twitter) also results from efforts made by SciELO among journal editors of the network,
aimed at increasing the visibility of what has been published, not only within the scientific
community but also among the broader public, thereby seeking a greater social impact.
The recent selection of the journal Interface to form part of the SciELO Public Health
collection, which is a thematic collection within the SciELO network, is another achievement that
we wish to share with our collaborators. This collection brings together 15 journals within this
field, of which four are Brazilian. With the entry of our periodical into this collection, the Brazilian
production within the field of Social and Human Healthcare Sciences will attain greater
international visibility. Integration into this database will take place in 2014, since it will require
changing the bibliographic standards from ABNT to Vancouver.
To expand the international diffusion of what we have published in our journal (as commented
previously), in 2013 we started to subsidize the English-language translation of a proportion of the
articles published, as part of the efforts to broaden the international dissemination of Brazilian
scientific production.
For the coming year, we will have other challenges ahead of us, among which the biggest is
to professionalize the editorial work. To achieve this aim, it will be necessary to seek stable and
sufficient public funding, given that we dismiss the possibility of charging authors for submission
and/or publication of manuscripts. In this regard, we have great expectations from the “Project to
improve the management and the editing and publishing services of Brazilian public health
journals”, which is coordinated by SciELO and ABRASCO and is supported by the Ministry of
Health. It is hoped that, through the coordinated and interlinked efforts of these two institutions
in relation to journals within the field, we will be able to ensure increasing professionalization of
our editorial work.
Antonio Pithon Cyrino, Lilia Blima Schraiber, Miriam Foresti
Editors
758
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.758, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/S1414-32832013005000030
artigos
Residências em Saúde:
o que há nas produções de teses e dissertações?
Daniela Dallegrave1
Ricardo Burg Ceccim2
DALLEGRAVE, D.; CECCIM, R.B. Healthcare residency: what has been produced in
theses and dissertations?. Interface (Botucatu), v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013.
This article is about theses and
dissertations on Healthcare Residency
produced in Brazil between 1987 and
2011. Research on residency has
increased over recent years, and the
importance of in-service education as a
powerful method for developing
healthcare workers has been
demonstrated. This article presents 94
studies that were located in the thesis
database of the Capes portal, found
through the descriptors “residency +
health”, “preceptor” and “internship”.
It also discusses the descriptors that are
formally recommended and compares
them with the ones used by researchers
on this subject. Through the way that this
article is presented, the aim is to provide
an overview of the subject so that new
articles may be produced, thus further
enriching the scientific production in this
field and, consequently, the in-service
training carried out through healthcare
residency.
Keywords: Residence in health. Training
of health workers. In-service teaching.
Analisam-se teses e dissertações sobre
Residências em Saúde produzidas no Brasil
no período entre 1987 e 2011. As
pesquisas sobre as Residências têm
aumentado nos últimos anos,
demonstrando a importância da educação
pelo trabalho como metodologia potente
para formar trabalhadores da saúde.
Apresentam-se 94 estudos localizados a
partir do banco de teses do portal Capes,
com os descritores “residência + saúde”,
“preceptor” e “internato”. O texto
discute, ainda, os descritores formalmente
indicados, contrapondo com aqueles que
são utilizados pelos autores das pesquisas
sobre o assunto. O modo de apresentação
do artigo pretende oferecer um panorama
sobre a temática para que novos estudos
sejam produzidos, qualificando ainda mais
a produção científica na área e, por
consequência, a própria formação em
serviço que acontece por meio das
Residências em Saúde.
Palavras-chave: Residência em Saúde.
Formação de trabalhadores da saúde.
Ensino em serviço.
1
Grupo Hospitalar
Conceição/GHC – Brasil.
Rua Francisco Trein,
596, 3º andar, Bairro
Cristo Redentor. Porto
Alegre, RS, Brasil.
91350-200.
[email protected]
2
Programa de PósGraduação em Saúde
Coletiva, Universidade
Federal do Rio Grande
do Sul.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
759
RESIDÊNCIAS EM SAÚDE: O QUE HÁ ...
Residências em Saúde: para que pesquisar?
O tema da formação pelo trabalho vem crescendo nas pesquisas realizadas nos programas de pósgraduação no Brasil. Mais especificamente, observa-se um aumento nas produções acadêmicas sobre as
Residências em Saúde a partir da sua institucionalização, com a Lei 11.129 (Brasil, 2005).
Este artigo apresenta um panorama destas produções no período de 1987 a 2011. Destacamos, no
entanto, que não há uma restrição às produções sobre Residência Multiprofissional, e sim um
alargamento que abrange as pesquisas sobre Residência Médica também.
A intenção de escrever um texto deste cunho é subsidiar novos pesquisadores, ou seja, dar a
conhecer o que há, para que novos problemas de pensamento aconteçam.
Metodologia
Apresentamos aqui as pesquisas produzidas nos programas de pós-graduação stricto sensu,
localizadas através de busca feita no Portal de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Capes, o qual constitui um grande banco de dados sobre a produção dos programas de
pós-graduação stricto sensu do Brasil. Lá estão arquivados trabalhos produzidos em programas de
doutorado e de mestrado acadêmico e profissional. Os registros disponíveis referem-se às defesas
realizadas a partir de 1987. Os arquivos, na íntegra, não podem ser acessados por este portal, mas as
informações constantes permitem a busca nos sites das bibliotecas dos programas de origem.
A busca foi realizada em dezembro de 2012, com os termos “Residência Multiprofissional em
Saúde” e “Residência Integrada em Saúde”. Apareceram, respectivamente, 24 e dez registros. Com a
expressão “Residência em Área Profissional” foi encontrado um registro.
Optando pela busca das palavras Residência somada a Saúde, foram agrupados 986 registros. Após a
leitura de todos os títulos e alguns resumos (referentes aos trabalhos em que o título deixava dúvidas
sobre o conteúdo), foram excluídos os registros que não tratavam da temática da formação pelo trabalho
em saúde, restando 76. Da mesma forma, realizando busca com o termo Internato, foram obtidos 205
registros, dos quais restaram nove, e, com o termo Preceptor, foram obtidos noventa registros, restando
nove. Com essas buscas, também foi realizado o mesmo procedimento de seleção descrito
anteriormente.
Este artigo é oriundo da formulação de um projeto de tese. Para a construção que aqui segue, não
foram lidas todas as teses e dissertações referenciadas, e sim apenas os resumos. Como já transitamos
na temática das Residências há bastante tempo das nossas histórias de vida, conhecíamos a maioria dos
trabalhos na íntegra, fato que facilitou a organização deste material.
O total de registros analisados soma 94, sendo resultante da busca com os termos “Residência +
Saúde”, Internato, Preceptor. As informações foram transportadas para banco de dados próprio e
analisadas conforme descrição que segue. O objetivo deste procedimento foi conhecer que produções
estão sendo pensadas por pesquisadores brasileiros acerca da temática das Residências em Saúde, no
Brasil, no período de 1987 a 2011 (ano-fim disponível para busca no Portal Capes em dezembro de
2012).
O que encontramos?
As 94 teses e dissertações selecionadas estão distribuídas de acordo com o nível de formação, isto é,
se correspondem a trabalhos oriundos de mestrado acadêmico, mestrado profissional ou doutorado,
conforme a Figura 1.
A partir das ocorrências, percebe-se um grande número de trabalhos realizados em programas de
mestrado acadêmico (66%). As áreas dos programas nos quais estes trabalhos foram produzidos estão
distribuídas conforme o Quadro 1.
760
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
artigos
DALLEGRAVE, D.; CECCIM, R.B.
66%
22%
Mestrado Acadêmico
Doutorado
12%
Mestrado Profissional
Figura 1. Distribuição das teses e dissertações sobre Residências em
Saúde no Brasil, conforme nível de formação acadêmica, de 1987 a 2011
Quadro 1. Distribuição das teses e dissertações sobre Residências em Saúde,
conforme as áreas dos programas onde foram produzidas, de 1987 a 2011
Área do programa
N
%
Administração
1
1,06
Avaliação em saúde
1
1,06
Ciências da informação
1
1,06
Ciências e saúde
1
1,06
Ciências médicas
2
2,13
Ciências pneumológicas
1
1,06
Clínica médica
2
2,13
Cuidado primário em saúde
1
1,06
Educação
7
7,45
Educação em ciências e saúde
3
3,19
Educação especial
1
1,06
17
18,09
Ensino em ciências da saúde
2
2,13
Epidemiologia
2
2,13
Fonoaudiologia
1
1,06
Gastroenterologia
1
1,06
Medicina (medicina preventiva)
2
2,13
Pediatria
2
2,13
Medicina (radiologia)
2
2,13
Medicina (saúde mental)
1
1,06
Neurologia
1
1,06
Neuropsiquiatria e ciências do desenvolvimento
1
1,06
Odontologia
3
3,19
Psicologia
2
2,13
Psiquiatria e psicologia médica
7
7,45
Saúde
1
1,06
Saúde coletiva
9
9,57
Saúde da criança e do adolescente
1
1,06
Saúde da mulher e da criança
1
1,06
Saúde materno-infantil
1
1,06
13
13,83
3
3,19
94
100
Enfermagem
Saúde pública
Serviço social
Total
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
761
RESIDÊNCIAS EM SAÚDE: O QUE HÁ ...
Ao se observar o Quadro 1, pode-se perceber grande expressividade de programas de Enfermagem:
17 (18,09%), seguidos de Saúde Pública: 13 (13,83%) e Saúde Coletiva: 9 (9,57%). Além disso,
percebem-se diversidades nas áreas que pesquisam sobre o tema, tais como: enfermagem, psicologia,
serviço social, medicina, odontologia, fonoaudiologia, nutrição etc.
Ao se analisar a distribuição dos programas nos quais os trabalhos selecionados foram produzidos, de
acordo com as regiões do país, obtém-se o gráfico da Figura 2.
59%
24%
11%
Sul
Sudeste
Nordeste
Figura 2. Distribuição das produções de teses e dissertações sobre
Residências em saúde, conforme a região do programa de
pós-graduação, de 1987 a 2011
Observa-se que coincide, proporcionalmente, com essa distribuição da produção de teses e
dissertações, a distribuição dos programas de Residências Multiprofissionais no país.
Com relação ao ano de defesa das dissertações e teses, observa-se que há um aumento a partir do
ano de 2007 e, também, picos, nos anos de 2007 (nove ocorrências) e 2010 (15 ocorrências). Esse fato
pode estar relacionado à publicação da Lei Federal 11.129, no mês junho de 2005, a qual trata da
criação das Residências Multiprofissionais em Saúde. Ao somarem-se os períodos regulamentares dos
programas de mestrado (de 24 a trinta meses) e de doutorado (48 a sessenta meses) ao momento de
promulgação da lei, obtém-se o resultado dos períodos de maior ocorrência, os quais apontam para uma
tendência de aumento, uma vez que o maior número de pesquisas defendidas ocorreu em 2011, com
18 ocorrências, conforme Figura 3. A institucionalização das Residências em Saúde convoca, de certa
forma, novos problemas de pesquisa, ou atualiza os já existentes.
Com relação ao tipo de programa, o maior número de pesquisas refere-se a programas de
Residência Médica (41 – 43,62%), seguidos de programas de Residência Multiprofissional, com 36
(38,30%) pesquisas realizadas. Considerando-se que a Residência Médica foi instituída em 1981 (Brasil,
1981) e a Residência Multiprofissional em 2005 (Brasil, 2005), ou seja, uma diferença de 24 anos de
institucionalização (consideradas as datas das leis de suas criações), pode-se pensar que estão bem
próximas em quantidade de pesquisas produzidas.
Ainda, dentre esse número de pesquisas de Residências Multiprofissionais, podemos apontar para
estudos verificando a inserção de: assistentes sociais (Vargas, 2011; Closs, 2010), nutricionistas (Santos,
2009), enfermeiros (Bordinhão, 2010; Landim, 2009) e dentistas (Moschen, 2011), nesta modalidade de
Residência.
Observa-se, ainda, na Figura 4, que apenas 4% dos trabalhos se dedicaram a pesquisar os programas
de Residência Médica e Multiprofissional articulando a formação de trabalhadores da saúde nessas duas
modalidades.
762
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
artigos
DALLEGRAVE, D.; CECCIM, R.B.
80
18
18
16
15
14
12
10
10
8
7
6
4
2
3
1
1
87
19
90
19
1
4
2
2
2
1
3
6
5
4
3
3
3
0
93 994 996 997
1
1
1
19
98 999
19
1
00
20
01 002
20
2
03
20
04
20
05 006
20
2
07
20
08
20
09 010
20
2
11
20
Figura 3. Distribuição das teses e dissertações sobre Residências em Saúde, conforme o ano da defesa, de 1987 a 2011
4%
Residência Médica + Residência Multiprofissional
14%
Residência de Enfermagem
38%
Residência Multiprofissional em Saúde
44%
Residência Médica
Figura 4. Distribuição das pesquisas sobre Residências em Saúde,
conforme o tipo de programa pesquisado
Com relação ao Quadro 2, observa-se predominância de pesquisas envolvendo a modalidade de
formação em Residência na área da Saúde da Família (26 – 27,66%), a qual evidenciou-se como
cenário de atuação profissional na saúde com a criação do Programa/Estratégia Saúde da Família - ESF,
gerando, desde então, novas questões quanto à necessidade de formação de trabalhadores da saúde,
aos quais competiriam as especificidades deste tipo de atenção. Seguem-se, à Saúde da Família, as
pesquisas sobre a formação de enfermeiros (15 – 15,96%), sendo que, dessas, a maioria (13 – 86,67%)
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
763
RESIDÊNCIAS EM SAÚDE: O QUE HÁ ...
foi pesquisas específicas de formação em Residências de Enfermagem, restando
poucas (2 – 13,33%) sobre a inserção de enfermeiros nos programas de
Residência Multiprofissional.
Quadro 2. Distribuição das pesquisas sobre Residências em Saúde,
conforme a área ou especialidade pesquisada
Área/especialidade pesquisada
N
1
Áreas Básicas
%
1,06
Clínica Médica
3
3,19
Enfermagem
15
15,96
Gastroenterologia
1
1,06
Neurocirurgia
1
1,06
Neurologia Infantil
1
1,06
Nutrição
1
1,06
Odontologia
1
1,06
Oncologia
1
1,06
Ortopedia
1
1,06
Pediatria
7
7,45
Radiologia e Diagnóstico por Imagem
2
2,13
26
27,66
Saúde Mental/Psiquiatria
5
5,32
Serviço Social
2
2,13
Terapia Intensiva
3
3,19
Não explicitado
21
22,34
Saúde da Família
Mais de uma área/especialidade
Total
2
2,13
94
100,00
Sobre os descritores: ou como identificamos as pesquisas
que tratam das Residências em Saúde?
A leitura das palavras-chave das pesquisas resultou na constatação de que não
há um padrão de conferência pelos autores. Tal fato pode ser explicado de diversas
formas. A explicação utilizada por nós seria a seguinte: Em consulta ao portal de
Descritores em Ciências da Saúde - DeCS (www.decs.bvs.br), realizada em
dezembro de 2012, utilizando o termo Residência, foram encontrados três
descritores, quais sejam: Internato e Residência (“Programas de treinamento em
medicina e especialidades médicas oferecidos por hospitais para graduados em
medicina para ir de encontro3 às exigências estabelecidas por autoridades
competentes”); Internato não Médico (“Programas avançados de treinamento para
responder a certas exigências em outros campos que não a medicina ou a
odontologia, por exemplo, a farmacologia, a nutrição, a enfermagem etc.”); e
Migração Pendular (“Refere-se à mobilidade espacial na qual, por motivos de
trabalho, se produz um deslocamento da residência ao local de trabalho”).
Pode-se observar que, dessas três definições, a última não se refere à formação de
profissionais. O termo que mais se aproxima do que quer dizer a Residência
Multiprofissional é Internato não Médico. No entanto, há diferenças
epistemológicas, de concepção de trabalho em saúde e, até, de concepção
764
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
3
Entendemos que há um
equívoco no uso da
expressão “de encontro
às” nesta definição. Esta
expressão significa em
contraposição, diferente
do que pretende
comunicar a definição. O
correto seria ir ao
encontro das...
DALLEGRAVE, D.; CECCIM, R.B.
artigos
pedagógica, fato que pode explicar o uso de diversos outros termos para se referir ao assunto e,
raramente, este. Na busca realizada, nenhuma das produções utilizou esse descritor.
O DeCS é uma ferramenta que se propõe a padronizar o uso de descritores na área da saúde, para
quaisquer tipos de publicação, objetivando a indexação de livros, anais de congressos, relatórios, revistas
ou outros materiais, a partir de uma linguagem que se pretende universal, facilitando, assim, as buscas e
recuperação dos materiais disponíveis na Biblioteca Virtual em Saúde – BVS ou outras. Para facilitar a
comunicação entre leitores, autores, editores e pareceristas, é um vocabulário trilíngue (português,
espanhol e inglês), considerando que estes são os idiomas mais utilizados para buscas em pesquisas no
Brasil (DeCS, 2012).
Entendendo sua importância para a pesquisa em saúde, pode-se afirmar que seria importante a
formulação de descritores mais próximos à realidade das pesquisas realizadas, considerando, também,
que as pesquisas sobre Residência Médica utilizam esse termo como palavra-chave, não sendo o
recomendado pelo DeCS, isto é, Internato e Residência.
Das 94 pesquisas, obteve-se um total de 237 descritores, aproximadamente dois para cada trabalho.
Esses descritores foram categorizados: atenção básica foi somada à atenção primária em saúde - APS e,
também, à Estratégia Saúde da Família, resultando em Atenção Básica/APS/ESF, conforme segue no
Quadro 3; na categoria generalidades, estão agrupados os descritores: saúde, saúde pública,
integralidade, mercado de trabalho, recursos humanos, Sistema Único de Saúde – SUS; em temas
específicos, estão agrupadas as especialidades, referencial teórico escolhido pelos autores, enfim, algo
que conferia diferença às temáticas trabalhadas nos estudos. Da mesma forma, foram agrupados outros
termos com representações semelhantes.
Quadro 3. Distribuição das pesquisas sobre Residências em Saúde,
conforme palavra-chave
Palavras-chave
Categorização
Atenção Básica/APS/ESF
20
Educação em Saúde
25
Generalidades
19
Multiprofissionalidade
Preceptoria/Mentoria
5
9
Profissão específica
38
Residência em Saúde
56
Temas específicos
65
Em observação sistemática (realizada por amostra aleatória, composição dos registros e verificação de
divergências), constata-se que as palavras-chave apresentadas no portal da Capes nem sempre
correspondem às informadas pelos autores, nas teses e dissertações. Referem-se, então, a termos
informados pelos programas de mestrado e doutorado, quando do cadastro da produção. De qualquer
forma, esse modo de atribuir palavras-chave demonstra relação com o conteúdo, mas, também, pode
haver outras explicações para a não-padronização de termos, questão que não será tratada aqui.
Deste modo, propomos que haja a criação do descritor Residência em Saúde de modo a padronizar a
utilização pelos pesquisadores e, também, para facilitar a disseminação do conhecimento produzido
nestes estudos. Ao reconhecer que os grandes interessados em acessar os conhecimentos sobre o
assunto são os formuladores de política e, também, o movimento social, consideramos que esta
padronização também auxiliaria neste sentido.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
765
RESIDÊNCIAS EM SAÚDE: O QUE HÁ ...
Emergentes dos problemas de pesquisa
Com relação à leitura, apareceram diversos assuntos emergentes referindo-se ao que foi tratado nas
pesquisas.
Quadro 4. Distribuição das teses e dissertações sobre
Residências em Saúde, de 1987 a 2011, conforme categoria
de temática estudada
Categorização
N
Avaliação
38
Estratégias de Educação pelo Trabalho
26
Formação para o Sistema Nacional de Saúde
16
Formar para quê?
32
Multiprofissionalidade
14
Preceptoria
18
Observa-se, no Quadro 4, que há um total de 144, no somatório dos assuntos
anunciados pelos trabalhos. Isso acontece porque alguns traziam mais de um tema
emergente. Abaixo, um pouco sobre cada um deles.
Dos 94 trabalhos analisados, observa-se que 38 tratavam de algum tipo de
avaliação, incluindo análise de implementação de programa em vinte desses
(Ribeiro, 2009; Jorge, 2007; Barba, 2007; Amaral, 2002; Peçanha, 1993; Elias,
1987)4. Um deles realizou a análise de dois Projetos Políticos Pedagógicos de RMS
em Saúde da Família, demonstrando que diferenças importantes entre os projetos
apontaram para as particularidades e características locorregionais dos programas
(Santos, 2010), características estas que devem estar posicionadas como centrais
em uma política de formação de trabalhadores para o SUS que esteja preocupada
com o provimento e a fixação de profissionais. Ainda, a pesquisa de Sól (2011)
analisa programas de Residência em Medicina Geral Comunitária; o estudo de
Bezerra (2011) propõe um instrumento de avaliação das Residências em Saúde da
Família e Comunidade. Reis (2011) avalia adequação dos programas de Residência
de Enfermagem ao que preconiza a CONARENF – Comissão Nacional de
Residência de Enfermagem.
Ainda na categoria avaliação, dois trabalhos preocuparam-se com a avaliação de
desempenho de residentes (Amadeu Junior, 2001; Santoro Junior, 1999), e outro
pesquisou a compreensão de residentes sobre a sua formação (Oliveira, 2007a), e,
ainda, uma análise do perfil de egressos (Demarco, 2011). As outras dez pesquisas
tratavam da saúde (ou da sua falta) dos residentes, o que pode ser um relevante
marcador para avaliar as possibilidades de adoecimento provocadas pela vivência
da formação em sua intensidade, apontando para alguns limites (Corrêa da Silva,
2011; Suozzo, 2011; Carvalho, 2008; Esquivel, 2008; Franco, 2007; Macedo,
2004; Fagnani Neto, 2003; Franco, 2002; Obara, 2000; Martins, 1994).
Com relação à categoria estratégias de educação para o trabalho, quatro
pesquisas apontaram as Residências como dispositivos de educação permanente
(Vargas, 2011; Lima, 2010; Wanderley, 2010; Oliveira, 2009). Uma delas utilizou,
como analisador, as características culturais da modernidade líquida, obtendo,
como emergente deste tipo de formação, o enfrentamento do cotidiano de
incertezas por parte de trabalhadores e residentes (Rossoni, 2010).
766
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
4
Citam-se estes porque
eles não aparecerão em
nenhuma outra
categoria. Os demais são:
Lima (2010), Schaedler
(2010), Mariano (2010),
Teixeira (2009),
Montesanti (2008),
Castro (2007), Portella
(2006), Pires (2006),
Souza (2004), Miranda
(2003), Sanches (2001),
Mariano (2001), Fiszbeyn
(2000), Calil (1997).
DALLEGRAVE, D.; CECCIM, R.B.
5
Potencial pedagógico,
conforme anunciado por
estes estudos, refere-se à
potência do método de
aprendizagem no
trabalho.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
artigos
Quatro pesquisas apontaram para as Residências como modalidade importante
para formar trabalhadores da saúde (Lobato, 2010; Schaedler, 2010; Dallegrave,
2008; Souza, 2004), e outras dez sinalizaram que essa modalidade configura-se
importante por ter, como metodologia, a formação pelo trabalho.
A integralidade apareceu como importante vetor para configurar as Residências
como estratégia de educação no trabalho, em sete pesquisas. Dessas, três
referiam-se à integralidade na formação em Residências Multiprofissionais
(Medeiros, 2011; Dallegrave, 2008; Pimenta, 2005); duas, à potencialidade da
Residência Médica para formar profissionais que se preocupem com a
integralidade (Teixeira, 2009; Montesanti, 2008); uma ocupava-se com a inserção
da integralidade na formação do assistente social (Closs, 2010); uma do
odontólogo (Wanderley, 2010), e uma do nutricionista (Santos, 2009).
Ainda, dentro da mesma categoria, outros emergentes foram: há uma limitação
da formação nas Residências, que é o atravessamento de concepções tradicionais
de educação (Wanderley, 2010, Oliveira, 2007b). No entanto, elas configuram-se
como potenciais para operar a mudança na formação (Schaedler, 2010) e,
também, no trabalho (Schaedler, 2010; Zanini, 1996). Os autores dos estudos
constataram o potencial pedagógico5 dos programas de Residências
Multiprofissionais (Alves da Silva, 2010; Leão, 2010; Oliveira, 2009; Santos, 2009;
Oliveira, 2007b; Ferreira, 2007) e, também, dos programas de Residência Médica
(Botti, 2009; Esquivel, 2008; Portella, 2006; Zardo, 2002; Chedid, 2001;
Feuerwerker, 1997).
Outra pesquisa (Alves da Silveira, 2011) avaliou o conhecimento dos residentes
sobre o contrato didático do programa de RMS e concluiu que residentes não se
sentem ativos nos espaços de decisão das Residências. A pesquisa de Melo (2009)
investigou o uso de computadores de mão, por médicos residentes, no suporte à
tomada de decisão clínica. Otanari (2011) propõe um grupo de intervenção como
método/estratégia de ensino em um programa de Residência Médica e em outro
Multiprofissional em Saúde.
Na categoria formação para o sistema nacional de saúde, das 94 pesquisas em
análise, 16 apontaram para as Residências como modalidade de educação que
confere elementos a seu currículo com a preocupação de formar para esse
sistema. Chama a atenção que uma delas (Varella, 1996) identificava que a
formação em Residência Médica estava voltada para o Instituto Nacional de
Assistência Médica da Previdência Social - Inamps, antigo componente do sistema
de saúde. Petta (2011) analisa a implantação do Pró-Residência como estratégia de
formação de médicos para o sistema de saúde.
Com relação à descrição de objetivos da formação na modalidade Residência,
agrupados na categoria Formar para quê?, as pesquisas apontam para: o
aprimoramento técnico-científico dos profissionais em formação (Botti, 2009;
Oliveira, 2007b; Franco, 2002), a necessidade de formar profissionais com um certo
perfil de competências (Bordinhão, 2010; Landim, 2009; Botti, 2009; Nascimento,
2008; Ferreira, 2007; Oliveira, 2007a; Calil, 1997) e, articulada a isso, a
necessidade de descrever qual o perfil de residentes em formação (Demarco,
2011; Carro, 2007; Macedo, 2004; Farias, 2003; Miranda, 2003; Mariano, 2001;
Canatto, 1999; Sousa, 1998).
A especialidade e a necessidade de enfocar esse quesito aparecem em seis
pesquisas, todas referentes a estudos sobre a Residência Médica (Ramos, 2011;
Muller, 2010; Boechat, 2005; Zardo, 2002; Fiszbeyn, 2000; Peçanha, 1993), sendo
uma em pediatria, outra em gastroenterologia, e outra em radiologia. Uma delas
avalia fatores culturais, sociais e econômicos que interferem na escolha da
especialidade pelo médico, concluindo que esforços do governo são necessários
767
RESIDÊNCIAS EM SAÚDE: O QUE HÁ ...
para que médicos se formem em medicina de família, que se caracteriza por ser uma modalidade
generalista (Muller, 2010).
Aparece, em cinco delas, o desafio das Residências em Saúde para o enfrentamento do paradigma
hegemônico positivista e flexneriano das práticas em saúde (Oliveira, 2009; Lima, 2008; Simoni, 2007;
Oliveira, 2007a; Scherer, 2006). Oito tratam das Residências a partir de uma perspectiva histórica de
tipos/modos de formação (Barbosa da Silva, 2011; Pasini, 2010; Botti, 2009; Oliveira, 2007c; Falk, 2005;
Souza, 2004; Machado, 2003; Breglia, 1990).
Com relação à categoria multiprofissionalidade, constituem emergentes: a preocupação da formação
de pediatras como profissionais integrantes de uma equipe de saúde (Lahterman, 2010), o
conhecimento de médicos residentes sobre saúde bucal (Balaban, 2011; Amadeu Junior, 2001), e a
importância das práticas multiprofissionais na formação para o trabalho em equipe (Pasini, 2010;
Salvador, 2010; Wanderley, 2010; Dallegrave, 2008; Ferreira, 2007). Outras três apontam para a
Residência como dispositivo de formação multiprofissional (Santos, 2010; Simoni, 2007; Scherer, 2006).
Utilizando a preceptoria como analisador, nove estudos apontam para o despreparo de preceptores
no exercício desta função, que é tão central na formação dos programas de Residência (Cae da Silva,
2011; Souza, 2011; Wanderley, 2010; Mariano, 2010; Santos, 2009; Castro, 2007; Papa, 2004; Sanches,
2001; Lima, 1996). Neste sentido, Pires (2006) realizou sua pesquisa avaliando um programa de
formação em Residência Médica, concluindo que havia destaque para as figuras de preceptores como
fator mais importante para conferir uma boa avaliação ao programa.
Das 94 pesquisas, cinco ocuparam-se em investigar o papel do preceptor, sendo que quatro delas
foram pesquisas em programas de Residência Médica (Botti, 2009; Carvalho, 2003; Wuillaume, 2000;
Berardinelli, 1998) e um estudo voltava-se para a preceptoria de enfermeiros (Papa, 2004). Ainda,
partindo de achados de pesquisa, o trabalho de Lima (1996) faz propostas para compor um programa de
treinamento para preceptores. Já a pesquisa de Maeda (2006) estuda a temática da preceptoria no
contexto de Residência em Enfermagem, apontando, como requisitos mínimos, para o desenvolvimento
da atividade de preceptoria: “ter o curso de especialização e experiência na área, além de gostar de
ensinar” (p.8).
Fajardo (2011) constata a presença do trabalho imaterial como parte do fazer do preceptor,
ocupando seu tempo de trabalho e, também, fora dele. A autora encontra certos movimentos
institucionais em decorrência da presença do programa de Residência.
Considerações finais
As Residências em Saúde apresentam-se como temática emergente e com tendência de aumento
nas pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação stricto senso no Brasil. O artigo apresentou as
produções disponíveis no portal Capes acerca do assunto, totalizando 94 pesquisas.
Há predominância de pesquisas sobre as Residências Médicas, devido ao fato de estas estarem
instituídas legalmente há mais tempo no Brasil. Observa-se expressivo número de pesquisas que se
destinaram a avaliar programas em andamento.
A discussão propõe a criação de um novo descritor que seja integrador, ou seja, que esteja
adequado às pesquisas sobre Residência Médica, Multiprofissional e, também, em área profissional. O
objetivo de ter um descritor que esteja focado no assunto é também excluir outras temáticas
tangenciais, facilitando a busca dos pesquisadores da temática. O descritor proposto é Residência em
Saúde.
O artigo se propôs a fazer um panorama das pesquisas sobre a temática Residência em Saúde,
objetivando fornecer subsídios para que novas pesquisas sejam empreendidas. No que se refere a isto,
teve, como limite, o não-aprofundamento de nenhuma temática.
768
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
DALLEGRAVE, D.; CECCIM, R.B.
artigos
Colaboradores
Ambos os autores realizaram a concepção e revisão do artigo. Daniela Dallegrave
responsabilizou-se pela pesquisa e escrita e Ricardo Burg Ceccim responsabilizou-se
pela orientação.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
775
RESIDÊNCIAS EM SAÚDE: O QUE HÁ ...
DALLEGRAVE, D.; CECCIM, R.B. Residencias en salud: ¿qué hay en las producciones de
tesis y disertaciones? Interface (Botucatu), v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013.
El artículo trata sobre las tesis y disertaciones producidas en Brasil bajo el tema de
Residencias en Salud en el período entre 1987 a 2011. Las investigaciones sobre
Residencias han aumentado en los últimos años, demostrando la importancia de la
educación por medio del trabajo como una potente metodología para formar
trabajadores de la salud. El trabajo presenta 94 estudios que fueron localizados a partir
del banco de tesis del portal Capes, con los descriptores “residencia + salud”,
“preceptor” e “internado”. El texto discute también los descriptores formalmente
indicados, contraponiéndose con aquellos utilizados por los autores de las
investigaciones sobre el asunto. El modo de presentación del artículo busca ofrecer un
panorama sobre el tema para que se produzcan nuevos estudios, calificando aún más la
producción científica en el área y, consecuentemente, la propia formación en el trabajo
que se realiza por medio de las Residencias en Salud.
Palabras clave: Residencia en Salud. Capacitación del trabajador de la salud. Serviço de
enseñanza.
Recebido em 16/04/13. Aprovado em 26/08/13.
776
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.759-76, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/S1414-32832013005000024
artigos
Efeitos de intervenção psicoeducativa
sobre a utilização de serviços de saúde por homens idosos
Lilian Maria Borges1
Eliane Maria Fleury Seidl2
BORGES, L.M.; SEIDL, E.M.F. Effects of psychoeducational intervention on the use of
healthcare services by elderly men. Interface (Botucatu), v.17, n.47, p.777-88, out./dez.
2013.
This study investigated the effects of a
psychoeducational intervention for
strengthening self-care among elderly
men, with emphasis on seeking and using
healthcare services. Thirteen retired
married men aged between 62 and 78
years (M = 69.5) participated. The
interventions occurred at nine thematic
meetings that included dialogue-based
presentation and group dynamics. Data
were obtained before and after the group
sessions, through individual interviews
based on a questionnaire that had been
developed for investigating self-care
behavior and associated factors. The
possible effects from the interventions
were seen to be greater readiness among
the participants to attend consultations
and medical examinations. However, the
intervention was most beneficial in terms
of awareness-raising and maintenance,
rather than in relation to changes to
healthcare behavior. The need for further
investigations focused on the
interrelationship between gender, aging
and health was emphasized.
Keywords: Men’s health. Aged.
Masculinity. Psychoeducational group.
Este trabalho verificou os efeitos de uma
intervenção psicoeducativa para fortalecer
o autocuidado entre homens idosos, com
destaque para a busca e a utilização de
serviços de saúde. Participaram 13
homens com idades entre 62 e 78 anos
(M = 69,5), casados e aposentados. As
intervenções ocorreram em nove
encontros temáticos. Os dados foram
obtidos antes e após sessões grupais,
mediante entrevistas individuais
conduzidas para a investigação de
comportamentos de autocuidado e
fatores associados. Como possíveis
efeitos das intervenções, verificou-se
maior prontidão dos participantes para a
realização de consultas e exames médicos.
A intervenção mostrou-se mais vantajosa
para sensibilização e manutenção do que
para modificação de comportamentos de
saúde. Reforça-se a necessidade de novas
investigações focadas na inter-relação
entre gênero, envelhecimento e saúde.
Palavras-chave: Saúde do homem. Idoso.
Masculinidade. Grupo psicoeducativo.
1
Programa de
Pós-Graduação Stricto
Sensu em Psicologia,
Universidade Católica de
Brasília. SGAN 916,
Módulo B. Avenida W5.
Brasília, DF, Brasil.
70790-160.
[email protected]
2
Instituto de Psicologia,
Universidade de Brasília.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.777-88, out./dez. 2013
777
EFEITOS DE INTERVENÇÃO PSICOEDUCATIVA ...
Introdução
O Brasil apresenta processos notáveis de transição demográfica, com incremento na proporção de
idosos nas últimas décadas. De acordo com o censo demográfico do ano de 2010, pessoas com 65 anos
ou mais apresentam uma participação relativa, na população, de 7,4%, o que significa um número de
idosos superior a vinte milhões no país (IBGE, 2011). A expectativa de vida do brasileiro ao nascer, que,
em 2003, era de 71,3 anos, elevou-se para 73,17 anos em 2009 (IBGE, 2010a). A projeção é de que,
em 2020, o país tenha 32 milhões de pessoas nessa faixa de idade, tornando-se o sexto país no mundo
em número de idosos. Essas alterações demográficas têm sido acompanhadas por mudanças no perfil
epidemiológico da população, com a redução da incidência de doenças infectocontagiosas e maior
prevalência de enfermidades crônico-degenerativas, que se tornaram as principais causas de
morbimortalidade (Veras, 2009, 2003; Camarano, 2002).
Embora a velhice não deva ser compreendida como sinônimo de doença, sabe-se que o segmento
idoso da população apresenta índices maiores de morbidade quando comparado aos demais grupos
etários. Com o avançar do processo de envelhecimento, as pessoas mostram maior predisposição a
enfermidades crônicas, como doenças cardiovasculares e osteoarticulares (Veras, 2009, 2003). Na
idade de 75 anos, a maioria das pessoas tem, em média, de três a quatro doenças ou incapacidades
(Tulloch, 2005).
Por outro lado, indicadores de morbimortalidade, medidos por demandas aos serviços e por
inquéritos populacionais, evidenciam que há riscos diferenciados de adoecimento e de morte para
homens e mulheres relacionados a aspectos tanto biológicos como a processos socioculturais. As
mulheres apresentam doenças crônicas e incapacidades em maior frequência que os homens (RedondoSendino et al., 2006; Laurenti, Jorge, Gotlieb, 2005; Lunenfeld, 2002). No entanto, no Brasil, estes
apresentam uma expectativa média de vida em torno de sete anos menor do que a das mulheres (Brasil,
2008; IBGE, 2010a).
Ao analisar os diferenciais de mortalidade entre os sexos, Abreu, César e França (2009) verificaram
que, de 1983 a 2005, as mortes evitáveis no Brasil representaram cerca de 32% dos óbitos entre
homens, os quais evidenciaram risco maior de morrer, em relação às mulheres, de causas de morte
evitáveis por diagnóstico e tratamento precoces, e por doença isquêmica do coração. Estas diferenças
foram maiores com o avanço da idade, particularmente após 45 anos.
A alta incidência de doenças e de mortalidade na população masculina indica que os homens,
comparativamente às mulheres, apresentam mais comportamentos de risco à saúde, engajam-se menos
em comportamentos preventivos e buscam os serviços de saúde com menor frequência, em especial os
serviços de atenção primária (Gomes, Nascimento, Araújo, 2007). Conforme dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios - PNAD do ano de 2008, uma menor porcentagem dos homens
entrevistados (58,8%) havia realizado consultas médicas nos últimos 12 meses em comparação com as
mulheres (76,1%). Embora o principal motivo da busca de serviços de saúde, para ambos os sexos,
tenha sido o acometimento por doenças, verificou-se proporcionalmente maior procura por vacinação
ou prevenção entre as mulheres, enquanto os homens recorreram mais do que estas aos serviços para
tratarem de acidentes ou lesões (IBGE, 2010b).
Em grande parte por questões culturais e educacionais, os homens agem em função, sobretudo, da
necessidade de reparação de problemas já existentes, e buscam, com predominância, os prontossocorros e farmácias (Couto et al., 2010; Pinheiro et al., 2002). Esse padrão de comportamento
masculino pode levar à perda de um tempo importante para o diagnóstico precoce e,
consequentemente, acarretar o agravo da morbidade (Brasil, 2008), o que implica maior sofrimento
físico e emocional e gasto maior de recursos de saúde (Issa et al., 2006; Lunenfeld, 2002).
Linhares et al. (2003) verificaram que a clientela atendida no ambulatório de geriatria de um hospital
universitário era composta, predominantemente, de mulheres, que correspondiam a 70% dos
participantes do estudo. Veras (2003) também encontrou uma demanda por serviços ambulatoriais
consistentemente menor entre os homens em entrevistas realizadas com trezentos e sessenta idosos na
recepção de um ambulatório da rede pública. A ausência de um número mais significativo de homens
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idosos nos ambulatórios evidencia que estes, possivelmente, tenham contato com o sistema de saúde
em estado mais avançado de doenças, o que leva a tratamentos mais onerosos e menos resolutivos.
A baixa procura masculina por serviços de saúde pode ser melhor compreendida se considerarmos
que, na socialização dos homens, o cuidar de si e a valorização do corpo são questões pouco
incentivadas (Schraiber, Gomes, Couto, 2005). Os cuidados com a saúde estão fortemente associados à
ideia de feminilidade, e os serviços de atenção primária são vistos comumente como um espaço
destinado ao público feminino e às crianças (Figueiredo, 2005; Lunenfeld, 2002). Além disso, os
homens, de modo geral, temem que a verbalização de suas necessidades de saúde seja interpretada
como demonstração de fraqueza, medo ou insegurança, e, assim, gere desconfianças acerca de sua
masculinidade (Gomes, Nascimento, Araújo, 2007; Figueiredo, 2005). As mulheres são mais
incentivadas e autorizadas, pela sociedade, a comunicar suas aflições em relação a dores e desconfortos,
utilizando, com maior frequência, estratégias como: choro, queixas e procura por serviços de saúde
(Linhares et al., 2003).
Gomes, Nascimento e Araújo (2007) chamam a atenção para as influências culturais envolvidas na
questão e destacam vários fatores para se compreender o padrão diferenciado de cuidados com a saúde
de homens em comparação com o padrão das mulheres, incluindo: o medo da descoberta de uma
doença grave, a vergonha da exposição do corpo perante o profissional de saúde, e a nãodisponibilização de programas ou atividades direcionadas, especificamente, para a população masculina.
Nesse aspecto, parece existir uma lacuna entre as necessidades de saúde da população masculina e a
organização das práticas e serviços de saúde (Couto et al., 2010). Por conseguinte, a temática “homem
e saúde” constitui alvo de interesse recente na saúde coletiva, e abarca esforços crescentes para a
identificação das especificidades que necessitam ser consideradas na abordagem da saúde masculina em
diferentes fases do ciclo de vida.
No Brasil, desde 2009, vigora a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem
(PNAISH), iniciativa recente e inovadora do Ministério da Saúde, lançada com o objetivo de facilitar e
ampliar o acesso da população masculina a ações e serviços de saúde, bem como de reduzir seus índices
de morbimortalidade. Ao formular os princípios e as diretrizes da referida política, o governo busca
superar obstáculos socioculturais e institucionais que dificultam, aos homens, realizarem medidas
preventivas, sendo delineadas ações que contribuam para a compreensão dos aspectos singulares da
realidade masculina e que promovam o enfrentamento de fatores de risco e o estímulo ao autocuidado
(Brasil, 2008).
Nesse cenário, a identificação das necessidades de homens torna-se uma condição importante para o
alcance de uma prática cotidiana mais saudável por parte destes, visando a oferta de estratégias
especiais de assistência que resultem em um melhor acolhimento de suas demandas e anseios
(Figueiredo, 2005; Schraiber, Gomes, Couto, 2005; Loeb, 2003; Quine et al., 2004). Lunenfeld (2002)
destaca a importância de programas que visam tornar os homens melhor informados sobre o processo
de envelhecimento masculino, e afirma que a orientação acerca do impacto que cuidados preventivos
podem exercer no prolongamento e na qualidade de suas vidas ajuda a torná-los gerenciadores da
própria saúde. Oliffe et al. (2010) defendem a utilidade de espaços grupais nos quais homens possam:
intercambiar experiências de adoecimento, modelar estratégias para a manutenção da saúde, reforçar a
percepção de que não estão sozinhos, e adquirir orientações sobre estratégias e benefícios do
autocuidado. Ressaltam, ainda, que outros homens são capazes de influenciar fortemente as normas
masculinas em questões de saúde e doença.
Há poucos dados empíricos no que tange à eficácia de intervenções em grupo com idosos do sexo
masculino. Contudo, Thompson et al. (2003), com base em evidências clínicas, defendem que estes
podem se beneficiar da participação em grupos psicoeducativos desenvolvidos para abordar suas
necessidades, preferencialmente com poucos participantes, fechados, e que apresentem um equilíbrio
entre informações, apoio e estratégias de enfrentamento.
No intuito de promover e fortalecer comportamentos de autocuidado entre homens idosos, as
autoras deste estudo desenvolveram e implementaram uma intervenção psicoeducativa em grupo junto
a frequentadores de um centro de convivência para idosos. Várias temáticas foram abordadas nos
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encontros, dentre elas a busca por serviços de saúde como medida de prevenção e controle de
doenças. Partiu-se do pressuposto de que essa modalidade de programa pode contribuir para o
desenvolvimento de estratégias eficientes no atendimento às especificidades do universo masculino e,
assim, favorecer uma abordagem mais integral à saúde do homem idoso.
O presente artigo tem por objetivo apresentar os efeitos dessa intervenção, a partir de indicadores
verbais, no que se refere a crenças e comportamentos dos participantes quanto à realização periódica
de exames médicos preventivos e à busca oportuna por serviços de saúde. A pesquisa foi conduzida nos
moldes de um estudo quase experimental, com a seguinte estrutura: os idosos participaram de
avaliações iniciais individuais, destinadas ao levantamento da linha de base, e, na sequência, foram
submetidos à intervenção em grupo, que foi seguida por duas outras avaliações individuais semelhantes,
relativas à avaliação pós-intervenção e a um seguimento efetuado quatro meses depois do término das
sessões grupais.
Com base no Modelo Transteórico de Mudança (Transtheoretical Model), foram analisados os
estágios motivacionais dos participantes com respeito a ações de busca por serviços de saúde. Nesse
modelo, a mudança comportamental é compreendida como um processo que envolve progressão
através de cinco estágios pelos quais a pessoa passa, com avanços e retrocessos, até adquirir ou
modificar hábitos de vida: 1. pré-contemplação – a mudança não é cogitada; 2. contemplação – a
mudança é uma intenção; 3. preparação – a ação para a mudança é planejada; 4. ação – mudanças
específicas são identificadas, e 5. manutenção – mudanças são mantidas por, pelo menos, seis meses
(Prochaska, DiClemente, 1983; Prochaska, Johnson, Lee, 1998).
Método
Participantes
Foram convidados e aceitaram integrar o estudo 13 homens com idades entre 62 e 78 anos (m =
69,5), de diversos níveis de escolaridade, credos religiosos e rendas familiares, recrutados entre pessoas
que frequentavam um Centro de Convivência para Idosos (CCI) em funcionamento em uma
universidade privada do Distrito Federal. Todos estavam aposentados e mantinham relações conjugais
estáveis há, no mínimo, 15 anos.
Instrumentos
Os dados foram coletados mediante o emprego do Questionário de Avaliação da Saúde do Homem
Idoso (QUASHI), elaborado para a pesquisa, que contém 32 questões abertas e fechadas, estruturadas
em cinco partes: 1. caracterização sociodemográfica; 2. autoavaliação da saúde; 3. busca e utilização
de serviços de saúde; 4. comportamentos preventivos e promotores de saúde; e 5. definição de metas
de saúde. A terceira parte do instrumento, foco do presente trabalho, é composta por nove questões
destinadas a investigar quais os serviços de saúde acessados, os exames médicos realizados e os tipos
de atendimento recebidos pelo respondente, assim como seus possíveis obstáculos para a realização de
exames preventivos e adesão aos tratamentos prescritos.
Procedimentos de coleta de dados
Inicialmente, a proposta foi apresentada à instituição onde se desenvolveu a pesquisa, requerendo
aprovação para sua implementação. O projeto foi submetido, então, a um Comitê de Ética em Pesquisa
e, após sua aprovação, os aspectos operacionais da intervenção foram discutidos com a coordenação do
CCI. As avaliações individuais dos idosos que aceitaram integrar o estudo e formalizaram a concordância
com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ocorreram em salas com isolamento
acústico e livres de interrupções. Nas entrevistas, alicerçadas no QUASHI, cada idoso foi solicitado a
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avaliar sua condição de saúde atual e a relatar seus comportamentos de busca por serviços de saúde e
demais comportamentos de autocuidado. A pesquisadora realizava a leitura cuidadosa de cada questão e
registrava, em áudio, as respostas emitidas.
Para a busca e utilização de serviços de saúde, as metas principais definidas foram: aumentar a
realização de exames preventivos e aumentar a frequência a consultas médicas. Foram, então, iniciadas
as sessões grupais, que ocorreram com periodicidade semanal até completarem nove sessões, com
duração aproximada de noventa minutos cada uma. As sessões foram temáticas, tendo todas elas um
tema norteador predefinido relacionado à saúde do homem e/ou à saúde do idoso, tais como: os limites
e as potencialidades do envelhecer; os determinantes da saúde do homem, e a prevenção do câncer
de próstata.
Conforme o planejamento de cada sessão, as estratégias de trabalho em grupo consistiram em:
fornecimento de informações por meio de estratégias orais, com ou sem apoio de recursos audiovisuais;
discussões em grupo, com troca de informações e experiências; uso de materiais educativos, escritos ou
em vídeo; mensagens para reflexão; dramatizações, vivências e técnicas de dinâmica de grupo.
Após a conclusão das atividades em grupo, dois encontros para novas avaliações individuais foram
realizados com cada participante, tendo por base a utilização de uma versão simplificada do QUASHI e
a finalidade de verificar mudanças de comportamentos, de crenças e de atitudes relacionadas à
intervenção. O segundo bloco de entrevistas foi iniciado uma semana após o término do grupo, em dias
e horários previamente acordados com os participantes. Decorridos quatro meses, as entrevistas foram
repetidas. Essas avaliações pós-intervenção, a exemplo das primeiras, foram gravadas em áudio e
transcritas.
Procedimentos de análise de dados
Os relatos verbais dos participantes foram submetidos a análises tanto quantitativas como qualitativas.
As escolhas entre alternativas de respostas previamente fornecidas, incluindo escalas, foram computadas
em termos de frequência para cada item avaliado. As informações coletadas por meio de questões
abertas foram categorizadas tendo em vista o relato de condutas tidas como importantes para a
prevenção, identificação ou tratamento de doenças. Alguns trechos das verbalizações são fornecidos ao
longo da seção de resultados, seguidos, entre parênteses, pelo nome fictício do entrevistado e sua idade.
Resultados
Realização de consultas médicas
Os idosos, sem exceção, referiram apresentar, no mínimo, um agravo à saúde de natureza crônica,
com predomínio de diabetes mellitus e doenças cardiovasculares. Em média, foram identificados três
agravos à saúde por participante, evidenciando vários quadros de comorbidades. No período de tempo
investigado, eles recorreram a clínicos gerais e a médicos de oito especialidades para avaliações
preventivas, investigações diagnósticas ou acompanhamento de doenças. Os especialistas mais
procurados foram cardiologistas e urologistas, consultados, respectivamente, por 69,2% e 61,5% dos
participantes. Em frequência menor, houve relatos de visitas a: endocrinologistas, oftalmologistas,
ortopedistas, oncologistas, neurologistas e pneumologistas. Existiram referências ainda a consultas com
outros profissionais da área de saúde, abrangendo odontólogos (n=7), nutricionistas (n=2) e
fisioterapeutas (n=2).
Nas avaliações que precederam as sessões psicoeducativas, os idosos relataram a participação em 52
consultas médicas, tomando como parâmetro os 12 meses anteriores, o que correspondeu a uma média
aproximada de quatro consultas por mês. Nas avaliações posteriores, observou-se um aumento relativo
na média de visitas a consultórios médicos nos três meses seguintes às primeiras entrevistas, que passou
a ser de seis consultas por mês. No seguimento, a média de consultas realizadas nos quatro meses
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compreendidos entre a segunda e a terceira avaliações foi de 4,75. No intervalo de tempo total incluído
nas avaliações, relativo a 19 meses, computou-se uma média de 6,8 consultas por participante. A
comparação da média mensal de consultas evidenciou aumento no número de visitas médicas para dez
deles na fase pós-intervenção.
Sete participantes declararam possuir plano privado de assistência à saúde e utilizar exclusivamente
(n=4) ou prioritariamente (n=3) os serviços médicos privados, enquanto os demais idosos relataram
recorrer a serviços públicos de saúde. A procura por atendimentos em centros ou postos de saúde foi
referida por sete idosos, incluindo consultas com clínicos gerais e orientações em grupo para portadores
de diabetes ou hipertensão arterial. As imunizações também constituíram uma prática constante entre
os participantes, com todos eles afirmando submissão recente a esta medida de prevenção primária.
Além dos atendimentos médicos clínicos ou ambulatoriais, três participantes relataram a ocorrência de
atendimentos emergenciais.
Berilo teve seu comportamento caracterizado pela esquiva de consultas médicas e uso de remédios
naturais para tratamento de sintomas, sendo a busca desse tipo de consulta uma meta estabelecida para
o mesmo na intervenção. Encontrava-se, portanto, no estágio da pré-contemplação, com ausência de
reconhecimento quanto à necessidade de mudar o padrão de comportamento vigente. Em suas
palavras: “[...] e eu não vou, não vou. É uma burrice, uma ignorância, eu assumo. Mas eu tô me
sentindo bem, sabe”. Ele evidenciou a crença de que o cultivo de hábitos saudáveis e a prática de
exercícios físicos atuavam como medidas compensatórias à ausência de atendimentos médicos.
“Essa saúde que eu tenho hoje, eu tenho que conservar. Como? Nas caminhadas, nos
exercícios de hidroginástica, na alimentação com pouco sal, na medida do possível não
comendo doce, então na minha cabeça acho que isso aí é suficiente e por isso eu fico
relaxado”. (Berilo, 75 anos)
Além disso, alimentava a crença de que a realização da consulta leva ao descobrimento de doenças.
“Eu tô sadio, eu vou ao médico, vou voltar é doente, que ele vai passar exame disso,
daquilo outro [...]. Eu não sinto nada, eu tenho medo de ir ao médico e voltar doente,
porque eu sou velho. Se procurar, vai encontrar alguma coisa”. (Berilo, 75 anos)
Para este idoso, as estratégias empregadas no grupo consistiram em questionamento de suas crenças
disfuncionais sobre consultas médicas, que foram defendidas como uma medida importante para a
preservação da saúde. Após a intervenção, ele mostrou avanço para o estágio de contemplação, pois
afirmou, nas entrevistas seguintes, a possibilidade de buscar consulta em futuro próximo, com evidência
de revisão de suas crenças em resposta às experiências vividas no grupo:
“Eu vejo outras pessoas ‘tem que fazer um check-up, tem que ir ao médico’, aqui mesmo
nós ouvindo entre os colegas, comecei a imaginar assim que eu também certamente... eu
acredito que eu vá fazer. Não sei, tô pensando, [...] tô tomando coragem”. (Berilo, 75 anos)
Três outros participantes tiveram o aumento da frequência a consultas médicas preventivas como
meta traçada para a intervenção. Esses idosos protelavam a busca por consultas e só recorriam a
avaliações médicas quando do surgimento ou agravamento de sintomas:
“Só vou quando há necessidade. O problema aí eu tiro pelo seguinte, quando eu vejo que
algo não tá bem, por exemplo, não tô urinando suficiente, sinto dores, então eu me sinto
por obrigação ir lá fazer alguns exames”. (Franco, 78 anos)
“Eu vou pro pronto socorro, [...] às vezes não dá para segurar muito. Eu tive uma torção no
pé e eu não fui. Fiquei quatro meses com o pé dolorido. Acho que vai ficar bom, aí dou um
tempo”. (Fausto, 66 anos)
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O estágio inicial evidenciado por estes idosos foi, portanto, a pré-contemplação, com pouco
reconhecimento da importância da avaliação e orientação preventivas, o que resultava na busca
postergada das consultas. À guisa de exemplo: “Eu sou ruim pra ir em médico, eu só vou naquelas
horas que tá precisando mesmo, igual quando você tá com fome, só vou comer quando tiver com
fome” (Amadeu, 76 anos). A crença associada, por conseguinte, era de que a pessoa só deve buscar
ajuda médica se experimentar sintomas específicos e houver necessidade de alguma prescrição
medicamentosa. Observou-se, ainda, a prática habitual do uso de remédios naturais, de autodiagnóstico
ou automedicação diante de algum mal-estar, como exemplificam os seguintes relatos: “Eu acho melhor
tá em casa, bebendo aquela água com casca de pau, essas coisas e tal” (Amadeu, 76 anos); “Quando
eu não tô bem, eu vou lá, tomo um comprimido de pressão e pronto” (Franco, 78 anos).
A estratégia empregada no grupo foi a sensibilização para os benefícios das consultas preventivas.
Ao final, Amadeu e Franco, embora tenham continuado a relacionar a necessidade de visita ao médico à
presença de sintomas, relataram a realização de novas consultas. Por exemplo: “Agora mesmo, esses
dias, eu fiz um check-up, assim da unha até o fio de cabelo, todinho” (Amadeu, 76 anos).
Fausto demonstrou manter-se no estágio da pré-contemplação, com continuidade da busca
retardada das consultas: “não tenho ido não com aquela frequência, qualquer coisa ir [...]. É raramente,
porque eu chego lá o médico não quer receitar nada, ele diz que tá tudo bem” (Fausto, 66 anos). Em
parte, esse padrão de comportamento pareceu estar relacionado à crença do participante de que sua
rotina de alimentação saudável e seus conhecimentos sobre prevenção eram suficientes para
mantê-lo sadio.
Os demais participantes (n=9) relataram realizar visitas médicas periódicas para avaliações
preventivas e para acompanhamentos de seus quadros clínicos. Nesses casos, mostraram estar no
estágio da ação ou da manutenção, afirmando já realizarem consultas com regularidade média ou alta.
Houve evidências da crença na utilidade das consultas preventivas e na importância de se mostrarem
atuantes na interação com o profissional mediante concessão de informações, descrição de sintomas e
esclarecimento de dúvidas. A estratégia principal empregada na intervenção consistiu no reforçamento
destes padrões de comportamento. Nas entrevistas posteriores, os idosos em questão continuaram
valorizando e afirmando iniciativas concernentes à busca de consultas médicas de rotina. Todos eles
mencionaram a importância de estarem informados quanto ao funcionamento do próprio organismo, de
modo a obterem orientações e, se necessário, medidas terapêuticas.
Realização de exames médicos
Em relação à realização de procedimentos preventivos ou diagnósticos, foram sondados os tipos de
exames aos quais os idosos tinham sido submetidos nos 12 meses anteriores à entrevista de linha de
base, bem como nos meses compreendidos entre o início das intervenções psicoeducativas e as
entrevistas finais. Os participantes afirmaram ter realizado, em cada período investigado, entre um e
11 exames preventivos ou para acompanhamento clínico, com predomínio de aferição da pressão
arterial e medição da taxa de glicose no sangue. A totalidade dos idosos realizou pelo menos um
desses dois exames, em grande parte como medida de acompanhamento de seus quadros de
hipertensão e diabetes.
Houve ainda referências a exames de laboratório, especialmente hemogramas e exames de fezes e
urina. Os exames da próstata foram realizados pela maioria dos idosos, com maior submissão ao teste
de Dosagem do Antígeno Prostático Específico (PSA) do que ao toque retal. Outros procedimentos,
referidos por um número menor deles, foram: exames de imagem, exames para avaliação cardíaca,
ecografias, exames oftalmológicos, testes de HIV, endoscopias e biópsia prostática.
Na linha de base, os relatos indicaram que os exames realizados no período de 12 meses variaram
em quantidade de três a oito, com uma média de 6,2 tipos de exames por participante. Nas avaliações
seguintes, os exames realizados ao longo de sete meses variaram de um a 11, com média de 4,8. Em
geral, os participantes afirmaram a realização de exames periódicos e destacaram a importância das
ações preventivas como forma de identificar e tratar doenças em tempo hábil. Oscar, inclusive,
exemplificou a importância da prática destes exames ao relatar a descoberta de um carcinoma e,
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tempos depois, de diabetes a partir da realização de avaliações gerais, sem que apresentasse sinais ou
sintomas em quaisquer dos casos.
“Aí falei “vou fazer um check-up pra ver se eu tô inteiro”. [...] fui no urologista, quando
chegou lá tava com carcinoma, aí que eu fiz a cirurgia. Nunca senti nada, fui fazer preventivo
e apareceu”. (Oscar, 70 anos)
Três idosos indicaram uma diminuição na frequência de submissão a exames no espaço temporal
compreendido entre o início das sessões e as entrevistas de seguimento, fato este justificado pelo
grande número de compromissos assumidos no período, o que comprometeu a disponibilidade para
este tipo de cuidado. No entanto, estes e outros dois participantes ressaltaram a intenção de efetuar
novas consultas e exames nos meses seguintes. Eis um exemplo:
“Eu tô aguardando agora o recesso pra fazer um check-up. Primeiro pra fazer um check-up é
o clínico, depois coração, gastro, e tem o outro também... nutricionista. Tem que passar por
esses todos”. (Eusébio, 63 anos)
O exame para detecção do câncer de próstata via toque retal mostrou ser o exame mais temido
pelos participantes, sendo citado como o exame mais difícil de ser realizado por sete deles. Por outro
lado, quatro idosos afirmaram não encontrar dificuldades para realizar qualquer tipo de exame médico,
como foi o caso de Mário (72 anos): “Uma vez que o médico considere que é necessário, eu encaro
qualquer coisa. Não tem esse negócio de não gosto disso ou daquilo. Ora, eu gosto é de saúde”.
Berilo e Fausto afirmaram que nunca ou raramente realizavam exames preventivos além dos testes
rotineiros da pressão arterial e da glicemia. O favorecimento da realização do exame do toque retal
consistiu em meta elaborada para esses dois participantes, que se recusavam a efetivar o exame. O
estágio inicial, portanto, era a pré-contemplação, como ilustra a seguinte verbalização: “eu quero evitar,
eu tenho feito isso, evitar. [...] não tô a fim de fazer não” (Berilo, 75 anos).
Como estratégia de intervenção, o toque retal foi apresentado como importante medida para
detecção precoce do câncer de próstata, com estímulo para a procura pelo exame. O padrão de
comportamento final continuou sendo a pré-contemplação no caso de Berilo, como mostra seu relato:
“Eu sou consciente, tenho certeza que já tive a orientação necessária, mas isso eu falo não. Nessa parte
eu sou arcaico” (Berilo, 75 anos). Fausto, por sua vez, mostrou avanço para o estágio de contemplação,
com abertura para a realização do exame: “a gente está a disposição, porque não pode deixar o que
tem que fazer pra um outro dia, porque seria tardio” (Fausto, 66 anos).
Em relação aos demais participantes, a meta foi aumentar ou manter a frequência de submissão a
exames diagnósticos da próstata. Eles realizavam os principais exames preventivos do câncer de
próstata, conforme indicação médica, ainda que considerassem aversivo o procedimento via toque retal.
Por exemplo: “O exame do toque ele é chato pra caramba, mas não tem nada não, a gente faz quantas
vezes for preciso” (Oscar, 70 anos). As estratégias empregadas no grupo consistiram no reforçamento
da busca por exames preventivos da próstata e na revisão de crenças e mitos acerca da sua realização.
Ao final, houve indícios da manutenção da realização periódica dos exames e aparente menor
desconforto emocional na efetivação do toque retal: “Eu era muito tímido, falar em mostrar meu corpo
para um médico era a pior coisa que eu achava, mas, ultimamente, de acordo com o que eu vejo, eu já
fico mais a disposição” (Franco, 78 anos). A permanência de sinais mais evidentes de ansiedade diante
da necessidade do toque retal foi observada apenas no relato de Gastão (62 anos): “Agora eu tenho de
fazer exame da próstata, [...] faço anualmente, aquele exame que me deixa nervoso. Mas tem que
fazer, né? Fazer o que?”
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Discussão
Em relação ao perfil de morbidade dos participantes, observou-se que as doenças de maior
incidência foram: hipertensão arterial, diabetes e doenças do coração, que estão entre as enfermidades
mais comumente diagnosticadas entre homens acima de cinquenta anos de idade (Issa et al., 2006;
Laurenti, Jorge, Gotlieb, 2005), e se constituem em agravos à saúde não transmissíveis, relacionados,
em boa parte, a hábitos de vida, e, como tal, passíveis de prevenção, de identificação precoce e de
controle clínico. Houve, ainda, vários casos de comorbidade, mostrando que, na velhice, é comum uma
condição crônica associar-se ao desenvolvimento de outras e ocasionar, aos profissionais de saúde, o
desafio de avaliar e tratar múltiplos problemas (Ferrucci, Giallauria, Guralnik, 2008).
Este é um dado preocupante na atenção à saúde da população idosa, considerando que as doenças
crônicas aumentam os riscos para incapacidade funcional, dependência e diminuição da qualidade de
vida (Bryant, Altpeter, Whitelaw, 2006). No entanto, os participantes evidenciaram, em geral, bom
controle de seus quadros clínicos, com preservação de suas funções físicas e papéis sociais. Para Veras
(2009), o idoso que mantém sua capacidade funcional, ou seja, que tem preservadas suas habilidades
físicas e mentais para uma vida independente e autônoma, deve ser considerado um indivíduo saudável,
ainda que seja acometido por doenças.
Distúrbios na próstata constituíram problemas atuais ou do histórico médico de seis participantes, o
que reforça a necessidade de se abordar sua prevenção e tratamento entre homens idosos, de modo a
estimulá-los a se submeterem aos exames diagnósticos e a prepará-los para lidar com os efeitos
decorrentes da doença e de seu tratamento. Observou-se, no entanto, o engajamento dos participantes
em diversos tipos de busca por assistência à saúde, que são, em geral, apontadas como pouco
frequentes entre representantes do sexo masculino. Destacam-se relatos acerca da utilização dos
serviços primários, a alta frequência a consultas médicas e a realização de exames preventivos de modo
regular. Avaliações da próstata, sobretudo o exame do toque retal, apesar de referidas como geradoras
de vergonha e ansiedade, eram realizadas com relativa periodicidade – dado que vai ao encontro do
estudo de Loeb (2003), a qual verificou, com 135 homens idosos, uma média de quatro participações
em exames de saúde durante o último ano, havendo maior adesão à aferição da pressão arterial,
exames físicos e da próstata.
Os resultados mostraram que as intervenções ajudaram a ampliar ou fortalecer a conscientização
quanto à importância da busca e utilização regular de diversos serviços de saúde. No caso de Berilo,
participante com maior barreira pessoal para efetivação de consultas e exames, entende-se, a partir de
seus depoimentos, que as intervenções propiciaram a revisão da crença de que as consultas levam à
descoberta de doenças e que hábitos saudáveis, por si só, asseguram a prevenção de doenças, o que
favoreceu a intenção comportamental de buscar consultas médicas. Todavia, este idoso continuou
recusando a realização de exames para diagnóstico de distúrbios na próstata. Um motivo que pode ter
contribuído para a manutenção de sua esquiva refere-se à baixa suscetibilidade percebida a doenças e
ao fato de avaliar-se como sadio, tal como expresso por ele: “Eu olho pra mim e é como se eu não
tivesse necessidade” (Berilo, 75 anos).
A decisão de realizar um exame preventivo ou diagnóstico é mais provável se a pessoa apresenta um
estado de prontidão psicológica que dependerá do quanto ela se sente suscetível a contrair a condição
em questão e da percepção que ela tem da gravidade das consequências desta condição para a sua
saúde. Depende, ainda, da ausência de barreiras psicológicas para a tomada de ação (Pavão, Coeli,
2008). A esquiva de Berilo em ir ao médico e em realizar exames não estava atrelada a falta de
informações ou de estímulos para tal, como ele mesmo reconheceu. O tipo de intervenção realizada
não se revelou suficiente para dotá-lo de estratégias apropriadas ao enfrentamento de uma situação que
era, para ele, a longo tempo, geradora de ansiedade. O grupo reforçou os benefícios destas práticas
preventivas, em detrimento de seus custos, e forneceu a ele modelos para lidar com a situação,
entretanto maior avanço em seu processo de mudança careceria de atenção mais particularizada,
mediante intervenções individuais.
Amadeu e Franco, nas avaliações pós-intervenção, embora tenham continuado evidenciando a
crença de que a busca de auxílio médico deve ser contingente à apresentação de sintomas específicos,
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passaram, no segundo momento, a relatar reconhecimento maior quanto à necessidade de realizarem
exames preventivos. Os demais idosos reafirmaram suas crenças na importância das medidas
preventivas, de acompanhamento e controle de seus agravos à saúde, sendo que alguns deles
mostraram satisfação em saber que estavam “no caminho certo”. A adoção de práticas preventivas teve,
como barreiras para alguns idosos, fatores já constatados em outras pesquisas, como: o medo da
descoberta de uma doença grave e a vergonha da exposição do corpo perante o profissional (Gomes,
Nascimento, Araújo, 2007). No entanto, não se pode afirmar, contrariamente a outros trabalhos, que
tais dificuldades estiveram associadas a fatores como: falta de tempo, pouca valorização do autocuidado
e preocupação incipiente com a saúde (Figueiredo, 2005; Schraiber, Gomes, Couto, 2005; Loeb, 2003).
Os resultados do estudo mostram que os homens podem se constituir em sujeitos do próprio
cuidado. É importante destacar, conforme discutem Couto et al. (2010), que a invisibilidade dos homens
nos serviços de saúde, muitas vezes, é reforçada pela expectativa dos profissionais, que assumem o
estereótipo de que estes não cuidam de si e não procuram os serviços, deixando de estimulá-los a
praticar ações de promoção e prevenção.
Considerações finais
O conjunto dos dados revelou que a intervenção psicoeducativa foi útil para sensibilizar os
participantes acerca das vantagens de se implementarem ações em prol da prevenção ou controle de
doenças. No entanto, as experiências no grupo atuaram mais para reforçar práticas saudáveis ou para
sensibilizá-los a respeito de novas e desejáveis mudanças. A intervenção não se mostrou suficiente para
alterar hábitos associados a crenças disfuncionais, ainda que intenções de mudança tenham sido
evidenciadas.
O formato do grupo, incluindo a diversidade de temas e a quantidade de participantes, não
favoreceu uma abordagem mais direta a dificuldades particulares dos idosos. Quando barreiras
psicológicas à mudança se fazem presentes, pode ser necessário associar intervenções individuais às
intervenções grupais, de modo a melhor auxiliar o participante na revisão de crenças, manejo de
respostas emocionais e aprendizagem de novo repertório de respostas diante de situações estressoras.
Homens idosos podem se beneficiar, no contato educativo com profissionais e pares, da
oportunidade de permutarem experiências e conhecimentos, o que potencializa a manutenção do
autocuidado e sensibiliza para a mudança de comportamentos prejudiciais à saúde. Embora se considere
que os homens sejam mais prováveis de negar do que discutir questões de saúde e doença, os
resultados deste estudo reforçam a possibilidade de homens, tanto quanto as mulheres, envolverem-se
em processos grupais educativos e valorizarem o comprometimento com temáticas relacionadas ao
processo saúde-doença.
Ressalta-se, por fim, que o trabalho de promoção da saúde com homens não pode se basear na
suposição de um conjunto de características iguais, que leva a interpretá-los como um grupo composto
por valores e comportamentos comuns e generalizáveis. As práticas de saúde dos homens dependem
de fatores demográficos, pessoais e culturais, e, como tal, são diversas. Assim, além de se buscar
diferenças entre homens e mulheres, é necessário identificar diferenças entre eles próprios, permitindo
lidar com diferentes formas e estilos de ser homem.
Colaboradores
Lilian Maria Borges foi responsável pela elaboração do artigo, enquanto que Eliane
Maria Fleury Seidl participou do seu planejamento e da revisão final do texto.
786
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.777-88, out./dez. 2013
BORGES, L.M.; SEIDL, E.M.F.
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BORGES, L.M.; SEIDL, E.M.F. Efectos de la intervención psico-educativa sobre la
utilización de servicios de salud por hombres ancianos. Interface (Botucatu), v.17, n.47,
p.777-88, out./dez. 2013.
Este trabajo verificó los efectos de una intervención psico-educativa para fortalecer el
auto-cuidado entre hombres ancianos, dando destaque a la búsqueda y utilización de
los servicios de salud. Participaron 13 hombres con edades entre 62 y 78 años (M =
69,5), casados y jubilados. Las intervenciones ocurrieron en nueve encuentros
temáticos que incluyeron exposición dialogada y dinámicas de grupo. Los datos se
obtuvieron antes y después de las sesiones grupales, mediante entrevistas individuales
realizadas con base en un cuestionario elaborado para la investigación de
comportamientos de auto-cuidado y factores asociados. Como posibles efectos de las
intervenciones, se verificó una mayor rapidez de los participantes para la realización de
consultas y exámenes médicos. Sin embargo, la intervención se mostró más ventajosa
para la sensibilización que para la modificación de comportamientos de salud. Se
refuerza la necesidad de nuevas investigaciones enfocadas en la interrelación entre
género, envejecimiento y salud.
Palabras clave: Salud del hombre. Anciano. Masculinidad. Grupo psicoeducativo.
Recebido em 19/03/13. Aprovado em 25/08/13.
788
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.777-88, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/S1414-32832013005000025
artigos
O uso da argumentação científica
na opção por estilos de vida arriscados no cenário da aids
George Moraes De Luiz1
DE LUIZ, G.M. The use of scientific argumentation in choosing risky lifestyles within the
scenario of aids. Interface (Botucatu), v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013.
This article deals with the use of scientific
arguments that circulate in the
day-to-day lives of men who have sex
with men (MSM) in casual partnerships,
as a strategy for managing the risks
relating to sexual practices. The
theoretical basis for this investigation was
the discursive practices regarding risky
lifestyles within the scenario of aids.
Through the snowball technique, seven
participants were chosen and they gave
responses in semi-structured interviews.
The results showed that scientific
information circulating in the daily lives
of the interlocutors of this study had
been assimilated and that these
individuals interpreted this information as
a potential source for risk management.
In summary, these men had developed
risk management strategies relating to
infection by STD and HIV and/or HIV
reinfection, without necessarily basing
them on the Brazilian government’s
official preventive policies.
Keywords: Scientific argumentation. Risk
management. Sexual practices among
men who have sex with men.
Investigam-se os usos de argumentos
científicos que circulam no cotidiano de
homens que fazem sexo com homens
(HSH), em parceria casual, como
estratégia para gerir riscos associados às
práticas sexuais. O aporte teórico da
pesquisa refere-se às práticas discursivas
sobre estilos de vida arriscados no cenário
da aids. Por meio da técnica snowball
foram selecionados sete participantes,
que responderam a uma entrevista
semiestruturada. Os resultados indicam a
assimilação de informações científicas que
circulam no cotidiano dos interlocutores
deste estudo interpretadas como
potencial fonte na gestão de riscos. Esses
homens desenvolvem estratégias de
gestão de risco de infecção por DST, HIV
e/ou a reinfecção pelo HIV sem basear-se,
necessariamente, nas políticas oficiais de
prevenção do governo brasileiro.
Palavras-chave: Argumentação científica.
Gestão de riscos. Práticas sexuais entre
homens que fazem sexo com homens.
Discente, Programa de
Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Social,
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
Rua Monte Alegre, 984,
Perdizes. São Paulo, SP,
Brasil. 05014-901.
george_psico@
yahoo.com.br
1
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013
789
O USO DA ARGUMENTAÇÃO CIENTÍFICA ...
Este artigo resulta de um estudo de Mestrado em Psicologia Social, cujo objetivo foi entender como
homens que fazem sexo com homens (HSH), em parceria casual, gerenciam os riscos de infecção por
doenças sexualmente transmissíveis (DST), vírus da imunodeficiência humana (HIV) e/ou reinfecção
pelo HIV, ao optarem por práticas sexuais sem o uso de preservativo (De Luiz, 2011). Elegemos, para
esta discussão, a aproximação do discurso dos interlocutores com o conhecimento científico na área da
aids. Vale salientar que as informações aqui discutidas são tomadas como práticas discursivas que
circulam no cotidiano de nossos interlocutores, e utilizadas como potencial fonte de gestão de risco para
esses homens.
A maior esperança de cura ou de descoberta de outras estratégias de prevenção à aids encontra-se
no desenvolvimento de vacinas que possam impedir a instalação do vírus no organismo humano e, no
caso de pessoas infectadas, a sua eliminação. Por isso, bilhões de dólares são investidos em estudos que
visam produzir resultados na arena da aids. Enquanto a descoberta não chega, a sociedade tem de se
acostumar com o cenário epidêmico e lidar de alguma forma com os riscos de infecção implicados tanto
nos ensaios clínicos com seres humanos (Spink, 2007) quanto no cotidiano das práticas sexuais.
A Tabela 1, por exemplo, foi elaborada pelo Centers for Disease Control and Prevention - CDC
(2005) para auxiliar os gestores da saúde que atuam na área da prevenção a analisar o risco para o HIV
por via de exposição.
Além da Tabela de Risco, há uma série de estudos no campo da aids denominados de novas
tecnologias de prevenção biomédicas. A palavra tecnologia é de origem grega e significa “conjugar a
técnica ao conhecimento para a satisfação de nossas necessidades” (Kalichman, 2009). Por serem
humanas, essas necessidades são construídas no âmbito social e mudam conforme o contexto. Nessa
perspectiva, o autor nos instiga a pensar no desenvolvimento de novas tecnologias que visem à
Tabela 1. Estimativa de risco para HIV por via de exposicão*
Via de exposição
Risco para cada 10.000 exposições
Transfusão de sangue
9.000
Referências
Donegan et al. (1990)
Compartilhamento de seringas
durante o uso de drogas injetáveis
67
Kaplan e Heimer (1995)
Prática de sexo anal receptivo
50
Varghese et al. (2002) e European Study Group on
Heterosexual Transmission of HIV (1992)
Agulha perfurocortante
30
Bell (1997)
Prática de sexo vaginal receptivo
10
Varghese et al. (2002), Leynaert, Downs e De
Vincenzi (1998), European Study Group on
Heterosexual Transmission of HIV (1992)
Prática de sexo anal insertivo
6.5
Varghese et al. (2002), European Study Group on
Heterosexual Transmission of HIV (1992)
Prática insertiva de pênis na vagina
5
European Study Group on Heterosexual
Transmission of HIV (1992), Varghese et al. (2002)
Prática de sexo oral receptivo
1
Varghese et al. (2002)**
0.5
Varghese et al. (2002)**
Prática de sexo oral insertivo
Estimativas de risco de transmissão por forma de exposição ao assumir práticas sem preservativo. ** Fonte de referência de práticas de sexo oral
feito em um homem.
*
Fonte: Tabela, adaptada do inglês, do Centers for Disease Control and Prevention. Recommendations and Reports. Antiretroviral Postxposure
Prophylaxis After Sexual, Injection-Drug Use, or Other Nonoccupational Exposure to HIV in the United States. MMWR, Atlanta (2005).
790
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013
DE LUIZ, G.M.
artigos
prevenção sexual entre HSH em um novo cenário de epidemia, bem diferente
daquele existente nas décadas passadas.
Nesse sentido, pesquisadores da área da aids têm desenvolvido novas
tecnologias que podem ser agrupadas em dois grandes grupos: as “leves” e as
“duras”. Para Brito (2009) os dois modelos de intervenção são importantes, porém
o segundo retoma a noção de risco individual. As tecnologias leves dizem respeito
a questões ligadas: à gestão e gerência de ações programáticas e de participação
social, à organização do processo de trabalho, aos recursos humanos, ao
desenvolvimento de técnicas educativas e comunicacionais, ao acolhimento, ao
aconselhamento e à assistência integral. Já as tecnologias duras abrangem: a
camisinha, as vacinas, os microbicidas, as estratégias cirúrgicas, tais como a
circuncisão, e as estratégias medicamentosas, por exemplo, as profilaxias pré
(PREP) e pós-exposição sexual (PEP) em situações de riscos.
O Boletim de Vacinas anti-HIV/AIDS, VAX, em suas edições mensais, divulga
os principais estudos em andamento sobre imunobiológicos anti-HIV e as novas
tecnologias de prevenção biomédicas (Prevenção..., 2006). São experimentos que,
supostamente, poderiam mitigar possíveis riscos de infecção e/ou reinfecção pelo
HIV.
“Diga-se, de passagem, que a profusão e polissemia dessas informações, que
empilham evidências de pesquisas presentes e passadas, validadas hoje e
desacreditadas amanhã, aumentam a responsabilidade por busca de informações
[...]” (Spink, 2007, p.256).
A questão é que, até o início da década de 2010, no que se refere a essas
novas tecnologias de prevenção, nenhum estudo comprovou sua eficácia de forma
a garantir seu uso com segurança entre a população.
Em entrevista a Mary Jane Spink (2010), Nikolas Rose relata que os
experimentos nas áreas de ciência da vida, biomedicina, neurociência e
biotecnologias são muito instáveis. Ninguém sabe ao certo se esses testes darão
certo. Assim, enormes esperanças são depositadas em pesquisas que podem não
ser confirmadas, como é o caso da terapia gênica. O futuro incerto e as
expectativas precipitam o tempo de conclusão dos estudos, que falham tão
frequentemente quanto se sucedem. O crescente desenvolvimento de
biotecnologias pode ser explicado pelo seu poder de oferecer às pessoas
estratégias para compensar, por antecipação, suas deficiências e fragilidades –
mesmo as futuras (Amorin, Szapiro, 2008).
Método
2
A prática do
barebacking geralmente
é entendida como
relação sexual anal
intencional sem
preservativo entre HSH
(Berg, 2009).
O estudo teve início em 2009. Recorremos à internet para acessar os homens
que optam por praticar sexo sempre ou ocasionalmente sem preservativo. Estudos
realizados por Silva (2009, 2008) e Hine (2006) afirmam ser a internet um bom
recurso para auxiliar os pesquisadores quando se trata de investigações de temas
polêmicos, como a prática sexual sem preservativo, uma vez que possibilita a livre
participação das pessoas e, ao mesmo tempo, garante o anonimato.
O primeiro passo foi a criação de um email ([email protected]) e busca
de sites de relacionamentos destinados a HSH. Para tanto, usamos o Google para
identificar os principais sites voltados às práticas sexuais desse grupo. Elegemos os
sites www.manhunt.net e www.bareback.rt por estarem de acordo com a proposta
deste trabalho. Nessas páginas, utilizamos os descritores bare, bareback,
barebacking2 para localizar homens que se autoidentificavam com a prática sexual
sem preservativo.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013
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O USO DA ARGUMENTAÇÃO CIENTÍFICA ...
Posteriormente, convidamos esses homens a integrarem uma discussão sobre a temática do
barebacking. Durante seis meses, vinte homens participaram de discussões semanais por meio de email
e/ou messenger (MSN), criados para esse propósito. Deixamos claro, para os participantes da discussão,
que aquele era um momento de pesquisa informal, e não consistia na produção de informações para
este estudo, uma vez que o projeto estava em fase inicial, demandando, ainda, encaminhamento ao
Comitê de Ética e Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde a pesquisa de
mestrado foi realizada. Igualmente, garantimos o total sigilo das informações e do anonimato dos
participantes, os quais, em sua totalidade, usavam perfis falsos na internet.
Após seis meses de discussão pelo MSN, a pesquisa avançou para outra etapa: a entrevista face a
face. Para tanto, recorremos à técnica do snowball (bola de neve). Convidamos todas as pessoas da lista
do pesquisador e sugerimos que elas reencaminhassem o respectivo convite para a sua lista de contatos,
sucessivamente. Isso permitiu a ampliação da nossa rede de interlocutores. Esse método tem sido
debatido e usado por pesquisadores que trabalham com temas delicados como aborto, prostituição e
práticas sexuais sem preservativo, entre os quais citamos: Browne (2005) e Faugier e Sargeant (1997).
À medida que recebíamos uma resposta positiva de possíveis participantes da entrevista face a face,
analisamos se eles se encaixavam nos objetivos do estudo. Para tanto, definimos os seguintes critérios
de inclusão: a) afirmar manter relação sexual sem preservativo com parceiro casual; b) residir na cidade
de São Paulo ou no Rio de Janeiro; c) ser maior de 18 anos. As duas cidades foram escolhidas por
apresentarem o maior número de casos de aids no Brasil (Dias, Nobre, 2001).
No início da entrevista, cada participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP, de acordo com a Resolução nº 1 do
Conselho Nacional de Saúde (CNS), que normatiza as pesquisas que envolvem seres humanos (Brasil,
1996).
As entrevistas foram realizadas entre os meses de dezembro de 2009 e março de 2010. Foram
entrevistados 18 homens a fim de se conhecerem as estratégias de gestão dos riscos no contexto de
práticas sexuais sem preservativo. Do total de entrevistas, oito não foram utilizadas pelos seguintes
motivos: a) afirmar manter relação sexual desprotegido apenas com parceiro fixo; b) encontrar-se em
estado emocional abalado; c) não concordar em assinar o TCLE. Dentre os dez participantes, sete
apresentaram, em suas falas, aproximação com o conhecimento científico, recorte deste artigo.
Apresentamos, no Quadro 1, a caracterização dos participantes. Tais informações facilitarão a
compreensão dos argumentos discutidos no próximo tópico – são omitidas informações que possam
identificá-los, inclusive seus nomes, aqui fictícios, de acordo com a escolha feita por cada um deles.
Quadro 1. Caracterização dos participantes da pesquisa
Nome fictício
Idade
Estado de origem
Escolaridade
Sorologia para o HIV
Gabriel
30
SP
Mestre
Desconhecido
Aristóteles
35
RJ
Doutorando
Positivo
Agileu
22
SP
Graduando
Desconhecido
Yuri
43
SP
MBA
Desconhecido
Cristian
36
SP
Especialização
Positivo
Edu
35
SP
Ensino Médio
Desconhecido
Daniel
57
RJ
Superior
Positivo
Como fonte de material discursivo, optamos pela entrevista, registrada por meio de um gravador de
áudio e diário de campo. Para a análise, foi realizada, inicialmente, a transcrição integral das falas,
empregando-se as convenções de Jeffersonian Transcription Notation (Jefferson, 1984). Em seguida, foi
realizada a transcrição sequencial: um resumo das entrevistas de acordo com a ordem do diálogo entre
pesquisador e os participantes do estudo.
792
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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DE LUIZ, G.M.
artigos
A partir daí, foram elaborados os mapas dialógicos propostos por Spink e Lima (2000), a fim de que
fossem identificadas as principais temáticas presentes nas narrativas dos participantes. Os mapas são
importantes para sistematizar o material discursivo e viabilizar a busca de repertórios relacionados às
estratégias de prevenção. Além disso, eles apresentam duplo objetivo: auxiliar no processo de
interpretação e facilitar a comunicação dos passos ligados ao processo interpretativo.
Para apresentar e discutir os resultados, utilizamos trechos das narrativas evidenciadas nos mapas
dialógicos. Neste artigo focamos na temática da apropriação e do uso de informações científicas como
potenciais fontes de gestão de riscos para as DST, HIV e reinfecção por HIV.
O uso da argumentação científica na construção de estratégias de gestão de riscos
em um cenário de incertezas
A maneira como os HSH gerenciam os riscos implicados na opção pelo sexo sem preservativo
envolve conhecimentos, tecnologias e sentidos construídos a partir da concepção de saúde, doença,
vida, morte, risco, poder e sexualidade. Sobre a complexidade da produção de conhecimento na vida
cotidiana dessas pessoas, nota-se a sua aproximação com a produção científica sobre aids que circula
por meio da internet, material impresso e estudos acadêmicos (Camargo Júnior, 1994). Cada vez mais,
as informações oriundas de fontes de saber, mesmo aquelas que não correspondem ao discurso oficial
do Ministério da Saúde brasileiro sobre prevenção, por exemplo, são incorporadas pelas pessoas e
usadas para gerir os riscos implicados nessa prática.
Assim, os HSH apropriam-se reflexivamente de dados publicados por especialistas, cuja promessa
seria uma melhor gestão da vida cotidiana. Por meio dessas informações, as relações sociais são
reguladas pela confiança em sistemas abstratos, norteados pela cientificidade de estudos que visam
orientar escolhas de cálculos de risco. Dito isso, pode-se perceber que as estratégias brasileiras
governamentais de prevenção à aids acabam por constituir-se por meio de ações de gestão de riscos,
uma vez que elas visam tanto a proteção da saúde da população em situação de ameaça diante do nãouso de preservativo, quanto a recuperação de quem está infectado por alguma DST ou HIV (Czeresnia,
2004). Trata-se de uma arena complexa permeada por tensões entre os direitos individuais e coletivos,
entre a autonomia individual e a ordem social, entre os contextos globais e locais, bem como entre as
arenas públicas e privadas (Castiel, 1996).
Um exemplo recente são estudos da medicina baseada em evidências. Essa abordagem procura
enfatizar os aspectos científicos necessários ao processo de sistematização e legitimação das
informações. Por esse viés, procura-se juntar provas observáveis do objeto investigado por meio de
técnicas oriundas, sobretudo, da estatística, capazes de serem interpretadas e aplicadas pelos médicos
aos seus pacientes (Lopes, 2000). Nessa direção, o CDC dos Estados Unidos realizou uma metarrevisão
da literatura existente, que resultou na Tabela de Risco. Ela sintetiza o estado da arte quanto à estimativa
de risco de aquisição do HIV de acordo com a via de infecção (CDC, 2005).
A Tabela de Risco pode ser encontrada na internet, hospedada em sites norte-americanos e
canadenses. No relato de Cristian, um dos participantes desta pesquisa, na busca de entender “se” e
“como” ele gere os possíveis riscos decorrentes de suas práticas sexuais sem preservativo, somos
informados de sua opção por não ejacular dentro do parceiro. Quando questionado sobre a origem
dessa informação, refere a Tabela de Riscos. Ele argumenta, primeiramente, como busca tais
informações e em seguida as nomeia:
“Por pesquisas na internet = só que pesquisas fora do Brasil, ou em sites americanos ou em
sites canadenses, é investigando sites específicos de médicos voltados para o HIV/aids.
Hum:::m = eu obtive a informação da tabela de RISCO, né? De (x) que tipo de relação e de
que forma você tem maior ou menor risco, né? Então a (x) prática sem preservativo é uma
prática de risco, porém você reduz o risco se você não tiver a ejaculação interna (.hhh) no
parceiro.”
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013
793
O USO DA ARGUMENTAÇÃO CIENTÍFICA ...
Cristian parece sugerir que as notícias encontradas fora do Brasil são,
supostamente, mais validadas do que aquelas que circulam no território brasileiro –
e isso lhe dá mais segurança para transar sem proteção. De classe média, ele
cursou uma pós-graduação e tem acesso à internet, onde procura outras possíveis
fontes de informação que considera fidedignas. Cristian relata que é engenheiro e
trabalha em uma área também ligada às ciências exatas. Esse perfil pode explicar,
em parte, porque ele busca na própria racionalidade científica – algo próximo do
seu cotidiano como engenheiro – a maneira de gerir os riscos em sua vida íntima.
A Tabela de Risco tem sido usada como parâmetro de consulta na gestão dos
riscos, sobretudo pelo governo norte-americano e alguns europeus. No Brasil não
foram encontradas evidências de que ela seja adotada no discurso oficial de
prevenção do Departamento Nacional de DST, HIV/AIDS e Hepatites Virais, do
Ministério da Saúde.
De acordo com essa tabela, o risco de infecção pelo HIV para o homem ativo
seria de 6.5/10.000 casos. No caso do parceiro que ocupa o papel receptivo, esse
risco seria de 50/10.000 casos. Nessa perspectiva, ao se posicionar em suas
práticas sexuais como insertivo, Cristian considera-se menos exposto ao vírus HIV.
Ao mesmo tempo, quando opta por não ejacular no reto do companheiro, ele
gere a sua segurança e a de seu parceiro. Nesse sentido, para Brasil (2009) e
Parker et al. (1998), algumas estratégias podem ser estimuladas de modo a
diminuírem os riscos de infecção pelo vírus da aids. Dentre elas, estão a
masturbação e a priorização do sexo oral.
Outro argumento utilizado na gestão dos riscos diz respeito à carga viral das
pessoas que vivem com HIV como indicador de maior ou menor risco de infecção
e/ou reinfecção pelo vírus da aids. Lançado no final do ano de 2008, um estudo
suíço gerou polêmica no meio científico ao afirmar que a possibilidade de
transmissão do HIV está associada à carga viral (Vernazza et al., 2008). Assim,
supostamente, quanto menor a taxa de carga viral daqueles que vivem com HIV,
menor também será a chance de infectar o parceiro com sorologia negativa. Esse
estudo foi amplamente divulgado, sobretudo pela internet, e circula por email ao
redor do mundo.
Por conseguinte, essa noção passou a fazer parte do cotidiano de muitas
pessoas, que agora se embasam nessas informações para gerir os possíveis agravos
presentes na opção pelo não-uso do preservativo. Foi esse o argumento de
Cristian ao explicar a sua noção de gestão de riscos:
“Então assim = é (x) o que tem (x) relativamente recente é o estudo
suíço de 2008, que eu me enquadro nesse (x) resultado que foi dado
na pesquisa. Então eu já = há um ano e meio eu faço uso é:::é
regular, constantemente, religiosamente (.) do coquetel. Hum = com
dois meses digamos né? Eu já tive a (x) carga viral indetectável, e nos
últimos meses, inclusive, tenho o meu CD43 em ascensão. Então =
também esses dados juntam-se aos fatos de (x) eu ter zero chance ou
menos riscos de eu transmitir para alguém (x) por conta do estudo
suíço que <diz que a pessoa que é (x) positiva>, que está há mais de
seis meses hum:::::m com a carga viral indetectável e não tem outro
tipo de doença e (x) DST, ela não apresenta risco de contaminar um
parceiro negativo.”
À primeira vista, cumprir à risca o tratamento com o antirretroviral coloca
Cristian dentro da recomendação do estudo suíço. Ele usa a expressão
“religiosamente” para frisar que leva a sério as recomendações médicas. De
794
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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3
Os linfócitos T-CD4 são
células que compõem o
nosso sistema
imunológico.
DE LUIZ, G.M.
A linfa é um líquido
transparente,
esbranquiçado, podendo
aparentar tom amarelado
ou rosado. Possui
características
semelhantes ao plasma
sanguíneo, sendo
responsável pelo
transporte de linfócitos
pelos vasos linfáticos
(Bergmann, 2000).
4
artigos
acordo com os parâmetros da terapia antirretroviral (TAR), uma pessoa que vive
com o vírus da aids deve fazer uso contínuo e sistemático do coquetel anti-HIV,
pois quaisquer alterações no padrão de ingestão pode provocar perda gradual da
eficácia do arsenal medicamentoso. É como um “ritual religioso” (Cristian) que
precisa ocorrer diariamente, no mesmo horário, de maneira sistemática. Ao refletir
sobre sua carga viral não detectável, ele considera ter zero chance de infectar o
parceiro. Porém, posteriormente, reconhece que pode haver um pequeno risco, o
que torna a possibilidade de transmissão do vírus contraditória do ponto de vista da
literatura científica sobre o assunto.
Essa mesma questão apareceu na fala de Agileu, porém de uma forma inversa.
Ele diz que possui sorologia negativa para o HIV, mas mantém relações sexuais
com pessoas sabidamente de sorologia positiva, sem nunca ter se infectado.
Consequentemente, sente-se seguro quando opta por fazer sexo com outras
pessoas de sorologia positiva para o HIV, pois seus parceiros enviaram-lhe um
estudo que apresenta a correlação entre carga viral e os riscos de infecção. Pelo
relato, somos conduzidos a pensar que Agileu refere-se ao estudo suíço. Ao ser
questionado sobre esse comportamento, relata:
“(...) é que::::e teve (x) >três soropositivos que eu já tive relação
sexual com eles mesmo sabendo que eles são soropositivos<. E:::::e
um deles me mandou um artigo, de um médico, afirmando que:::e os
soropositivos que tomam os coquetéis, o vírus fica:::a concentrado
nas linfas4, >de modo que não fica tanto no sangue = assim<. Então
(x) segundo esse artigo de um médico é::::é >as pessoas que se
tratam< com o coquetel (x) não transmitem o vírus, porque o vírus
fica controlado (.) muitas vezes indetectável. E foi um artigo que
embasou isso, né?”
Agileu finaliza a resposta e devolve a pergunta ao pesquisador em um sinal de
dúvida sobre a informação. Em acréscimo, a carga viral não detectável dos
parceiros com sorologia positiva para o HIV o leva a pensar que está protegido dos
riscos, uma vez que o vírus está concentrado nas linfas e indetectável no sangue,
principal canal de circulação e infecção.
É interessante perceber que, à medida que saem do laboratório de produção e
circulam no cotidiano das pessoas – neste caso, pela internet –, as informações
adquirem sentidos distintos. O relato de Agileu – que pressupõe uma
concentração do HIV nas linfas, com presença insignificante no sangue – indica
um entendimento parcial da posição científica sobre o assunto, uma vez que o
estudo referido não afirma que o vírus está localizado apenas nas linfas, mas, sim,
que se encontra “escondido” em órgãos ainda não identificados, bem como no
próprio sangue – fonte principal de transmissão do HIV (Vernazza et al., 2008).
Mas... e as DST e a possibilidade de reinfecção?
Os estudos que fundamentam a probabilidade de riscos de transmissão do HIV
na hipótese da carga viral trouxeram à tona a possibilidade de pessoas vivenciarem
suas práticas sexuais sem preservativo, possivelmente pela diminuição dos riscos
de infecção pelo vírus em função da sua carga no sangue. Esse fator fez com que
o HIV deixasse de ser a maior preocupação dos entrevistados, passando as DST a
serem o foco principal de cuidado. Agileu relata:
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013
795
O USO DA ARGUMENTAÇÃO CIENTÍFICA ...
“Em uma consulta com a médica que eu fiz ((estala os dedos)) é::::é (x) numa das ocasião
de um exame para saber se eu tinha ou não HIV = eu faço esse exame periodicamente, >ela
me deu um dado interessante<: é:::é existe 0,5% de chance de você infectar alguém com
HIV em uma relação sem preservativo, (.) e:::e outras doenças, tais como hepatite (x) e HPV,
têm (x) bem mais chances. Tem dois tipos de hepatites, que eu não me recordo bem da letra,
tem >30 ou 25% de chances de infecção< quando você faz uma relação sem
preservativo. Então, (x) há muito alarde quanto à infecção pelo (x) HIV, mas tem as outras
tantas que (.) (x) também pode pegar. Inclusive (x) eu = é::::é (x) interessante relatar numa
entrevista como esta (x) que eu peguei sífilis recentemente.”
Assim, ele traz sua experiência de já ter se infectado pela sífilis – mas não pelo HIV – como maneira
de provar a relação estatística que pensa existir.
Há também quem diga que o vírus da aids já está incorporado ao seu cotidiano, portanto, faz parte
de si. Por ainda não ter cura, não há nada que se possa fazer. Dessa forma, as DST passam a ser a
grande preocupação desses homens. Nas palavras de Daniel: “os riscos que me deixavam mais afetado
eram de doença mais comum, tipo sífilis ou condiloma. E::E (x) não mais a aids = a aids já (x) não me
assustava mais, eu já estava com ela.”
Cristian acrescenta: “o que mais me preocupa é (x) são os outros tipos de infecções por outras DST’s
(.) que possam ocorrer.”
Mas, para Edu, as DST e o HIV encontram-se em um mesmo patamar e seus riscos são igualados às
imprevisibilidades do cotidiano. Há, nesse sentido, uma generalização desse risco. Ele discorre acerca da
sua preocupação em elevado nível de voz: “ >Pelo HIV, pela sífilis, pela gonorreia, pelo cancro duro,
mole, pelo HPV e uma série de outras coisas que não são só o HIV<.”
Uma segunda questão diz respeito à possibilidade de reinfecção em homens que vivem com HIV.
Chama a atenção o fato de nenhum acreditar na possibilidade de reinfecção, embora todos tenham
declarado conhecer a orientação fornecida pelos médicos de que esse evento pode ocorrer e, neste
caso, as pessoas podem adquirir um vírus resistente às medicações existentes. Para Aristóteles, a
reinfecção só tem sentido caso transe com alguém que não siga corretamente o tratamento com os
antirretrovirais. Por isso, acredita que esse critério não se aplica a ele, pois segue as recomendações
médicas corretamente e procura manter relações sexuais com pessoas na mesma situação. Ele
argumenta, ainda, que lê e conversa com profissionais de saúde sobre esse assunto:
“A conclusão hoje é que o maior risco, quando você faz sexo com uma pessoa sem
preservativo, é (x) que ela não faça também o tratamento. Quando são duas pessoas que
fazem o tratamento e elas fazem sexo sem preservativo, desde que estejam em boa condição
de saúde, a probabilidade de risco é muito pequena.”
Aristóteles reconhece que há um pequeno risco, mas que, exatamente por ser mínimo, é possível
manter relações sexuais sem preservativo. Na mesma direção, Gabriel segue uma retórica científica para
poder explicar os motivos pelos quais não crê na reinfecção. Assim, parte do pressuposto de que nem
mesmo a biomedicina chegou a um consenso sobre esse processo, e destaca as contradições entre as
versões sobre o tema nesse campo:
“É:::é primeiramente = existe uma linha da medicina que prega que ela não é desse jeito.
Como eu já mencionei e torno a dizer, existem linhas dentro da medicina que são
controversas, (.) como em qualquer área de estudo, como em qualquer área de
conhecimento, >de forma mais aprofundada = tu tens linhas que em determinados
momentos podem até se contradizer<. Isso existe também na medicina. É:::É eu tive acesso
a essa informação (.) tanto por um médico, “! como por <esse meu ex-companheiro> =
que é farmacêutico. E:::E, partindo justamente (x) desse argumento, dessa justificativa = de
que existem sim = cepas diferentes do HIV. Isso é ponto pacífico. E que cada u:::m = enfim
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DE LUIZ, G.M.
artigos
= cada soropositivo está infectado por uma cepa especificamente. É:::É a partir do momento
em que eu sou reinfectado, é:::é (x) e o discurso da medicina parte da noção de que (x) “! a
reinfecção vai mudar o vírus que está dentro do organismo do soropositivo. Primeiro que
isso não é um argumento plausível, porque naturalmente o vírus se modifica. Isso é uma
característica do HIV. Independente de eu ser infectado e entrar em abstinência, e não usar
drogas injetáveis, e não fazer transfusão, >e não tivesse nenhum outro comportamento que
me levasse a ter contato com outra cepa do HIV< = é:::é o vírus que está dentro de mim,
ele está se modificando sempre, sozinho, sem precisar de outra cepa. A possibilidade de
criação de um >super = mega = ultra = vírus< (.) hã:::ã formados por outras cepas
diferentes, criando um monstro megamutante que dá conta de tudo (.) HOUVE DOIS
CASOS (.) eu lendo, por intermédio da internet, de anais específicos da::::a (x) = de
inclusive de infectologia.”
Vale ressaltar que Gabriel entra em aspectos específicos da biomedicina ao apresentar sua posição
em relação à reinfecção. Ao fim de seu raciocínio, eleva o tom e afirma que tem conhecimento de dois
possíveis casos de mutação genética do HIV no mundo. Em seguida, descreve a fonte dessas
informações como sendo anais específicos da área de infectologia e a internet.
Dados parciais do estudo de Aza et al. (2010) indicam a existência de quatro subtipos de vírus HIV
entre a população de homens que fazem sexo com homens de cinco regiões do Brasil. São eles: tipo B
(80,3%); tipo C (10,5%); tipo F (4,9%); e outros vírus recombinados (4,3%). Ainda segundo os autores,
o índice de resistência ao coquetel anti-HIV entre os HSH é alta, por isso ressaltam a importância da
realização de novos estudos sobre o tema, com uma amostragem maior dessa população. Essas
informações desafiam os pesquisadores a pensarem novas estratégias de prevenção à aids.
Novas tecnologias de prevenção biomédicas ou tecnologias da incerteza?
As estratégias das novas tecnologias biomédicas de prevenção dizem respeito a grandes estudos
multicêntricos, realizados ao redor do mundo, que geram estimativas de efeitos na redução dos riscos
de infecção por HIV para uma dada população (Prevenção..., 2006). Essas investigações são difundidas
por: boletins de vacinas, revistas, artigos científicos, palestras e reportagens publicadas na mídia
generalista, que circulam na internet.
Uma dessas estratégias refere-se à recém-lançada profilaxia pós-exposição sexual (PEP) – que não
estava disponível à época da entrevista e era, então, empregada apenas em dois casos específicos: em
situação de estupro e em gestantes que vivem com HIV, com vistas a evitar a transmissão do vírus entre
mãe e bebê – a chamada transmissão vertical (Brasil, 2010). Entretanto, de acordo com as
recomendações para a terapia antirretroviral em adultos, os resultados sobre a possível eficácia do
método são controversos. Diz o documento governamental:
Na ausência de estudos diretos e de evidências definitivas em relação à eficácia, efetividade
e segurança das recomendações para a abordagem da exposição sexual ao HIV, serão
consideradas a plausibilidade biológica, os experimentos em animais e o modelo teórico
utilizado na profilaxia pós-exposição ocupacional. (Brasil, 2010, p. 52)
Nessa direção, percebe-se que a profilaxia pós-exposição é usada na gestão dos riscos durante as
práticas sexuais de HSH. Por exemplo,
“Transei sem camisinha, o cara pediu para eu gozar dentro dele. Em seguida, eu pedi ao
médico que incluísse o teste de HIV nos exames de sangue periódicos. Eu fiquei assustado e
meu amigo médico prescreveu o uso profilático de antirretrovirais. [...] Mas essa
automutilação me afetaria e me faria criar vergonha na cara. Na verdade até um lado meu
torcia para eu vomitar, ter as reações adversas que meu amigo médico teve para gerar
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O USO DA ARGUMENTAÇÃO CIENTÍFICA ...
trauma. Não dá pra voltar pra casa, quando os hormônios voltam ao
normal e pensar: ‘Merda, fiz de novo! Posso me desgraçar numa
dessas a toa...’ Nunca acho que valeu a pena, mas na hora...”. (Yuri)5
Ele conta que, após ter transado sem preservativo, recorreu ao médico amigo,
que, por sua vez, ao notar seu desespero, prescreveu a profilaxia pós-exposição.
Porém, Yuri pensa que sua atitude poderia ter, como efeito, uma “automutilação”,
que, nesse caso, diz respeito aos efeitos colaterais referentes ao uso dos
antirretrovirais: “vomitar, ter as reações adversas que meu amigo médico teve para
gerar trauma” (Yuri). É como se ele precisasse sofrer por ter mantido relações
sexuais desprotegidas. Em suas palavras, percebemos o sentimento de culpa por
ter praticado sexo de forma desprotegida e a ideia de expiação por meio de
sofrimento. É como se, pelo prazer, ele não pudesse fazer o uso dos
antirretrovirais sem ter efeitos colaterais severos. Os atos sexuais sem camisinha
acabam, assim, ocupando um lugar de sofrimento em sua vida, a ponto de ter
necessariamente de gerar “trauma” (Yuri), e, em consequência, evitar a repetição
dessa ação.
Questionado sobre a fonte de informação do uso profilático dos antirretrovirais
como possível forma de mitigar os riscos de infecção por HIV, Yuri aponta uma
revista de circulação nacional. Em suas palavras: “Li na Veja; era uma reportagem
sobre profissionais de saúde que tinham se acidentado. Meses depois um amigo
médico me confirmou. Ele me receitou o pacote com 28 dias, mas não havia
certeza da eficácia.”
Yuri relata que, na ocasião em que foi realizada essa entrevista, ainda não
haviam sido publicadas as recomendações para o uso profilático pós-exposição
sexual entre HSH. Por isso esse método não fazia parte do programa oficial
brasileiro de prevenção à aids, exceto em casos de abuso sexual. Ou seja, ele
teve acesso ao método pela proximidade com um profissional da saúde, o qual, de
acordo com o consenso médico, avisou-lhe de que a eficácia da técnica ainda
estava em estudo. Nesse contexto, não era possível assegurar que, caso ele
tivesse entrado em contato com o vírus HIV, não se infectaria. Essas informações
são corroboradas por Fischer et al., (2006), que destacam a importância de se
estabelecer diálogo entre o médico prescritor da PEP e o paciente, deixando claro,
assim, os seus possíveis benefícios, riscos e efeitos colaterais. Para Benn (2001), as
implicações oriundas dos efeitos colaterais da PEP variam de acordo com cada
pessoa, e podem incluir ainda: alterações metabólicas, resistência à insulina,
problemas intestinais e gástricos.
Do mesmo modo, buscamos entender outras maneiras usadas pelos
participantes deste estudo no gerenciamento dos riscos implicados nas atividades
sexuais. Para tanto, recorremos, mais uma vez, ao diálogo com Agileu, o mesmo
que relatou a questão da carga viral indetectável como um dos fatores
determinantes na sua opção pelo não-uso do preservativo. Ele diz que é
circuncidado e esse fato também contribui, de alguma maneira, para que continue
a transar sem preservativo, mesmo diante das informações sobre os riscos. Diz ele:
“
porque eu sou circuncidado, e:::e circuncidado (x) não tem muito (x) aquela
lubrificação (x) anterior
antes de gozar, então isso diminui a chance de
infecção”.
798
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013
Yuri aceitou participar
do estudo, porém pediu
que sua fala fosse
anotada em diário de
campo. Por isso, não foi
possível transcrever a
entrevista utilizando as
convenções de
Jeffersonian Transcription
Notation.
5
DE LUIZ, G.M.
artigos
Para ele, a circuncisão supostamente produz menos lubrificação antes da ejaculação, o que reduziria
o risco de uma possível infecção. Em artigo publicado no boletim de vacinas anti HIV/aids, VAX,
(Prevenção..., 2006) o procedimento é visto como uma das novas tecnologias de prevenção
biomédicas, capaz de reduzir, em tese, em até 60%, as chances de infecção do HIV entre homens que
mantêm relações sexuais com mulheres por coito vaginal, mas não se aplica aos HSH. Além disso, a
suposta eficácia da circuncisão está relacionada ao fato de o prepúcio que envolve a glande do pênis ser
uma região que facilita a entrada do vírus, e, ao ser retirado, dificultaria a infecção pelo HIV por esse
meio. Em acréscimo, por beneficiar apenas homens heterossexuais, a circuncisão não faz parte, ao
menos em curto prazo, do programa brasileiro de prevenção à aids (Relatório..., 2007), embora essa
noção já circule entre os HSH no Brasil, servindo de argumento para gestão dos riscos.
Considerações finais
Discutimos, nesta pesquisa, as estratégias de gestão de riscos adotadas por homens que fazem sexo
com homens sem preservativo com parceiros casuais. Percebemos que, cada vez mais, as pessoas
desenvolvem suas autonomias, se apropriam de informações científicas e constroem distintas maneiras
de gerir os riscos para DST, HIV/aids. Dessa forma, notamos que tais estratégias, na maioria das vezes,
seguem uma lógica racional, individual, e não reproduzem o modelo adotado nas políticas de prevenção
do governo brasileiro.
Na abordagem argumentativa dos homens entrevistados, misturam-se diferentes aspectos
contemplados pelas políticas públicas – PEP, correlação entre carga viral e possibilidade de infecção (e
outros que, embora tenham bases científicas, não são referendados pela instância governamental),
Tabela de Risco, estudo suíço, circuncisão.
Diante do imperativo dos estilos de vida saudáveis, as pessoas desenvolvem várias estratégias de
gestão de riscos. Por motivos variados, o diálogo, nesta pesquisa, foi com uma população de HSH
predominantemente de classe média, informada sobre aids e com acesso a preservativo.
Nota-se a aproximação desses homens com a produção científica sobre aids, sobretudo por meio: da
escola, de organizações não governamentais, mídia generalista (TV, jornais, revista Veja), médicos,
internet, revistas científicas, parceiros sexuais, farmacêuticos e anais de infectologia. Vale lembrar que
as informações advindas de fontes estrangeiras foram vistas como mais confiáveis em relação às
brasileiras, ou causaram comoções morais. Isso porque os entrevistados acreditam que os debates no
exterior são mais francos, abertos, enquanto aqueles que ocorrem no Brasil prezam pela cautela na
divulgação de informações que ainda estão em fase de estudo.
Pode-se arguir ainda que, diante da possibilidade de essas pesquisas se apresentarem como
alternativa à gestão dos riscos, seus possíveis efeitos não se aplicam às doenças sexualmente
transmissíveis. Tal configuração leva à percepção de que há pouca discussão sobre a possibilidade de as
pessoas se infectarem com outras doenças, além do HIV.
Outra questão relevante diz respeito à descrença dos participantes da pesquisa em relação à
possibilidade de uma reinfecção. Nenhum deles crê nessa possibilidade, pois, supostamente, nunca
souberam da ocorrência de caso semelhante. Isso conduz a pensar que a crença das pessoas nas
informações que usam para gerirem seus riscos está atrelada à proximidade com o cotidiano.
Na perspectiva de que este trabalho possa contribuir para o desenvolvimento de novas estratégias de
prevenção às DST e à aids entre a população de HSH, frisamos também a importância da discussão
deste assunto por todos os segmentos envolvidos no debate das políticas públicas de combate à aids.
Entendemos, ainda, que, à medida que todos saibam lidar com o tema, será possível não cair na velha
associação homossexuais/grupo de risco/aids/estigma, cristalizada em alguns setores da sociedade.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013
801
O USO DA ARGUMENTAÇÃO CIENTÍFICA ...
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out./dez. 2013.
Este artículo trata de los usos de argumentos científicos que circulan en el cotidiano de
hombres que hacen sexo con hombres (HSH), en parejas casuales, como estrategia para
generar riesgos asociados a las prácticas sexuales. La aportación teórica del estudio son
las prácticas discursivas sobre estilos de vida arriesgados en el escenario del sida. Por
medio de la técnica snowball, se seleccionaron siete participantes que respondieron una
entrevista semi-estructurada. Los resultados indican la asimilación de informaciones
científicas que circulan en el cotidiano de los interlocutores de este estudio y que se
interpretan como fuente potencial en la gestión de riesgos. En síntesis, esos hombres
desarrollan estrategias de gestión de riesgo de infección por ETS, VIH y/o la re-infección
por el VIH sin basarse, necesariamente, en las políticas oficiales de prevención del
gobierno brasileño.
Palabras clave: Argumentación científica. Gestión del riesgo. Prácticas sexuales entre
hombres que tienen sexo con hombres.
Recebido em 25/06/13. Aprovado em 17/09/13.
802
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.789-802, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/1807-57622013.0051
artigos
Comunicação profissional-paciente e cuidado:
avaliação de uma intervenção para adesão ao tratamento de HIV/Aids
Renata Bellenzani1
Maria Ines Baptistella Nemes2
Vera Paiva3
BELLENZANI, R.; NEMES, M.I.B.; PAIVA, V. Health professional-patient communication
and care: evaluation of an intervention for HIV/AIDS treatment adherence. Interface
(Botucatu), v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013.
Interventions to improve HIV/AIDS
treatment adherence are often based on
cognitive approaches of the health
professional-patient communication and
health behaviors. From a
social-constructionist perspective of
professional-patient communication and
treatment experiences, it was assessed the
implementation process of an individual
psychosocial intervention, consisting of 4
encounters and informed by the
conceptual frameworks of Vulnerability
and Human Rights in the psychosocial
dimension of Care. Taking all 16
encounters (4 encounters with each
participant), the implementation process
was considered “moderately developed.”
Difficulties were encountered to develop
dialogic conversations and decode
meanings regarding the lack of adherence
in social situations integrated with
interpersonal and sociocultural scenarios.
Despite the predominance of guidelines
and motivational incentives for patients,
there were also dialogic moments of
co-understanding difficulties in
adherence in its different meanings in
medication intake scenes. This approach
to care proves to be productive to
enhance adherence practices.
Abordagens cognitivistas da comunicação
profissional-paciente e dos
comportamentos em saúde predominam
nas intervenções para apoiar a adesão ao
tratamento de HIV/Aids. Mediante uma
perspectiva construcionista social da
comunicação profissional-paciente e de
suas experiências com o tratamento,
avaliou-se a implementação de uma
intervenção psicossocial individual,
composta por quatro encontros e
informada pelo referencial da
Vulnerabilidade e dos Direitos Humanos
na dimensão psicossocial do Cuidado. No
conjunto dos 16 encontros (quatro com
cada voluntário), avaliou-se que o
processo de implementação foi
“moderadamente desenvolvido”. Houve
dificuldades para desenvolver conversas
dialógicas e decodificar sentidos das falhas
de adesão em situações sociais,
articuladamente aos cenários interpessoais
e socioculturais. Mesmo predominando
orientações e incentivos aos pacientes,
também ocorreram momentos dialógicos
de co-compreensão das dificuldades de
adesão, em seus diferentes sentidos nas
cenas de tomadas. Esta modalidade de
cuidado revela-se produtiva no campo das
práticas em adesão.
Keywords: Medication adherence. Patient
care. HIV/AIDS. Communication.
Evaluation.
Palavras-chave: Adesão à medicação.
Assistência ao paciente. HIV/Aids.
Comunicação. Avaliação.
1
Curso de Psicologia,
Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul.
Rodovia BR 497 km 12,
Cidade Universitária.
Paranaíba, MS, Brasil.
79500-000.
[email protected]
2
Departamento de
Medicina Preventiva,
Faculdade de Medicina,
Universidade de São
Paulo (USP).
3
Departamento de
Psicologia Social e do
Trabalho, Instituto de
Psicologia, USP.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
803
COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Introdução
A adesão do paciente à terapia antirretroviral (TARV) é crucial para os
programas de HIV/Aids4 em todo o mundo; dela dependem: a supressão
duradoura de carga viral, a prevenção da resistência viral e falência, e a redução da
morbidade e mortalidade (Rasu et al., 2013), possibilitando vidas saudáveis e
produtivas às pessoas com HIV (Liau et al., 2013).
A adesão refere-se a quanto o comportamento de uma pessoa corresponde às
recomendações acordadas com o profissional da saúde ao tomar remédios, seguir
dietas e/ou mudar o estilo de vida. É, sobretudo, um processo influenciado
simultaneamente por vários fatores, requerendo uma abordagem multidisciplinar e
contínua, especialmente nas doenças crônicas (Organização Mundial de Saúde OMS, 2004).
Afirmando o papel da assistência à saúde, a adesão é resultante do lidar dos
pacientes, diariamente, com conjuntos dinâmicos de limitações, cujo
enfrentamento “é construído e exercitado na vida social cotidiana, ou seja, em
diversos contextos intersubjetivos, entre os quais sobressai, pela relevância e
constância, a relação com o serviço de saúde” (Nemes, 2009, p.5).
O Programa Brasileiro de Aids preconiza a condução de atividades de incentivo
e monitoramento da adesão pelos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde
(SUS), entre estas consultas médicas e atendimentos individuais por outros
profissionais de saúde, focados especificamente na adesão ao tratamento
(Brasil, 2008, 2007). Não houve, porém, estudos abrangentes de avaliação dessas
atividades até 2009, quando um inquérito nos serviços do Estado de São Paulo
mostrou que a abordagem da adesão é realizada, predominantemente, por
médicos e enfermeiros no interior dos atendimentos regulares; e que a maioria das
demais atividades dos serviços que envolvem adesão é pouco específica,
insuficientemente protocolada e avaliada (Caraciolo et al., 2009).
Intervenções em adesão:
comunicacionais, de aconselhamento e educativas
Com base em revisão de 36 estudos qualitativos publicados entre 1996 e 2005,
Vervoort et al. (2007) sugerem que intervenções em adesão explorem as barreiras
e os facilitadores da adesão da perspectiva dos pacientes, pois atuam como
processos subjacentes aos fatores apontados por estudos epidemiológicos; e
abordem os modos pelos quais as pessoas gerenciam seus cotidianos ao tomarem
os antirretrovirais. As conversas com os pacientes devem abordar: a condição de
“ser alguém que vive com HIV”, pois a aceitação melhora a adesão; manutenção
ou não do sigilo sobre a soropositividade (se abrir pode tanto ajudar a melhorar a
adesão, como se expor a comentários negativos e discriminações); as respostas
clínicas benéficas da TARV (diminuição da carga viral, melhora da imunidade); e
quais circunstâncias implicam esquecimentos ou alterações conscientes das
tomadas da medicação. Recomenda-se: ofertar informações; solicitar que a pessoa
descreva suas tomadas rotineiras; apoiar o desenvolvimento de habilidades,
sobretudo de organizar a vida, antecipar riscos de falhas e acessar rede de suporte;
desenvolver confiança nos profissionais mediante comunicação aberta e franca.
“Adaptar a medicação à vida ao invés da vida à medicação é a primeira e a mais
importante estratégia para promover a adesão” [tradução das autoras] (Vervoort et
al., 2007, p.279).
Depreende-se, assim, que as atividades individuais de apoio à adesão devem
investir fortemente na singularização e na disponibilização contínua de momentos
804
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
4
Adotamos a sugestão do
Departamento Nacional
de DST/Aids/Hepatites,
Ministério da Saúde, de
grafar “aids” como
substantivo comum, em
caixa baixa, exceto na
sigla “HIV/Aids”, nomes
próprios e citações
diretas.
BELLENZANI, R.; NEMES, M.I.B.; PAIVA, V.
artigos
de conversas entre profissionais e pacientes, sobre as experiências com o tratamento nos diferentes
contextos, buscando formas de o paciente “viver melhor”, “da forma que lhe convenha” (Nemes et
al., 2012, p.281).
Com base nas cinco principais perspectivas teóricas identificadas por Leventhal e Cameron (1987)
nos trabalhos sobre intervenções em adesão em aids e tuberculose – comunicacional, biomédica,
comportamental, cognitiva, de autorregulação e modelo transteórico – a revisão de Munro et al. (2007)
aponta que os trabalhos da perspectiva comunicacional baseiam-se na ideia de que uma boa
comunicação profissional-cliente (mensagem clara, conteúdo adequado e vínculo) repercute em
melhoras na adesão, via a educação do paciente.
Embora desde o final dos anos 1990 atribuam-se efeitos de determinadas características da
comunicação e da interação médico-paciente na adesão – receber informações sobre seu tratamento,
ser escutado e respeitado, ser ativo em questionar (Roberts, Volberding, 1999) – a perspectiva
comunicacional é a que tem menos trabalhos categorizados (cinco); destes, somente dois são artigos de
revisão (Griffin et al., 2004; Lewin et al., 2001) que examinam efeitos da comunicação sobre
comportamentos de saúde, no âmbito de determinadas intervenções. Assim, poucos trabalhos
examinam os efeitos da comunicação, especificamente, sobre a adesão, embora componentes da
comunicação sejam utilizados dentro de inúmeras intervenções em adesão, raramente de modo
explícito ou como componente principal (Munro et al., 2007).
Revisão de 25 intervenções em adesão à TARV, publicadas entre 1996 e 2004, conclui que as
intervenções têm sido essencialmente “ateóricas” e de rigor metodológico insuficiente para avaliação
de efetividade e capacidade de generalização (Amico, Harman, Johnson, 2006). Por outro lado, 18 das
intervenções incluíam sessões individuais de counseling, counseling support, supportive comunication or
individualized pacient education. Mesmo variando em duração e frequência, e se associadas, ou não, a
outros procedimentos, estas sessões, evidentemente, compreendem conversas entre profissionais e
pacientes.
Assim, embora seja possível perceber a valorização da comunicação e do diálogo no plano
propositivo de boa parte das intervenções, as conversas transcorridas entre profissionais e pacientes
constituem uma espécie de “caixa-preta”. Há pouca ou nenhuma explicitação sobre em que bases
teórico-metodológicas foram concebidas e desenvolvidas. Adicionalmente, poucas são as análises
qualitativas, se comparadas aos inúmeros estudos experimentais que descrevem mais os procedimentos
de randomização, alocação e desfechos, do que os processos comunicacionais com os participantes.
Afinal, o que se entende por comunicação profissional-paciente? Por conversar ou dialogar?
Estas indagações ensejaram uma avaliação qualitativa de um ensaio de intervenção de cuidado
individual para apoiar pacientes a melhorar sua adesão ao tratamento antirretroviral, objeto deste artigo
– complementar a outras avaliações desta natureza (Bellenzani, Nemes, 2013; Nemes et al., 2012;
Santos, 2010). Os Quadros 1 e 2 resumem o ensaio e o recorte de investigação deste artigo,
respectivamente. No Anexo 1 encontra-se um resumo do protocolo da intervenção.
Bases conceituais e metodológicas da intervenção
Uma intervenção que enfatiza a dimensão psicossocial do adoecimento
e do Cuidado
A intervenção avaliada foi pensada no bojo da resposta brasileira à aids, cujas proposições no quadro
dos direitos humanos, por exemplo, têm sido gestadas desde o final do século XX. A formulação mais
recente do Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos (V&DH), para analisar a epidemia e propor
ações programáticas, orientou o desenvolvimento do protocolo. Este quadro expressa o compromisso de
“buscar novas bases epistemológicas e técnicas rumo às propostas de reconstrução das práticas de
saúde” (Ayres, Paiva, Buchalla, 2012, p.12) no contexto do SUS, concretizando seus princípios:
universalidade, integralidade e equidade.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
805
COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Quadro 1. Ensaio controlado de uma modalidade de intervenção em adesão, em um serviço de referência do Estado de
São Paulo
O ensaio aconteceu em 2008, num serviço de referência, no município de São Paulo. Os voluntários tiveram suas
medidas de adesão monitoradas por seis meses, utilizando frascos que armazenavam um de seus medicamentos,
antirretrovirais, com dispositivo eletrônico para registro dos horários de abertura (MEMS - Medication Event Monitoring
System). Foram convidadas pessoas maiores de 18 anos, em tratamento com o mesmo esquema de TARV há, pelo
menos, seis meses, cujos resultados da última carga viral eram maiores que 50 cópias/ml, sugerindo problemas de
adesão. O objetivo era avaliar a efetividade da intervenção e, por isso, seu protocolo de quatro encontros foi
implementado somente com pacientes do grupo experimental entre o 3º e o 4º mês da pesquisa.
Concebida como uma tecnologia de Cuidado para apoio à adesão, centrada nas conversações entre profissionais de
saúde e os pacientes em encontros individuais, ela foi conduzida, no ensaio, por duas psicólogas e uma assistente social
integrantes da equipe do serviço. Elas contaram com o auxílio de um roteiro elaborado de acordo com o protocolo
original (em anexo), subsidiado por um conjunto de recomendações extraídas dos artigos de revisões sobre as
intervenções de adesão mais efetivas. Pretendeu-se uma abordagem da adesão distinta das abordagens geralmente
praticadas nas consultas médicas ou nos atendimentos de cada núcleo profissional, numa concepção interdisciplinar,
condizente com as recomendações para o trabalho em equipes multiprofissionais nos serviços de aids.
As três profissionais se inscreveram, espontaneamente, para uma capacitação ofertada pela equipe de pesquisa,
como parte do processo seletivo dos profissionais que se voluntariaram a conduzir o protocolo. A ideia central da
capacitação foi promover uma “desconstrução” do modo tradicional de atendimento e abordagem da adesão, em 48
horas de atividades teórico-práticas pautadas pela metodologia problematizadora da abordagem pedagógica-crítica de
Paulo Freire. As atividades incluíram: a) dramatizações e vivências, seguidas de discussão em grupo e de sínteses pelos
coordenadores; os/as profissionais eram incentivados/as a revisitarem seus saberes e experiências acumuladas, à luz dos
novos referenciais a que estavam sendo introduzidos/as (serão descritos adiante); b) vivência simulatória por 48 horas
de tomada de medicação placebo; c) dramatizações em que os participantes simulavam a condução da intervenção
junto a atores profissionais ou colegas, para que experimentassem formas de manejo da intervenção, alternando-se
entre os “papéis” de paciente e profissional; d) atendimentos-piloto com pacientes do serviço (Santos, 2010). Além da
capacitação ocorreram supervisões das profissionais com membros da equipe, durante a condução do protocolo.
Os resultados quantitativos finais não mostraram diferenças estatisticamente significativas entre as taxas de adesão
dos grupos de controle e experimental; a carga viral média teve decréscimo significativo em ambos os grupos, sem
diferença significativa entre os grupos. A análise do ensaio clínico foi publicada por Basso et al. (2012).
Quadro 2. Objetivos e método da avaliação qualitativa, objeto deste trabalho
Objetivos da avaliação qualitativa
a) avaliar, segundo dimensões e componentes, como e em que nível os momentos conversacionais possibilitados pelos
quatro encontros se aproximaram daquilo que, idealmente, fora planejado enquanto protocolo, uma vez que o roteiro
de apoio às profissionais estruturou - ainda que relativamente - os encontros.
b) articuladamente à análise da concretização do protocolo, analisar: “quem são os participantes”, aspectos de sua
história de vida, convivência com a doença / tratamento, e quais sentidos das falhas/problemas/dificuldades de adesão
emergiram nas conversações da profissional com eles.
Método
São analisadas as conversações transcorridas nos encontros individuais entre uma profissional de saúde (psicóloga) com
quatro voluntários (04 encontros/sessões de cada, totalizando 16, com aproximadamente uma hora de duração). O
material integra o banco de dados da pesquisa original (gravações e transcrições de 176 encontros dos 44 pacientes
atendidos pela intervenção em protocolo completo, dentre os 64 do grupo experimental).
Critérios para seleção dos quatro casos
a) todos atendidos pela mesma profissional Vera (nome fictício).
b) seleção dos dois primeiros pacientes e dos dois últimos a ingressarem na pesquisa/intervenção, tendo em vista que,
ao conduzir sucessivamente os encontros, o desenvolvimento da intervenção poderia aprimorar-se.
A escolha da profissional e dos casos por ela acompanhados na intervenção não tem justificativa metodológica. O
material respectivo foi o primeiro a ter as análises finalizadas, no âmbito da avaliação completa, que inclui o material dos
casos das outras duas profissionais. O tipo de análise feita exige um espaço maior para a comunicação dos resultados, o
que implicou que o presente trabalho se debruçasse sobre o estudo dos casos de uma única profissional.
Sobre a profissional
Vera é psicóloga do ambulatório de aids do serviço de referência, local da pesquisa. Faz atendimento psicológico de
pacientes há, aproximadamente, 20 anos. Uma vez que este serviço é campo habitual de pesquisas e treinamentos, ela
já participou de muitas pesquisas operacionais e atua como instrutora de capacitações.
806
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
BELLENZANI, R.; NEMES, M.I.B.; PAIVA, V.
... continua
Distanciando-se das orientações cognitiva e comportamental mais presentes
nas intervenções em adesão (Simoni et al., 2010), sustentou o planejamento da
intervenção, a noção de Cuidado no campo da adesão ao tratamento de doenças
crônicas (Nemes et al., 2009). A inicial maiúscula indica a intenção em ampliar os
sentidos mais comuns da assistência ou do cuidado ao paciente, propondo-o
“como categoria reconstrutiva” das práticas de saúde (Ayres, 2009a, p.62),
inspirando-se na hermenêutica de Gadamer e Habermas.
O Cuidado é definido como
artigos
5
O campo, corrente ou
perspectiva construcionista
social – denominados, às
vezes, no plural – é
heterogêneo, plural e em
transformação. Alguns
postulados básicos do
construcionismo social têm
sido mais compartilhados
(nem sempre com a
mesma ênfase a cada um)
por um conjunto de
autores considerados
construcionistas (ver
Íñiguez, 2002). Propostas
epistemológicas do
construcionismo social nas
ciências humanas e sociais
têm sido incorporadas
pela Psicologia,
especialmente na
Psicologia Social, desde os
anos 1980 (uma das
principais referências é
Kenneth Gergen); e, mais
recentemente, na
Psicologia da Saúde,
sobretudo na Psicologia
Social em Saúde, em que
Mary Jane Spink é uma
das referências.
Extrapolaria o limite de
espaço deste trabalho
evocar este extenso
campo para situar, em
diálogo, uma das
vertentes
construcionistas da
psicologia social na
saúde – que “pensa o
processo saúde-doença no
Quadro da V&DHs
[Vulnerabilidade e Direitos
Humanos]” (Paiva, 2012a,
p.46). As autoras deste
trabalho identificam
pontos convergentes com
outras vertentes
construcionistas, brasileiras
e internacionais, que
mereceriam ser
explorados, ao tratarem
das temáticas
comunicação,
conversação, dialogia,
produção e negociação
de sentidos, nas práticas
psicoterapêuticas e
psicossociais individuais,
grupais, familiares,
institucionais e
comunitárias.
Além da noção de
construção social do self,
central para o debate das
práticas de cuidado
psicológicas. Optamos,
assim, por indicar a leitura
de alguns destes autores:
Marilene Grandesso, Carla
Guanaes, Emerson Rasera,
Marisa Japur, Sheila
[...] uma categoria com a qual se quer designar simultaneamente,
uma compreensão filosófica e uma atitude prática frente ao sentido
que as ações de saúde adquirem nas diversas situações em que se
reclama uma ação terapêutica, isto é, uma interação entre dois ou
mais sujeitos visando o alívio de um sofrimento ou o alcance de um
bem-estar, sempre mediada por saberes especificamente voltados
para essa finalidade. (Ayres, 2009a, p.42)
No plano mais concreto das práticas de saúde,
cuidar da saúde de alguém é mais que construir um objeto e intervir
sobre ele. [...] há que se considerar e construir projetos; há que se
sustentar [...] uma certa relação entre a matéria e o espírito, o corpo e
a mente [...]. Então é forçoso saber qual o projeto de felicidade que
está ali em questão, no ato assistencial [...]. (Ayres, 2009c, p.37)
A produção do Cuidado numa intervenção dialógica em adesão pressupõe
“diversos, interligados e complexos [...] giros [...]: de sujeito para
intersubjetividades; de controle técnico para sucesso prático; de tratar para cuidar”
(Ayres, 2009c, p.37). Sobre a comunicação que constitui o Cuidado, se avança da
noção de pessoas enquanto núcleos individuais de subjetividade (em que suas
identidades se associariam à mesmidade/permanência) para a noção de
“constituição dialógica das subjetividades”, inspirando-se em Habermas (Ayres,
2009c, p.29). Na relação intersubjetiva, os sujeitos se reconhecem mutuamente e
“se constituem um diante do outro [...] [buscando] um compartilhamento de
horizontes”, durante as conversações que almejam produzir saúde (Ayres, 2009c,
p.35). A partir de “pontes linguísticas entre o mundo da tecnociência e o senso
comum” (Ayres, 2009c, p.34).
Do Quadro da V&DH (Ayres, Paiva, Buchalla, 2012) deriva a segunda fonte
conceitual: a dimensão psicossocial implicada no Cuidado, filiada à abordagem
construcionista social (Paiva, 2012a). Conceitualmente, as perspectivas
construcionistas sociais propõem
uma mudança paradigmática em relação às perspectivas
representacionais ou cognitivistas, que afirmam de modo essencial e
universal a existência de realidades psicológicas e processos internos,
tais como pensamento, memória, atenção, motivação e emoção [...].
[Diferenciam-se das] teorias psicológicas hegemônicas [que] buscam
explicar, por meio desses processos, o comportamento e os
relacionamentos humanos. (Guanaes, 2006, p.22)5
Contrapondo-se às perspectivas que tomam o indivíduo como “conjunto de
fatores intrapsíquicos ou biológico-comportamentais”, o Cuidar que integra a
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
807
COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
atenção psicossocial de inspiração construcionista social trabalha com “a noção de
pessoa em interação, concebida como intersubjetividade [...] e como sujeito de
direito” (Paiva, 2012a, p.45). Enquanto derivação metodológica, “o sujeito em
cena é a porta mais interessante para iniciar qualquer conversa na abordagem
psicossocial do Cuidado, para lidar com qualquer das três dimensões da sua
vulnerabilidade ao adoecimento” (Paiva, 2012a, p.62).
A “metodologia das cenas no quadro da V&DH” (Paiva, 2012b, p.187)
incorporada à intervenção, foi desenvolvida no bojo do movimento construcionista
social – especificamente no campo dos estudos de gênero, sexualidade e prevenção
das DST/Aids (Paiva, 2006). As profissionais que a conduziram com os voluntários,
foram capacitadas e supervisionadas nos referenciais da intervenção, incluindo este
método, para que, durante as conversações, propusessem o “levantamento, a
descrição e a decodificação de cenas [especificamente, aquelas relacionadas ao
tratamento], e seus cenários e contextos socioculturais” (Paiva, 2012b, p.165). O
Quadro 3 detalha a incorporação desta metodologia ao ensaio clínico. O objetivo
era colaborar com as pessoas para refletirem criticamente sobre suas experiências
com o tratamento, concebendo-as como “sujeitos de sua vida cotidiana e sujeitos
de direitos” (Paiva, 2012b, p.166-7).
No âmbito do cuidado à pessoa vivendo com HIV, a conversa sobre
cenas de tomadas de medicação sofistica o diálogo sobre a dinâmica
da adesão ao tratamento, que sempre envolve mais do que uma
receita. [...] levantam-se episódios em que não se tomou a medicação,
quais as cenas “fáceis” que garantiram a tomada [...], analisadas em
conjunto com cada pessoa e de diversos ângulos – do ponto de vista
de sua trajetória pessoal nos serviços, dos sentimentos presentes em
cada cena de tomada, assim como da compreensão da discriminação e
da estigmatização social associada à Aids, no contexto familiar e no
emprego. (Paiva, 2012b, p.169)
McNamee, Harold
Goolishian, Tom
Andersen, Harlene
Anderson e Lynn
Hoffman. A limitação de
espaço nos obriga a
focalizar as referências
que sustentaram mais
diretamente o
planejamento da
intervenção e foram
incorporadas às
capacitações e
supervisões com as
profissionais que a
conduziram. A
perspectiva
construcionista que
sustenta a dimensão
psicossocial do Cuidado,
utilizada neste estudo,
se inspira mais
fortemente: na tradição
pedagógica
construcionista de Paulo
Freire, em George
Mead, Jerome Bruner,
Erving Goffman, Thomas
Luckmann e Peter
Berger, assim como nas
abordagens
construcionistas sociais
dramatúrgicas que
dialogam com a
produção no campo da
sexualidade e gênero,
de John Gagnon,
Richard Parker e Peter
Aggleton.
Quadro 3. A metodologia das cenas6 nas capacitações e supervisões do ensaio clínico
Para que as conversas em cena ocorressem com espontaneidade – por meio das quais os interlocutores
“encarnassem” vozes e ações dos “personagens”, as profissionais foram incentivadas a agirem como “diretoras” de um
filme ou novela, utilizando solicitações tais como: “Vamos pensar essa situação que você está me descrevendo: a dose
da medicação que você que tem que tomar no seu trabalho... Vamos construir esse momento como se fosse uma cena
de novela... Como é o seu local de trabalho?... Quem são as pessoas com quem você está neste horário? Vamos
imaginar que a sala estivesse vazia, mudariam os acontecimentos?”. Após a “construção” e “visualização” densa da
cena, a proposta é decodificar os sentidos das ações, das condutas, das sensações, emoções e decisões (principalmente,
as espontâneas, menos racionais), envolvendo a tomada da dose. Conforme o enredo, o contexto local e cenário
sociocultural mais amplo, entendimentos ou ideias das profissionais que ajudassem a compreender o que se passava
deveriam ser comunicadas; não como verdades ou “interpretações” impostas e, sim, como possibilidades, podendo o
interlocutor concordar ou não. Portanto, as profissionais participavam da negociação e da produção dos sentidos
compreensivos. Inclusive, além da “construção verbal” da cena, encenações densas ou mais simples (como atores
“passando os textos”, somente as falas dos personagens) também poderiam ocorrer.
A metodologia buscou facilitar que as profissionais, atentas à dimensão psicossocial de qualquer adoecimento e dos
comportamentos de saúde, auxiliassem as pessoas, pelo diálogo, a reconhecerem suas dificuldades pessoais para se
manterem aderentes e a imaginarem as mudanças possíveis. Sobretudo, aquelas que dependessem do “passar a agir”
ou a interagir socialmente, gozando dos direitos a que se tem como cidadão (não ser discriminado, direito à
privacidade, a assistência de boa qualidade, a decidir pelo que melhor lhe convém entre possibilidades terapêuticas, ao
acesso às informações, insumos e recursos que auxiliem o autocuidado e a adesão).
Foi incorporada como um recurso conversacional e vivencial para expandir o entendimento de que a produção das
dificuldades corriqueiras com o tratamento – por exemplo, não buscar a dose no armário, na empresa; não tomá-la na
sala da casa de uma amiga – está condicionada, entre outros determinantes sociais, aos sentidos que as ações, nãoações e interações adquirem em cada cena social. Entende-se, portanto, a vulnerabilidade individual ao adoecimento
por falhas no tratamento, “inextricavelmente integrada à programática e à social” (Paiva, 2012b, p.187).
6
A expressão conversas em cena não consta em publicações anteriores acima citadas sobre a metodologia das cenas. Durante este estudo ela nos
pareceu apropriada para denominar a conversa que solicita narrativas de cenas e as analisa.
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BELLENZANI, R.; NEMES, M.I.B.; PAIVA, V.
artigos
Novas dimensões e componentes para avaliar
uma intervenção psicossocial em adesão:
da transmissão de mensagens à comunicação dialógica
As referências acima descritas exigem a implementação de uma modalidade psicossocial de
Cuidado, focada nos problemas de adesão ao tratamento de HIV/AIDS, que depende, portanto, dos
fluxos das conversações. Logo, é necessário delinear a perspectiva de comunicação profissionalpacientes adotada nesta avaliação.
Uma “boa comunicação” nas práticas de saúde é, tradicionalmente, aquela cuja ênfase se coloca na
competência do profissional no uso da linguagem e na clareza de seus enunciados (informativos e
prescritivos). Esta concepção é herdeira da revolução cognitiva, processada desde os anos 1950 na
psicologia, intensificada por mudanças no âmbito da filosofia da ciência, a partir da década de 1970
(Álvaro, Garrido, 2006). O paradigma então predominante ficou conhecido como paradigma do
processamento da informação, em que os processos cognitivos são abordados mediante a metáfora do
computador, numa analogia entre os processos computacionais e os cognitivos – incluindo os que
envolvem a comunicação interpessoal: pensar, formular, transmitir enunciados; receber e processar
mensagens. “[...] A mente como um sistema de processamento de informações” (Álvaro, Garrido,
2006, p.250).
Esta apreensão cognitiva da comunicação sustentava-se no “velho paradigma do conhecimento”, em
crise na filosofia da ciência, sendo progressivamente substituído por “novos paradigmas do
conhecimento” (Pearce, 1996, p.181), entre outros, o do construcionismo social. A comunicação no
“velho paradigma” supunha “que a linguagem se referisse ao mundo, ou seja, que a linguagem é
representacional: fala-nos das coisas que estão ‘ai fora’. [...] estabelece que a transmissão da mensagem
(ou seja, conseguir que as mensagens passem ‘daqui’ para ‘ali’) é a função chave da comunicação”
(Pearce, 1996, p.176).
A partir desse paradigma pode-se compreender, por exemplo, uma das críticas dirigidas à
perspectiva comunicacional nas estratégias de melhora da adesão: ignorar as atitudes, fatores
motivacionais e interpessoais que interferem na recepção da mensagem e em sua conversão em
mudança comportamental pelo paciente (Munro et al., 2007). Os processos são, portanto, operados
individualmente pelos interlocutores (em suas mentes como computadores). O profissional “pensa”,
formula e transmite enunciados; o paciente assimila, processa as mensagens recebidas, e as converte
em comportamentos. Características “negativas” do paciente ou “má qualidade da mensagem” emitida
podem interferir em seu processamento e conversão em “respostas” comportamentais pelo paciente.
Afastando-se da perspectiva cognitiva, o modo com que se analisou a comunicação no presente
estudo guiou-se pelas epistemologias da hermenêutica filosófica e do construcionismo social (Schwandt,
2006). Estas orientaram o modo de conceber a comunicação profissional-paciente e, no processo de
avaliação da implementação, orientaram, também, “como” se escutavam os áudios e se liam as
transcrições das conversas. Com base em Gadamer,
a compreensão é a interpretação [...]; no ato de interpretar [...] as tradições e os préjulgamentos concomitantes que influenciam nossos esforços de compreender, [estão]
condicionando nossas interpretações [...]; a compreensão é participativa, conversacional e
dialógica [...] sendo conquistada somente através de uma lógica de pergunta e resposta [...].
(Schwandt, 2006, p.198-9)
A tradição hermenêutica e o construcionismo social valorizam a compreensão de sentidos produzidos
nos processos conversacionais, preocupando-se em “esclarecer as condições nas quais ocorrem as
compreensões” (Schwandt, 2006, p.200). Embora discordem sobre a questão de existir ou não, a priori,
verdades a serem interpretadas, ambas compartilham “a crítica geral do significado enquanto objeto”,
dos significados “como entidades fixas que podem ser descobertas e cuja existência independe do
intérprete”; ambas têm “afinidade com a noção do nascimento do significado” (Schwandt, 2006,
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COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Dimensão C: Adequação do desenvolvimento do protocolo aos objetivos, temas e
metodologia, segundo o roteiro
Dimensão D: Manejo da metodologia das cenas
T
T
T
p.202). Ou seja, “o sentido e o entendimento são construídos socialmente [...], não [os] alcançamos ou
possuímos até realizarmos uma ação comunicativa [...]” (Anderson, Goolishian, 1998, p.36).
Na abordagem psicossocial do Cuidado proposta na intervenção – e nesta avaliação – a comunicação
é pensada como compreensões mútuas produzidas no intercâmbio dos sentidos, ou seja, “no entre” os
falantes. Tanto na interação profissional-paciente, como da pessoa atendida com “os outros” com quem
interage, e se comunica, em suas cenas cotidianas (performática e intersubjetivamente). Não se tratam,
portanto, “dos sentidos existentes dentro de cada um, a priori”, a serem transmitidos e assimilados,
mas, sim, dos sentidos construídos e compartilhados na cena de encontro profissional-paciente.
Para avaliar as conversações e, por conseguinte, se estas concretizaram o protocolo de abordagem
psicossocial proposta para a intervenção, foi necessário, então, adotar a noção de que as conversas não
são todas, necessariamente, de natureza dialógica, podendo ser de natureza monológica, conforme
denomina Guanaes (2006), com base nas interfaces das proposições teóricas de John Shotter, Mikhail
Bakhtin e Harlene Anderson.
Conversas dialógicas possibilitam multiplicidade de vozes, ao contrário das monológicas, em que se
impõe uma voz, perspectiva, tradição ou discurso dominante (por exemplo, o discurso técnicocientífico, médico, religioso, psicológico etc.). Diálogos possibilitam intercâmbios, complementações,
interações entre as vozes, e, nesse ínterim, a emergência de inovações e de novos sentidos “a partir de
reconhecimento do outro como uma voz distinta e particular”; “criando assim possibilidades da
construção conjunta da ‘mudança’” (Guanaes, 2006, p.73).
Derivou-se, assim, dessas perspectivas teóricas e metodológicas, uma abordagem avaliativa dinâmica
(ilustrada na Figura 1, descrita no Quadro 4); sistematizada em dimensões e componentes
interdependentes, correspondentes a aproximações mais “panorâmicas” ou mais “internas” (como um
“zoom”).
Dimensão E: Repercussões da intervenção para a pessoa
Encontro 1
Encontro 2
Encontro 3
T
Encontro 4
Dimensões transversais
Dimensão A: Princípios da intervenção; B: Enfoques predominantes nas conversações
Figura 1. Abordagem avaliativa da intervenção
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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artigos
Quadro 4. Abordagem avaliativa segundo dimensões e componentes. Abrindo a “caixa-preta”
Dimensão A: “Princípios Gerais da intervenção” (teóricos, metodológicos e éticos)
Seu principal componente teórico-filosófico, mais abrangente e transversal à intervenção, é a “produção do Cuidado
em adesão, por meio de uma interação comunicacional dialógica entre profissional e pessoa atendida”. Outros
quatro componentes fundamentais à comunicação dialógica integram esta dimensão (ver Quadro 9).
Dimensão B: “Enfoques predominantes nas conversações”
Busca-se avaliar se o referencial da dimensão psicossocial construcionista do Cuidado em adesão – trabalhar com “a
pessoa no contexto e o contexto na pessoa” (Paiva, 2012a, p.59) – foi implementado. Sendo psicossocial e
comunicacional no plano propositivo, é necessário avaliar se esse enfoque foi predominante ou não, em relação a
outros possíveis: educativo ou comportamental-cognitivo (ver Quadro 9).
Examina-se, em primeiro lugar, o processo de acolhimento (segundo acepção que tem sido veiculada no SUS, com a
Política Nacional de Humanização), necessário às intervenções que pressupõem a dimensão psicossocial do
adoecimento e do Cuidado – para a compreensão contextualizada das experiências de autocuidado, como a adesão.
Avalia-se a ‘qualidade da escuta’ das narrativas livres do paciente – melhor quando se “amplia o horizonte normativo
para uma dimensão existencial” (Ayres, 2009d, p.92) – e a responsividade da profissional: em que medida se implicou
na conversação, sendo interessada, solidária e apoiadora. Se seus questionamentos incentivavam a reflexão e ampliavam
as possibilidades de a dupla compreender os sentidos intersubjetivos daquilo que era compartilhado – sentimentos,
relações sociais na família e no trabalho, relacionamentos afetivos, condições de vida/cidadania, projetos etc. Se
tendiam à singularização (“respondiam” àquilo que a pessoa expressava), não orientando-se, sobretudo, somente pelas
regularidades tecnocientíficas. Configurando mais fortemente o enfoque psicossocial construcionista, esperava-se que,
ao escutar as narrativas, a profissional as explorasse segundo a metodologia das cenas. Vividas cotidianamente, estas
“dependem da trajetória e dos recursos de cada pessoa [...] da sua condição social – de gênero, de classe, estado
emocional ou sorológico e, [...] dos programas a que tem acesso. Ou seja, da menor ou maior vulnerabilidade social,
pessoal e programática que, então, se expressará a cada cena” (Paiva, 2012b, p.199).
O enfoque psicossocial do Cuidado configura-se na medida em que se pressupõe a pessoa atendida, sempre em
interação, em mudança, e não a expressão de uma “interioridade própria e permanente” ou, ainda, de “respostas”
que caracterizam “seu padrão de comportamento ou de crenças” (enfoque comportamental-cognitivo). O que
geralmente é entendido como crenças do paciente (um componente individual da vulnerabilidade) devem ser
trabalhadas no diálogo, remetendo-as aos contextos relacionais e sociais de sua produção (plano sociocultural da
vulnerabilidade). Portanto, diálogos decodificadores que promovam “ampliação da consciência”, contribuindo com a
“emancipação psicossocial” das pessoas em relação aos determinantes que as oprimem e ampliam sua vulnerabilidade
aos adoecimentos (Paiva, 2012b, p.186).
Dimensão C: “Adequação do desenvolvimento do protocolo aos objetivos, temas e metodologia, segundo o
roteiro”
Seus componentes são mais “operacionais” (diferentemente dos que integram as duas dimensões anteriores,
transversais e “filosóficas”). Analisa-se a operacionalização das recomendações do roteiro para cada encontro (ver
categorias nos quadros 7 e 8). Esta dimensão abrange as duas seguintes.
Dimensão D: “Manejo da metodologia das cenas e implicações”
Formulada para avaliar mais especificamente componentes de condução relacionados ao desenvolvimento das conversas
em cena, previstas para os 2º e 3º encontros. Integram-na cinco componentes na forma de questões avaliativas (ver
Quadro 9). Com essa metodologia pretendia-se potencializar o enfoque psicossocial construcionista no Cuidado em
adesão. Analisa-se se houve esforço da profissional para utilizar o recurso e quais suas implicações para a compreensão,
pelo diálogo, das práticas e dos sentidos envolvidos em cada cena/cenário de tomada/não-tomada das medicações.
Investiga-se em que medida os sentidos intersubjetivos das práticas, pouco racionais, contraditórios ou até mesmo
irreconhecíveis até então, foram comunicados entre os interlocutores, e, num plano mais ampliado, problematizados,
pensados criticamente, no diálogo. Sobretudo, quando as cenas explicitassem condições e discursos / vozes sociais
opressoras, relações desiguais e desrespeito aos direitos. Busca-se, também, dimensionar o potencial e as limitações das
conversas em cena para auxiliar a pessoa a formular colocações expressivas de movimentos para lidar / enfrentar as
barreiras objetivas e simbólicas que dificultavam “ser aderente” em cada cena/situação.
Dimensão E: “Repercussões da intervenção para a pessoa”
Formulada para investigar as narrativas do paciente que explicitassem intenções ou práticas iniciadas durante o período
da intervenção, movimentos de mudança na direção da melhora da adesão, autocuidado, bem-estar e projetos de vida.
Integram-na dez componentes (ver Quadro 9) que explicitam os horizontes normativos das interações de Cuidado: a
melhor convivência com o tratamento de acordo com sua conveniência para a vida do paciente e a busca do êxito
técnico do tratamento, na medida em que se configure, simultaneamente, como sucesso prático. Este remete ao valor
que as ações (por exemplo, tomar remédio) assumem para a pessoa no cotidiano e em seus projetos futuros, “em
razão de implicações simbólicas, relacionais e materiais” (Ayres, 2009b, p.139). Ou seja, remetem aos sentidos
intersubjetivamente construídos, vividos singularmente na forma de inteligibilidades das intenções: “porque e para que
ter saúde”, “não adoecer para poder fazer o que”, “tomar remédio para que”. Ao profissional que cuida, cabe o
respeito, o incentivo e o apoio às intenções do paciente guiadas por seus projetos de felicidade, como destaca o autor.
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COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Os resultados comparativos dos casos serão descritos nos quadros 5 a 9,
utilizando-se nomes fictícios. Sugere-se sua apreciação previamente à Discussão.
À guisa de informação complementar, constam, no Quadro 5, dados clínicos e
medidas de adesão dos participantes. O Quadro 6 corresponde ao objetivo “b”,
da Introdução, sobre quem são os pacientes e o que contaram acerca das
experiências envolvendo o tratamento7. Nos Quadros 7 e 8 (correspondentes aos
objetivos “a” e “b”), analisam-se do primeiro ao quarto encontro (síntese
longitudinal, reproduzindo trechos), segundo dimensões e componentes;
aprofundando-se na produção de sentidos durante as conversas.
A partir da análise qualitativa exaustiva sintetizada nos Quadros 6 a 8, avaliouse objetivamente o desenvolvimento da intervenção nos quatro casos, utilizandose um Quadro Avaliativo que contempla uma escala de padrões preestabelecidos
(Quadro 9).
Como o ensaio clínico
não permitia o acesso das
profissionais aos
prontuários, nem às
medidas de adesão
coletadas, todas essas
informações tinham como
fonte, exclusivamente, o
próprio paciente. A
primeira autora, que não
participou do campo da
pesquisa, teve acesso aos
dados clínicos somente
ao final das análises
qualitativas.
7
Quadro 5. Dados clínicos e medidas de adesão dos pacientes
Conforme o protocolo da pesquisa, os quatro participantes mostravam carga viral acima do limite de detecção (50
cópias/ml) no último exame de rotina antes do início da pesquisa. O perfil viral do período de um ano anterior à
pesquisa era compatível com um padrão de adesão insuficiente (replicação viral relativamente baixa, mas constante) nos
casos de Álvaro, Deise e Ciro; padrão este mantido no período da pesquisa bem como no ano posterior. Foram
realizadas três medidas de tomada de medicamento com monitoramento eletrônico: no 2o mês de pesquisa (antes dos
encontros), 4o mês (depois do 3o ou 4o encontro) e 6o mês (após os encontros). As três medidas de Álvaro e Deise
indicaram adesão insuficiente, com valor máximo de 82% e mínimo de 62%. As três medidas de Ciro indicaram adesão
adequada (acima de 95%). No caso de Amaro, os padrões foram diferentes. Já no primeiro mês da pesquisa (antes dos
encontros) sua carga viral decrescera muito, vindo a tornar-se indetectável antes do 1º encontro. Para ele, as medidas
do monitoramento eletrônico foram de 91%, 100% e 97%.
Discussão
No conjunto dos casos, a intervenção desenvolveu-se “moderadamente”. A inflexão pretendida
via “a desconstrução” do modelo mais tradicional de abordagem dos problemas de adesão, foi
preliminar, mais “ensaística”, não operando nos quatro casos. Variações no processo implicaram
melhor desenvolvimento de alguns componentes, ou de uma dimensão à outra. A implementação com
Dirce (“dos últimos”), mais próxima das bases originais, sugere um aprimoramento progressivo em
relação a Ciro e Amaro (“dos primeiros”).
Destacam-se duas fragilidades da implementação; e comuns ao conjunto dos casos: 1) no todo, as
conversas dialógicas não foram preponderantes, embora tenha havido encontros, ou momentos, mais
dialógicos que outros; 2) desenvolver conversas dialógicas, em todos os encontros, foi difícil, sobretudo,
sustentadas nos referenciais teórico-metodológicos originais: Quadro da V&DH e metodologia das
cenas.
Incentivar e treinar ou dialogar?
As dificuldades conversacionais identificadas, numa apreensão mais imediata, têm raízes nas próprias
interações, no que se refere às identidades sociais de “médico/profissional” e de “paciente”, em que,
historicamente, “a palavra final” é do primeiro; o segundo fala “o que tem”, escuta os diagnósticos e
prescrições, “assimila-os”, e se comporta conforme recomendado; no máximo, solicitando
esclarecimentos. Não é comum o entendimento de que pacientes e profissionais necessitam dialogar
sempre, sobretudo para além dos aspectos biomédicos.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Narrativas produzidas nos diálogos de
apresentação e no decorrer dos encontros
Narrativas sobre esquema de tratamento,
experiências relacionadas à adesão e às falhas
de adesão
CIRO
71 anos, aposentado, homossexual, mora sozinho,
sabe do HIV há 20 anos; em tratamento há 17,
não expressa inconformidade ou tristeza a
respeito. Ao contrário da mãe, “que não tem
preconceito”, o pai o expulsou de casa ao
surpreendê-lo com um rapaz aos 13 anos, quando
começou a trabalhar como mordomo na casa de
uma família estrangeira, onde está há 40 anos,
atualmente somente aos fins de semana, “um
bico”. Os patrões sabem do diagnóstico. Tem
pouco contato com duas irmãs e se ressente pela
distância afetiva de uma delas, embora morem
próximos. Conversa abertamente nos encontros,
dá risadas, nega “algum tipo de depressão”. Cita
um rapaz com que se relacionou por 18 anos de
quem ainda gosta; se relaciona com outro, “um
jovem de 26 anos”, que ignora sua
soropositividade. Sente-se bem de saúde, ativo,
enfatiza que nunca teve internações por doenças
oportunistas.
Relata seguir o tratamento corretamente, “faço
tudo certinho”, “o esquema está bem”. Diz-se
“franco” ao contar que, em alguns períodos,
suspendeu o uso das medicações, exemplificando
com uma viagem com um namorado, quando não
as levou. Não sabe os nomes dos medicamentos
que toma, referindo-os por cores ou como o
coquetel. Toma nove comprimidos por dia, cinco
pela manhã e quatro à noite. Compara o
tratamento no presente e no passado: hoje as
tomadas são em casa, no passado eram na
residência em que trabalhava, quando justifica
“esconder os remédios”, “tomar escondido”
em função da presença de terceiros. Sente-se
bem e satisfeito com o atual esquema,
comparando-o com um esquema anterior,
“ruim”, pois incluía medicação conservada em
geladeira. A conversação produz um
entendimento compartilhado de que não há
problemas de adesão com ele.
AMARO
36 anos, casado, pai de um garoto de 12 anos,
esposa soronegativa, a quem omitiu que se
infectou numa relação sexual homoafetiva,
explicando que contraíra o vírus usando droga
injetável. Evita as relações com homens e só as
vivencia quando “a vontade aperta,
esporadicamente”, o que preserva em absoluto
sigilo, tal como o diagnóstico. Diagnosticado há
dois anos e meio, diz: “foi um baque”, “só não
fiz uma besteira” pelo filho estar junto; ele não
sabe sobre o HIV do pai. Diz que se acostumou,
ora que está se acostumando, a ser soropositivo.
Trabalha em uma metalúrgica há vinte anos. Os
papéis como homem, pai de família e trabalhador
são muito valorizados; diz-se “uma pessoa
agitada”, o que relaciona ao início do tratamento
medicamentoso, há pouco mais de seis meses,
cujas primeiras experiências foram ruins; enfatiza:
“nunca gostei de tomar remédio”. Muito
preocupado em manter o sigilo absoluto sobre o
HIV, teme a discriminação no trabalho e que a
esposa também seja alvo; incomoda-o que as
pessoas sintam medo dele, que seja “taxado”
como alguém que “fez alguma coisa. [que
digam: ‘_ ele] usou droga ou ele saiu com
homem’ [...]”. Hoje refere uma convivência
“mais tranquila”, “menos sofrida com o HIV”;
antes pensava que morreria e não deveria fazer
planos; hoje, não mais; mudança que associa a
conversas na internet com outras pessoas que
vivem com HIV e ao apoio de seu médico, a quem
se refere com satisfação, que o orienta em
questões que extrapolam o âmbito clínico
(contemplam vida social e seus direitos), o que o
ajudou a lidar com o diagnóstico.
O assunto das medicações emerge
associadamente ao comentário “sou agitado”,
“ele [medicamento], no começo, ele me
deixou um pouco irritado”, me sentia “zonzo,
com gosto horroroso na boca”. Diz: “estou me
acostumando, me adequando” “nunca gostei
de tomar remédio”. Conhece as nomenclaturas
dos dois medicamentos do esquema (7 e 19
horas, Biovir e Efavirenz), queixa-se do segundo:
“me deixa zonzo, ansioso”. Diz que tem
“poucas falhas”, às vezes atrasos na tomada da
noite, em função da rotina de trabalho: horasextras que o fazem chegar em casa após as 19hs;
não leva a medicação, sabe que existem
“estojinhos” (porta comprimido), mas não tem
um. A tomada de uma terceira medicação (não
especificada) às 23h00min é condicionada ao
momento de se deitar, cujo sentido é o de uma
estratégia: se passar mal estará dormindo; os
horários de se deitar variam, logo, as tomadas
também. Pouco explorados nos diálogos, há
aspectos sugestivos de que algumas falhas nas
tomadas se associam ao fato de a medicação ser
“bem guardada”, cujo sentido é escondida, pela
preocupação de não estar visível a terceiros. Tem
algumas estratégias pessoais para se recordar se
já tomou as doses. Crê seguir o tratamento
adequadamente e, segundo seu médico,
“[atrasos de] até meia hora, não tem
problema”. “Procuro, da melhor forma, tomar
direitinho. Porque eu sei que é um bem pra
mim.” Indagado sobre não levar a medicação ao
trabalho ser/ou não “um problema”, responde:
“quem tá ocasionando o problema sou eu
mesmo”.
Pacientes
artigos
Quadro 6. Os pacientes e suas dificuldades/problemas de adesão
continua
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COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Quadro 6. continuação
Pacientes
ÁLVARO
Narrativas produzidas nos diálogos de
apresentação e no decorrer dos encontros
Narrativas sobre esquema de tratamento,
experiências relacionadas à adesão e às falhas
de adesão
39 anos, aposentado por invalidez, mora sozinho,
homossexual, tem um “ex-companheiro”, com
quem mantém contatos afetivos, a quem, no
decorrer dos encontros, às vezes, é chamado de
“meu namorado”. Fala bastante sobre ele; sofre
com a suspeita de que mantenha relações
concomitantes com outro. É a respeito desta
relação afetiva que mais se expressa; depois de se
apresentar como aposentado finaliza: “[não há]
mais nada, assim, que eu possa estar falando
de mim”. Sua voz expressa melancolia,
indiferença e fatalismo; pouca iniciativa de falar,
mais respondente. Indagado, cita três irmãos, pais
falecidos (a mãe, desde seus dois anos, e o pai, no
início de sua adolescência). Viveu num colégio
interno, depois em uma família adotiva na
adolescência, deixando essa casa e interrompendo
os estudos após briga com pais substitutivos, ao
saberem da sua orientação homossexual; passou a
morar na casa do pai biológico recém-falecido, na
companhia da madrasta. Distanciou-se da família
adotiva, mantendo contatos esporádicos, hoje
“aceitam um pouco mais”. Soube do HIV em
1999, quando uma agente de saúde incentivou a
testagem. Ao receber o diagnóstico diz “quase
me atirei nos trilhos do metrô”, destacando que
recebeu o resultado friamente, experiência
comparada ao atendimento cuidadoso no serviço
atual quando da segunda testagem. Sofreu
intensas discriminações no trabalho ao revelar a
soropositividade à chefa; por depressão e pela
aids, se aposentou. Sofre discriminações, violência
física e psicológica dos irmãos, “ex-presidiários,
violentos”; a irmã “dominadora” já o queimou,
gravemente, atirando-lhe água fervente, ficou um
mês internado. Vive atualmente em disputa com
ela, em função do terreno compartilhado em que
tem sua casa, para onde pretende voltar, mas,
pelo corte no abastecimento elétrico está
impossibilitado; paga aluguel em outro local; vive
entre sua casa e do namorado, está em
dificuldades financeiras.
Crê que o MEMS está auxiliando-o a se lembrar
das tomadas e a “ter mais responsabilidade”, e
que segue o tratamento corretamente em
“noventa e cinco por cento das vezes”.
Menciona já terem ocorrido poucos episódios de
supressões de doses da manhã, em dias que saía à
noite, retornando às seis da manhã; dormia
durante o dia, ao acordar, decidia tomar, então,
somente à noite. Atrasos na tomada da noite, de
uma a uma hora e meia, não são significados
como falhas; supressões de doses ocorrem
durante viagens aos finais de semana
(inicialmente, afirma que leva os frascos dos
medicamentos e, em seguida, reconhece que, às
vezes, não o faz por esquecimento). Duas
colocações relevantes são pouco exploradas: de
que faz algumas “confusões” com os
medicamentos e que já consumiu muita bebida
alcoólica, associando com episódios em que abolia
doses, estes, sim, significados como problemas.
Em tom de preocupação, afirma que está
voltando a beber depois de um ano, abstinente.
Crê seguir “certinho” o tratamento, no
momento. Seu esquema atual: 02 kaletras, 01
lamivudina, de 12/12 horas e 01 viread à noite. A
rotina atual é a de pernoitar alguns dias na casa
do namorado e, frequentemente, acordar por
volta das cinco da manhã, acompanhá-lo até o
trabalho, retornar para casa e, ao tomar café,
entre 8:00 e 8:30, tomar os medicamentos. À
noite, as falhas são frequentes, com variações de
até duas horas, mas ele não significa tais
experiências como “dificuldade” ou “problema”
em função dos horários serem inconvenientes,
por exemplo. Seu entendimento atual é o de que
as falhas ocorreram no passado, agora são
esporádicas.
continua
É comum, justamente, a insuficiência de tempo nos atendimentos que dificulta ampliar o diálogo.
Como esperar, então, que nesta intervenção, conduzida no ambiente do serviço de saúde, os pacientes
falassem espontaneamente? E, ainda, falassem “sobre a vida, não somente sobre os remédios”. Eles
comentavam que isto era incomum nas consultas médicas.
A despeito destas dificuldades gerais, a implementação teve boa aproximação aos princípios gerais,
além de repercussões no autocuidado e no bem-estar, segundo falas dos participantes. Destaca-se a
“permissão” intersubjetivamente construída para a emergência de narrativas sobre problemas, falhas,
814
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Pacientes
DEISE
Narrativas produzidas nos diálogos de
apresentação e no decorrer dos encontros
Narrativas sobre esquema de tratamento,
experiências relacionadas à adesão e às falhas de
adesão
51 anos, trabalhadora do setor de produção de
uma empresa (pediu demissão entre o primeiro
e o segundo encontro, justificando: “para
poder me cuidar mais”. Viúva há vinte anos,
quando tomou conhecimento do HIV do
marido, falecido por aids. Não fez o teste, após
três anos adoeceu e, internada, soube do
diagnóstico e iniciou a TARV. O filho de 22 anos,
órfão de pai ainda pequeno, é seu principal
apoio e “motivo de viver”, a quem ela contou
sobre o HIV há um ano; se esforçou durante
anos para manter o sigilo por medo de que o
filho se entristecesse ou sofresse discriminações.
Sofre com o diagnóstico, sente-se “injustiçada”
e ressentida com o esposo que a infectou, não
teve mais relações sexuais.
Seu atual esquema, de 12/12 horas, inclui quatro
medicamentos, cinco comprimidos prescritos para as
10h00min e quatro para as 22h00min, mas os
horários das tomadas oscilam muito. Pela manhã, o
ritmo intenso de trabalho dificulta se lembrar da
tomada ou ela posterga ir ao armário pegar
comprimidos na bolsa. Atrasos da noite são
significados como consequências do cansaço que a
fazem se esquecer de tomar a dose, ou adormecer
antes das 22h00min, assistindo à TV, acordando até 3
horas depois; às vezes, ingere a dose com atraso, às
vezes, a suprime. Pouco explorado, tem histórico de
esconder os frascos dos medicamentos e não tomálos na frente do filho, o que sugere relação com as
falhas por esquecimento. As dificuldades de adesão
também se associam às experiências de efeitos
adversos, “ficar meio grogue”, o que repercute em
decisões pouco conscientes, de suprimir
determinadas doses quando tem algum compromisso
e “quer ficar bem [sem efeitos adversos]”.
artigos
Quadro 6. continuação
dificuldades e erros no tratamento, produzidas na conversação, nos quatro casos. Se a profissional fosse
normativa, possivelmente o medo da repreensão impossibilitaria assumi-los – como ocorre, geralmente,
nas consultas médicas, segundo os pacientes.
Assim, a inflexão pretendida se processou parcialmente. Em alguma medida, foi prejudicada pela
perda da dialogia em momentos/assuntos-chaves, subsumida pelo estilo comunicacional mais diretivo,
“checklist”; ou pelo viés “excessivamente motivacional”. Por exemplo, no caso de Álvaro, embora Vera
fosse convidativa ao diálogo, diante de um interlocutor mais lacônico deslizou para instruções e
incentivos.
De modo geral, as conversas mesclaram características de orientação cognitivo-comportamental
(mudar crenças, treinar, motivar, aumentar senso de autoeficácia) com características mais próximas das
perspectivas construcionistas sociais.
As conversas tendiam a dialógicas, “mais construcionistas”, quando, por exemplo, a profissional fazia
perguntas abertas, demonstrando a intenção de entender mais, ou melhor; quando comentava sobre o
que a pessoa sentia ou fazia, não como características “inerentes” e “permanentes”, mas entendendoas condicionadas à situação interpessoal e ao contexto; quando reconhecia que havia “vários jeitos de
seguir o tratamento” ou “várias soluções” possíveis; e quando mencionava que, juntos, “iriam
encontrar aquela mais conveniente à pessoa”, “a que fazia mais sentido para ela”. Engajamentos desse
tipo sugerem que houve algum grau de “dinamismo dos processos de comunicação e [de] centralidade
da interação eu-outro na produção de sentidos” (Guanaes, 2006, p.30).
Por outro lado, quando mais monológicas as conversas, predominavam as perguntas fechadas (“está
fazendo direitinho?”), que investigavam a frequência de práticas, ou que possuíam “embutidas”
expectativas de resposta; ou ainda, explicações técnicas repetitivas, incentivos, dicas e instruções no
tempo verbal imperativo (“você tem que fazer isto”) que interrompiam a continuidade do que a pessoa
contava. Produzia-se, assim, uma dinâmica comunicacional que restringia a produção de novas vozes,
ou seja, de sentidos elucidativos segundo outras perspectivas compreensivas, mais ampliadas do que as
do nível individual.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
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COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Quadro 7. Análise das conversações por dimensões e componentes/Encontro 1
CASOS
Ciro
Amaro
Álvaro
Deise
ENCONTRO 1 (as falas dos pacientes estão em itálico e negrito)
Sentidos
produzidos na
apresentação
da intervenção
Sentidos sobre
a participação
na pesquisa e
uso do MEMS
Conversa sobre
a carga viral
detectável
como
justificativa ao
convite para a
intervenção
Exceto com Ciro, predominaram sentidos que favoreciam o entendimento de que os encontros
seriam de cuidado, e não de pesquisa, o que é positivo: “atendimento”, “ajudar as pessoas a lidar
com seus medicamentos”, “vamos pensar juntos”, “uma troca”. Com Ciro, os sentidos
predominantes foram: “uma pesquisa”, “um tipo de entrevista”; o paciente inclusive
complementou dizendo: “eu já dei entrevista uma vez para a VEJA”. Com ele ressaltou-se o uso
do MEMS, a contagem dos comprimidos pelos pesquisadores e o TCLE, sem a devida valorização da
especificidade dos encontros enquanto uma atividade de cuidado (o número de encontros e seus
objetivos, por exemplo), embora fosse parte da pesquisa maior. A implicação disto foi a dificuldade
em produzir-se, entre a dupla, uma dinâmica de Cuidado que ficou secundária à interação de
entrevistador-entrevistado.
Ambos citaram com familiaridade os
profissionais do serviço, como se tivessem
atendido ao convite de pessoas amistosas.
Amaro deu justificativas altruístas, concordando
com o que o profissional lhe dissera, “para
ajudar os outros”, mas também disse: “é bom,
às vezes, a gente falar [...] É bom a gente
conversar”, o que sugere o sentido de
necessidade ou relevância pessoal, ao contrário
de Ciro que veio, basicamente, para atender a
um pedido; ele acreditava: “sempre tomei
certo [os comprimidos]” embora no passado
tenha tido “uma ou outra falha” em situações
de viagens. Indagado sobre expectativas sobre
a pesquisa, desejava uma nova vacina, “pra
gente ficar com menos medicação e melhor
na saúde e no organismo [...]”. Sobre o
MEMS, embora perguntado, não comenta. O
uso do dispositivo não é explorado com Amaro,
emerge fortuitamente no segundo encontro,
quando justificava o não-uso do portacomprimido no dia a dia, para transportar os
medicamentos de casa ao trabalho.
Não desenvolvida no primeiro encontro,
somente no segundo. Amaro disse que, há
quase seis meses em TARV, o médico lhe
informara que os resultados de seus últimos
exames estavam melhores (referindo-se
também ao CD4); não sabia os valores, mas
compreendia a função de cada. Ciro teve mais
dificuldades nesse assunto; para ele era
incompreensível o motivo de sua carga viral
detectável, pois acreditava tomar “certinho” os
remédios; mencionou: “a médica briga
comigo” e achava que os “exames ruins” se
deviam ao envelhecimento (tem 71 anos).
Diz, primeiramente:
“por curiosidade”,
quando a profissional o
questiona (negociação
de sentidos) como se
isso não fosse
suficiente. Daí, então,
se produz um sentido
pessoal: “[Que] eu
comece a tomar, que
eu tome o remédio
mais certinho”.
Reconhece as falhas no
uso contínuo das
medicações, em
especial após
rompimento com
companheiro, “não
tomava com tanta
regularidade [...] perdi
a vontade de viver”.
Acreditava que a
pesquisa já está
ajudando-o,
possivelmente se
referindo ao MEMS.
“Porque tá me
ajudando a tomar o
remédio mais
regularmente.”
Refere-se ao
dispositivo como um
recurso de auxílio para
se lembrar dos horários
das tomadas, um
controle benéfico.
Produziram-se os
sentidos “se
policiar mais”;
“[...] para
melhorar a vida
da gente [...] E
encontrar outras
soluções”.
Aprofundar o
diálogo sobre a
experiência do
MEMS possibilitou
emergir as cenas
de tomadas no
cenário do
trabalho, pois ela
explicava que não
era possível levar
os frascos ao
trabalho “porque
ficariam na bolsa,
[...] nuns
armários, [...] Se
alguém quiser
abrir e mexer, vai
abrir [...] [Você]
Evita porque tem
medo? É. [...]”.
Embora não tenha ocorrido nas conversas
iniciais que apresentavam a intervenção,
ocorre ao final do primeiro encontro com
Álvaro e Deise. Com ele, em meio à
investigação sobre falhas nas tomadas e as
explicações da profissional sobre a relação
entre o aumento da carga viral e atrasos ou
supressões de doses, incentivando-o a ser mais
aderente. Com ela, a abordagem ao final do
encontro foi providencial e, possivelmente,
fruto da sensibilidade da profissional em não
falar da carga viral no início, uma vez que
Deise estava muito incomodada com a
informação no TCLE sobre a possibilidade de
filmagem e gravação da intervenção, além de
ressentida com a condição soropositiva, pois a
infecção sexual pelo esposo era significada
como uma injustiça.
continua
816
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
artigos
BELLENZANI, R.; NEMES, M.I.B.; PAIVA, V.
Quadro 7. continuação
CASOS
Apresentação
mútua
Livre
conversação
Escuta das
narrativas de
apresentação e
sobre as
experiências
com o
tratamento
Ciro
Amaro
Álvaro
Deise
Aos quatro pacientes, a profissional praticamente não se apresentou, se colocou genericamente como “psicóloga
na pesquisa”, ou não falou nada sobre si, contrariando o princípio do reconhecimento mútuo para o
desenvolvimento de uma comunicação dialógica. Com Deise, ao final da intervenção, afirmou preferir não
mencionar que era psicóloga no serviço, contrariamente ao protocolo.
Bem desenvolvidas com os quatro pacientes, o que possibilitou a emergência de suas histórias pessoais atuais e
pregressas; o foco nas rotinas de tratamento possibilitou vislumbrar os cotidianos, os cenários em que o
tratamento ocorre, embora tenha havido fragilidades nas conversas específicas sobre os esquemas de
tratamento de cada um, dificultadas, possivelmente, pelas nomenclaturas dos medicamentos ou pela
complexidade do esquema de tratamento (Ciro). As confusões e dúvidas eram não somente dos pacientes, mas
da profissional também. Incipiente com os quatro foi a exploração de possíveis diferenças na rotina das
tomadas atualmente com o MEMS e, anteriormente, sem o dispositivo.
Esforço da profissional
para identificar
“ questões,
dificuldades,
problemas” com
tratamento.
Predominaram
perguntas do tipo:
“você toma
certinho?”, “você
está tomando
direitinho, então?”,
um estilo diretivo
(“checklist”), não
dialógico, que não
favoreceu a
exploração de
sentidos. Perguntas
genéricas, atemporais
e averiguadoras pouco
convidavam à
rememoração e
análise das situações
específicas.
Conversa mais
exploratória,
convidativa, maior
especificidade nas
perguntas sobre o
tratamento. São mais
explicitadas as
circunstâncias em
que ocorriam os
atrasos de até 3
horas nas tomadas.
Amaro afirmou que
estes ocorriam muito
raramente, cujo
sentido se
transformou no
decorrer da
conversação: ele
reconheceu que as
horas-extras no
trabalho ocorriam
com mais frequência,
logo atrasava as
tomadas das 19:00;
e que, às vezes,
dormia sem tomar a
dose das 23h00min.
Ficou prejudicada a
compreensão sobre
o esquema de
tratamento. Queixase de efeitos
adversos: “[...] O
efavirenz, ele
bagunça um
pouquinho comigo.
Então eu não tomo.
As dinâmicas das interações com ambos se
assemelharam num aspecto: o tema do
tratamento ficou secundário durante boa
parte do encontro 1 e, também, nos
seguintes. Expressaram-se significativamente
sobre outras questões além do tratamento,
com significativo sofrimento. Ela, em relação à
decisão recente de demitir-se do emprego,
às circunstâncias de sua infecção sexual pelo
esposo, o constrangimento de ter aids e o
“bloqueio” na vida sexual que repercutiram
em diálogos sobre sentir-se deprimida. Já
Álvaro reconhecia como problemas em sua
vida: o término com o namorado e seu
esforço para reatarem, a suspeita de que era
traído, as dívidas, a moradia em terreno
compartilhado com a irmã agressiva e os
irmãos violentos que o discriminavam. A
dinâmica comunicacional que se produziu
caracterizou-se, portanto, pela escuta,
acolhimento e apoio emocional por parte da
profissional, que, respeitando as necessidades
de ambos, inseria o tema do tratamento nos
momentos possíveis e apropriadamente. A
complexidade psicossocial de suas vidas teve
implicações sobre o diálogo e sobre a
intervenção como um todo: a “tensão”
entre restringir ou expandir o foco das
conversações; a pertinência ou não de
encaminhá-los para psicologia e psiquiatria (se
desejavam ou concordavam) e, no caso de
Álvaro, o longo intervalo de 60 dias entre os
encontros 1 e 2, que acarretou dificuldades
de se recordarem das conversas anteriores. A
despeito disso, a profissional conseguiu
valorizar e reposicionar o tema da experiência
do tratamento em meio às conversas sobre
outros temas. Foi possível identificar as
circunstâncias dos problemas de adesão e,
embora não com tanta clareza, os esquemas
de tratamento.
continua
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
817
COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Quadro 7. continuação
CASOS
Ciro
Amaro
Livre
conversação
Dificuldade de Ciro
para descrever o
esquema (substituía as
nomenclaturas de
cada medicação pelas
cores). O tratamento
não se associava a
sentidos de problema
e dificuldade (termos
usados pela
profissional de acordo
com roteiro), já outras
questões de sua vida
sim, como: dor de
dente, saudades de
uma irmã e falta de
dinheiro. Ao expressálas, a profissional
investigou se tinham o
sentido de
experiências que
prejudicavam o
tratamento; o que ele
negou. A seu ver,
teve falhas no
tratamento no
passado (em viagens
quando decidia não
levar seus
medicamentos para
não se expor aos
amigos); acreditava
que agiria
futuramente da
mesma forma: só
viajaria sozinho ou
com pessoas que
soubessem do
diagnóstico. Insegura,
Vera não achou meios
para problematizar as
afirmações de que
não tinha problemas
com o tratamento;
chegou a comentar
sua dúvida sobre a real
necessidade de Ciro
participar da
intervenção, como se
“pensasse alto”.
Ele me deixa um
pouco ansioso,
entendeu? [...]
Então eu evito. Me
deixa meio zonzo
[...] gosto ruim na
boca né? [...] as
piores reações que
esse remédio me
dá. Fora isso...”
Aspecto relevante,
mas pouco explorado
foi a associação que o
paciente fez entre
seus estados de
ânimo e melhor ou
pior adesão (irritação,
agitação, ansiedade,
“estar no limite”,
“meio hipertenso”,
“hiperativo”, “que
briga às vezes”);
nunca gostou de
tomar remédios. Não
se desenrolou a
exploração das
possíveis implicações
dessas descrições de
si sobre o
tratamento, ou se
constituíam
repercussões do
viver com HIV. Frente
a estas colocações o
foco foi fechado:
“Então o nosso
objetivo maior é
estarmos pensando
com relação aos
medicamentos. Tá.
Não é?”, o que
impossibilitou a
continuidade do
diálogo.
Escuta das
narrativas de
apresentação e
sobre as
experiências
com o
tratamento
Fechamento
Elencar as
falhas,
problemas ou
dificuldades
Registro
compartilhado
818
Álvaro
Dificuldade de
priorizar o
tratamento em meio
aos problemas da
vida (brigas,
relacionamento
afetivo, moradia).
Vera, ao tentar
compreender toda a
“trama”, elencou o
“preconceito da
irmã” e indagou:
“isso afeta sua vida,
em termos de
tratamento, tomada
dos seus
medicamentos?” Ele
negou. O assunto se
esvaiu, retomado
quando Álvaro
reconheceu que
falhou no uso
contínuo das
medicações após
rompimento com o
namorado, deprimiuse. Vera não o
repreendeu e
explorou os sentidos
das afirmações:
“hoje tomo
regularmente”;
“noventa e cinco por
cento das vezes”,
mas a conversa sobre
os cenários das falhas
ficou secundária em
relação aos
problemas
psicossociais. Tomar
remédios parecia “o
de menos”
comparado à
urgência em reatar
com o namorado/
voltarem para a casa
de Álvaro. Pernoites
na casa do namorado
implicavam falhas
(não levava os
medicamentos
sempre), aspecto
não aprofundado.
Deise
Falhas (atrasos e
supressões de doses)
ocorriam pela manhã,
no cenário do
trabalho. Quando a
linha de produção
parava às 09h30 para
o café dos
trabalhadores, Deise
tomava,
regularmente, a dose
das 10h00; a
mudança do horário
para as 07h30
acarretou o
inconveniente da
parada no trabalho
para a tomada; o
ritmo acelerado
dificulta. À noite, os
atrasos de até 3
horas são significados
como fruto do
cansaço; ela
adormece assistindo
à TV, só toma a dose
se acorda até 01h00;
às vezes, abole-a. Faz
“autogestão” das
tomadas (supressão
ou postergação) de
acordo com
compromissos; assim
crê evitar efeitos
adversos, o que será
detalhado na análise
do trabalho com
cenas.
Elencarem conjuntamente as questões, problemas e dificuldades identificadas na conversa,
anotá-las, na forma do registro compartilhado, foi um processo falho, de modo geral, com os
quatro pacientes. Seja por baixa clareza/especificidade (com Álvaro), seja por iniciar e não
concluir (com Amaro), ou, mesmo, por abdicá-lo (com Deise parece que foi esquecido, com
Cesar dispensado, por não fazer sentido, uma vez que, para ele, não havia nenhum problema
com o tratamento). Exemplificando, com Amaro, o registro poderia ser: “atrasar a tomada
quando faz hora extra”, o que não ocorreu. Ao ser indagado sobre quais problemas poderiam
ser listados, Amaro não os identificava e, genericamente, respondeu: “no meu caso, quem tá
ocasionando o problema sou eu mesmo”. Vera não discordou, nem propôs novas formulações, o
que foi prejudicial, pois consentiu com a autoculpabilização. Positivamente, Amaro, já ao final do
primeiro encontro, fez menções a possíveis soluções: “posso comprar um estojinho” (portacomprimido) para transportar as doses ao trabalho, o que, no decorrer dos encontros, se
configurou como uma intenção extremamente difícil de ser praticada (postergada).
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artigos
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Quadro 8. Análise das conversações por dimensões e componentes/Encontros 2, 3 e 4
ENCONTROS 2 e 3
Manejo da metodologia das cenas e coprodução de sentidos (as falas da profissional estão em itálico e negrito)
COM TODOS Exceto com Álvaro, com quem a conversa em cena não se processou, com os outros três, a profissional
se esforçou para desenvolvê-la, embora com dificuldades de condução e, de modo geral, numa
assimilação bastante singular e relativamente distinta aos marcos teóricos do protocolo. A metodologia
foi desenvolvida segundo um enfoque ‘mais cognitivista’ e de aprendizagem comportamental, uma
fragilidade presente em todos os casos. Dois pontos merecem detalhamento: 1) a assimilação da
metodologia da cena se dá como uma narrativa sequenciada de ações ao longo de um dia, como se
fosse um filme, e não uma cena. No caso de Deise, um passeio no final de semana, com ênfase no
aspecto cognitivo (se lembrar do horário da tomada) e no aspecto prático (o que fazer: usar despertadores, lembretes escritos); 2) a questão do estigma da aids e da possibilidade de exposição às discriminações atravessou as narrativas sem ser abordada diretamente, nem aprofundada. A tendência foi
nomear esta questão sob o termo “preconceitos”, interpretando-a de modo reducionista (plano
estritamente cognitivo) e individualizante: “na verdade é o quanto que você tem de preconceito, né?
É, é. Preconceito com relação à questão da dificuldade, da não aceitação do diagnóstico”. Positivamente, identificou-se um aprimoramento progressivo tanto no decorrer dos encontros, como dos
primeiros casos (Amaro e Ciro) para um dos últimos (Deise) que ingressaram na intervenção.
CIRO
A dinâmica não se caracterizou predominantemente como de cuidado, e sim de pesquisa, o que pode
ter favorecido a produção de sentidos que expressassem “eu faço tudo certinho no tratamento”, pois
essa é a expectativa. Vera privilegiou trabalhar a cena com relação a episódios passados, ou seja, as
falhas de adesão em viagens, o que em si não seria uma fragilidade se ela não o tivesse feito com baixa
consistência e especificidade – não solicitou que ele se recordasse de determinada situação e a
compartilhasse, fez perguntas fechadas e confirmatórias, “ mas obedece...? você tem atrasos, não
tem?”. A proposição da cena incipiente: “e digamos que você precise viajar novamente”, sem
desenvolver os elementos. Repetia a expressão “me conte”. O tratamento durante viagens foi a única
janela de oportunidade identificada por Vera para trabalhar uma cena. A conversa em cena a partir da
imaginação ativa ou do role playing não se desenrolaram plenamente. Embora relevante trabalhar uma
cena passada, preparando-se para situações futuras (coidentificar recursos e possibilidades para lidar
com a dificuldade sem abdicar da medicação), Vera não convidou o interlocutor a imaginar
especificamente uma cena, tampouco extrapolou o cenário das viagens, incentivando reflexões sobre:
como lidar com o tratamento na convivência com amigos e conhecidos que não soubessem do
diagnóstico; meios de se preservar a privacidade sem abdicar da ingestão dos medicamentos etc. A
construção da cena de fato não aconteceu. O que se processou foi uma descrição de Ciro, incentivada
por Vera, de uma sequência de ações que ele faria na ocasião de futuras viagens, desde a arrumação
das malas (em que a profissional insistia em averiguar se ele se lembraria de colocar na mala os frascos
das medicações) até a chegada ao hotel. Em continuidade, ela questionava sobre as tomadas nos
horários correspondentes caso coincidissem com o período de um passeio. A profissional compreendeu
que a principal dificuldade era “se lembrar de tomar” e não “o como” tomar em situações sociais,
associado ao medo de questionamentos que culminassem com a exposição da condição de pessoa com
aids. Sugerindo aprimoramento da conversa em cena, houve o reconhecimento, embora tênue, do
estigma e do risco da discriminação como elementos importantes; daí a profissional comentou que
compreendia o medo de Ciro de que as pessoas soubessem do HIV e agissem preconceituosamente;
indagou-o se fora esse medo que o fizera “largar os remédios”, com o que ele concordou: “Foi.
Porque eu não levei por causa disso. Medo de comentários, medo de críticas, medo de qualquer
vexame. Então eu falei: ‘- Eu não vou levar’”. No entanto, parou-se aí, sem maiores reflexões,
decodificação e ampliação para o contexto sociocultural, o que impossibilitou o reconhecimento solidário
do medo pessoal da discriminação como uma experiência psicossocial associada ao estigma da aids (plano
social da vulnerabilidade). Não se desenrolaram a imaginação de outros desfechos, com a coprodução
de intenções acerca de novos repertórios. A conversa limitou-se à aceitação do desfecho proposto por
Ciro, de somente viajar sozinho (o que perpetua o isolamento social) ou com pessoas a quem ele
contasse, de antemão, sobre o HIV, com o sentido de uma obrigação moral das pessoas com HIV.
continua
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Quadro 8. continuação
ENCONTROS 2 e 3
Manejo da metodologia das cenas e coprodução de sentidos (as falas da profissional estão em itálico e negrito)
AMARO
A profissional se esforçou para dinamizar a conversa em cena, o que possibilitou emergirem as principais
dificuldades de adesão de Amaro no cenário do trabalho. A operacionalização da metodologia da cena foi
marcada, assim como com Ciro, pelo esforço para que se produzissem relatos contínuos e lineares, de um
ponto de partida a um ponto de chegada (do acordar, ao fim do dia), durante os quais o paciente era
indagado se, nos momentos correspondentes aos horários prescritos das doses, a tomada da medicação
ocorria; se ele “encaixava” o medicamento em sua narrativa. O objetivo era o de ajudá-lo a se lembrar dos
medicamentos e memorizar “o como” deveria fazer em situações futuras. As perguntas foram repetitivas,
às vezes com pouca clareza, embora o esforço em conversar desse modo tenha contribuído fortemente
para a emergência da experiência cotidiana com o tratamento. A profissional se engajou em trabalhar com
a cena mais do que na intervenção com Ciro.
No entanto a dificuldade também foi extrapolá-las para o contexto sociocultural mais amplo, o que ajudaria
a elucidar as diferenças de sentido entre tomar medicações em casa, tomar no trabalho, levar o estojinho
ou postergar essa prática. Não se desenrolou a decodificação de sentidos intersubjetivos também
relacionados ao medo significativo de Amaro da discriminação no trabalho, que se processava na nãoefetivação da intenção de levar as doses consigo, preferindo sempre tomá-las em casa (ambiente
protegido) mesmo com significativos atrasos. As narrativas do paciente sugeriam que, racionalmente, sabia
como resolver seu problema (dizia que comprar o estojo era fácil), entretanto, algum sentido que ele
desconhecia ou era pouco racional dificultava a efetivação prática da intenção. Esta era a “janela de
oportunidade” a ser explorada pela profissional, entretanto, como ela se colocou no diálogo incentivando-o,
sobretudo a soluções práticas, o que emergiu das discussões como desfecho na construção da cena foi:
“voltar para a casa no meio do dia para buscar os medicamentos”, o que não auxiliava a ampliar o
reconhecimento sobre as barreiras simbólicas intersubjetivas em questão. O sentido que se produziu para o
uso do estojo foi “fazer aquilo que a profissional desejava”, pois ele disse: “mas eu posso fazer o teste do
estojinho, se você quiser”. Se você achar interessante fazer. O que é que você acha?”. Se essa passagem,
por um lado, evidencia a dinâmica intersubjetiva de cooperação e vínculo, o diálogo não foi suficiente para
ampliação do reconhecimento dos aspectos envolvidos e para a construção de novos repertórios. Numa
segunda tentativa, ela explorou uma cena no trabalho, do momento em que ele ficava sabendo que teria
de fazer hora-extra. Ambos, então, treinaram diferentes situações e os comportamentos que resolvessem
os impasses diante de situações inusitadas que ela propunha (o que não foi de todo ruim): alterou-se o
horário em que ele ficava sabendo que faria hora-extra e indagou-se, no sentido de averiguar se a resposta
de Amaro correspondia a alguma intenção na direção de tomar a medicação. Depois de várias interpelações
do tipo: “E se... (ocorrer tal coisa)?”, deu-se a compreensão de que os avisos para horas-extras eram mais
frequentes do que até então pareciam, e uma nova intenção de Amaro se delineou: “[eu vou] fazer o
teste do estojinho”. A profissional conceituou a intenção: “um compromisso que você está
estabelecendo comigo”, e o incentivou a cumpri-lo. Na terceira construção de uma cena, houve o
aprimoramento de sua condução, a conversa em cena se desenrolou com a explicitação dos elementos
constituintes e a decodificação preliminar dos sentidos envolvidos na prática de levar o estojinho com os
comprimidos e tomá-los na empresa: “Como você faz? Quem que está lá? Quem que está lá na hora
que você vai trabalhar, estar lá com o estojinho, quem vai estar? Quem está lá com você, no seu
trabalho?”. Ela chegou a indagá-lo como seria tomar o comprimido no bebedouro de água da empresa, se
haveria pessoas por perto, ele respondeu que não teria problemas, pois “ninguém sabe do HIV”. A questão
do risco de exposição atravessou todo o diálogo, mas não foi objeto específico da conversa. Embora tivesse
acabado de dizer que iria usar o porta-comprimido todos os dias, pois afinal quase sempre era avisado sobre
as horas-extras só no fim do dia, em alguns momentos, Amaro recuava e reafirmava: Se eu for, digamos
assim, se eu tiver certeza “- Não vai ter hora extra hoje.” “- Não vai ter?” “- Não.” “- Beleza.” Então eu
pego e não levo nada e, aí, eu chegando em casa vou ter o horário certinho pra mim tomar.” Suas
narrativas expressavam ambivalência. Em continuidade, a profissional identificou a necessidade de abordar o
sentido de não levar o porta-comprimido, mas o fez superficialmente: “Qual é a preocupação com
relação ao estojinho?”. Em seguida, fez uma abordagem motivacional e diretiva incentivando “o
compromisso do estojinho”. Amaro foi evasivo em sua resposta, que sugeria a produção de outros sentidos
em torno do termo “preocupação”, que não os que a profissional ensaiava; o diálogo não prosseguiu. A
conversa sobre o porta-comprimido se fez presente durante toda a intervenção, com sentidos de recuo,
postergação; em um momento, Amaro justificou não adotá-lo em função do uso do MEMS, “ia atrapalhar a
pesquisa”, o que não foi relativizado pela profissional. Ao contrário, ela concordou solicitando que não
tirasse as doses da noite, antecipadamente, do dispositivo, para colocá-las no porta-comprimido, mas
contraditoriamente, insistiu que o fizesse em outros momentos. Vera não fez nenhuma fala no sentido de
distinguir, com o paciente, a situação peculiar atual de estar na pesquisa, de situações futuras, passíveis da
adoção do utensílio.
continua
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
artigos
BELLENZANI, R.; NEMES, M.I.B.; PAIVA, V.
Quadro 8. continuação
ENCONTROS 2 e 3
Manejo da metodologia das cenas e coprodução de sentidos (as falas da profissional estão em itálico e negrito)
AMARO
Num momento ela indagou: “O que está faltando para comprar o estojinho?” Ele disse: “Vergonha
na cara”, quando ambos riram. Prosseguiram: “Vergonha na cara. Sério. Sério, porque é uma coisa tão
fácil, falei pra você, na loja de um real tem! É falta... Às vezes, a gente não lembra, não é?” O que
não é conversado é que um dos sentidos possíveis ao usar o estojo no trabalho era o medo de ser
identificado como pessoa com HIV, o que precisaria ser explicitado e humanizado, reconhecerem que
essa sensação é vivenciada por muitas pessoas que vivem com o HIV, e não como “uma falta de
vergonha na cara”, que mais uma vez individualiza o problema, culpabiliza quem o vivencia e não abre
espaço para compreensões dos aspectos intersubjetivos. A profissional, por sua vez, deu uma conotação
cognitiva à dificuldade – reafirmando o sentido de que ele não efetiva sua intenção por não se lembrar
de comprar o utensílio – sugerindo que verificasse sua disponibilidade na farmácia do serviço. Amaro
dizia que o “estojinho” deveria ser “sutil”, para que ninguém “associe nada”, ou seja, com a doença. O
medo da discriminação não se relacionava somente a ser portador do HIV, mas também às práticas
sexuais homoafetivas. A profissional, então, nomeou a “questão do preconceito”, o que foi positivo,
mas o fez nos termos “você já superou isso”, como se tentasse elogiá-lo. Ele, então, contou
longamente a história de um amigo HIV positivo que revelou sua condição no trabalho e sofreu
consequências ruins, justificando o próprio esforço em manter o sigilo; relembrou o próprio medo e
angústia diante do risco de ser identificado com HIV em um exame admissional e, também, que não
tinha ainda contado sobre seu diagnóstico ao médico do convênio que vai com frequência, entre outros
comentários sobre o medo da discriminação. Isso sugere que a abordagem motivadora “abafou a voz”
que tentava se expressar; além de ter colocado em xeque o sentido da profissional de que “a questão
do preconceito” era um pensamento/crença (cognição) superável, e não um processo intersubjetivo
relacional vivido em cada cena nos diferentes cenários sociais; sobretudo, se contrapunha ao sentido de
que o “preconceito de Amaro” estava superado. Diante do comentário da profissional, o ciclo do
assunto se concluiu sem a produção de novas vozes, pois Amaro respondeu o que era socialmente
esperado: “Mas já superou tudo isso, não é? Superei. Graças a Deus!” A implicação desse tipo de
comunicação é que não se produziu espaço para dialogar sobre a vivência real e atual da insegurança
que se processava subjetivamente nesse “ir e voltar”, na postergação de uma prática aparentemente
simples (usar o porta-comprimido no trabalho), mas que guardava sentidos pouco explorados
comunicativamente, permanecendo “silenciados”, porém, ativos. Frente aos incentivos da profissional,
Amaro, como se reconhecesse seu próprio movimento de postergar algo “fácil”, respondeu: “vou
seguir os horários certinhos [...] e comprar o estojinho. Vou ver na farmácia se tem”, e deu risadas.
DEISE
Aprimorou-se o desenvolvimento da metodologia das cenas, introduzindo-a com mais especificidade e,
também, na conversa reflexiva (etapa da decodificação): “Então, escolha um dia, sem se preocupar
que dia foi da semana, se você não se lembrar, mas me conta o que você lembra. O que aconteceu, como foi isso.” A primeira cena trabalhada é do adormecimento no sofá assistindo à TV e o
acordar quase três horas depois do horário da tomada, a 01h00min. A construção de uma segunda
cena, da tomada da medicação pela manhã no trabalho, possibilitou, além do reconhecimento de que o
ritmo intenso da linha de produção dificultava a parada para a tomada das 10h00min, a decodificação de
alguns sentidos relacionados ao modo como lidava com sensações adversas atribuídas aos medicamentos. Mediante os questionamentos da profissional, emergiu que, antevendo possível mal-estar, Deise
fazia ajustes (supressão ou atraso da tomada) até então significados como involuntários, lapsos. Pela
decodificação, as práticas ganham compreensões adicionais: de haver algum grau de decisão em “não
tomar a dose certinha”, como uma autogestão do tratamento para manejar os efeitos indesejáveis:
“Então, às vezes acontecia assim; se eu precisava fazer alguma coisa, [...], aí eu já não tomava, porque
eu tinha que ir [...]. Aí, quando você toma bem certinho o remédio, a gente sente que não fica bem
normal. Tem dias em que eu não estou cansada e eu quero estar bem normal [...] Então, [...] você crê
que o fato de você querer se sentir melhor, digamos, amanhã, você faz isso – de não tomar o
medicamento – pra ficar melhor? [...] Teve um tempo em que fazia isso. [...] Lá no serviço era bem
puxado, não é? Aí, eu esquecia. [...] Será que você esquecia por que esquecia mesmo, ou porque
era providencial e você queria estar bem, pra poder fazer o serviço de uma maneira melhor?
[...].” A conversa que se seguiu foi bastante produtiva no sentido da problematização e da reflexão;
nos termos de Deise, ela fez uma “autoanálise” sobre como lidava com o tratamento.
continua
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
821
COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Quadro 8. continuação
ENCONTRO 4 (as falas dos pacientes estão em itálico e negrito)
Avaliação dos encontros / Sustentabilidade da adesão em longo prazo
COM TODOS De modo geral, ao se esforçar para seguir fielmente o roteiro, as conversas adquiriram uma dinâmica
menos dialógica e mais inquisitiva, diretiva, ao estilo “checklist”. As recomendações do roteiro não
foram suficientemente personalizadas nas conversações, por exemplo, tomando os assuntos de cada
um como ponto de partida. Logo, foram genéricas, as perguntas abstratas demais, repercutindo em
significativas dificuldades de compreensão mútua. Ao responderem algumas perguntas, era como se
estas não fizessem sentido, questionassem o óbvio ou se repetissem demais.
CIRO
O sentido que prevaleceu foi fazerem uma revisão dos encontros. Retomaram o assunto das tomadas
em viagens e permaneceu pouco explorado “o como” lidar com o risco de se expor socialmente e as
saídas possíveis. Mesmo que Vera imprimisse um tom mais reflexivo e aberto à conversa sobre o
processo dos encontros e a identificação de recursos para manter-se aderente em longo prazo, ele
dava respostas bem pontuais; em vários momentos, não compreendia as indagações, tornando-se
“truncada” e cansativa a comunicação. Ele não sabia como responder à expectativa dela ou não
vislumbrava ações a serem efetivadas: “eu não sei explicar. Mas eu acho que devo continuar
corretamente em tudo, né? [...] Eu acho que não tem muita coisa [que eu possa fazer] [...]”.
AMARO
Contou que comprou o porta-comprimido e trouxe-o para mostrá-lo; valorizam o utensílio em termos
das facilidades práticas, ela o incentiva a incorporá-lo na rotina quando não estiver mais usando o MEMS.
A ideia de fazerem um resumo sobre os encontros anteriores ajudou a avaliação do processo e as
reflexões, mas, no decorrer, os diálogos diminuíram e predominou o tom “checklist”, averiguador: “a
questão da providência do estojo, você já providenciou, né? (Isso.) E a manutenção futura, que a
gente tinha pensado... para poder estar reforçando hoje, não é?”. Perguntas repetitivas e mudanças
abruptas de assunto pela profissional. A dinâmica conversacional caracterizou-se pelo pressuposto de
responder o certo, o esperado, aquilo que deveria ser memorizado, “reforçado”; pouco exploradas as
vivências e seus sentidos. As respostas dele eram mais curtas, às vezes somente sim ou não; as falas dela
eram motivacionais.
ÁLVARO
Ocorreu com intervalo de trinta e um dias. Inicialmente, o diálogo também adquiriu a conotação
“checklist”, em que a profissional fazia averiguações sobre pontos dos encontros anteriores, sobretudo
se ele estava desenvolvendo práticas que favorecessem a adesão, nomeadas, por ela, como “acordos
feitos entre ambos”, durante os encontros. As respostas eram quase sempre curtas e/ou genéricas,
como, por exemplo, quando Vera perguntou se ele estava mantendo as medicações às 10 e às 22 horas
e ele respondeu somente: “É”. No entanto, positivamente, a profissional, progressivamente, imprimiu
uma abordagem mais aberta / dialógica à conversa, com perguntas mais reflexivas e avaliativas sobre a
experiência dos encontros, mudanças conseguidas e a serem praticadas, e que tipo de apoio ele
precisava. Álvaro se expressou um pouco mais, mas advertiu que estava com muito sono, o que
dificultava se expressar.
DEISE
A conversa foi, também, mais dialógica, embora com repetições de perguntas sobre o que ela precisava
para se manter aderente em longo prazo. Algumas expressões genéricas do roteiro, por exemplo,
“soluções encontradas para se manter aderente” não eram pertinentes aos rumos das conversas, pois o
que haviam conversado não tinha o sentido de “soluções” (os termos e sentidos eram outros). Deise
pareceu demandar um encontro adicional, aos moldes do segundo e terceiro, com foco no trabalho
com cenas; o encontro 4, avaliativo do processo, foi prematuro no caso dela.
Repercussões da intervenção para a pessoa
TODOS
A despeito de fragilidades identificadas no conjunto das dimensões e componentes da intervenção, as
narrativas sobre “se a intervenção havia ajudado, e em que”, “ou como eu estava antes, como estou
hoje” sugeriam boas repercussões na direção da adesão, da melhora do autocuidado, do bem-estar
emocional, entre outras mais específicas às realidades de cada um.
continua
822
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Quadro 8. continuação
ENCONTRO 4 (as falas dos pacientes estão em itálico e negrito)
Avaliação dos encontros / Sustentabilidade da adesão em longo prazo
CIRO
Incentivado a “se apropriar dos medicamentos (conhecer cada um pelas nomenclaturas)” e “aceitar a
possibilidade deles na sua vida” , Ciro expressou sentidos positivos aos medicamentos e de maior
aceitação do tratamento: “[...] tem que aceitar né? Faz parte da minha vida. É como se fosse um
companheiro”. Lembrando que é uma pessoa tranquila com relação ao diagnóstico, não se queixava de
efeitos adversos e acreditava seguir o tratamento “certinho”; talvez por isso houvesse menos
depoimentos sugestivos de mudanças. Os encontros foram significados como uma experiência positiva
e suas narrativas sugeriam motivação, conscientização, engajamento no tratamento, trocas empáticas e
afetivas com Vera.
AMARO
Ele referiu se sentir mais seguro e consciente da importância de não “ficar descoberto”, referindo-se
aos atrasos das tomadas; “mais adaptado” ao tratamento; de desconfortável passou a significá-lo
como “uma questão de adaptar-se à rotina”, transformá-lo em “hábito”. Valorizou a oportunidade
de conversar e receber informações, afirmou que isso repercutiu também em seu tratamento de
hipertensão, reconhecendo que mudou, pois anteriormente “não levava a sério”, comparando com o
presente, em que tem intencionalidade de manter-se aderente. Disse também: “eu aprendi a me
expressar um pouco melhor referente ao meu problema [...] Eu estou me sentindo mais à
vontade de conversar, você entendeu? (Sei.) De conversar e falar sobre o HIV”. Do ponto de vista
psicológico e da descrição de si, a mudança operou-se em deixar de se ver como vítima: “[...] parei de
sentir pena de mim mesmo. Eu me sentia vítima do mundo. Eu não sou! [...] Eu tenho pensado
nesse ponto de vista, entendeu? [...] Acho que eu psicologicamente estou bem.” Os encontros
ajudaram, nos seus termos, a “uma autoafirmação de mim mesmo” e destacou que a profissional
não fora impositiva, “[...] Não. [Você não disse] ‘_Você vai ter que fazer desse jeito, desse jeito e
desse jeito’ Não. Você me deu opção [...] não sou tão passivo como era”.
ÁLVARO
É o paciente em situação mais complexa, de uma sinergia de aspectos que ampliavam sua
vulnerabilidade ao adoecimento, destaque aos emocionais (angústias em relação ao namorado) e de
cidadania (dificuldade socioeconômica, agressões de familiares, instabilidade de moradia). Considerando,
sobretudo, seu perfil mais lacônico, lento, e a menor expressividade verbal, as narrativas de
repercussões foram poucas. Ele compreendeu que, pelo objetivo da intervenção, “começar a tomar o
remédio em data certa, em horário certo todos os dias”, ele se beneficiou, pois era “desligado” e
agora estava “mais ligado” quanto ao tratamento, tomando as doses às 10 e às 22 horas, o que
sugere a produção de sentidos disciplina e atenção quanto a seguir os horários prescritos. Um aspecto
interessante é que, no diálogo avaliativo, Álvaro foi mais explícito em assumir (era esse o sentido)
quanto, no passado, não seguiu corretamente o tratamento, associando a mudança positiva à
participação na pesquisa; que o MEMS o ajudou e gostaria de ter sempre “essa tampinha”, pois ela
“monitora a gente”, “fica mais ligado [...] pra tirar o remédio na hora certa”. Para ele, os
encontros foram suficientes porque ajudaram a produzir o senso de necessidade de maior implicação
de sua parte: [...] É assim, sabendo pelo menos o horário que tal, que tem que tomar, isso aí, já
começo a me preocupar de colocar um despertador, de colocar um papel na geladeira, [...]” Nos
seus termos, a intervenção o ajudou a “[...] a tomar vergonha, tomar o remédio mais no horário
certo, mais continuamente do que eu estava tomando” e a “buscar outras saídas para os
problemas” ao invés de “explodir”, sugerindo repercussões que extrapolaram o tratamento, no
sentido de valorizar a própria capacidade de ponderar sobre situações cotidianas que exigissem tomadas
de decisões, com mais calma e menos tensão.
continua
No mais, o tema geral da conversa – o tratamento de uma doença sem cura, cujo risco de morte por
falência, no tratamento, é muito conhecido – pode ter suscitado esses engajamentos mais monológicos:
“insistir no fazer o certo”, “repetir quantas vezes forem necessárias”, “averiguar se a prescrição está
sendo seguida”, “pelo bem da pessoa”.
Adicionalmente, as conversações transcorreram no âmbito de uma pesquisa, institucionalmente
valorizada. Possivelmente, o simbolismo da ciência como atividade padronizada e controlada estava
presente, intersubjetivamente, nas interações de cuidado, implicando alguma perda de naturalidade e
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COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Quadro 8. continuação
ENCONTRO 4 (as falas dos pacientes estão em itálico e negrito)
Avaliação dos encontros / Sustentabilidade da adesão em longo prazo
DEISE
As repercussões sugerem que, embora tenha se produzido uma maior compreensão de si mesma e das
circunstâncias em que as falhas de adesão aconteciam, essas ainda estavam ocorrendo ao término da
atividade (relatos relativos aos últimos dias). O uso de despertador e de alarme de celular, muito
incentivado, não se mostrou sistemático e suficiente para evitá-las e não se produziram sentidos de
gravidade, de frequência ou de problemas quanto às situações de falhas na adesão. Em sua
compreensão, ocorriam esporadicamente, embora durante o período dos encontros tenha relatado,
pelo menos, três ocorridos em que a dose fora abolida. Seus depoimentos não sugeriam intenção de
adotar novos jeitos de tomar as medicações, e sim reflexões sobre como se sente hoje e como se
sentia, e suas implicações sobre o tratamento. Ela ressaltou os aprendizados com a intervenção “[a
gente] aprende muita coisa, né? Avaliou que estava “meia caída” que “nem lembrava dos
remédios mesmo” “por isso [a intervenção] me ajudou, “foi depois dessa pesquisa que eu tomei
essa decisão” [de mudar, de se cuidar]. Interpretou os encontros como “um cutucão” positivo, pois
a incentivaram a “não se esquecer de viver”, “não se esquecer de si mesma.” A repercussão mais
evidente no movimento de Deise foi rumo ao bem-estar emocional em função de ter sido acolhida
naquilo que necessitava conversar (valorizou muito “poder conversar, se abrir”); de entristecida e
cansada, passou a vivenciar novas sensações nomeadas como tranquilidade, autoconfiança e segurança;
além de compreender com mais clareza as implicações de seu estado anterior depressivo sobre o modo
de seguir seu tratamento. A produção do bem-estar também se associou à decisão de efetivar uma
mudança significada como importante, durante o período da intervenção: pedir demissão, uma decisão
difícil, mas necessária e libertadora a seu ver.
espontaneidade, e o compartilhamento de uma espécie de “pressão”: as profissionais “executarem
bem” o esperado; e os pacientes “aproveitarem a oportunidade da pesquisa da USP”.
Assim, as dificuldades comunicacionais identificadas se sustentam, em parte, em questões teóricoconceituais e histórico-culturais que extrapolam o “aqui e agora” dos encontros. Aprofundá-las exigiria
maior espaço para o diálogo com outras produções que versam sobre: - interações verbais e dialogismo
nas práticas de saúde (Corrêa, Ribeiro, 2012); - significado social da aids, de viver com HIV, de ser
profissional de serviços de aids, no Brasil; - tradição “prescritiva e normativa”, “de orientar e motivar”,
“encarnadas” nas práticas profissionais em saúde; - ou ainda, sobre as vertentes psicológicas
predominantes na formação de psicólogos e nos cursos de saúde. Estas, ainda, são pouco afeitas aos
referenciais mais contemporâneos, como o construcionismo social e hermenêutica, que enfatizam o
cuidado como interação dialógica.
Há, por último, mas não menos importantes, as implicações relacionadas às situações dos próprios
pacientes, que, merecendo um aprofundamento específico, estão sendo investigadas em outro trabalho.
Situações individuais que envolvem complexas dimensões sociais são de difícil mitigação para o nível
assistencial da saúde; e desafiam “o como conversar” sobre tantos aspectos graves, sinérgicos e
multidimensionais.
Dialogar no Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos é um desafio
Em muitos momentos, as conversas supervalorizaram os “problemas de memória” e as “soluções
práticas”, como “lembrar-se do remédio” ao preparar mala para viajar (Ciro); “esquecer-se de comprar
o estojinho” (Amaro).
Incentivos a estratégias para facilitar as tomadas não são recursos conversacionais problemáticos em si,
entretanto, na medida em que se sobrepõem à decodificação pelo diálogo das “barreiras” simbólicas e
psicossociais – que interatuam na produção das falhas (sentidos que adquirem em cada cena, os atos de
tomar e de não tomar a dose) – tais incentivos podem ser inócuos. Isto porque a retórica do profissional
não se conecta aos sentidos das ações que o paciente está narrando. Por exemplo, Ciro explicara que não
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Quadro 9. Avaliação objetiva do desenvolvimento das dimensões e componentes
Escala de padrões de desenvolvimento: Suficientemente (S), Moderadamente
(M), Insuficientemente (I), Não se aplica ao caso (NA), Sem informações (SI).
Ciro (CI), Amaro (AM), Álvaro (AL) e Deise (DE). Uma a quatro cruzes (+, ++,
+++, ++++): grau de predominância de cada enfoque.
Casos
CI
AM
AL
DE
M
S
S
S
M
S
S
S
M
S
S
S
S
S
S
S
S
S
S
S
+++
++
+++
++
++ ++
+++++
++
+++
+
++
M
M
M
M
M
M
M
M
I
M
M
M
Dimensões/Componentes
Dimensão A: Princípios gerais (teóricos, metodológicos e éticos) transversal aos 4 encontros
Produção do Cuidado numa interação comunicacional dialógica
Interação horizontalizada
Valorização do saber prático do paciente
Centramento nas experiências cotidianas do paciente/contextualização do
tratamento
Clima de solidariedade e apoio na busca de soluções/implicação do profissional
com o paciente
Dimensão B: Enfoques transversais aos 4 encontros
Educativo: instruções, esclarecimentos e informações técnicas; foco em dúvidas
sobre remédios, efeitos em geral, horários de tomadas, aprender e memorizar
nomenclaturas etc. Predomínio do profissional orientando, informando,
esclarecendo, ensinando.
Comportamental-cognitivo: sugestões e incentivos para a adoção de
estratégias, como lembretes, alarmes, medicação assistida por terceiros etc.;
abordagem mais prescritiva, com sugestões (de despertador, lembretes, alguém
para ajudar, mudanças de horários das tomadas), conversas com conotação de
“treinar” a memória (lembrar dos horários das tomadas). Predomínio do
profissional “dando dicas”, sugerindo, incentivando condutas e processos
cognitivos.
Psicossocial construcionista: 1) Acolhimento (escuta e responsividade às
narrativas e emoções relacionadas ao viver com HIV e às questões mais amplas:
socioeconômicas, família, relacionamento, trabalho); 2) Abordagem psicossocial
construcionista (tomar emoções, ações e crenças (plano individual) como
expressões construídas intersubjetivamente de acordo com interações
contextualizadas e referenciadas sociocultural e historicamente (planos: social e
programático). Predomínio de conversas dialógicas, abertas às muitas
possibilidades compreensivas, problematizadoras e críticas; decodificações e
cocompreensões na direção de extrapolar o nível cognitivo-comportamental.
Dimensão C: Desenvolvimento do Encontro 1 em relação ao roteiro
Componentes analisados
Sentidos produzidos sobre a participação na pesquisa e uso do MEMS
Conversa sobre a carga viral detectável como justificativa ao convite para a
intervenção
Apresentação mútua
Metodologia da Livre Conversação e Escuta das narrativas de apresentação e
sobre as experiências com o tratamento
Encerramento e Registro Compartilhado
Dimensão C: Desenvolvimento dos Encontros 2 e 3 em relação ao roteiro
Dimensão analisada concomitantemente: Manejo da metodologia das cenas e
implicações
Desenvolvimento Encontro 2
Desenvolvimento Encontro 3
+++ +++
continua
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
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COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Quadro 9. continuação
Escala de padrões de desenvolvimento: Suficientemente (S), Moderadamente
(M), Insuficientemente (I), Não se aplica ao caso (NA), Sem informações (SI).
Ciro (CI), Amaro (AM), Álvaro (AL) e Deise (DE). Uma a quatro cruzes (+, ++,
+++, ++++): grau de predominância de cada enfoque.
Casos
**
CI
AM
AL
DE
M
M
I
S
M
M
I
I
NA
M
M
M
NA
M
M
M
NA
S
S
S
M
M
M
M
M
M
M
S
NA
NA
SI
S
M
SI
S
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I
S
S
SI
NA
S
S
SI
NA
S
SI
M
M
SI
S
SI
S
S
M
M
S
M
NA
SI
SI
I
I
S
Dimensões/Componentes
Dimensão D: Manejo da metodologia das cenas e implicações
Durante os encontros houve tentativas e esforço da profissional em utilizá-la?
Nos momentos oportunos para utilizá-la, a utilização predominou?
Ao utilizá-la, predominou adequação na maior parte das iniciativas em “mobilizar”
cenas?
Nos desfechos dos enredos de cada cena mobilizada, produziram-se sentidos
sobre as dificuldades no uso das medicações?
Além do reconhecimento das dificuldades, há narrativas do paciente sobre ações,
ou intuitos de desenvolvê-las, na direção do autocuidado, da melhora da adesão?
Dimensão C: Desenvolvimento Encontro 4 em relação ao roteiro
Componente analisado: se ocorreu a conversa avaliativa dos encontros e sobre a
sustentabilidade da adesão em longo prazo
Dimensão analisada concomitantemente: Repercussões da intervenção para a
pessoa
Dimensão E: Repercussões da intervenção para a pessoa
Houve ampliação do reconhecimento e das compreensões do paciente sobre o
próprio tratamento, condições, barreiras, falhas e oportunidades?
Movimento de passividade ao engajamento, pró-atividade e autonomia.
Movimento de insegurança à segurança.
Movimento de restrição na sociabilidade à ampliação da sociabilidade (amigos,
trabalho, serviço de saúde).
Movimento de insatisfação para satisfação nas relações afetivas e sociais.
Movimento de pior para uma melhor convivência com o tratamento.
Movimento da desinformação/ignorância/equívocos sobre os remédios para um
maior domínio dos assuntos.
Movimento na direção de adotar novas estratégias/ “jeitos” para usar as
medicações.
Movimento de transformação de sentidos negativos atribuídos ao remédio e
tratamento para sentidos mais favoráveis.
Movimento de mudança em relação ao serviço. De pouco uso e
desconhecimento do serviço para um interesse em usufruir mais dos recursos
existentes no serviço.
levar os medicamentos nas viagens era uma decisão relacionada a não ter de se explicar aos amigos,
sobre o tipo de tratamento, e não ao esquecimento de levar os remédios. Com Amaro, foram incipientes
os diálogos sobre os sentidos diversos entre tomar medicações em casa ou no trabalho; o
coentendimento foi de que ele não usava o estojinho por se esquecer de comprá-lo. Por sua vez,
sentidos pouco racionais – insegurança, medo de expor-se e sofrer discriminações – não foram
explorados. Qual o sentido de evitar o uso do utensílio no trabalho? Ao ser reconhecido como pessoa
que “toma remédio todos os dias”, a identidade de trabalhador seria ameaçada? Do que “suspeitariam”?
Esses exemplos sugerem que, além de ainda pouco usuais no campo da saúde, e mais desafiantes,
as conversas dialógicas contaram com uma dificuldade adicional: desenvolvê-las segundo o
Quadro da V&DH e a metodologia das cenas.
Nas conversas com os pacientes, houve dificuldade para abordar os aspectos individuais da
vulnerabilidade ao adoecimento por problemas de adesão, enquanto experiências pessoais
produzidas intersubjetivamente, em diferentes contextos. Ou seja, as crenças, os
comportamentos, o grau de motivação, autoeficácia e de informação foram pouco trabalhados, em
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termos de seus sentidos situacionais. Componentes individuais da vulnerabilidade foram, assim, pouco
abordados como, inextricavelmente, integrados aos programáticos e socioculturais (Paiva, 2012a). Isto
confluiu para o predomínio de um enfoque mais próximo às vertentes cognitivas e comportamentais, do
que psicossocial construcionista.
O recurso metodológico das cenas, mais inovador para auxiliar o diálogo embasado pelos referenciais
adotados, se fez presente, mas não sem dificuldades consideráveis de manejo. O principal: sua
incorporação foi, em parte, destoante destes referenciais, usada mais como recurso de “treinamento”
para aprendizagens cognitivo-comportamentais, do que para ampliação do diálogo.
As conversas não ampliaram a decodificação das cenas de cada pessoa, até a compreensão
dos cenários sociais e programáticos implicados; extrapolaram pouco, na maior parte das vezes, o
nível cognitivo-comportamental – do que a “pessoa pensava e fazia em cada cena”, e do que poderia
ser aprendido, memorizado ou lembrado. O manejo simplificado da exploração e decodificação dos
sentidos nas cenas/cenários implicou prejuízo à abordagem psicossocial construcionista da intervenção.
Um indicativo claro disto é que o estigma da aids não foi decodificado e problematizado em sua
expressão no nível pessoal: “o medo do preconceito”, que reverberava em não tomar remédios em
determinadas situações sociais – viagens com amigos (Ciro); no trabalho (Amaro); ou, mesmo, em casa
(Deise, escondia os frascos quando o filho recebia amigos). Experiências psicossociais foram reduzidas,
nos termos das conversas, a uma crença “já superada”, o que não correspondia aos sentidos da
narrativa de Amaro; ou a uma “negação/resistência” – sentido sugerido quando Deise foi indagada:
“Você nunca aceita o diagnóstico, nunca aceita o fato de ser soropositiva?” Não. Não. [...] “Na
verdade é o quanto que você tem de preconceito, né? [...]”.
Como o enfoque psicossocial construcionista ancorava-se nas conversas dialógicas e no Quadro da
V&DH, este ficou menos preponderante, sobretudo com Ciro e Amaro. Com Deise e Álvaro
desenvolveu-se melhor o acolhimento, enquanto processo necessário à inflexão na direção deste
enfoque, mas que, em si, não o configura. Com ela, a comunicação foi mais dialógica, pois se engajou
nas conversações; Vera, também, foi-lhe responsiva sobre outras questões, como: a raiva e
inconformidade com a soropositividade, seu “cansaço com o trabalho”, “a depressão”, seus planos após
pedir demissão.
A metodologia das cenas também transcorreu melhor com Deise; com Álvaro, praticamente, não foi
utilizada. Mesmo assim, a disposição para dialogar com ele pareceu maior se comparada a Amaro e
Ciro; as colocações de Vera tendiam a extrapolar, um pouco mais, o nível cognitivo-comportamental,
caracterizando um direcionamento ao enfoque psicossocial e uma implementação que se assemelhou
ao aconselhamento. Os limites temáticos do diálogo se ampliaram e Vera se esforçou em ajudá-lo a
“inserir” o tratamento em meio aos problemas vivenciados, embora ele parecesse pouco mobilizado,
como se o tratamento fosse secundário às preocupações. Favoravelmente, ela utilizou recursos
metafóricos: a vida dele como um “bolo”; os problemas/questões como “fatias do bolo”; propondo
que refletissem sobre como repercutiam no tratamento. Indagado sobre o que poderia fazer, respondeu
“me cuidar”. Foi incentivado à maior autonomia e iniciativa em suas decisões e posturas, nas situações
que o afligiam e prejudicavam o autocuidado, por exemplo, estar triste, “apático” e “dependente” do
namorado. Produziu-se, assim, um movimento. Álvaro pretendia ter “uma conversa séria e definitiva”
com ele. Em seu projeto de felicidade, indissociável da busca por saúde, este relacionamento era muito
importante.
Mesmo com as dificuldades, o esforço para utilizar a metodologia contribuiu para potencializar a
conversa exploratória sobre as vivências, ao invés de checar práticas habituais ou, precipitadamente,
fazer prescrições e orientações indiscriminadas. Acessou-se, na maior parte das conversações, o “como
vivo com HIV” e “como sigo o tratamento”, e não “o que devo dizer” sobre. Com Ciro, a situação foi
bastante ilustrativa: em vários momentos, produziu-se a dúvida de se “ele precisava da intervenção”,
pois afirmava seguir “certinho” o tratamento, negando dificuldades. Inicialmente, pensou-se que a
dinâmica de “dar uma entrevista” tivesse repercutido no agir como “bom paciente”. No entanto, seus
dados clínicos acessados ao término das análises sugerem que tanto um ano antes, como depois do
ensaio, a replicação viral manteve-se relativamente baixa, mas constante; e, contrariamente ao
“esperado”, sua adesão foi acima de 95% antes, durante e depois da intervenção.
827
COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Clinicamente, o caso de Ciro parece compatível com seu longo tempo de doença, embora mereça
avaliação médica da possibilidade de falência. Os exames de Álvaro e Deise – anteriores e posteriores à
intervenção – mostram padrão típico de adesão insuficiente, que, evidentemente, exigiria investigação
apurada da adesão e, se necessário, genotipagem. Nestes três casos, os possíveis benefícios individuais
da intervenção não alcançaram êxito técnico na situação clínico-laboratorial. Não tivesse o protocolo da
pesquisa exigido o isolamento da intervenção dentro do serviço, a situação seria provavelmente
diferente. Vera conheceria os dados laboratoriais e, no mínimo, conversaria com os médicos
responsáveis, provida de mais conhecimentos sobre a situação de adesão de cada um. No caso de
Amaro, a intervenção, do ponto de vista clínico-laboratorial pode apenas tê-lo auxiliado ou incentivado a
manter seu processo de adaptação de início de tratamento, que, embora mais fácil do ponto de vista
clínico, é um período classicamente considerado difícil e crucial para a adesão.
Conclusões
Este trabalho ilustrou como modalidades de intervenções individuais de cuidado em adesão podem
ser estruturadas e protocoladas, para facilitar sua disseminação e incorporação no SUS. Para tanto, as
modalidades de cuidado devem ser implementadas com fidelidade aos referenciais teóricometodológicos planejados, o que, neste estudo, não ocorreu plenamente; isto foi dificultado, em parte,
pelas características gerais de um ensaio clínico e pelo contexto de pesquisa.
As capacitações, supervisões e o roteiro da intervenção não foram suficientes para garantir a
fidelidade, tampouco para promoverem plenamente as inflexões pretendidas: na direção de um
processo comunicacional dialógico, menos “cognitivista”, sustentado pelos referenciais da V&DH e da
dimensão psicossocial do Cuidado. Permanece, como desafio, desenvolver recursos pedagógicos e
conversacionais capazes de auxiliar o “entrelaçamento” do nível psíquico com o interpessoal, e o
sociocultural, na inteligibilidade dos problemas de adesão.
Os roteiros, especificamente, têm tal finalidade, mas não sem riscos de “efeitos adversos” –
homogeneizar ou mecanizar as conversas, perdendo em dialogia. Afinal, são conciliáveis intervenções
estruturadas com propostas construcionistas sociais? Como a de “desenvolver um espaço conversacional
livre” (Anderson, Goolishian, 1998, p.37).
O protocolo/roteiro desta pesquisa é aberto e pouco diretivo; não preconiza modelos de perguntas
ou sequência de assuntos. Mostraram-se bastante satisfatórios, confirmando os achados de Santos
(2010), exceto no que se refere ao quarto encontro. Os objetivos deste eram pertinentes, entretanto,
foram convertidos em perguntas genéricas, abstratas ou fechadas, que quase não incorporavam
especificidades conversadas nos encontros anteriores, prejudicando a continuidade dos diálogos.
Os resultados, mesmo que parciais, sugerem que sim, são conciliáveis – perspectivas
construcionistas sociais e intervenções estruturadas – desde que a implementação seja flexibilizada,
possibilitando inovações no processo que retroalimentem o protocolo/roteiro. Inclusive, em versões
diferenciadas, sensíveis à diversidade de perfis de usuários, profissionais e locais de implementação. Sua
utilização não deve restringir os diálogos, ao contrário, devem ampliá-los, inclusive, para além do
atendimento individual – na interlocução entre o profissional que está conduzindo-o e a equipe
multiprofissional. Para o Cuidado integral, é imprescindível que profissionais não-médicos, conduzindo
intervenções comunicacionais em adesão, atuem em equipe e, sobretudo, coordenadamente com os
médicos, incorporando, aos diálogos com o paciente, seus dados clínico-laboratoriais monitorados
regularmente.
Segundo avaliação das três profissionais, para futuras implementações desta intervenção no SUS: o
número de encontros e sua duração devem ser flexíveis; e as capacitações devem aprofundar a
“questão da comunicação”, e o desafio de transitar entre “uma discussão mais focada no tema da
adesão e a abordagem mais ampla de questões trazidas pelos pacientes sobre sua vivência cotidiana”,
que não se relacionam, diretamente, ao tratamento (Santos, 2010, p.53). A depender, no entanto, das
concepções sobre adesão e dos referenciais das intervenções, os critérios definidores “do que foge” ao
roteiro podem variar muito. A análise do que seja “diretamente relacionado” à adesão não deve se
828
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
BELLENZANI, R.; NEMES, M.I.B.; PAIVA, V.
artigos
basear, somente, nos fatores de risco “clássicos”, senão muitos assuntos ficarão sem escuta e
responsividade.
Assim, os profissionais terão de lidar, continuamente, com a tensão: “sair do roteiro, ficando no
roteiro”. “Sair” significa aceitar o convite do usuário para dialogar sobre determinada questão,
“voltando ao roteiro” com novos elementos que ampliem o entendimento mútuo das dificuldades
cotidianas em seguir o tratamento; e indiquem mudanças possíveis e convenientes. O potencial da
comunicação dialógica para elucidar as conexões (sempre singulares) entre as “questões da vida” e a
(não) adesão – associado ao valor terapêutico de ser escutado e acolhido – contribuirá na mitigação da
vulnerabilidade ao adoecimento, além dos sofrimentos e violações de direitos.
Colaboradores
Renata Bellenzani realizou as análises e a escrita da primeira versão do manuscrito;
Maria Ines Baptistella Nemes e Vera Paiva contribuíram fortemente na versão final,
além da coordenação da pesquisa original, formulação e capacitação na metodologia
das cenas, respectivamente.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
831
COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
BELLENZANI, R.; NEMES, M.I.B.; PAIVA, V. Comunicación profesional-paciente y
cuidado: evaluación de una intervención para la adhesión al tratamiento de VIH/Sida.
Interface (Botucatu), v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013.
Los abordajes cognitivistas de la comunicación profesional-paciente y de los
comportamientos en la salud, predominan en las intervenciones para dar apoyo al
tratamiento de VIH/Sida. Mediante una perspectiva construccionista social de la
comunicación profesional-paciente y de sus experiencias con el tratamiento, se evaluó
la implementación de una intervención psicosocial individual, compuesta de cuatro
encuentros e informada por el referencial de la Vulnerabilidad y de los Derechos
Humanos en la dimensión psicosocial del Cuidado. En el conjunto de los 16
encuentros, (cuatro con cada voluntario), se evaluó que el proceso de implementación
había sido “moderadamente desarrollado”. Hubo dificultades para desarrollar
conversaciones dialógicas y decodificar sentidos de las fallas de adhesión en situación
sociales, articuladamente con los escenarios inter-personales y socio-culturales. Incluso
predominando orientaciones e incentivos para los pacientes, también hubo momento
dialógicos de co-comprensión de las dificultades de adhesión, en sus diferentes
sentidos en las escenas de tomas. Esta modalidad de cuidado se revela productiva en el
campo de las prácticas en adhesión.
Palabras-clave: Cumplimiento de la medicación. Asistencia al paciente. HIV. Síndrome
de Inmunodeficiencia Adquirida. Comunicación. Evaluación.
Recebido em 13/03/13. Aprovado em 05/10/13.
832
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
BELLENZANI, R.; NEMES, M.I.B.; PAIVA, V.
Sessão 1
Objetivos
artigos
Anexo 1. Objetivos e estrutura do protocolo da intervenção psicossocial para o cuidado em adesão
Sessão 4
Sessões 2 e 3
Contrato;
Aumentar o conhecimento
sobre o tratamento;
Aprofundar a compreensão de
mudanças possíveis e desejadas
no contexto e na própria
conduta visando o autocuidado
e a melhoria da qualidade do
cuidado e da comunicação
paciente-profissional;
Identificar situações e
contextos da vida cotidiana
que constituem obstáculos
para o tratamento;
Compreender e decodificar
cenas da vida real;
Identificar recursos para busca e
sustentação dos caminhos
escolhidos para o
enfrentamento das dificuldades
com o tratamento
antirretroviral;
Definir temas e questões
prioritárias a serem
trabalhadas nos encontros
seguintes;
Ampliar as cenas para um
contexto social e
programático maior;
Finalizar o processo.
Resolver dúvidas técnicas
sobre o tratamento.
Estimular a imaginação ativa e
criativa sobre a vida
cotidiana;
Estimular novos repertórios
para o enfrentamento dos
obstáculos identificados para
o tratamento.
Temas
Reconhecimento mútuo
do paciente como expert
da vida cotidiana e do
profissional/pesquisador
como expert técnico;
Questões sobre o
tratamento;
Questões sobre o tratamento;
Revisão do contexto social
e intersubjetivo do
paciente;
Episódios reais em que o
tratamento não é seguido;
Revisão de caminhos, soluções e
repertórios;
Questões sobre o
tratamento.
Caminhos para o
enfrentamento de
obstáculos e soluções “em
cena”.
Conversa sobre como enfrentar
futuros obstáculos e dificuldades
e manter as mudanças;
Esclarecimentos e orientações
finais da pesquisa.
continua
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
833
COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E CUIDADO: ...
Anexo 1. continuação
Sessão 1
Metodologia
Sessões 2 e 3
Discussão dos
procedimentos, objetivos
e contrato;
Revisão do contrato e das
questões levantadas;
Revisão do contrato e das
questões levantadas;
Livre conversação e escuta
atenta sobre a vida da
pessoa;
Identificação de episódios
típicos de não-adesão;
Identificação e exploração de
cenas de episódios reais;
Foco em questões do
tratamento e em situações
e episódios em que há
dificuldade para seguir o
tratamento;
O participante escolhe suas
prioridades de uma lista de
problemas;
Decodificação e reinvenção de
cenas por meio da imaginação
ativa e de role-playing;
Uso de recursos
informativos (folders,
guias, kits de adesão);
Identificação e exploração de
cenas de episódios reais;
Informação sobre recursos
sociais e programáticos, bem
como sobre direitos
constitucionais;
Registro das situações e
episódios que parecem
importantes para o
enfrentamento em folhas
de registro.
Decodificação e reinvenção
de cenas por meio da
imaginação ativa e de roleplaying;
Registro de decisões e planos
para o futuro em folhas de
registro.
Conversa sobre obstáculos
que estão além da ação
individual e são
compartilhados por outras
pessoas vivendo com HIV;
Discussão de recursos
individuais e programáticos;
Profissional e paciente
registram e organizam
hierarquicamente cenas e
situações em folhas de
registro.
Quadro extraído e traduzido de Basso et al. (2012)
834
Sessão 4
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.803-34, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/S1414-32832013005000032
artigos
Formação e qualificação:
um estudo sobre a dinâmica educativa nas equipes de saúde mental do Rio de Janeiro, Brasil
Maria Paula Cerqueira Gomes1
Ana Lúcia Abrahão2
Flávia Fasciotti Macedo Azevedo3
Rita de Cássia Ramos Louzada4
CERQUEIRA GOMES, M.P. et al. Training and qualification: a study on the educational
dynamics in mental health teams in Rio de Janeiro, Brazil. Interface (Botucatu), v.17,
n.47, p.835-45, out./dez. 2013.
Combining education and work involves
some of the assumptions of the training
process in the field of healthcare. The aim
of this paper was to analyze the training
provision by mental healthcare
institutions in the state of Rio de Janeiro,
Brazil. We chose to take a qualitative
investigative approach based on selection
of a sample of institutions that are
committed to educational processes in
this field. The data collection involved
contact with specific informants and
analysis on documents, focusing on the
following variables: target audience,
duration, frequency, nature, type of
training action and pedagogical policy
projects. Several mental health training
proposals at different types of institutions
were found. The investigation resulted in
a map of institutions and training actions:
an analytical matrix of training and
qualification within the field of mental
health in the region.
Keywords: Mental health. Education.
Continuing education. Interdisciplinary
healthcare team.
Combinar educação e trabalho constitui
alguns dos pressupostos do processo de
formação no campo da saúde
apresentados neste artigo, cujo propósito
foi analisar as ofertas de formação
empregadas por instituições do campo da
saúde mental, no estado do Rio de
Janeiro, Brasil. Optamos por uma
pesquisa qualitativa a partir da seleção de
uma amostra de instituições
comprometidas com processos educativos
nessa área (universidades e secretarias de
saúde). A coleta de dados envolveu o
contato com informantes e a análise de
documentos, privilegiando as seguintes
variáveis: público-alvo, duração,
periodicidade, natureza, tipo de ação
formativa e projeto político-pedagógico.
Foram encontradas várias propostas de
formação em saúde mental em diferentes
tipos de instituições. A pesquisa resultou
na elaboração de um mapa de instituições
e ações formativas: uma matriz analítica
da formação e qualificação na área de
saúde mental na região.
Palavras-chave: Saúde Mental. Educação.
Educação Continuada. Equipe
interdisciplinar de saúde.
1
Departamento de
Psiquiatria e Medicina
Legal, Instituto de
Psiquiatria, Universidade
Federal do Rio de
Janeiro. Rua Serrão,
383/201, Zumbi, Ilha
do Governador. Rio de
Janeiro, RJ, Brasil.
21930-190.
paulacerqueiraufrj@
gmail.com
2
Escola de Enfermagem,
Universidade Federal
Fluminense.
3,4
Instituto de
Psiquiatria, Universidade
Federal do Rio de
Janeiro.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.835-45, out./dez. 2013
835
FORMAÇÃO E QUALIFICAÇÃO: ...
Introdução
Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa “Política de Saúde Mental
no Estado do Rio de Janeiro: um estudo sobre as metodologias de formação e
qualificação das equipes de saúde mental”, realizada entre 2008 e 2010, na Linha
de Pesquisa em Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde, no Instituto de
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com as equipes dos
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do município do Rio de Janeiro e
instituições formadoras na área de saúde mental (Cerqueira Gomes, Abrahão,
2013). O objetivo principal do estudo foi conhecer a forma como as instituições
vêm produzindo sua agenda de formação permanente em saúde mental: quais são
suas formas de produzir conhecimento, de pensar e de agir sobre a educação e a
produção de cuidado em saúde mental. A pesquisa contou com a realização de
várias etapas metodológicas que incluíram: levantamento documental, entrevistas,
observação simples e grupo focal com as equipes dos CAPS.
Para este artigo, apresentamos a primeira etapa da pesquisa – ou seja, a
construção da matriz analítica com as instituições de formação em saúde mental
presentes no município do Rio de Janeiro5 –, que consistiu no levantamento dos
diferentes arranjos pedagógicos e organizacionais voltados para os profissionais de
saúde, e que são norteados por um conjunto diferenciado de representações de
homem e de sociedade que se quer efetivar. Essas representações são
demonstradas através da discussão dos processos de ensino-aprendizagem
utilizados nas várias tendências pedagógicas (Pereira, 2003). O objetivo desta
etapa foi analisar as ofertas de formação empregadas pelas instituições públicas e
privadas do estado do Rio de Janeiro no campo da saúde mental.
A dinâmica da investigação parte do entendimento de que a política de
formação e capacitação deve criar espaços de troca baseada na realidade local, com
valorização dos diversos saberes e metodologia participativa, devendo ela ocorrer
não apenas nos espaços formais e nas instituições formadoras, mas, também, no
próprio ambiente de trabalho, onde o cuidado acontece (Brasil, 2007).
O Relatório Final da XI Conferência Nacional de Saúde (CNS) chama a atenção
para a ausência da academia nos processos de formação e capacitação de recursos
humanos na área da saúde, de forma a preparar esses atores para a nova realidade
e diferentes modelos de gestão (Brasil, 2011).
Desta forma, sustentamos que o trabalho pode ser considerado como
dispositivo pedagógico e se constituir como potencializador de mudanças, no
modo de cuidar, nas equipes de saúde, pois se reconhece que, neste processo,
novos sujeitos e diferentes coletivos são convocados, seguindo o que aponta a
produção de Merhy (2004).
Por outro lado, se aposta que, para o contínuo avanço da Reforma Psiquiátrica
no Brasil, seja necessário, como uma de suas ações, conhecer as instâncias de
formação e qualificação dos diferentes agentes do cuidado como, também,
publicizar a tipologia dessas ofertas. Ao tornar pública essa agenda, é possível
trazer, para a cena, pistas das concepções teóricas que orientam os projetos
político-pedagógicos dessas instituições, revelando em que medida esses projetos
se afinam com a Reforma e se são capazes de sustentar esse movimento ainda
não consolidado.
O campo da saúde mental, por excelência, reúne uma gama de saberes,
discursos e práticas que operam no cotidiano do trabalho nos diferentes serviços
que compõem a rede de cuidados. Essa multiplicidade aponta para a riqueza da
conjugação dos saberes, tarefa nada fácil, mas condição irrefutável para o
entendimento da complexidade humana, em um campo onde apenas uma teoria
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A pesquisa se
concentrou nos
municípios do Rio de
Janeiro e Niterói, por ser
onde se localizam as
principais instituições de
formação no campo da
saúde mental –
referência para todo o
estado – e algumas
delas, de relevância
nacional. A Secretaria
Estadual de Saúde é o
órgão que se destaca no
processo de
coordenação e
implementação das ações
de formação nos demais
municípios do Estado.
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artigos
ou categoria profissional se faz insuficiente para lidar com essa complexidade e suas infinitas formas de
sofrimento. Uma ciência do encontro, nada exata, sem grupo de controle e sem receita de sucesso
(Ceccim, Merhy, 2009).
Desta forma, uma pesquisa que tenha como foco os processos de formação dos profissionais no
campo da saúde mental precisa considerar essa multiplicidade e tomá-la em análise. Muitos são os
conteúdos, as teorias e os modelos de prática. Múltiplos, ainda, são as necessidades, os casos, os
atravessamentos (Gomes, 2011).
O próprio delineamento do campo já nos coloca inúmeras dificuldades de partida. Como contemplar
essas demandas de formação? Quais instituições têm ocupado a cena nessa árdua tarefa? Como elas
têm sustentado seus modelos de formação? Os modelos encontrados respondem às necessidades dos
profissionais e aos desafios que se apresentam no cotidiano dos serviços?
Materiais e métodos
Para a etapa de investigação apresentada neste artigo, optamos por um estudo descritivo de base
qualitativa, com o emprego das seguintes ferramentas de investigação: levantamento documental e
entrevista semiestruturada.
Foi realizada uma pesquisa inicial sobre as principais Instituições de Ensino Superior (IES) e
Instituições de Saúde, no período de maio a junho de 2009, que desenvolvem ações de formação no
campo da saúde mental, com reconhecimento social de âmbito local e, em algumas delas de âmbito
nacional, junto à Coordenação de Saúde Mental do estado do Rio de Janeiro e em sites de Instituições
de Ensino.
A seleção das instituições estudadas tomou por base o cruzamento dos seguintes critérios de
seleção: 1) oferecer três ou mais cursos na área de saúde mental; 2) desenvolver atividades de extensão
e/ou cooperação com a rede de serviços de saúde mental local; 3) estar localizada no estado do Rio de
Janeiro.
Aplicando esses critérios, ao final, as instituições pesquisadas foram as seguintes: Secretaria
Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, Laboratório de
Estudos e Pesquisa em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/Ensp/Fiocruz), Laboratório de
Trabalho e Educação Profissional em Saúde (LABORAT/EPSJV/Fiocruz), Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ), Instituto de Psiquiatria/IPUB - UFRJ, Instituto de Psicologia - UFF, Instituto Franco
Basaglia (IFB).
Após a seleção das instituições, foram realizadas visitas no período de março a agosto de 2010 em
dois momentos: o primeiro com o objetivo de levantar documentos relativos aos cursos oferecidos – tais
como: projetos pedagógicos, folders, folhetos entre outros. No segundo momento, foram realizadas,
nessas instituições, entrevistas semiestruturadas com os atores responsáveis pelas atividades de
formação. O roteiro da entrevista contemplou as seguintes variáveis: público-alvo, duração,
periodicidade, natureza, tipo de ação formativa e projeto político-pedagógico.
Foram, portanto, colhidos dados documentais e depoimentos desses atores envolvidos com a
formação em saúde mental. Todos os dados foram organizados e sistematizados e trabalhados a partir da
Análise de Conteúdo (AC). Das várias modalidades de AC conhecidas, a análise temática nos pareceu a
mais apropriada à pesquisa ora apresentada, e consiste na identificação dos núcleos de sentido a partir
de sucessivas leituras do material, e que estão presentes no processo estudado, possuindo relação com
o objeto de estudo escolhido. Estes núcleos de sentido foram, então, relacionados com características
comportamentais ou outras estruturas relevantes apreendidas no discurso, nos oferecendo a
possibilidade de construção de uma matriz analítica de cada instituição pesquisada; e, em paralelo, uma
visão geral da agenda de formação em Saúde Mental no estado do Rio de Janeiro.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética, sendo respeitados, no estudo, os
princípios da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
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FORMAÇÃO E QUALIFICAÇÃO: ...
Apresentação e análise dos dados
A primeira aproximação sobre as ofertas de formação empregadas pelas instituições públicas e
privadas, no estado do Rio de Janeiro, no campo da saúde mental, pode ser traduzida no panorama das
atividades que são oferecidas pelas instituições selecionadas. Subdividimos o material coletado em dois
grupos, considerando o tempo de duração dos cursos e as concepções de formação. O produto da
análise do conteúdo identificou, então, os seguintes núcleos de sentido: “oferta de modalidades na
formação no campo da saúde mental”, relacionado aos diferentes formatos de curso oferecidos, e
“trabalho, educação, campo de formação”, que relaciona a dinâmica encontrada na articulação do
processo de trabalho com a formação na saúde mental.
Antes, vale destacar um aspecto importante na investigação: a diferença de acesso às informações
nas instituições de ensino e nas áreas técnicas de saúde mental das secretarias de estado e municípios.
O número médio de tentativas para o agendamento nas IES oscilou de 6 a 10. Só em uma das IES foi
possível realizar as entrevistas, no primeiro agendamento. Acreditamos que essa facilidade esteja
diretamente ligada ao fato de ser a mesma instituição à qual a pesquisa está vinculada.
De uma forma geral, os pesquisadores e bolsistas encontraram muitas dificuldades em realizar as
entrevistas para conhecer as agendas de cursos e ações de formação. Quando não eram
sistematicamente reagendadas, não se conseguia o contato com os responsáveis. De forma frequente, a
responsabilidade pela informação era transferida para outro profissional do setor da secretaria acadêmica
que, em função de sua agenda de atividades, dificultava o acesso às informações. Só após muitas
tentativas infrutíferas de contato, as entrevistas eram realizadas.
Outro dado importante está relacionado à qualidade das informações, frequentemente
desatualizadas, disponíveis nos sites e folders. Fato que aumentava a necessidade da entrevista in loco,
nas instituições.
O mesmo movimento não foi percebido nas Secretarias de Saúde. Os pesquisadores e bolsistas
tiveram fácil acesso às informações.
A oferta de modalidades na formação no campo da saúde mental
O primeiro núcleo de sentido identificado corresponde às inúmeras modalidades de formação, que
puderam ser agrupadas em dois grandes blocos: as de tempo determinado e as de fluxo contínuo
dando sentido aos conteúdos extraídos das entrevistas. As atividades de tempo determinado seriam
aquelas onde os limites de início e fim estão bem delimitados e desde sempre definidos (ex: cursos); as
de fluxo contínuo seriam as que não apresentam momento claro para finalização (ex: fóruns).
No primeiro grupo – atividades de tempo determinado – incluímos: os cursos de especialização,
residências, extensões, atualizações e aperfeiçoamentos. Neste grupo é possível ainda vislumbrar outra
subdivisão: percebem-se os cursos de especialização e programas de residência (subgrupo A), em geral
mais longos, e os cursos de extensão/atualização/qualificação profissional, de duração menor (subgrupo
B) (Quadro 1a).
O Quadro 1a apresenta um amplo conjunto de atividades e modalidades de formação na área de
saúde mental. A natureza das instituições é bem diversificada: uma instituição sem fins lucrativos
sediada em uma instituição pública; uma instituição privada e outras nove unidades de instituições
públicas oferecendo formação em saúde mental.
A presença de oferta de formação por instituições públicas e privadas descreve a própria conjuntura
educacional brasileira que convive com esta dicotomia nos diferentes planos de formação. Por outro
lado, implica uma discussão mais profunda sobre a formação, no setor saúde, em que o aspecto público
versus privado é constante, não só na formação, mas na oferta de serviços à população.
Vale ressaltar que, no material apresentado, a variável tempo aparece oferecendo a possibilidade de
diferenciar os subgrupos com objetivos distintos. Um objetivo destinado à formação de profissionais
com o perfil voltado a atender as demandas de política pública de saúde com formações mais longas, e
outro grupo, voltado para outros cenários de ação do profissional, com tempo de duração diferenciado.
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Atividade
artigos
Quadro 1a. Atividades formadoras de tempo determinado – Subgrupo A – Cursos de Especialização e Programas de
Residência em Saúde Mental
Instituição promotora
1 - Curso de Esp. Saúde Mental e Atenção Psicossocial
LAPS-Ensp-Fiocruz
2 - Curso Saúde Mental, Políticas e Instituições
LAPS-Ensp- Fiocruz
3 - Curso de Esp. Saúde Mental e Psicologia Médica
HUPE-UERJ
4 - Curso de Esp. Clínica Psicanalítica
IPUB-UFRJ
5 - Curso de Esp. Psicogeriatria
IPUB-UFRJ
6 - Curso de Esp. Terapia Familiar
IPUB-UFRJ
7 - Curso de Esp. Saúde Mental Infância e Adolescência
IPUB-UFRJ
8 - Curso de Esp. Álcool e outras Drogas
IPUB-UFRJ
9 - Curso de Esp. Saúde Mental
IPUB-UFRJ
10 - Curso de Esp. Psicanálise e Saúde Mental
IP-UERJ
11 - Curso de Esp. Prevenção e Tratamento ao Abuso de Álcool e outras Drogas
PUC/RJ
12 – Curso de Esp. Saúde Mental
IFB/Hospital Pinel
13 - Curso de Esp. Psiquiatria
HUPE/UERJ
14 - Residência em Saúde Mental
Hospital Jurujuba
15 - Residência em Psiquiatria
Hospital Jurujuba
16 - Residência Médica
IPUB-UFRJ
17 - Residência Multiprofissional
IPUB-UFRJ
18 - Residência Saúde Mental
PMF/Niterói
19 - Residência Medicina e Saúde Comunitária
PMF/Niterói
20 - Residência em Psiquiatria
HUPE/UERJ
No total, o subgrupo A é composto por vinte cursos de especialização e programas de residência.
Destaca-se que a maioria desses cursos é gratuita, com exceção dos cursos de especialização da PUC/
RJ, IFB/Hospital Pinel, IP/UERJ, LAPS/Ensp/Fiocruz (Especialização em Saúde Mental, Políticas e
Instituições), cujos valores, à época da pesquisa, eram pagos.
Os programas de residências contam com bolsas de estudos para seus alunos, ao passo que as
especializações não oferecem esse tipo de apoio. Apenas o curso de especialização do IFB oferece a
possibilidade de bolsa para instituições conveniadas.
Aqui vale uma discussão mais detalhada dos programas de residência. Do total de oito programas
identificamos que, à época da pesquisa, cinco se restringiam à categoria médica e três destinavam-se a
outros profissionais de saúde. Esta diferenciação deve ser destacada tendo em vista o reconhecimento,
relativamente recente em nosso meio, de que existem trocas possíveis entre diferentes categorias
profissionais e que esses técnicos também poderiam ter acesso a programas de residência.
É importante lembrar que a Residência em Psiquiatria tem regulamentação em nosso país desde
1977, com a criação da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) (Calil, Contel, 1999). O
detalhamento do processo de formação foi ocorrendo aos poucos. Mais recentemente, vimos surgir: os
Programas de Residência Multiprofissional em Saúde, a criação da Comissão Nacional de Residência
Multiprofissional em Saúde (CNRMS), em 2005, e, nesse bojo, as Residências Multiprofissionais em
Saúde Mental.
Não há dúvida de que a residência constitui uma importante possibilidade de formação em serviço,
por isso, consideramos adequadas as perguntas postas por Feuerwerker (2009, p.229):
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FORMAÇÃO E QUALIFICAÇÃO: ...
Por que disputar a Residência como modalidade de formação? Qual a importância disso para
a construção do Sistema Único de Saúde (SUS)? Por que essa “bandeira” não tinha entrado
na agenda política dos formuladores de política, apesar de a possibilidade legal de instituir a
aprendizagem pelo trabalho (a especialização em área profissional) estar assegurada no
âmbito da educação? Por que somente a categoria médica tinha sua “especialização em
serviço” regulamentada e financiada com recursos públicos?
Na região do estado do Rio de Janeiro, tem sido possível observar que as instituições têm investido
na Residência como via de formação e, dessa forma, acompanhamos a ampliação gradativa dessas
iniciativas multidisciplinares. No final de 2009, foi aberto mais um programa de residência
multiprofissional em saúde mental no município do Rio de Janeiro, no Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
Este programa é parte integrante do conjunto de ações do Ministério da Educação ligadas aos Hospitais
Universitários, que vem ampliando a oferta de residência multiprofissional em diferentes áreas.
Outro item, que cabe destacar neste núcleo de sentido, é o número de vagas oferecidas pelas
diferentes instituições. Dentre o grupo de cursos analisados, o Curso de Especialização em Saúde
Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/Ensp/Fiocruz) é o que oferece o número máximo de vagas: trinta;
e o grupo de Programas de Residência do Hospital de Jurujuba é o que recebe menor número de
profissionais: quatro residentes em cada uma das especialidades (Residências em Saúde Mental e em
Psiquiatria).
Quanto ao público-alvo, os cursos analisados envolvem, em sua maioria, os profissionais de nível
superior. Apenas o LABORAT/EPSJV/Fiocruz oferece cursos para profissionais de Ensino Médio e
Fundamental. Alguns cursos se restringem a profissionais da rede pública de saúde e da Estratégia de
Saúde da Família, outros, apenas a médicos e terapeutas ocupacionais, mas a maioria deles está aberta a
diversos profissionais de saúde interessados. Ainda assim, a investigação revelou que essas vagas são
ocupadas, majoritariamente, por psicólogos recém-saídos da universidade e que não se inseriram
imediatamente no mercado de trabalho.
No subgrupo B, a análise sobre as atividades realizadas em tempo determinado possibilita identificar
os seguintes tipos de cursos: extensão, atualização, aperfeiçoamento e qualificação profissional. Foram
encontrados dez cursos desse tipo, como mostra o Quadro 1b.
Quadro 1b. Atividades formadoras de tempo determinado - Subgrupo B - Cursos de Extensão, Qualificação, Atualização e
Aperfeiçoamento Profissional em Saúde Mental
Atividade
1 - Extensão em Saúde Mental no PSF
IPUB/UFRJ
2 - Extensão Clínica para CAPS
IPUB/UFRJ
3 - Extensão Psiquiatria Forense
IPUB/UFRJ
4 - Extensão Política em Infância e Adolescência
IPUB/UFRJ
5 - Extensão Álcool e outras Drogas
IPUB/UFRJ
6 - Qualificação Profissional Cuidado ao Idoso Dependente
LABORAT/EJSJV/FIOCRUZ
7 - Especialização Técnica Nível Médio em Saúde Mental
LABORAT/EJSJV/FIOCRUZ
8 - Atualização Profissional em Prática Grupais em Saúde Mental
LABORAT/EJSJV/FIOCRUZ
9 - Atualização Profissional em Atenção ao Uso Abusivo de Álcool
LABORAT/EJSJV/FIOCRUZ
10 - Aperfeiçoamento em Saúde Mental na Atenção Primária
11 - Cursos de Extensão, Qualificação, Atualização e Aperfeiçoamento Profissional em
Saúde Mental para a rede municipal de saúde
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Instituição
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HUPE/UERJ
ESAM/SMS/RJ
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artigos
Neste subgrupo aparecem, basicamente, cursos mais curtos e gratuitos em sua maioria (oito). Nas
informações referentes aos cursos pagos deste grupo não tivemos acesso aos valores cobrados. Os
dados acessados sobre os cursos informam pouco sobre a clientela a que se dirigem, com exceção dos
cursos oferecidos pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (LABORAT/EPSJV/Fiocruz), onde
fica claro o interesse pelos profissionais de saúde de nível médio e pessoas que possuam nível de
escolaridade básica. De maneira geral, os cursos são oferecidos a profissionais de saúde. Não foram
identificadas outras categorias profissionais durante a investigação.
Trabalho e educação, campo de formação
Este núcleo retrata o sentido das falas e documentos analisados que destacam atividades de
formação realizadas durante o processo de trabalho, que se justifica pelas novas políticas de qualificação
de pessoal da saúde, articuladas à reflexão sobre os processos de trabalho. São dirigidas aos profissionais
do SUS, mas, em alguns casos, têm a possibilidade de receber interessados de fora da rede; este é o
caso dos fóruns. Os fóruns são espaços de atividades multiprofissionais, interdisciplinares e, muitas
vezes, intersetoriais, que reúnem os trabalhadores das distintas redes de saúde mental dos municípios,
em geral, em torno de programas específicos, tais como: álcool e outras drogas, crianças e
adolescentes. É interessante notar que a totalidade dessas ações é ofertada no âmbito da Assessoria de
Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro, e indica a existência de uma agenda de formação em saúde
mental presente nas ações da gestão. A lista de atividades desse tipo pode ser vista no Quadro 2.
Quadro 2. Atividades de formação em fluxo contínuo – Fóruns, Seminários, Formação Permanente
Atividade
Instituição
1 - Fórum Álcool e Drogas
SESDEC – RJ
2 - Fórum de Atenção Básica
SESDEC – RJ
3 - Fóruns Regionais - Reunião de Coordenadores de Saúde Mental
SESDEC – RJ
4 - Seminário de regulação
SESDEC – RJ
5 - Seminário de gestão e avaliação
SESDEC – RJ
6 - Seminário de desinstitucionalização
SESDEC – RJ
7 - Seminário de Infância e Adolescência e uso e abuso de Álcool e Drogas
SESDEC – RJ
8 - Seminário de Infância e Adolescência
SESDEC – RJ
9 - Seminário de desinstitucionalização e residências terapêuticas
SESDEC – RJ
10 - Curso de gestores
SESDEC – RJ
11 - Curso Faturamento e avaliação dos CAPS
SESDEC – RJ
12 - Câmara Técnica dos Hospitais Gerais
SESDEC – RJ
13 - Formação Permanente para equipes de saúde mental dos municípios do Rio de
Janeiro
SESDEC – RJ
É curioso notar que esse tipo de proposta, segundo o material analisado, pensa o serviço e a
formação de maneira articulada, sobressaindo a relação intrínseca entre a prática presente no serviço e a
formação dos profissionais. Algo que se destacou a partir de um momento histórico específico, como
destaca Merhy (2005, p.173):
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FORMAÇÃO E QUALIFICAÇÃO: ...
O projeto do Ministério da Saúde, do Governo Lula, sobre os Pólos de Educação
Permanente, vem constituindo uma forma de construir um terreno para a problematização
necessária da mudança do conjunto das práticas dos gestores da saúde quanto as suas
intervenções no campo da educação em saúde, enquanto pauta nacional. Como instância do
SUS, esses Pólos não necessariamente respondem de modo uniforme a esta pauta, pois a
instalação de múltiplos atores loco-regionais lhe dão singularidades que não podem ser
desprezadas. Mas o terreno e o sentido da política estão aí instalados, cabendo aos atores
concretos resolvê-los nos seus modos de produzir o SUS, no Brasil. Não há solução para
estes processos à parte daquela que é encontrada para a constituição do SUS como
institucionalidade. A multiplicidade desta se expressa também nos Pólos.
Seguindo essas pistas, temos aqui, portanto, no elenco das alternativas de formação permanente em
saúde mental que se encontram na análise, ao mesmo tempo, um retrato da política nacional e a
singularidade do Rio de Janeiro, retratando a correlação de forças e as implicações dos atores locais no
cenário público.
No que diz respeito à agenda de trabalho e à oferta das ações de formação, percebe-se que as
secretarias desenvolvem um conjunto de ações conectadas às demandas atuais da rede de saúde.
Em relação às instituições de ensino pesquisadas, apenas três apresentavam o conjunto de suas
ações de formação voltadas para as necessidades atuais da rede de saúde mental. Alguns projetos
pedagógicos das IES investigadas tratavam de temas relevantes para o debate da psiquiatria e, por
vezes, da saúde mental. No entanto, não estavam conectados com o SUS, sua organização atual,
desafios e agenda de trabalho. Outros apresentam, em suas ementas, temas relacionados à atenção
psicossocial, contudo, sem relacioná-las com as redes de saúde mental existentes.
Vale destacar, também, o que os projetos político-pedagógicos nos dizem a respeito das
metodologias de ensino. Mitre et al. (1994) já apontaram que a formação de profissionais de saúde, em
nosso meio, costuma ser apoiada apenas em metodologias tradicionais, e isso tem levado a
consequências importantes:
[...] o processo ensino-aprendizagem, igualmente contaminado, tem se restringido, muitas
vezes, à reprodução do conhecimento, no qual o docente assume um papel de transmissor
de conteúdos, ao passo que, ao discente, cabe a retenção e repetição dos mesmos — em
uma atitude passiva e receptiva (ou reprodutora) — tornando-se mero expectador, sem a
necessária crítica e reflexão. (Mitre et al., 1994, p.2134)
Em nossa pesquisa, também identificamos metodologias que giram em torno de aulas expositivas e
conferências com pouquíssimas utilizações de metodologias ativas, por exemplo, que relacionem o
mundo do trabalho ao conteúdo apresentado. Esta observação não é irrelevante, pois, para que as
ofertas de formação façam sentido, não basta que sejam transmitidos
[...] novos conhecimentos para os profissionais, pois o acúmulo de saberes técnicos é apenas
um dos aspectos para a transformação das práticas e não o seu foco central. A formação e o
desenvolvimento dos trabalhadores também têm que envolver os aspectos pessoais, os
valores e as ideias que cada profissional tem sobre o SUS. Na proposta da educação
permanente a capacitação da equipe, os conteúdos dos cursos e as tecnologias a serem
utilizadas devem ser determinados a partir da observação dos problemas que ocorrem no diaa-dia do trabalho e que precisam ser solucionados para que os serviços prestados ganhem
qualidade, e os usuários fiquem satisfeitos com a atenção prestada. (Brasil, 2005, p.13)
Seguindo essa linha, devem-se destacar as atividades designadas como “fórum” (Quadro 2). Embora
originadas a partir do serviço, ou seja, com articulação importante com o trabalho realizado, a dinâmica
pedagógica também oferece pouca variação nas metodologias de ensino.
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artigos
Considerações finais
Diversos tipos de propostas formativas em saúde mental foram encontradas na região do Rio de
Janeiro. Foi possível perceber que – embora existam algumas iniciativas formativas mais avançadas –
ainda é necessário, na maioria dos casos, adequar o ensino às demandas das redes de cuidado em saúde
mental em funcionamento.
Verifica-se que os objetivos da maioria das propostas aqui estudadas ainda são os de transferir
conhecimento, e se fundamentam nas teorias clássicas da aprendizagem, que se embasam no modelo de
educação tradicional. Essas teorias se caracterizam pela tendência em explicar os processos de
aprendizagem isolados do contexto, tomando-os com foco exclusivo nos aspectos cognitivos e
individuais. Neste modelo, os sujeitos são vistos como objeto das ações da educação e das práticas
pedagógicas, a ser moldado e manipulado pelas mesmas (Silva, 2011).
Vale observar, no entanto, que existe um processo de transformação, em curso, no campo da
Educação, onde novas teorias sustentam diferentes compreensões sobre os processos de aprendizagem,
mais dinâmicos e capazes de incluir os aspectos sociais/políticos, através dos quais os sujeitos assumem
uma postura menos passiva em sua formação. A transmissão do conhecimento, nesses casos, cede lugar
a uma compreensão que aponta para um processo de construção, configurado como um ato ativo e
dialético com a realidade (Gadotti, 2000).
Nossos resultados possibilitaram um retrato muito específico dessas propostas formativas, uma matriz
formativa que revela a necessidade urgente de uma articulação mais intensa, planejada e desenvolvida
entre processos de formação e a educação permanente em saúde.
Para seguir em conformidade com os princípios da política pública de saúde mental, as instituições
de ensino e as secretarias municipais/estaduais de saúde necessitam, enfim, aproximar-se. Esta ação é
essencial para qualificar os serviços, as equipes e para garantir o avanço de novos modelos de formação.
Em resumo – e como nos diz um dos autores que guia esta análise:
Parece que estamos diante do desafio de pensar uma nova pedagogia [...] que se veja como
amarrada a intervenção que coloca no centro do processo pedagógico a implicação éticopolítico do trabalhador no seu agir em ato, produzindo o cuidado em saúde, no plano
individual e coletivo, em si e em equipe. (Merhy, 2005, p.174)
As modalidades de formação aqui apresentadas trazem uma noção clara de que o trabalho em saúde
só se realiza com a renovação permanente do conhecimento, e que este último não pode ser produzido
sem o envolvimento das pessoas que operam nos serviços.
Colaboradores
Maria Paula Cerqueira Gomes, Ana Lúcia Abrahão, Flavia Fasciotti Macedo Azevedo e
Rita de Cássia Ramos Louzada participaram, igualmente, de todas as etapas e
elaboração do artigo.
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Combinar educación y trabajo constituye algunos de los supuestos del proceso de
formación en el campo de la salud, presentados en este artículo, cuyo propósito fue
analizar las ofertas de formación utilizadas por instituciones del campo de la salud
mental, en el Estado de Rio de Janeiro, Brasil. Optamos por una investigación
cualitativa a partir de la selección de una muestra de instituciones comprometidas con
procesos educativos en esa área (universidades y secretarías de salud). La colecta de
datos envolvió el contacto con informantes y el análisis de documentos, privilegiando
las variables siguientes: público objetivo, duración, periodicidad, naturaleza, tipo de la
acción formativa y proyecto político-pedagógico. Se encontraron diversas propuestas
de formación en salud mental en diferentes tipos de instituciones. La investigación
resultó en la elaboración de un mapa de instituciones y de acciones formativas: una
matriz analítica de la formación y calificación en el área de salud mental en la región.
Palabras-clave: Salud mental. Educación. Educación continuada. Equipo interdisciplinario de salud.
Recebido em 06/11/12. Aprovado em 02/10/13.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.835-45, out./dez. 2013
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DOI: 10.1590/S1414-32832013005000031
artigos
Identidade da agente comunitária de saúde:
tecendo racionalidades emergentes*
Natália Hosana Nunes Rocha1
Marisa Barletto2
Paula Dias Bevilacqua3
ROCHA, N.H.N.; BARLETTO, M.; BEVILACQUA, P.D. Identity of community health
agents: composing emerging rationalities. Interface (Botucatu), v.17, n.47, p.847-57,
out./dez. 2013.
We analyzed the identity of community
health agents (CHAs) from gender
categories in dialogue with the categories
of public and private/domestic space, and
popular and scientific knowledge. We
noted that the profession of CHA is
undervalued not because it is almost
entirely occupied by women, but because
it is seen as female work. This condition
has historically been marked by gender
inequality, in which women are correlated
with family care and domestic tasks, and
therefore with subordination. This
profession reflects hegemonic gender
positions within society and its identity is
defined through day-to-day life,
interactions with the healthcare team and
community (which are full of conflicts and
affections) and daily practices
characterized by hierarchies.
Concomitantly, this profession carries the
possibility of an emancipatory social and
political horizon, defined through
creation of community work and
organized to fulfill the principle of
comprehensiveness.
Keywords: Patriarchy. Gender system.
Production relationships.
Comprehensiveness. Healthcare work.
Analisamos a identidade da agente
comunitária de saúde (ACS) a partir da
categoria gênero em diálogo com as
categorias espaço público e privado/
doméstico e saberes populares e
científicos. A profissão de ACS é
desvalorizada não por ser ocupada quase
totalmente por mulheres, mas por ser um
trabalho visto como feminino – condição
historicamente marcada pela
desigualdade de gênero, associando a
mulher aos cuidados domésticos e à
subordinação. Essa profissão reflete
posições de gênero hegemônicas e a
definição de sua identidade se dá no dia a
dia, na convivência com a equipe de
saúde e comunidade, repleta de conflitos
e afetos e nas práticas cotidianas
marcadas por hierarquias.
Concomitantemente, carrega a
possibilidade de um horizonte
emancipatório, definido na criação do
trabalho comunitário e ordenado para o
cumprimento do princípio da
integralidade.
Palavras-chave: Patriarcado. Gênero.
Relações de produção. Integralidade.
Trabalho em saúde.
Elaborado com base no
projeto de
extensão-pesquisa
“Educação permanente
em saúde e a Estratégia
Saúde da Família:
instrumentalização para a
prática reflexiva” (Rocha,
Bevilacqua, 2012);
financiado pela FAPEMIG
(Edital FAPEMIG 09/
2010, Apoio a Projetos
de Extensão em interface
com a Pesquisa, e
PROBIC –
FAPEMIG/UFV).
1,2
Departamento de
Educação, Universidade
Federal de Viçosa.
Campus Universitário, s/
n. Viçosa, MG, Brasil.
36570-000.
[email protected]
3
Departamento de
Veterinária, Universidade
Federal de Viçosa.
*
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IDENTIDADE DA AGENTE COMUNITÁRIA DE SAÚDE: ...
Introdução
O Programa Saúde da Família (PSF) surge como uma estratégia de superação do modelo assistencial
centrado na doença e no cuidado médico individualizado. O Programa, posteriormente convertido em
Estratégia, de forma a enfatizar o amplo espectro de atividades e responsabilidades, voltada para a
organização e fortalecimento da Atenção Básica à Saúde no País – e prevendo uma atuação continuada,
e não meramente pontual e programática –, tem, em seus preceitos, as marcas do projeto inovador do
Sistema Único de Saúde (SUS) e, também, se apoia em seus princípios doutrinários: universalidade,
integralidade e equidade.
Segundo Paim (2003, p.568), modelo de atenção ou modelo assistencial “[...] é uma dada forma de
combinar técnicas e tecnologias para resolver problemas e atender necessidades de saúde individuais e
coletivas. É uma razão de ser, uma racionalidade, uma espécie de ‘lógica’ que orienta a ação”.
Para Alves (2004, p.41), a questão central do princípio da integralidade é que ele “confronta
incisivamente racionalidades hegemônicas no sistema – tais como o reducionismo e fragmentação das
práticas, a objetivação dos sujeitos e o enfoque na doença e na intervenção curativa”. Conforme
argumenta Mattos (2004, p.1412), “talvez seja útil não considerar a integralidade como sinônimo do
acesso a todos os níveis do sistema”, uma vez que se perderia a possibilidade de apreensão ampliada
das necessidades de saúde. A tese apresentada por esse autor se fundamenta em um princípio
elementar da atenção básica à saúde, que é o encontro entre os profissionais de saúde e as pessoas, e
que esse encontro cotidiano está carregado de subjetividades. O autor sugere que a construção das
intervenções em saúde deva se dar através de um processo dialógico e negociado, entre profissionais e
usuários dos serviços, considerando diferentes aspectos que se encontram nos momentos da prática em
saúde e que constituem dimensões subjetivas desses sujeitos: saberes (formal e empírico), experiências
de sofrimento, expectativas, desejos e temores.
Assim, há, na Estratégia Saúde da Família (ESF), duas lógicas: uma representada por um conjunto de
técnicas, normas e procedimentos ou na medicalização da doença, sustentada pela racionalidade
normativa e instrumental, onde operam os modelos biologicistas e programáticos; outra representada
pelas estratégias relacionais, formas de cuidado, atenção cotidiana, práticas solidárias, onde operam os
modelos de promoção e prevenção da saúde e da saúde coletiva.
Segundo Ferreira et al. (2009), essa racionalidade situa-se num território em dobra, no sentido dado
por Deleuze, pois, ao mesmo tempo que possibilita inovações na gestão do cuidado, colocando o
usuário no centro da atenção e da gestão, essa racionalidade não é reconhecida em sua capacidade
técnica, em sua legitimidade, já que está encerrada na fronteira com a racionalidade hegemônica
englobada pela perspectiva técnico-científica dos paradigmas dominantes da modernidade. A noção de
dobra é bastante interessante, pois se afasta da ideia de oposição e contradição entre as racionalidades
ou territorialidades, e enfatiza sua convivência simultânea na realidade: “A dobra mostra um cenário
diferente daquele que opunha interior/exterior” (Deleuze apud Oliveira, 2005, p.59). Esse lugar de
convivência não é um lugar passivo ou pacífico, e sim uma convivência tensa, já que a diferença entre
essas racionalidades envolve relações de poder historicamente constituídas desde o século XVII.
A questão das racionalidades tem sido discutida por Boaventura Sousa Santos. Ao tratar dos
paradigmas dominantes e emergentes da modernidade, Santos (2001) analisa os paradigmas da
modernidade a partir de dois grandes pilares: a regulação e a emancipação. O pilar da regulação social é
constituído pelos: princípio do Estado, “que consiste na obrigação política vertical entre cidadãos e
Estado” (Santos, 2001, p.50); princípio do mercado, que consiste na obrigação política horizontal
individualista e antagônica entre os parceiros do mercado, e o princípio da comunidade, que consiste na
obrigação política e horizontal solidária entre membros da comunidade e entre associações. O pilar da
emancipação consiste nas três lógicas da racionalidade: a racionalidade estético-expressiva das artes e
literatura; a racionalidade instrumental-cognitiva da ciência e tecnologia, e a racionalidade moral-prática
da ética e do direito. O equilíbrio pretendido entre regulação e emancipação seria obtido pelo
desenvolvimento harmonioso de cada um de seus pilares e das relações dinâmicas entre eles.
À medida que a trajetória da modernidade se identificou com a trajetória do capitalismo, o pilar da
regulação se fortaleceu às custas do pilar emancipatório, gerando desequilíbrios dentro dos dois pilares.
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ROCHA, N.H.N.; BARLETTO, M.; BEVILACQUA, P.D.
4
Revogada pela Portaria
n. 2.488/2011 (Brasil,
2011).
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artigos
No pilar da emancipação, a racionalidade da ciência e tecnologia se desenvolveu
em detrimento das outras e as colonizou. A hipertrofia dessa mesma racionalidade
acarretou a transformação da ciência positivista como epistemologia hegemônica.
No pilar da regulação, houve a hipertrofia do pilar mercado em detrimento do
Estado e ambos em detrimento da comunidade.
Segundo Santos, “o princípio da comunidade e a racionalidade estéticoexpressiva são as representações mais inacabadas da modernidade ocidental”
(Santos, 2001, p.73) e, por isso, seriam os princípios que poderiam colaborar para
a construção de um novo pilar emancipatório. O princípio da comunidade é “o
mais bem colocado para instaurar uma dialética positiva com o pilar da
emancipação” (Santos, 2001, p.75) e, segundo o autor, consiste em dimensões
fundamentais: participação e solidariedade. Essas dimensões foram muito
parcialmente colonizadas pela ciência moderna e continuaram a ser uma
competência não especializada e indiferenciada da comunidade.
Esses princípios seriam, então, os fundamentos das epistemologias emergentes,
e que podemos analisar como sendo o centro da racionalidade proposta no
princípio da integralidade do SUS, o qual propõe superação da lógica hegemônica
do sistema de saúde – curativo, individualista, fragmentado, positivista, biologista
– através da proposição de outra lógica ou racionalidade. Mas essa superação não
poderia ser realizada pelos agentes da racionalidade hegemônica – profissionais da
saúde – cuja práxis está ordenada pelos paradigmas dominantes. Foi preciso
incorporar, literalmente, a comunidade, cuja práxis não está colonizada pelos
paradigmas dominantes e, por isso mesmo, contém os paradigmas emergentes,
criando a possibilidade de transformação. Seus agentes são os Agentes
Comunitários de Saúde.
Nas equipes de saúde, estruturadas de forma a operacionalizar os objetivos
previstos na ESF, os agentes comunitários de saúde atuam como o ‘elo’ entre a
comunidade e equipe técnica da saúde da família. Originalmente, a atuação dos
ACS na rede do SUS ocorreu por meio do Programa de Agentes Comunitários de
Saúde – PACS, instituído pelo Ministério da Saúde em 1991. Contudo, a atuação
desse profissional na história da saúde coletiva no Brasil apresenta algumas
características peculiares, como o fato de que, apesar da criação do PACS ter
ocorrido em 1991, seis anos depois é que são definidas as atribuições dos ACS,
com a publicação da Portaria no 1.886/1997 (Brasil, 1997)4, e, posteriormente,
com o Decreto no 3.189/1999 (Brasil, 1999), são fixadas as diretrizes para o
exercício da atividade dos ACS. Ainda mais tardiamente, a regulamentação da
profissão ocorre em 2002, com a promulgação da Lei nº 10.507 (Brasil, 2002).
Ou seja, apesar da ESF ser apontada em diferentes cenários e debates como o
modelo privilegiado de concretização da proposta do SUS, garantindo
universalidade do acesso e deslocando o foco da atenção hospitalocêntrica,
elegendo a família e seu espaço social como núcleo básico de abordagem na
atenção à saúde, a efetiva concretização dessa política ainda encontra dificuldades
operacionais básicas, a exemplo das incertezas em torno da consolidação
profissional de um ator importante da equipe da saúde da família: os agentes
comunitários.
Somem-se a isso, as formas diferenciadas de seleção e contratação desses
profissionais experimentadas pelos municípios brasileiros, o que acaba
conformando um perfil próprio e singular de profissionais. A esse respeito, um
aspecto significativo que caracteriza a maioria, se não todas, as equipes de saúde
existentes no país, é o fato de a maioria dos ACS ser do sexo feminino.
Tal aspecto foi objeto de atenção e reflexão por parte da equipe que atuou em
um projeto de extensão envolvendo a temática de educação permanente em
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IDENTIDADE DA AGENTE COMUNITÁRIA DE SAÚDE: ...
saúde junto a equipes do PSF existentes em um município de pequeno porte da Zona da Mata de
Minas Gerais. Durante a execução desse projeto, percebemos que, nas equipes de saúde onde
atuávamos, todas as ACS eram mulheres. Em uma avaliação mais aprofundada, levantamos que, dentre
as quinze equipes existentes no município, de 84 profissionais trabalhando, 93% eram do sexo
feminino. Esses achados são corroborados por outros estudos que demonstram que, no Brasil, o perfil da
força de trabalho em saúde e na ESF tem predominância feminina (Silva, Mota, Zeitoune et al., 2010;
Fernandes et al., 2009; Rocha et al., 2009).
Esse cenário nos motivou a pensar a equipe a partir de uma perspectiva de gênero, onde esse
conceito não se refere a homens ou mulheres, mas à relação entre os sexos. Então, gênero não está
ligado ao sexo, mas, sim, a uma construção social. Segundo Weeks (2000, p.56), “[...] gênero não é
uma simples categoria analítica, ele é, como as intelectuais feministas têm crescentemente
argumentado, uma relação de poder”. Esse autor ainda argumenta que as relações de poder atuam
através de mecanismos complexos e, muitas vezes, contraditórios, que têm como produção a
dominação e as oposições. Para a historiadora Joan Scott, a definição de gênero repousa sobre duas
proposições: “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas nas diferenças
percebidas entre os sexos e o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”
(Scott, 1995, p.86).
Assim, procuramos refletir sobre os aspectos que favorecem e fortalecem a presença feminina nesse
espaço. Também procuramos refletir sobre como são construídas as identidades das agentes
comunitárias de saúde, e como as relações hierárquicas e de poder que permeiam essa profissão se
relacionam a essa identidade. Enfim, para fins desse trabalho, esse grupo profissional nos interessa, já
que é sobre ele que incide a possibilidade de realização do projeto da integralidade da atenção à saúde.
Questões de gênero permeiam a profissão de agente comunitária de saúde?
Na concepção do sujeito do iluminismo, a mulher era vista como não sendo ‘sujeito’, ou seja, era
tida como um ser inferior e não dotada de razão, um ser irracional (Hall, 2001), tanto que esse sujeito
era descrito como masculino. Esse pensamento perpassou o mundo moderno criando e reforçando a
oposição entre ‘masculino’ e ‘feminino’. A expressão dessa oposição se dá em diferentes dimensões do
tecido social, tais como a divisão de tarefas no mercado de trabalho (divisão social do trabalho), onde é
reservado às mulheres o espaço privado (a casa, por exemplo), e, ao homem, o espaço público. Tal
oposição é condição epistemológica e política da origem de desigualdades, materializadas, por
exemplo, nas diferenças salariais, as quais persistem até os dias de hoje.
As desigualdades entre homens e mulheres e a supervalorização do primeiro em relação ao segundo
podem ser mais bem explicadas por meio dos estudos da historiadora Joan Scott.
Na proposição de Scott (1995), utilizar gênero como categoria de análise histórica implica análise em
dois níveis integrados: o gênero como elemento constitutivo das relações sociais, baseado nas
diferenças percebidas entre os dois sexos; e gênero como forma básica de representar relações de
poder, em que representações dominantes são apresentadas de forma natural e inquestionável. O
conceito de gênero é, assim, utilizado para se compreender como o meio social determina as
diferenças construídas, ressaltando que as características atribuídas a um e a outro sexo se caracterizam
como relações de poder, designando as mulheres a posições subalternas. O conceito de gênero se
refere à forma como as desigualdades operam entre os sexos e ordenam as relações de poder, referese, assim, aos domínios.
Para Kofes e Piscitelli (1997), adotar gênero como categoria de análise implica não apenas dizer que
as experiências são marcadas pelo gênero, mas, sim, em mostrar como o gênero opera, como essa
operação marca as experiências, bem como o que nelas se expressa. Essa orientação tem como objetivo
alertar sobre a dificuldade de se sair de uma perspectiva descritiva e passar para uma perspectiva
analítica. Manter-se numa perspectiva descritiva seria se ater à indicação de que o trabalho na saúde
aloca homens e mulheres diferentemente, ou seja, os homens estariam ‘naturalmente’ nos cargos de
administração e gestão e em algumas especialidades médicas com maior ‘prestígio’ técnico; e as
mulheres estariam ‘naturalmente’ na maioria dos cargos de cuidado e em outras especialidades médicas
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artigos
com maior ‘prestígio’ social. Essas análises são importantes enquanto dão visibilidade aos quadros de
estratificação simbólica nos âmbitos social, político e econômico. Entretanto, ao permanecerem na
descrição e quantificação, contribuem para fixar os papéis sociais ou, mesmo, as estereotipias sexistas,
muito mais reificadoras do que problematizadoras.
Assim, não basta demonstrar que a profissão de ACS é eminentemente realizada por mulheres,
confirmando a oposição entre mundo masculino e mundo feminino, operada, inclusive, no espaço do
trabalho. A imagem da ACS, associada ao ato de cuidar, orientar, zelar pelo bem-estar físico e social de
toda família, apesar de referenciado na legislação que cria a profissão e define suas atribuições, é o fator
que acaba por desvalorizar a profissão, porque é vista como uma profissão feminina.
Segundo Hall (2001), o sujeito se constitui no mundo, ou seja, não há uma interação entre o ‘eu’ e
a sociedade, recebendo, assim, interferência do meio, mas, sim, nos ‘fazemos’ na pluralidade das
relações, o que envolve identificações, contradições, diferenças e outras dinâmicas relacionais no tecido
social das subjetividades. Considerando tal afirmação, pode-se dizer que é durante as visitas
domiciliares, durante a prática profissional das agentes de saúde, que essa identidade vai se construindo
e se modificando. Nesses espaços, em que há a troca de saberes, a troca de experiências, o contato
direto com a comunidade, é que as relações se estabelecem e os vínculos se formam e se fortalecem
(ou não), produzindo a pluralidade das identidades das ACS.
Entretanto a condição feminina atravessa o exercício de seu ofício, quando as ACS assumem diversas
posturas devido à operacionalização do seu trabalho, que se dá em trânsito pelo bairro, permitindo-as
serem mães, amigas, ouvintes, cunhadas, ao mesmo tempo em que são ‘profissionais de saúde’.
Trabalhar no próprio bairro onde mora e ter de estabelecer uma relação formal e, ao mesmo tempo,
íntima com as pessoas/usuários é a condição que induz a tais performances. Assim, a racionalidade que
o princípio da integralidade carrega precisou incorporar esse ‘novo elemento’ (ACS) e as potencialidades
que o mesmo sinaliza enquanto possibilidade de fortalecimento dos elementos comunidade e
emancipação. Entretanto, a mudança de paradigmas envolve relações de poder e não se faz fora do
jogo de forças da história. A relação entre a racionalidade dominante (verticalidade, curativo,
individualista, científico) e a racionalidade emergente (horizontal, comunitário, solidário, subjetivo,
preventivo) se realiza, nesse caso, através dos binarismos que convergem para a desvalorização do
trabalho das ACS. Quando integrado à equipe da ESF, o trabalho das ACS tem se mantido, no mínimo,
como um anexo, sendo aquele que alça a integralidade, mas que não efetiva sua racionalidade para
dentro do atendimento por permanecer à margem. Nesse cenário, a ACS assume um lugar de fronteira,
citado por Anzaldúa (2005), como o lugar que se configura no sentido de ter conhecimento e de não
ter conhecimento, aqui traduzidos como ‘saber biomédico’ e ‘saber popular’. Como tal binarismo está
ordenado pelo gênero, não se apresenta com força política suficiente para oxigenar a racionalidade
dominante. Assim, a integralidade não se efetiva: se mantém aprisionada, como uma dobra, um lugar
de diferença.
A inter-relação entre o saber científico e o saber popular
De forma geral, tende-se a se caracterizar a agente comunitária de saúde como o elo entre a equipe
de saúde e a comunidade. Contudo, o perfil profissional que assume é diferente dos demais
profissionais, o que acaba por hierarquizar as relações nas equipes de saúde, ficando a ACS subordinada
às outras categorias profissionais. Um elemento fundante de tal hierarquia é a dicotomia existente entre
o saber biomédico/científico e o saber popular, que, por sua vez, define as próprias hierarquias entre os
saberes e que não apenas valoriza o primeiro em detrimento do segundo, mas cria, também,
polaridades e oposições.
Nesse contexto, os discursos sociais, que, segundo Foucault (1999), são dispositivos de poder e são
resultados de diversos sistemas de controle, resultante de diversas práticas restritivas, são outros
elementos que reforçam a delimitação dos espaços hierárquicos entre os profissionais. No caso das
agentes de saúde, esses discursos acabam valorizando o saber científico e acabam gerando a
hierarquização das relações. A prática discursiva constrói relações de poder, que são tidas como
verdades, influenciando a produção das subjetividades. Sendo assim, o discurso é tido como força, uma
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verdade que é apoiada no discurso científico. Então, quando há a incorporação da norma a partir da
internalização dos discursos, o poder se instaura.
Assim sendo, pode-se perceber a fragilidade dessa profissional frente aos demais integrantes da
equipe de saúde (profissionais de nível superior e/ou técnico), por não dominar tão eficientemente o
saber biomédico, por não possuir uma formação específica ou, mesmo, por não precisar da formação
técnica para atuar como agente de saúde, diferentemente do/a médico/a, enfermeiro/a ou técnico/a
de enfermagem. Essa condição se revela ainda mais crítica quando se compara o seu salário com o dos
outros profissionais da equipe. Todos esses fatores contribuem para que esse/a profissional sinta-se
inferiorizado/a e fragilizado/a em relação aos demais membros da equipe de saúde, e essa
desvalorização se faz, fundamentalmente, pelo princípio do conhecimento técnico-científico sexista.
Já em relação à importância da função educativa da ACS, esta é quem está mais próxima dos/as
usuários/as, a exemplo dos momentos em que realiza as visitas domiciliares, e, por isso, as experiências
e a constante troca de informações são importantes meios para a construção do conhecimento coletivo
em saúde. A partir dessa troca também acontece o aperfeiçoamento do saber popular e científico em
um processo educativo, onde não se exclui um saber pelo outro. Assim, as ACS realizam a função de
mediadoras entre o saber científico e o saber popular, construindo, de forma coletiva e participativa com
a comunidade, tais saberes. Nesse processo, as ACS realizam um trabalho de educação em saúde, ao
mesmo tempo em que as relações afetivas com a comunidade se fortificam e aperfeiçoam.
Valla, Guimarães e Lacerda (2006) aproximam o trabalho de ACS ao dos pastores da igreja, em suas
práticas cotidianas e comunitárias, próximas da perspectiva da Educação Popular. Interessante que, ao
invés de entendê-lo ou aproximá-lo do trabalho dos profissionais da saúde e de suas práticas
hegemônicas, o aproximam de outra lógica de acolhimento e escuta.
A disponibilidade para a escuta permite dar a devida atenção às demandas dos pacientes. Desse
modo, conforme discutido por Silva et al. (2004), as ACSs não seriam apenas elos com a população, no
sentido de ser um veículo de comunicação, mas, sim, laços quando a relação predominante é
fundamentada no respeito e no diálogo. Por meio da escuta ampliada, os conteúdos do conhecimento
são construídos e reconstruídos de acordo com as situações do cotidiano.
A experiência desse lugar de dobra é destacado por Ferreira et al. (2009) ao mostrar que o trabalho
das ACS se expressa em sentimentos contraditórios, pois, ao mesmo tempo que são qualificadas pelo
conhecimento popular, afeição e laços com a comunidade, vangloriam-se de pertencer ao PSF, pois o
conhecimento biomédico que recebem na formação lhes permite diferenciar o seu conhecimento em
relação ao conhecimento popular. Os autores ainda analisam que os saberes e práticas desse
conhecimento biomédico, que informam o modo de agir dos ACS, reproduzem o modelo hegemônico,
pois tais saberes estão constituídos no paradigma dominante, específico das profissões de saúde.
Assim, enquanto a comunidade se inscreve em uma ordem que fortalece o pilar emancipatório,
operando-o a partir do conhecimento popular que detém e dá garantia de direitos básicos (como o da
saúde); a equipe de saúde, por outro, reforça a prática hegemônica da saúde em que a racionalidade da
ciência e da tecnologia é a lógica privilegiada. Tal situação produz um tensionamento que se projeta no
sujeito que está no centro dessa dinâmica, a agente comunitária de saúde.
Oposições entre os espaços: público e privado/doméstico
Outra dicotomia que permeia a constituição da profissão de ACS é a que se refere às oposições
público e privado/doméstico onde, segundo Pateman (1993, p.24), “esta é uma dicotomia que reflete a
ordem da divisão sexual na condição natural, e que é também uma diferença política”. Ainda, segundo
Pateman (1993), a esfera privada – feminina (natural) – e a esfera pública – masculina (civil) – são
contrárias, contudo, uma só adquire significado a partir da outra.
De acordo com Okin (2008), o que se mostra como fundamental para essa dicotomia é a divisão
sexual do trabalho, onde os homens são vistos como responsáveis pela esfera econômica e política
(esfera pública), enquanto as mulheres são vistas como responsáveis por ocupações referentes à esfera
privada (associada ao doméstico, ao universo feminino), sendo impróprias para a esfera pública.
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artigos
No trabalho desempenhado pelas ACSs, vários elementos e suas características são qualificados
positivamente pelo feminino: o cuidar, a atenção, a escuta, o entendimento da comunidade, a interrelação com vizinhos, conhecidos e parentes, a paciência com as conversas, com o banal, com o
cotidiano. A reprodução social no sentido da unidade familiar é apropriada e ressignificada como
trabalho público da ACS, semelhante ao ordenado pela professora primária no final do século XIX e nas
primeiras décadas do século XX. São necessárias qualidades psicológicas como afeição, paciência, todas
inerentes a tal natureza feminina, já que as faculdades cognitivas superiores seriam dadas aos cientistas,
atarefados com o conhecimento científico, árduo em sua lógica e racionalidade técnica. No caso das
ACS, a essencialidade feminina continua, sendo que, ao invés da sua natureza maternal, biológica, é
sua natureza social, cotidiana, de cuidado no cotidiano; a maternagem é deslocada do educativo para o
social e comunitário: aquela que cuida de todo mundo.
Nessa perspectiva, considera-se que há, na profissão de ACS, o jogo de poder, o jogo político,
afirmamos isso baseando-nos no pensamento de Laqueur (2001). Então, pode-se dizer que essa
profissão é desvalorizada não por ser ocupada quase em sua totalidade por mulheres, mas, sim, por ser
um trabalho visto como feminino, ligado ao doméstico, e essa diferenciação é acarretada pela
desigualdade de gênero. Esse fator acaba por aproximar as mulheres dessa profissão que se mostra tão
feminilizada. Essa é uma condição historicamente construída de desigualdade de gênero, associando a
mulher aos cuidados familiares e domésticos e à condição de subordinação.
Nesse sentido, Scott (1995), ao falar de gênero, o traz como elemento constitutivo das relações
sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e menciona quatro elementos/eixos que
se inter-relacionam: o aspecto simbólico, o normativo, as instituições e organizações, e a identidade
subjetiva. Todos esses eixos contribuem, de alguma forma, para decodificar e compreender as
diferenças existentes entre os sexos.
De modo muito sintético, podemos dizer que, no trabalho das agentes de saúde, o aspecto
simbólico envolve o referente da mulher que cuida, zela e ampara, sendo esses referenciais e
representações hegemônicas do feminino. O eixo normativo estaria na definição da profissão de
cuidadora na saúde, organizada pelos procedimentos e conhecimentos definidos pela ciência médica –
positivista –, assim como pelas boas práticas e por padrões de dedicação ao trabalho. As instituições e
organizações se referem tanto à socialização formal e informal dessas mulheres ACS, que as coloca
como vocacionadas para esse trabalho, como, também, às relações de saber/poder das unidades de
saúde que organizam, classificam e hierarquizam as práticas cotidianas. Esses eixos articulados entre si
funcionam como discursos de verdade para que os símbolos possam organizar formas de pensar as
diferenças entre os sexos. Sobre o aspecto da identidade subjetiva, Scott (1995) defende que se deve
analisar como essa é construída ao longo da trajetória de vida e que a identidade de gênero é resultado
das tensões produzidas durante essa trajetória. Scott ainda cita que nenhum desses quatros elementos
pode operar separadamente, sem, necessariamente, um ser reflexo do outro.
Assim, apesar do trabalho de ACS permitir a emancipação desses sujeitos através do acesso de
mulheres ao trabalho e à atuação no espaço público, a condição de trabalhadoras assalariadas (gênero e
classe) as mantém aprisionadas ao universo – tanto simbólico quanto de práticas – feminino, ilustrando
as sutilezas e estratégias que garantem as reproduções sociais e reafirmam os lugares de homens e
mulheres na sociedade, possibilitando, ainda, a reprodução de desigualdades de gênero em diferentes
espaços.
Associação entre o bairro como espaço doméstico e local de trabalho
Com relação à dicotomia doméstico/bairro, é de grande relevância destacar o cotidiano do trabalho,
sobretudo as visitas domiciliares, uma vez que é no bairro onde moram que suas relações se
estabelecem e se fortalecem, pois é onde se localizam seus vínculos afetivos e, até mesmo, suas
desavenças. Esse espaço que é, ao mesmo tempo, público, por se tratar do bairro, da rua, da sua
comunidade, é, também, privado, por ser uma área de reconhecimento de seu cotidiano, o que
possibilita a livre circulação durante o horário de trabalho. Apesar de terem a família como unidade de
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IDENTIDADE DA AGENTE COMUNITÁRIA DE SAÚDE: ...
cuidado e a visita domiciliar como tática de acompanhamento, o trabalho não se caracteriza como
‘invasão’ de privacidade, pois os/as usuários/as estão dialogando com alguém que faz parte de suas
relações pessoais.
A singularidade de se dever, obrigatoriamente, morar no bairro para exercer a profissão, coloca as
ACS em uma certa ‘zona de conforto’. Então, é um ambiente já conhecido e onde as relações, na
maioria das vezes, já estão constituídas.
São mulheres, com nível médio de escolarização, que encontram, nessa atividade, uma
oportunidade de trabalho no seu próprio bairro, junto a pessoas que conhecem e que, muitas vezes,
são mesmo seus familiares. Essas características são facilitadoras da administração das tarefas domésticas,
enquanto espaço de dupla jornada para mulheres, além de permanecerem na ‘zona de conforto’ que é
a comunidade. Tais elementos também são apontados por Barbosa et al. (2012), que relatam, como
vantagem do trabalho de ACS, estar perto de casa, podendo conciliar as atribuições do trabalho
remunerado com os cuidados com a casa e os filhos, sendo esse um dos principais argumentos
apresentados pelas ACS para a permanência no emprego, quase sempre mal remunerado e precário.
Assim, apesar de estarem trabalhando ‘fora’, esse fora é a própria vizinhança, a escola dos filhos, a
parentalha. Muitas delas têm, no PSF, seu primeiro trabalho remunerado. A escolha tem como
referência o perfil do trabalho e as percepções sobre a ‘natureza’ feminina ou ‘cultura’ de mulheres,
que, para muitas, permite se projetar como adequada ao trabalho proposto pela ESF.
Então, pela associação da mulher ao ambiente doméstico, o trânsito dessa profissional ao interior das
residências é facilitado por causa de suas relações já estabelecidas no bairro, permitindo-as adentrar as
casas dos/as usuários/as e tratar de assuntos da ordem da intimidade das famílias. É no espaço familiar,
doméstico, remetendo ao privado, que as agentes de saúde vão construindo suas redes sociais e
assumindo diversas identidades, onde, ao mesmo tempo em que se apresentam como conhecidas, há
um distanciamento para que possam executar o trabalho como agentes de saúde.
Considerações finais
A profissão de agente comunitário/a de saúde reproduz históricas desigualdades sociais, sendo que o
fato de se aproximar de uma prática ‘de mulheres’, ligada ao doméstico, opera as desigualdades de
gênero, associando a mulher ao cuidado (com o outro, com a família, com o doméstico) e à condição
de subordinação. A categoria analítica gênero permite introduzir a relação de poder ‘crivada’ pela
desigualdade para explicar a complexidade do princípio da integralidade e dos impactos do trabalho das
ACS enquanto sujeito de pertencimento de gênero/classe. Conforme a perspectiva hegemônica, sendo
mulher seria mais afeita a relações solidárias, e sendo portadora de um capital cultural e social, pelo
pertencimento de classe, permitiria que essa subjetividade fosse apropriada pelo SUS para ‘resolver’ o
princípio da integralidade.
Entretanto, a integralidade, como expressão de uma racionalidade emergente, é desvalorizada pela
racionalidade técnica e científica hegemônica; assim, tanto o pertencimento de gênero quanto o de
classe são rejeitados pelo conhecimento técnico e científico da saúde. Isso se expressa na própria
dificuldade de incorporação desse princípio na operacionalização da ESF. Na medida em que o
cumprimento do princípio da integralidade não questiona o discurso médico-científico hegemônico e
permanece na dobra das ACS, refazem-se as dicotomias e, com elas, a racionalidade dominante. O que
mantém a dimensão de gênero não são as mulheres – ou homens – agentes comunitários, mas a
relação de poder que engendra a dinâmica e o significado do trabalho das agentes comunitárias na ESF
para o cumprimento do princípio da integralidade.
Assim, a Agente Comunitária de Saúde foi idealizada como subjetividade que integra sujeito/prática
ou como prática encarnada, que cria possibilidades de atuação democratizante da saúde pela
descentralização e pela incorporação de: subjetividades, cultura, conhecimento popular,
horizontalidades, afetos. Porém, na medida em que está encerrada na fronteira e tratada como
expressão dos binarismos de gênero, configura-se como subjetividade que refaz relações não igualitárias
no âmbito capilarizado das relações cotidianas. Nessas, a prática e o conhecimento do senso comum são
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ROCHA, N.H.N.; BARLETTO, M.; BEVILACQUA, P.D.
artigos
desqualificados pelo ponto de vista do discurso médico; afetividade e solidariedade são consideradas
aspectos dispensáveis e irrelevantes. Enfim, no modo como a subjetividade da ACS está engendrada,
refaz-se a hegemonia da perspectiva curativa da saúde.
Colaboradores
As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.
Agradecimento
As autoras agradecem à Secretaria Municipal de Saúde do município de Viçosa-MG, em
especial às/aos agentes comunitárias/os de saúde do Programa Saúde da Família, pela
parceria na realização do trabalho; e ao apoio financeiro recebido da FAPEMIG (Edital 3/
2011, Processo: TEC-PPM-00446-11 e Edital 9/2010, Processo CDS-APQ-03234-10).
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.847-57, out./dez. 2013
artigos
ROCHA, N.H.N.; BARLETTO, M.; BEVILACQUA, P.D.
ROCHA, N.H.N.; BARLETTO, M.; BEVILACQUA, P.D. Identidad de la agente comunitaria
de salud: el tejido de racionalidades emergentes. Interface (Botucatu), v.17, n.47,
p.847-57, out./dez. 2013.
Analizamos la identidad de la agente comunitaria de salud (ACS) a partir de la categoría
género en diálogo con las categorías espacio público y privado/doméstico y saberes
populares y científicos. Indicamos que la profesión de ACS es desvalorizada no por ser
ocupada casi totalmente por mujeres, sino por ser un trabajo considerado femenino,
condición que está históricamente señalada por la desigualdad de género, asociando a
la mujer a los cuidados familiares y domésticos y, consecuentemente, a la
subordinación. Esa profesión refleja posiciones de género hegemónicas en la sociedad
y la definición de su identidad se realiza en el cotidiano, en la convivencia con el
equipo de salud y la comunidad, repleta de conflictos y afectos, y en las prácticas
cotidianas marcadas por jerarquías. Al mismo tiempo, lleva consigo la posibilidad de un
horizonte social y político de emancipación, definido en la creación del trabajo
comunitario y ordenado para el cumplimiento del principio de la integralidad.
Palabras clave: Patriarcado. Sistema de género. Relaciones de producción. Integralidad.
Trabajo en salud.
Recebido em 11/06/12. Aprovado em 05/09/13.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.847-57, out./dez. 2013
857
DOI: 10.1590/S1414-32832013005000033
artigos
Por uma educação que se movimente como maré
e inunde os cotidianos de serviços de saúde
Dagmar Estermann Meyer1
Jeane Félix2
Michele de Freitas Faria de Vasconcelos3
MEYER, D.E.; FÉLIX, J.; VASCONCELOS, M.F.F. Towards an education that moves like the
tide and floods the everyday routines of healthcare services. Interface (Botucatu), v.17,
n.47, p.859-71, out./dez. 2013.
We proposed to reflect on care and
management practices within healthcare,
by taking these to be well-dated social
practices. Through placing ourselves at
the intersection between the fields of
education and healthcare, and, within
these, in the field of studies on the body,
we showed that healthcare practices
comprise cultural pedagogies from which
certain meanings and behaviors are
prescribed, but also through which
meanings and new practices that shift,
bifurcate and question these prescriptions
are constructed. In other words, here we
take the field of healthcare to be a
territory both for teaching
(pedagogical-bodily formatting) and for
learning (experimentation of singular
ways of doing and saying things
regarding healthcare); and we take care
and management within healthcare to be
an assembly (bodily) of conflicting parts
between some forms of subjection and
experimentation forces, from which
healthcare practices are woven.
Keywords: Continuing education.
Cultural pedagogy. Healthcare work
processes. Healthcare practices. Body.
Propomos refletir sobre práticas de
cuidado e de gestão em saúde,
entendendo-as como práticas sociais bem
datadas. Situando-nos no cruzamento
entre as áreas da educação e saúde e,
nelas, dos estudos sobre corpo,
apontamos práticas de saúde como
pedagogias culturais, a partir das quais
são prescritos determinados sentidos e
condutas, mas, também, por meio das
quais são construídos sentidos e fazeres
inéditos que deslocam, bifurcam, fazem
questionar tais prescrições. Dito de outro
modo, entendemos aqui o campo da
saúde como um território de ensino
(formatações pedagógico-corporais),
mas, também, de aprendizagens
(experimentação de formas singulares
nos fazeres e dizeres em saúde), e o
cuidado e a gestão em saúde como uma
montagem (corporal) conflituosa entre
formas de sujeição e forças de
experimentação, a partir das quais as
práticas em saúde se tecem.
Palavras-chave: Educação permanente.
Pedagogias culturais. Processos de
trabalho em saúde. Práticas de saúde.
Corpo.
1
Programas de PósGraduação em Educação
e em Saúde Coletiva,
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
(UFRGS). Faculdade de
Educação, prédio n.
12.201, sala 511. Rua
Paulo Gama, s/n. Porto
Alegre, RS, Brasil.
90046-900.
dagmaremeyer@
gmail.com
2,3
Grupo de Estudos em
Educação e Relações de
Gênero (GEERGE),
Programa de
Pós-Graduação em
Educação, UFRGS.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.859-71, out./dez. 2013
859
POR UMA EDUCAÇÃO QUE SE MOVIMENTE COMO MARÉ ...
Da imensidão do mar das práticas de saúde
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff,
levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o
sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas,
esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram
aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o
mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a
imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino
ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu
falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!
(Galeano, 2006, p.15)
Dentre muitas outras possibilidades, o texto de Galeano permite pensar acerca
dos processos de educação do olhar. E olhar, no contexto deste texto, será tomado
como uma capacidade que extrapola a dimensão biológica do enxergar, para incluir
os movimentos de olhar, apreender e significar o que se vê, com os múltiplos
sentidos que os diferentes grupos culturais produzem para codificar, nomear e
descrever, ativamente, o mundo – pessoas, objetos, contextos e relações – em
que vivem4.
Nessa perspectiva, podemos dizer que não apenas o nosso olhar, mas nossos
corpos são educados por um conjunto de processos que nos transformam, e pelos
quais somos transformados, em sujeitos de uma cultura; por exemplo, em sujeitos
de uma cultura de saúde e, de forma ainda mais específica, de uma cultura
profissional de saúde, que se exercita no âmbito do sistema de saúde, no Brasil.
Tornar-se sujeito dessa cultura envolve um complexo de processos de ensino e de
aprendizagem que permeiam muitas instâncias e dimensões de nossas vidas e
incluem o que outras abordagens separam como educação e socialização. Educar
supõe, então, processos de ensino e processos de aprendizagem: o que, quem e
como nos ensinam e o que, quem e como se aprende. Aprender, como diz
Marlucy Paraíso (2011, p.147),
[...] é abrir-se e refazer os corpos, agenciar atos criadores, refazer a
vida, encontrar a diferença de cada um e seguir um caminho que
ainda não foi percorrido. Aprender é abrir-se à experiência com “um
outro”, com “outros”, com uma coisa qualquer que desperte o
desejo. Por isso, para aprender é necessário “primeiro aprender a
desaprender” (Caieiro, 1986). Aprender a desaprender os sentidos
constituídos, os significados produzidos e os pensamentos
construídos para abrir em si próprio as diferenças.5
Ensinar, para a mesma autora, inclui transmitir, informar, ofertar, apresentar,
expor, explicar. Trata-se, em certa medida, de um processo que busca governar
condutas, produzir determinadas práticas, incluir e excluir, hierarquizar, normalizar
e dividir os sujeitos: quem sabe e quem não sabe, quem tem boa saúde e quem
está doente, quem segue e quem não segue as regras. Nesse sentido, “ensinar,
portanto, é muito diferente de aprender” (Paraíso, 2011, p.147), uma vez que
ensinar supõe homogeneizar e aprender supõe criar possibilidades de
singularização (Guattari, Rolnik, 2000). Singularização é entendida como a
diferença que resulta em nós, e que desfaz o nós, abrindo-nos para outros modos
de ser e de estar no mundo, bifurcando essa busca pelo homogêneo que pauta o
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.859-71, out./dez. 2013
Em versão ampliada e
mais “didatizada”, este
texto foi originalmente
produzido como material
de apoio pedagógico
para o Programa de
Formação em Gestão
Regionalizada do Sistema
Único de Saúde (SUS) do
Amazonas. Tal Programa
vem sendo desenvolvido
mediante parceria entre
a Secretaria de Estado
de Saúde do Amazonas
(SUSAM) e o Conselho
de Secretários Municipais
de Saúde do Amazonas
(COSEMS/AM), com a
assessoria de docentes
da Universidade Federal
do Rio Grande do
Sul (UFRGS),
especialmente do
Núcleo de Educação,
Avaliação e Produção
Pedagógica em Saúde
(Educasaúde), e do
Instituto de
Comunicação e
Informação Científica e
Tecnológica em Saúde
(ICICT/Fiocruz). A
publicação desta versão
foi aprovada pelas
instâncias responsáveis
pela demanda,
organização e edição
desses textos.
4
A autora assinala que a
noção de aprender, por
ela desenvolvida, inspirase em Deleuze e em
Fernando Pessoa. Por
sua vez, a necessidade
de aprender a
“desaprender”, referida
pela autora, é baseada
em Alberto Caeiro
(1986) que, em seu
instigante poema
intitulado Deste modo
ou daquele modo ,
publicado no livro O
guardador de rebanhos,
diz que é necessário
despir-se do aprendido
para produzir outros
sentidos, deixar-se afetar
e construir novos rumos
para aquilo que se
costuma chamar de ‘eu’.
5
continua
MEYER, D.E.; FÉLIX, J.; VASCONCELOS, M.F.F.
6
Cabe ressaltar que
entendemos, conforme
Guacira Louro (2003),
que aquilo que
comumente
configuramos como
natural também é
produzido
culturalmente.
artigos
ensinar. Ambos os processos – ensinar e aprender – compõem nossa educação
como sujeitos de uma cultura, nossa apreensão e nosso manejo da linguagem e
dos códigos constitutivos dela.
O pedido de Diego, expresso na frase “Ajuda-me a olhar”, supõe, então,
assumir que o mar (a imensidão do mar saúde, mar formação e exercício
profissional em saúde, mar sistema de saúde) não existe em si mesmo. Para ser
visto, para ser apreendido e para ser significado como tal, ele precisa entrar num
determinado domínio de significação, e isso supõe tanto ensinar a ver quanto (re/
des)aprender a ver, com e a partir de determinados sistemas de significação e
colocando esses mesmos sistemas à prova – desnaturalizando-os, entendendo-os
como constelações de sentidos produzidos num determinado tempo e num
determinado espaço. Nessa direção, é possível dizer que nada é ‘natural’6, nada
está dado de antemão, e que tudo isso que ensinamos, apre(e)ndemos e fazemos,
nesses contextos, está ancorado em saberes e práticas parciais e provisórias, que
resultam de disputas travadas em diversos âmbitos do social e da cultura. Tais
práticas, justamente por isso, podem ser (re)vistas, questionadas e modificadas.
Admitir isso não é simples, pois traz consigo a necessidade de mudar a lógica do
nosso pensamento em vários aspectos daquilo que aprendemos quando se trata de
educar, no amplo campo da saúde.
Sugerir possibilidades de ‘ajudar-nos a olhar’ para refletirmos sobre, e inserirnos de outros modos, em práticas de cuidado e práticas de gestão em saúde,
tomando-as como processos pedagógicos – que ensinam cotidianamente (de
diferentes modos, sob diferentes perspectivas e pontos de vista) a todos/as os/as
envolvidos/as com a produção da saúde – é o objetivo deste texto.
Para guiar essa forma específica de olhar (ver, apreender e significar) e
estruturar o eixo argumentativo que delineamos de forma a materializá-lo em
texto, descrevemos, na sequência, cenas do cotidiano de serviços de saúde
brasileiros vivenciadas por nós, as quais, certamente, são conhecidas também de
grande parte dos/as potenciais leitores/as deste texto.
“Me ajuda a olhar” – marés que invadem cotidianos
em serviços de saúde
continuação
Nessa mesma direção,
Foucault (2010) fala da
desaprendizagem como
um movimento de pôr a
vida à prova,
desfazendo-se de
pedagogias corporais
anteriormente inculcadas
e experimentando,
assim, processos de
aprendizagem menos
afeitos ao governo das
condutas humanas e à
formatação subjetiva, e
mais interessados na
encarnação de outras
formas de vida, bem ali
onde, como aponta
Paraíso (2011), o corpo
se abre para a
mestiçagem do encontro
com outros corpos.
Cena 1: A brinquedoteca que não possui brinquedos – Numa capital do
nordeste, em visita técnica a um serviço de saúde voltado a crianças, fomos
convidadas a conhecer o espaço físico antes de participar de uma atividade lúdica
com as crianças e seus familiares. Era uma manhã quente e, naquele espaço com
poucas aberturas e pouca luz externa, o calor parecia ainda mais intenso. As
crianças, espalhadas nos vários cômodos do serviço, estavam bem suadas, assim
como nós. No canto, uma sala com letras coloridas indicava ‘Brinquedoteca’. Ao
entrarmos, vimos as crianças sentadas, desenhando, pintando e escrevendo.
Nenhum brinquedo naquela sala com estantes vazias. Conversamos com as
crianças e com a psicóloga que as acompanhava. Na sequência, entramos na sala
da coordenação e fomos surpreendidas com uma sala climatizada. Ao passo em
que nos aliviávamos do calor, estávamos visivelmente incomodadas com a situação
em que as crianças, seus familiares e vários/as trabalhadores/as estavam
submetidos/as nos cômodos externos àquela sala. Chamou-nos atenção uma
estante cheia de brinquedos no interior desta sala. Ao perceber que estávamos
olhando muito para a estante, a coordenadora disse: “Guardamos os brinquedos
aqui, pois se ficam na brinquedoteca as crianças quebram tudo”.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.859-71, out./dez. 2013
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POR UMA EDUCAÇÃO QUE SE MOVIMENTE COMO MARÉ ...
Cena 2: O aquário – Trata-se de um serviço de saúde que mais parece um galpão, com poucas salas
feitas por divisórias. O pé direito é muito alto, as paredes sujas de poeira grudada e mofo, cheiro de
‘limpeza malfeita’. Sobre esse espaço, uma trabalhadora afirma: “Quando cheguei aqui, me
incomodava muito com a ambiência, a sujeira, essas paredes, um nojo”. Telhas de ‘Eternit’ amplificam
o calor nordestino. A área mais ventilada do espaço se mantém fechada, os/as usuários/as lá não
podem circular, a não ser quando têm alguma atividade acompanhada por um/a profissional. Depois de
qualquer atividade, o espaço ventilado, sem telhas, com um pouquinho de verde (o resto do espaço é
todo de concreto) e brisa, é fechado. As salas que têm ar-condicionado são salas que os/as usuários/as
frequentam pontualmente: coordenação, salas de atendimento, de reuniões, de vivência, dos/as
técnicos/as... Estas são chamadas pelos/as usuários/as de “aquários”, pois têm um vidro transparente
retangular compondo a parede que, segundo eles/as, serve para os/as trabalhadoras/es vigiarem-nos/as
“sem ter que se misturar e passar calor”. A maior parte do tempo que os/as usuários/as passam neste
serviço se dá embaixo das telhas de ‘Eternit’ e sem ar-condicionado ou ventilador. Um usuário afirma:
“Hoje não teve oficina. Passamos o dia todinho só sentindo calor. De 8 às 11, todo mundo aqui sem
fazer nada e eles [referindo-se a profissionais] lá dentro da sala”.
Cena 3: Envolver usuários na gestão, pra quê? – Uma de nós esteve presente em uma reunião dos
coletivos de técnicos/as e gestores/as de uma secretaria municipal de saúde de região metropolitana. A
pauta era discutir o fortalecimento da participação dos/as usuários/as nos espaços de gestão coletiva dos
serviços. Passado algum tempo da discussão, uma das técnicas questiona o grupo: “Não entendo por
que essa conversa de envolver os usuários. A gente tem é que estar bem preparado para atendê-los
quando chegam no nosso serviço...”. A reunião seguiu com outras pautas e um dos encaminhamentos
foi a continuidade da discussão sobre o tema. Num serviço de saúde, usuários/as ficam um tempo a
esperar profissionais chegarem para começar a assembleia. Nenhum/a técnico/a chega e eles/as, então,
decidem iniciar a reunião. Depois de mais um tempo, com a assembleia já acontecendo, um
trabalhador chega e, irritado, questiona a decisão de os/as usuários/as terem iniciado a assembleia
sozinhos/as.
Cena 4: Prescrições ministeriais – Num espaço formativo do Ministério da Saúde, promovido para
trabalhadores/as de todas as regiões do Brasil que atuam em um tipo específico de serviço de saúde –
cujo objetivo é refletir sobre processos de trabalho a fim de qualificá-los –, um dos facilitadores, no
período da manhã, inicia a atividade, abrindo espaço para que os/as trabalhadores/as compartilhassem
suas práticas, a fim de que se construíssem pistas metodológicas contextualizadas e a partir dos saberes
e das experiências dos/as próprios/as profissionais. No período da tarde, outro facilitador, sem levar em
conta o que o grupo produziu pela manhã (mesmo tendo participado do planejamento da atividade),
tomando como eixo as prescrições ministeriais, divide o grupo em três. No final da atividade, momento
em que supostamente haveria uma plenária em que os três grupos apresentariam a síntese das
discussões e dos encaminhamentos, o facilitador fala pelo grupo menor do qual fez parte, encaminha as
questões e sai (atrasado para seu voo), sem dar espaço de escuta e composição dos encaminhamentos
com os outros dois grupos – e se deu por finalizado o processo, sem questionamento algum dos/as
participantes.
O que estas cenas/marés nos permitem ver e indagar?
Como educadoras também envolvidas com o planejamento de políticas e a gestão de serviços de
saúde, talvez possamos começar dizendo que formar continuamente profissionais para atender, de
modo ágil e resolutivo, demandas e desafios que o cotidiano de trabalho lhes impõe é uma questão
central para o campo da saúde. A cada dia, novas políticas e programas que incluem processos
educativos são pensados, planejados e executados em nosso país. Também, a cada dia, processos
educativos são reproduzidos, repetidos, ‘multiplicados’. Há aqueles que ocorrem nas relações entre
profissionais, gestores/as e usuários/as; nas relações entre as pessoas que vivem, convivem e circulam
nos espaços de gestão e cuidado em saúde; há também o que se aprende e se ensina em silêncio e/ou
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.859-71, out./dez. 2013
MEYER, D.E.; FÉLIX, J.; VASCONCELOS, M.F.F.
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artigos
sem intencionalidade, pela organização do espaço físico ou pelos modos como as pessoas se
comportam ali dentro. Espaço físico e comportamentos que se inscrevem numa pedagogia das condutas
e dos corpos que é fundamental em uma economia biopolítica de disciplinamento do corpo individual e
de administração do corpo de múltiplas cabeças – a população (Foucault, 2008).
Nessa direção, e em consonância com a noção de educação que introduz este texto, é possível dizer
que algumas das formas pelas quais processos de cuidado em saúde ensinam envolvem silenciar e não
fazer perguntas. Com isso, produzem uma sensação de que ser cuidado/a é uma atitude passiva, tal
como a educação escolar ensina aos corpos sentados e (de preferência) em silêncio: corpos
receptáculos de informações.
Em outros termos, entendemos que espaços e momentos cotidianos de atenção (e também de
gestão) em saúde constituem-se como cenas de ensino-aprendizagem em que atuam pedagogias
terapêuticas, pedagogias organizacionais, pedagogias corporais. Ou seja, processos de trabalho no
campo da saúde tendem a fomentar a realização de projetos pedagógicos articulados com o objetivo de
incorporar hábitos e valores que possam dar suporte à sociedade mais ampla, entendida como corpo
social; que possam preparar, moral e fisicamente, homens e mulheres, tendo por base uma educação
de seus corpos, uma educação eficiente na produção de corpos.
Na medida em que indicamos o campo da saúde como um lócus educativo em que se investe,
sobretudo, na produção de determinados corpos – individuais e coletivos –, parece-nos importante
indicar o que estamos entendendo como corpo. Para Dagmar Meyer, o corpo é aquilo que é produzido
na articulação entre nossas “heranças genéticas” e “aquilo que aprendemos quando nos tornamos
sujeitos de uma cultura” (2009, p.218). O corpo se produz em processos de significação e, por isso
mesmo, é instável, mutável, cambiante. Denise Sant’Anna (2005, p.11) acrescenta que é preciso
“evidenciar o caráter provisório dos regimes de visibilidade que definem a verdade do corpo, da saúde
e da doença em cada época”, em cada cultura, em cada momento histórico. Guacira Louro
complementa: “nomeados e classificados no interior de uma cultura, os corpos se fazem históricos e
situados. Os corpos são ‘datados’, ganham um valor que é sempre transitório e circunstancial” (2004,
p.89). No interior de uma cultura, de um contexto histórico-político específico, os corpos são
produzidos por inúmeras marcações: gênero, sexualidade, classe social, raça/cor, religião, faixa etária,
região etc. São, então, produzidos e organizados por tais marcas de poder. A partir delas, os corpos são
classificados, hierarquizados, organizados, ‘indiciados’, valem mais ou menos num dado contexto
(Louro, 2004). Marlucy Paraíso (2011), por sua vez, afirma que corpo é espaço de tensão, zona
conflitiva entre formas de sujeição e forças de experimentação, ou seja, eles sempre se abrem em
processos de desaprendizagem que trazem consigo a potência de desnaturalizar as prescrições culturais
e fazer, com isso, a própria cultura se modificar.
Em linhas gerais, neste texto, trabalhamos com a ideia de que os corpos tendem ao singular, ou seja,
que se constroem no interior de culturas específicas, submetidos a determinadas pedagogias corporais.
Todavia, para Dagoberto Machado, Michele Vasconcelos e Aldo Melo (2012), além de construtos
culturais, corpos são construções político-éticas. Ou seja, mais do que tecidos mediante obediência a
determinadas pedagogias culturais, que lhes organizam, lhes ensinam, lhes prescrevem ‘boas’ condutas
e avaliam seu valor, corpos tendem à singularização (Guattari, Rolnik, 2000), abandonam a adesão às
fôrmas subjetivas prescritas por tais pedagogias, recusam o que são e tateiam a invenção de outras
formas de subjetividade.
Nosso olhar sobre os processos de gerir e cuidar em saúde, neste texto, toma o corpo como
construto cultural-político-ético, e o fazer em saúde como instância pedagógica por meio da qual se
imprimem marcas nos corpos, mas, também, como instância pedagógica por meio da qual corpos de
profissionais, de usuários/as e o próprio corpo do cuidado podem se abrir a novas aprendizagens. É na
confluência desses pressupostos que a indagação acerca dos processos que formam corpos (de
trabalhadores/as, gestores/as, usuários/as) pode fazer sentido. Gostaríamos, então, de pensar: de que
maneiras o cuidado em saúde pode ser pedagógico para quem é cuidado e também para quem cuida?
De que modo os processos de gestão em saúde podem ser espaços/estratégias de formação de
trabalhadores/as, gestores/as e usuários/as? “Forma-ação ou forma-de-ação” (Barros, 2005, p.134)?
Práticas formativas prescritivas ou práticas formativas que possibilitam múltiplas formas de ação,
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encarnadas em necessidades contextualizadas e coletivas? Como, no cotidiano do fazer em saúde,
podem ser tecidas outras práticas pedagógicas que não se conformam em organizar os corpos de
usuários/as, de modo a silenciá-los e a fazê-los passivos? O que se ensina-aprende ao organizar os
corpos de gestores/as como ‘as cabeças pensantes’ e os corpos de trabalhadores/as como técnicos
executores de prescrições propostas por outrem? No cotidiano do trabalho em saúde, o que podem as
práticas pedagógicas?
Com essas perguntas, retornamos às cenas descritas acima, porque, em seu conjunto, elas nos
parecem potentes para ‘ajudar a olhar’, a partir das seguintes questões mais pontuais: O que um
serviço de saúde, localizado em um ambiente bastante quente, ensina com um ar-condicionado
funcionando ‘a pleno vapor’ apenas na sala da coordenação? O que ele ensina quando os lugares
refrigerados são restritos para profissionais que passam grande parte do dia sentados/as, a olhar, através
de um vidro, usuários/as, que passam a maior parte do tempo no galpão quente “sem fazer nada”? O
que a sujeira e o mau cheiro ensinam a profissionais e usuários/as que habitam o lugar? Que estratégias
de gestão poderiam ser empreendidas em cenários como esses para propiciar melhores condições de
trabalho aos/às profissionais que ali desenvolvem suas atividades laborais, bem como melhores
condições para usuários/as desses serviços e suas famílias? O que um serviço ensina mantendo os
brinquedos encaixotados numa estante na sala da coordenação, enquanto na brinquedoteca as crianças
estão sem brinquedos? O que uma consulta médica em que não há escuta do/a usuário/a ensina para
quem participa dela (médico/a e usuário)? Que possibilidades poderiam ser acionadas aqui para gerar
um encontro potente do ponto de vista pedagógico? Por que a inserção/presença/participação ativa
dos/as usuários/as nos espaços de gestão incomoda alguns/algumas trabalhadores/as da saúde? Que
estratégias pedagógicas podem ser acionadas em momentos como a assembleia que descrevemos?
Que estratégias pedagógicas podem ajudar a torcer um ‘tarefismo cego’ (que incorre em
culpabilização, individualização das respostas e dos problemas, pontualidade e descontinuidade do
cuidado, ausência de encaminhamentos) que tende a sustentar as ações em saúde? O que um espaço
de formação ensina quando, logo após uma abertura para troca de experiências e saberes, estes são
desconsiderados em proveito do objetivo de ‘cumprir a tarefa’ focada em prescrever modos ‘certos’ de
fazer? Que táticas podem ser usadas para desfazer ações pedagógicas como essas que, sob a alcunha da
roda, atualizam práticas formativas tradicionais de mera transmissão de informações?
Obviamente, não temos a pretensão de responder a tais perguntas. Tampouco pretendemos elencar
culpados/as ou responsabilizar pessoas individualmente por tais situações, sobretudo porque
entendemos que essas cenas são efeitos da ausência de espaços de reflexão e de construções/respostas
coletivas para problemas comuns. Nossa abordagem tem o intuito de ensejar reflexões sobre como os
processos de trabalho e os processos formativos para o trabalho em saúde podem ser revistos, bem
como sugerir algumas possibilidades para a proposição de processos pedagógicos que possam ser
potentes nessa direção.
Nesse sentido e sob esse ponto de vista, o que essas cenas podem ter em comum? Que elo de
ligação poderíamos estabelecer entre elas? O que temos a desaprender, a ensinar, e a (re)aprender em
situações como essas, tão recorrentes e naturalizadas nos cotidianos dos nossos serviços de saúde?
Brevemente, poderíamos dizer que as quatro cenas apontam para dimensões pedagógicas importantes
de serem pensadas e problematizadas por quem se propõe a trabalhar no campo da saúde. Poderíamos
dizer que tais cenas se inscrevem no interior de práticas tradicionais de saúde, nas quais relações de
poder-saber estão fixadas e definidas: gestão vertical, centralidade do discurso médico, assimetria entre
profissionais e usuários/as, desconsideração de sentimentos, desejos, inquietações e questionamentos
dos/as usuários/as, formação entendida como mera transmissão de informações, prescrição de ‘um
modo certo de fazer’ para pessoas ‘descapacitadas’, com a finalidade de que elas adquiram tais
capacidades (Meyer, Félix, 2012a, 2012b; Pasche, Passos, 2010). No âmbito do que nos interessa aqui,
cabe então perguntar: que possibilidades pedagógicas poderiam ser empreendidas para contribuir para a
modificação de situações como essas? Esta é a questão-eixo que orienta a argumentação que será
aprofundada na seção que segue.
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artigos
Processos de trabalho em saúde transmutados em práticas pedagógicas
Em conversas com alguns/as colegas, ao compartilharmos as cenas descritas neste texto, nos
surpreendemos ao saber que situações como essas são comuns. Em vários serviços de saúde voltados
para crianças, os brinquedos ficam guardados e não podem ser manuseados por elas. Em outros tantos,
os/as usuários/as são mantidos para fora dos ‘aquários’. E, também, em muitos daqueles que dizem
trabalhar com gestão compartilhada, a participação ativa de usuários/as na gestão, mesmo de seu
cuidado, tende a incomodar e a ser ‘controlada’.
Entretanto, e concordando com Veyne (2008, p.264), “não se deve falsear a apreciação do possível
sustentando que ‘as coisas são o que são’, [que ‘essa é a realidade’], pois, justamente, não há coisas: só
existem práticas. E essa é a palavra-chave”. Outras práticas sempre são possíveis, o que significa que as
coisas não necessariamente precisam seguir sendo o que são e nelas podemos interferir. Nesse sentido,
parece ser preciso problematizar processos naturalizados de habitar o cotidiano dos serviços de saúde,
interferindo em processos de trabalho para transformar modos de produzir saúde que estejam afeitos à
organização tipificada dos corpos. Ou seja, é preciso inventar e experimentar outras formas de
intervenção nas práticas de saúde.
Para isso, dentre outras coisas, poder-se-ia investir na implementação da educação permanente em
saúde como um modo pedagógico-político de colocar os processos de trabalho ‘reais’ na cena educativa.
Educação permanente, segundo Ricardo Ceccim, é, exatamente, um “[...] processo educativo que
coloca o cotidiano do trabalho – ou da formação – em saúde em análise, que se permeabiliza pelas
relações concretas que operam realidades e que possibilita construir espaços coletivos para a reflexão e
avaliação de sentido dos atos produzidos no cotidiano”(Ceccim, 2005, p.161).
A educação permanente em saúde diz respeito à “construção de relações e processos” que
envolvem as equipes, as práticas organizacionais e as interinstitucionais e/ou intersetoriais, articulando
os agentes das equipes, o setor saúde e as “políticas nas quais se inscrevem os atos de saúde” (Ceccim,
2005, p.161). Trata-se de processos educativos que envolvem todos os sujeitos engajados com a
produção de saúde em um determinado contexto (um serviço de saúde, por exemplo).
No âmbito dessas perspectivas de educação e de educação permanente, com que concepção de
gestão estamos nos propondo a operar, a partir do caminho metodológico traçado até aqui?
Resumidamente, é possível dizer que compreendemos o espaço de trabalho como espaço de produção
coletiva de todos/as os sujeitos envolvidos no processo de produção de saúde: gestores/as,
trabalhadores/as e usuários/as. Sabemos, porém, que esses sujeitos não ocupam as mesmas posições e
que alguns exercem poderes instituídos em função de sua formação profissional e das regras que regem
seu exercício na área da saúde, pelo cargo que assumem, pela autoridade política e/ou acadêmica que
construíram ou que lhes é atribuída, pelas atividades sob sua responsabilidade etc. E que, nas práticas de
saúde tradicionais, os/as usuários/as teriam um lugar diferenciado, e este é geralmente um lugar
‘passivo’, uma vez que, quando se fala em participação, usualmente se está pensando em participação
como colaboração para fazer funcionar o que foi previamente decidido em outras instâncias.
Assim, estamos propondo aqui um borramento de fronteiras dos lugares instituídos para a produção
de novos e possíveis encontros que envolvam gestores/as e trabalhadores/as, repensando
conjuntamente seus processos de trabalho e formação, com participação de usuários/as nos processos
de trabalho em saúde, quando esses sujeitos se engajam, junto à equipe que provê cuidado a eles e
seus familiares, na construção de seu projeto terapêutico; isto é, quando participam da gestão do
cuidado, ou quando participam das decisões organizacionais em assembleias/encontros com usuários,
por exemplo.
Na perspectiva da educação permanente em saúde, essas situações seriam colocadas em reflexão
pelos sujeitos envolvidos no serviço: as/os coordenadoras/es, os/as profissionais, familiares e, também,
as crianças. Cada um/a do seu lugar e com suas percepções acrescenta “à roda” elementos para
reflexões coletivas e para a busca de respostas conjuntas. Ambas as situações – gestão do cuidado e
tomada de decisões organizacionais – podem ser utilizadas como mote para se pensar no serviço de
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saúde (contexto, problemas, possíveis soluções) de modo amplo; poderiam permitir trazer, para a
conversa, outros elementos e situações que incomodam gestores/as, trabalhadores/as, usuários/as, bem
como algumas possibilidades para resolver embates e dificuldades.
Obviamente, que não se trata de um processo simples, tampouco temos respostas prontas ou
modelos a serem seguidos. Ao contrário, cada contexto, situação e grupo de pessoas poderá pensar e
experimentar diferentes respostas. Sem perder a condição de aprendizes e entendendo a formação
como construção de formas de ação, usuários/as e profissionais podem não só inventar respostas, mas,
também, trazer novos problemas para o trabalho e para a formação em saúde. Nesse sentido, vemos, na
educação permanente, uma estratégia política e metodológica interessante.
Parece-nos importante considerar que, nos serviços de saúde, bem como nas esferas de gestão em
saúde, para além de sujeitos da automação e das rotinas racionalizadoras presentes, há vidas pulsantes
que pedem passagem para novos possíveis, há produções de si (Foucault, 2010) de trabalhadores/as,
gestores/as, usuários/as. Assim, apostando numa micropolítica do cotidiano e mantendo-nos abertos/as
para acontecimentos, encontros, relações, afetos e problemas que acontecem ali mesmo, buscamos
experimentar e inventar novas práticas de saúde, inclusive formativas, nos espaços institucionalizados,
entendendo esse movimento de criação como algo que é imanente ao cotidiano dos serviços, dos
processos de trabalho, das práticas de cuidado e de gestão em saúde.
O convite é, então, o de participar da construção de uma ética que nos possibilite transpor o limite
daquilo que é condicionado pela sociedade da qual fazermos parte para aventurar-nos, nas brechas das
práticas de saúde, à experimentação de “uma produção que possui, em sua emergência, a força de
uma conspiração, da invenção de um pouco de possível em um mundo no qual se procura regular/
gerenciar a vida na forma de uma mortífera ordem. [...]. Implicados, implicantes”, buscamos por linhas
de fuga ao que há de instituído nas trajetórias dos corpos sujeitos a práticas de saúde (Rodrigues, 2009,
p.205). Em termos concretos, isso significa ir além do que os protocolos e modos de organização
instituídos nos espaços de produção de saúde permitem: (re)pensar e modificar processos de trabalho;
utilizar artefatos culturais como mecanismos para mudar situações/problemas que acabam por afetar o
trabalho, a vida e a saúde dos/as trabalhadores/as; construir e implementar processos educativos que
fujam do lugar comum das capacitações e dos treinamentos tradicionais, da formação entendida como
“transmissão de conteúdos, marcados privilegiadamente por racionalização, conscientização,
tecnicismo” (Barros, 2005, p.135), rumo à invenção de práticas de formação que produzam torções
nesses modos hegemônicos de operar no âmbito da formação em saúde. Não há regras nem modelos,
há possibilidades que podem ser modificadas e reinventadas coletiva e cotidianamente (Meyer, Félix,
2012a, 2012b).
Nessa direção, a reinvenção dos processos de trabalho e das pedagogias que ali são postas em
funcionamento passa pelo envolvimento de todos os atores engajados no processo de produção de
saúde (Ceccim, Feuerwerker, 2004). O que se costuma ver, no entanto, são processos formativos que
se propõem a mudar o cotidiano do trabalho em saúde, envolvendo profissionais de saúde ou os/as
gestores/as separadamente. E é nesse sentido, também, que os/as usuários/as são aqueles/as a quem
as ações são destinadas, dificilmente sendo envolvidos em tais atividades. Evidentemente, não estamos
falando aqui de algo novo, tampouco de algo simples de se operar. Estamos falando de mudanças na
cultura das instituições de saúde e, consequentemente, dos modos de trabalhar e fazer gestão na
saúde, bem como de ser assistido/a pelos serviços de saúde. Estamos falando, sobretudo, da necessária
mudança nos processos de gestão do trabalho e da assistência em saúde.
O convite supracitado desdobra-se em aposta: revisar e mudar práticas pedagógicas em saúde.
Muitas delas parecem precisar ser revisadas e/ou abolidas, e outras incorporadas no cotidiano dos
serviços, quer seja como atitudes (pois informam uma nova ética no cuidado e na gestão), quer seja
como práticas atualizadas a encarnarem novos processos de trabalho. O objetivo dessa aposta, não custa
repetir, traduz-se na criação de espaços coletivos e permanentes de discussão sobre processos de
trabalho em saúde, com engajamento de todos os atores envolvidos, compondo processos gestores do
cuidado e do trabalho.
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Expressão utilizada por
Elizabeth Barros,
cunhada por Ana
Heckert.
Em última análise, o convite-aposta é o de, estilhaçando as “formas de ação”7,
experimentar:
artigos
7
Uma formação que se configure em múltiplas formas de ação, como
produção de saberes e práticas sociais que instituem sujeitos de ação,
aprendizados permanentes e não práticas de modelagem [...]
escapando da produção de profissionais como mercadorias amorfas,
despotencializadas, silenciosas e serializadas [...] que valorizam
apenas a “competência técnica” e que insistem em discernir o que é
“especificamente cuidar” do que é “especificamente político”. [...]
Nossas práticas podem ser suporte importante para as mudanças que
queremos. (Barros, 2005, p.137)
Refletir conjuntamente sobre os processos de trabalho significa, assim, abranger
aspectos que afetam, incomodam, mobilizam e movimentam gestores/as e
trabalhadores/as, em suas práticas laborais cotidianas, bem como usuários/as, na
utilização dos serviços ocupados por estes/as profissionais. Nessa direção,
apresentamos aqui a gestão dos processos de trabalho como desafio coletivo, por
meio da reflexão conjunta desses processos e da tessitura coletiva das ações em
saúde. No nosso ponto de vista, tais reflexões podem produzir, para além de outros
e novos modos de gerir os processos de trabalho, novos encontros e sentidos.
Retomemos, por exemplo, a cena do ar-condicionado apenas na sala da
coordenação e de uma brinquedoteca sem brinquedos. Quando sugerimos, por
meio da reflexão sobre processos de trabalho, mudar práticas de produção de saúde
e de si, através da interferência em cenas cotidianas como essas, pretendemos nos
situar na contramão de posicionamentos a favor da existência de uma origem, uma
identidade primeira para as coisas que compõem a ‘realidade’, no caso em que
tratamos aqui, a realidade dos serviços de saúde, dos corpos e das pedagogias que
ali circulam, como se fossem homogêneas e iguais. A realidade é aqui pensada
como produção histórica, “não existindo em si e por si, sempre sendo construída
por práticas sociais” (Coimbra, 2001, p.38). Tais práticas “vão engendrando no
mundo objetos, sujeitos, saberes e verdades sempre diversos, sempre diferentes”
(Coimbra, 2001, p.38). A partir dessas múltiplas práticas, múltiplos rostos vão se
constituindo ao longo da história, múltiplas objetivações (Veyne, 2008).
Cursos, oficinas, processos formativos formais e tantos outros processos
pedagógicos institucionalizados podem ser empregados para discutir as questões
que vimos trazendo. Embora entendamos a importância desses processos para a
formação de trabalhadores/as e seus reconhecidos efeitos no campo da saúde,
nossa aposta é em espaços de formação que sejam produzidos no interior dos
serviços, que envolvam todos os sujeitos envolvidos (Ceccim, 2005); que sejam
contínuos e estejam inseridos nos processos de trabalho e de gestão daquele
serviço/unidade/secretaria. Acreditamos na potência desses encontros de
formação não formais como espaços/momentos de promoção de mudança local.
Do nosso ponto de vista, processos de trabalho envolvem toda a equipe para
pensar sobre os problemas comuns e buscar respostas coletivas; isso constitui, ao
mesmo tempo, processos pedagógicos potentes, os quais têm efeitos concretos na
melhoria dos processos de trabalho nos quais a equipe encontra-se inserida.
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Reapre(e)nder a olhar e a dimensionar o mar e suas marés
Encaminhando-nos para um fechamento desta argumentação, poderíamos voltar a perguntar: o que
crianças e adultos/as usuários/as de um serviço de saúde teriam a dizer acerca dos processos de gestão
e de formação dos/as profissionais que os/as assistem e organizam os serviços dos quais se utilizam?
Ora, qual o sentido dos serviços de saúde se estes/as não forem habitados pelos/as usuários/as? Nessa
direção, os/as usuários/as, tanto quanto gestores/as e trabalhadores/as, deveriam participar dos
processos de tomada de decisão e poderiam contribuir com a educação permanente dos/as profissionais
e gestores/as. Seria preciso, também, considerar os diferentes saberes e experiências trazidos por quem
vive/ocupa o serviço e produzir saúde no entrelaçamento desses saberes e experiências.
O saber e o fazer de uma criança que porventura questionasse o fato de que a brinquedoteca não
possui brinquedo e que estes estão guardados na sala refrigerada da coordenação põem em rasura as
‘certezas’ que produziram esse status quo. Se estivermos sensíveis a tal questionamento e se o
utilizarmos como desencadeador de uma reflexão coletiva naquele contexto, talvez cheguemos a nos
dar conta de que não faz sentido termos brinquedos encaixotados e crianças sem brinquedos em um
mesmo espaço de produção de saúde, sobretudo em um intitulado ‘brinquedoteca’. Também pode ser
possível dar-se conta de que a coordenadora queria ‘proteger’ os brinquedos, queria mantê-los intactos
e que, por mais que isso pareça absurdo, ‘proteger os brinquedos das crianças que podem violar sua
inteireza’ pode configurar uma boa intencionalidade da gestora, coordenadora do serviço, para preservar
os materiais. Dito de outro modo, ao colocarmos os desafios e os problemas em discussão no coletivo,
temos a possibilidade de observar os diversos modos de lidar com uma questão e as diversas razões que
levaram algumas pessoas a tomar certas decisões; desse modo, é possível responder coletivamente às
questões colocadas, atender coletivamente às demandas que o cotidiano do trabalho em saúde nos
coloca, inventar novos problemas e práticas que, por serem produzidas coletivamente, a partir do que
cada contexto, cada momento e cada sujeito necessita, podem ser, também, mais resolutivas. E isso, do
nosso ponto de vista, faz parte dos processos de formação e gestão de todos/as os/as envolvidos/as no
serviço de saúde.
Como se poderia lidar com as marés que nos invadem para recompor cotidianos?
A partir do entendimento dos processos de trabalho como práticas pedagógicas, gostaríamos de
finalizar o texto esboçando alguns sinalizadores que podem contribuir para qualificar os processos
formativos em saúde. Tais sinalizadores surgiram de nossa escuta junto a trabalhadores/as, gestores/as e
usuários/as no campo da saúde e de alguns textos (Pasche, Passos, 2010; Barros, 2005; Ceccim, 2005)
que também se fizeram por entre experimentações e escuta junto a esses atores. Foram eles que nos
ajudaram a “olhar” (Galeano, 2006). Cabe destacar que esses sinalizadores podem ser úteis desde que
não os tomemos como prescrições e, sim, como possibilidades a serem experimentadas e reinventadas
em cada contexto:
1) As práticas pedagógicas tradicionais tendem a ser direcionadas para a alteração de
comportamentos individuais. Através da transmissão de informações, têm como objetivo prescrever o
‘modo certo de fazer’ em saúde, mediante oferta de momentos pontuais de capacitações e
treinamentos. Tais práticas têm onerado os cofres públicos e, sem desconsiderar que podem surtir
efeitos positivos, em geral, não têm surtido ‘grandes’ efeitos, a não ser para manter trabalhadores/as
num automatismo e tarefismo fatigante. As prescrições tendem a ser muito pouco incorporadas e as
condutas não são corrigidas como se almeja. Os corpos resistem!
2) Em vez de ter como alvo a correção de comportamentos individuais, ações formativas que
tendem a ser potentes, no sentido de produzirem alterações em práticas de saúde, tomam como objeto
os processos de trabalho em saúde (os quais tendem a dizer de modos de organização de trabalho
incipientes e expressar condições precárias de trabalho e de assistência). Assim, abrem-se espaços para
aprendizagens cotidianas e coletivas, com a finalidade de mudar práticas de atenção e de gestão,
qualificando-as, engajando trabalhadores/as, gestores/as e usuários/as no processo de implementação
do trabalho.
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artigos
3) Considerar que, se não há um modo correto de fazer em saúde, tais modos devem ser
construídos a partir das especificidades de cada contexto, serviço, equipe de saúde, usuários/as
assistidos/as.
4) Entendendo os processos de trabalho como práticas pedagógicas, tais práticas são, assim,
“pertinentes ao tema da gestão e das condições concretas de trabalho” (Pasche, Passos, 2010, p.8).
5) As ações pedagógicas que se realizam nos espaços cotidianos dos serviços tendem a ser mais
potentes (Ceccim, 2005).
6) Os processos pedagógicos que tendem a fazer sentido para trabalhadores/as são aqueles que
partem dos problemas que estes/as enfrentam no cotidiano do trabalho e que levam em consideração
saberes e experiências que se construíram bem ali: no dia a dia do trabalho (e não somente nem
primeiramente os saberes oriundos dos laboratórios, das bibliotecas, das cadeiras da academia).
7) No planejamento das ações de formação, é importante partir do levantamento das necessidades
dos/as envolvidos/as, inclusive das demandas de usuários/as.
8) Incluir os/as profissionais envolvidos/as no fazer em saúde em todas as etapas do processo
formativo: planejamento, formulação das propostas, facilitação e avaliação. Ousando mais ainda, incluir
os diferentes sujeitos, seus saberes e experiências, inclusive usuários/as.
9) Produzir metodologias para os processos formativos que permitam a experimentação de um fazer
coletivo: oficinas de trabalho, rodas de conversa, discussão de filmes, reflexões a partir de falas e cenas
vivenciadas no serviço, músicas, poesias, literatura e outros artefatos culturais.
10) Produzir conexão entre formação técnico-científica e gestão nos processos de formação
construídos, no sentido de entender que a qualificação das práticas de saúde passa também por mudar
e qualificar processos de gestão.
Assim como ao Diego de Galeano (2006), a imensidão do mar saúde, trabalho em saúde, formação
em saúde, muitas vezes nos faz emudecer. O que nos autoriza a falar – mesmo que tremendo,
gaguejando e saindo dos mapas linguísticos e políticos habituais que costumam conduzir nossos corpos
a ‘boas’ práticas de saúde – é o encontro com os sujeitos (em suas sujeições e insurreições) que se
produzem por entre essas práticas: trabalhadores/as, gestores/as e usuários/as. Juntos/as, falamos,
ousamos outros dizeres e fazeres. Juntos/as, podemos resistir às tecnologias biopolíticas de condução
dos corpos, experimentando “um agir micropolítico e pedagógico intenso” (Ceccim, Merhy, 2009), por
meio do qual se desenrole o esboço de práticas pedagógicas de resistência que não são meramente
reativas em relação a um determinado exercício de poder, mas afirmativas de outros modos de
formação, outras formas de vida, (re)existências. Juntos/as, podemos, pois, produzir outras práticas de
saúde e outras práticas de si.
Colaboradores
As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.
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Referências
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CAIEIRO, A. O guardador de rebanhos. Lisboa: Dom Quixote, 1986.
CECCIM, R.B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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n.47, p.859-71, out./dez. 2013.
Proponemos la reflexión sobre prácticas de cuidado y de gestión en salud, entendiéndolas
como prácticas sociales ya existentes hace tiempo. Nos situamos en el cruce entre las
áreas de la educación y salud y, en ellas, de los estudios sobre el cuerpo, señalamos
prácticas de salud como pedagogías culturales a partir de las cuales se prescriben
determinados sentidos y conductas, pero también por medio de las cuales se construyen
sentidos y acciones inéditos que desplazan, bifurcan y ponen en tela de juicio tales
prescripciones. Dicho de otra forma, entendemos aquí el campo de la salud como un
territorio de enseñanza (formatos pedagógico-corporales) pero también de aprendizajes
(experimentaciones de formas singulares en el hacer y decir de la salud) y el cuidado y la
gestión de salud como un montaje (corporal) conflictivo entre formas de sujeción y fuerzas
de experimentación a partir de las cuales se tejen las prácticas de salud.
Palabras-clave: Educación permanente. Pedagogías culturales. Procesos de trabajo en
salud. Prácticas de salud. Cuerpo.
Recebido em 29/04/13. Aprovado em 05/10/13.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.859-71, out./dez. 2013
871
DOI: 10.1590/S1414-32832013005000028
artigos
Os domínios da Tecnologia Educacional no campo da Saúde
Grasiele Nespoli1
NESPOLI, G. The domains of Educational Technology in the field of healthcare.
Interface (Botucatu), v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013.
This article presents the results from a
study that aimed to understand the
discursive training of Educational
Technology and its relationship with the
historical, political and social context of
Brazilian healthcare reform, by means of
an analysis on the collection of the
Healthcare Educational Technology
Center of the Federal University of Rio de
Janeiro, which was created in 1972. Based
on Michel Foucault’s theoretical notions
of archeology, documents that made it
possible to identify pronouncements and
evaluate the discursive continuities and
discontinuities that characterized the
formation of domains of knowledge on
Educational Technology were selected
and analyzed. It was concluded that three
domains of knowledge were constituted:
programmed instruction, educationservice integration and healthcare
education. These bring into play different
pronouncements and enable passage
from a technical view to a critical view
that is committed towards construction of
the Brazilian National Health System.
Keywords: Educational technology.
Discourse. History. Health.
Este artigo apresenta os resultados de um
estudo que investigou a formação
discursiva da Tecnologia Educacional e
sua relação com o contexto histórico,
político e social da reforma sanitária
brasileira, por meio de uma análise do
acervo do Núcleo de Tecnologia
Educacional para a Saúde da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Com base em noções teóricas da
arqueologia de Michel Foucault, foram
selecionados e analisados documentos
que permitem identificar enunciados e
avaliar as continuidades e
descontinuidades discursivas que marcam
a formação de domínios de saber acerca
da Tecnologia Educacional. Conclui-se
que foram constituídos três domínios de
saber – instrução programada, integração
ensino-serviço e educação em saúde –
que colocam em disputa diferentes
enunciados e possibilitam a passagem de
uma visão tecnicista para uma visão crítica
comprometida com a construção do
Sistema Único de Saúde.
Palavras-chave: Tecnologia educacional.
Discurso. História. Saúde.
1
Laboratório de
Educação Profissional em
Gestão em Saúde, Escola
Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio,
Fundação Oswaldo Cruz.
Av. Brasil, 4365,
Manguinhos. Rio de
Janeiro, RJ, Brasil.
21040-360.
[email protected]
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013
873
OS DOMÍNIOS DA TECNOLOGIA EDUCACIONAL ...
Introdução
Híbrido de conceitos, o termo tecnologia faz referência, na atualidade: aos
conhecimentos científicos subjacentes ao processo produtivo, ao saber-fazer, às
técnicas, aos recursos, instrumentos e suportes físicos, materiais e midiáticos, aos
métodos de construção de um trabalho. Em seu sentido mais estreito, filológico: o
estudo da técnica, da arte, do conjunto de procedimentos que definem um fazer,
uma prática. Refere-se à nossa extensão no mundo material, nossos
desdobramentos, nossas criações históricas.
Articulada com saberes e práticas, a tecnologia ganhou diferentes referências.
No encontro com a educação, inscreveu-se, no século XX, o discurso da
Tecnologia Educacional, num contexto de crescente interesse pelo tema da
comunicação nos Estados Unidos da América (EUA) e de inovações técnicas
caracterizadas pela introdução do rádio, da televisão e do cinema no ensino.
Alguns pesquisadores (Litwin, 1997; Pablos Pons, 1994; Sancho, 1994) marcam a
origem do termo Tecnologia Educacional no início do século XX, no contexto da
Segunda Guerra Mundial, dos cursos de formação de militares e de
desenvolvimento de técnicas de adestramento comportamental. Época da máquina
de ensinar, que possibilitava uma nova forma de estudar, por meio da transmissão
e assimilação de conteúdos; uma máquina “para manter o aluno médio ocupado
por um período razoável todos os dias” (Skinner, 1972, p.22).
A Tecnologia Educacional emergiu como um discurso que enunciava o uso de
meios para o ensino e, depois, revigorado nos anos de 1970, como um conjunto
de procedimentos, técnicas e instrumentos integrados ao desenvolvimento do
sistema educacional. Ressignificada pela concepção sistêmica, a Tecnologia
Educacional passou a corresponder a uma maneira sistemática de organizar o
processo de ensino e aprendizagem em termos de objetivos e da combinação de
recursos humanos e materiais para resolver os problemas da educação. Com a
introdução da informática e com os avanços dela decorrentes, o campo de estudo
se deslocou para as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) e
passou a se interessar pela interação entre mente e tecnologia; e pelos efeitos em
termos de modificação dos referenciais de pensamento (Litwin, 1997). Houve um
deslocamento dos estudos para a compreensão dos processos de interação
possibilitados pelas redes informáticas, que alimentam “novas problemáticas para a
pesquisa pedagógica e psicológica, com um forte debate em torno da ampliação
da mente humana a partir do desenvolvimento de tecnologias inteligentes”
(Salomon, 1992 apud Maggio, 1997, p.18).
No Brasil, no início dos anos de 1970, diversos trabalhos foram publicados e um
conjunto de iniciativas, núcleos e projetos, sob o termo Tecnologia Educacional, foi
constituído. Nesse contexto, o Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde
(NUTES)1 foi criado em 1972, disparando uma série de produções que introduziram
o discurso da Tecnologia Educacional no campo da saúde, segundo condições
históricas que possibilitaram a construção e organização de séries de conceitos,
noções e pressupostos teóricos acerca dos meios, processos, métodos, instrumentos
e recursos desenvolvidos e usados nas ações e práticas de educação em saúde.
A criação do NUTES coincide com o momento de preocupação e implantação,
por parte da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), de centros formadores
de recursos humanos para a saúde e de desenvolvimento de materiais
instrucionais.
A OPAS defendia a Tecnologia Educacional como uma possibilidade de
aumento da eficiência e da produtividade dos sistemas de saúde, e, por isso,
implantou o Centro Latino-Americano de Tecnologia Educacional em Saúde –
874
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013
O NUTES foi aprovado
no Conselho
Universitário da
Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) em
julho de 1972, para
funcionar, inicialmente,
no âmbito do Instituto
de Biofísica e, depois,
como órgão suplementar
do Centro de Ciências
da Saúde (CCS), com o
compromisso de que as
novas tecnologias na
educação promoveriam
um aumento da
eficiência do trabalho
dos professores e uma
melhoria do processo
formativo na saúde
(Lent, 1980).
1
NESPOLI, G.
artigos
CLATES (Opas, Oms, 1983), que foi associado ao NUTES logo após sua criação (Opas, Oms, 1983;
Kalache, Coelho, 1974; Opas, Ufrj, 1973).
Desde sua origem, o NUTES se constitui de forma articulada com os movimentos internacionais,
nacionais e locais implicados com a reforma sanitária brasileira, colaborando com a produção de saberes
acerca da Tecnologia Educacional no campo da Saúde. Diante de sua posição singular – como instituição
de pesquisa, ensino e desenvolvimento tecnológico que promove uma interface entre os campos da
Educação e da Saúde –, este artigo apresenta os resultados de um estudo que objetivou compreender a
formação discursiva da Tecnologia Educacional na saúde e sua relação com o contexto histórico, político
e social da reforma sanitária e de construção do Sistema Único de Saúde.
O desenvolvimento do estudo foi ancorado em alguns pressupostos teóricos apresentados por
Michel Foucault, especialmente aqueles relacionados à arqueologia que se preocupam com a formação
de saberes ou de práticas discursivas. O saber, afirma Foucault (2009, p.204-5):
[...] é aquilo que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim
especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um
status científico [...] um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos
enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam [...] um
saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso [...]
não há saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se
pelo saber que ela forma.
A arqueologia é um método de descrição sistemática de um discurso-objeto, que busca
compreender o campo enunciativo como um lugar de acontecimentos, um domínio autônomo, embora
dependente de algo que não seja ele – seu contexto de formação. O campo enunciativo define os
lugares possíveis dos sujeitos falantes, dos que executam a função da enunciação. Por isso, para
Foucault, “não é mais preciso situar os enunciados em relação a uma subjetividade soberana, mas
reconhecer, nas diferentes formas da subjetividade que fala, efeitos próprios do campo enunciativo”
(Foucault, 2009, p.138).
De acordo com Foucault, todo enunciado compreende um campo de elementos que o antecede e
em relação ao qual ele se situa, o arquivo; mas os enunciados se reorganizam em novas relações. A
arqueologia observa o que torna certos enunciados possíveis; e mostra que o discurso não tem,
simplesmente, sentidos, mas história. Por isso, o arquivo não é um conjunto fechado de textos, nem os
aparatos físicos que o resguardam; é o que faz com que as coisas ditas pelos homens não tenham surgido
apenas segundo as leis do pensamento ou o jogo das circunstâncias, mas segundo o “sistema de
discursividade, às possibilidades e impossibilidades enunciativas que ele produz” (Foucault, 2009, p.147).
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento do
enunciado como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que
todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se
inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso
de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com
as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades
específicas. (Foucault, 2009, p.147)
Assim, o discurso não é uma unidade, um conjunto de elementos linguísticos, ou “simplesmente
aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por quê, pelo quê se luta, o poder
do qual nos queremos apoderar” (Foucault, 1996, p.10). Foucault devolve ao discurso seu caráter de
acontecimento, e, com ele, sua rarefação e sua dispersão, ainda que ele não seja imaterial, pois “é
sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito” (Foucault, 1996, p.57), “efeito de
e em uma dispersão material” (Foucault, 1996, p.58).
Com base nessas noções, foi realizada uma pesquisa documental, ultrapassando as preocupações
positivistas da prova exata, datada e verdadeira que fundamenta os fatos históricos (Foucault, 2009). O
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013
875
OS DOMÍNIOS DA TECNOLOGIA EDUCACIONAL ...
documento não representa algo autêntico, inócuo e objetivo que revela a verdade, ao contrário, é um
monumento que resulta de uma montagem, das relações de poder “da história, da época, da sociedade
que o produziram” (Le Goff, 2003, p.537). Desta forma, para se compreender a formação do discurso
da Tecnologia Educacional no campo da saúde, foram selecionados documentos que permitiram
identificar enunciados e avaliar as continuidades e descontinuidades discursivas, e sob quais domínios de
saber a Tecnologia Educacional se inscreveu no campo da saúde, historicamente.
O primeiro documento analisado foi um CD de comemoração dos trinta anos da instituição, que
copila grande parte de sua produção, de 1972 a 2003 (NUTES, 2003). Com base nesse CD, foi possível
observar um conjunto de documentos que apresenta a formação histórica do discurso acerca da
Tecnologia Educacional no campo da Saúde. Tal produção estava organizada numa divisão em três fases
do NUTES: da sua criação, em 1972, até 1983, ano de encerramento do CLATES; de 1983, momento
em que sua produção orienta-se para as mudanças induzidas pelo movimento de reforma sanitária, até
1996; quando foi implementado o Programa de Pós-graduação com curso de mestrado que inaugurou a
terceira e atual fase, que ampliou significativamente seu espectro de produção científica.
Num segundo momento, a pesquisa se concentrou no acervo do NUTES, organizado em uma
biblioteca própria que guarda um volume significativo de obras. O contato com esse variado acervo
requisitou uma seleção dos documentos e, assim, foram levantados, descritos e analisados textos que
elaboram uma reflexão teórica sobre o objeto em questão, em formato de artigos, livros, dissertações,
teses, relatórios e normas técnicas. A seleção não abrangeu os produtos e materiais educativos
resultantes dos projetos desenvolvidos pelo NUTES, mas os documentos que refletem sua produção. Foi
preciso, também, investigar documentos externos ao acervo, que situam os elementos que antecedem
o campo enunciativo e configuram o arquivo ou as coisas efetivamente ditas; que asseguram e definem
a existência de práticas discursivas e saberes acerca da Tecnologia Educacional, e sua inflexão na saúde.
Vale ressaltar que, durante o processo de pesquisa, foi difícil elaborar uma reflexão sobre a formação
discursiva da Tecnologia Educacional na saúde sem a relacionar à história do NUTES e sem seguir a
ordem cronológica de datas e fatos que delimitam sua produção. Contudo, esses limites foram
revertidos em dispositivos metodológicos que definem, num primeiro plano, o NUTES como um lugar
de apropriação, organização e difusão de um discurso; e, num segundo plano, a ordem cronológica
como uma forma de expor o contínuo e o descontínuo como elemento de análise.
A organização e a análise das séries de documentos foram orientadas, então, pelas três fases que
caracterizam a produção do NUTES; e foi possível observar que essas fases, além de se desdobrarem de
mudanças no contexto político, social e institucional, culminaram na formação de três domínios de
saber, identificados neste estudo como: instrução programada, integração ensino-serviço e educação em
saúde. Assim, seguindo a ordem cronológica que delimita as três fases do NUTES, este estudo, por
meio de um método descritivo, mostra que “falar é fazer alguma coisa” (Foucault, 2009, p.235); e, por
meio de um método analítico, sintetiza os enunciados, isto é, os elementos que se repetem ou as
formulações que expressam a positividade do discurso. São apresentados, nas seções abaixo, os três
domínios de saber e os enunciados que os sustentam. Ao final, na conclusão, apresenta-se uma
reflexão sobre as continuidades e descontinuidades discursivas, e sobre as formas como o discursivo (o
saber) se articula com o não-discursivo (o poder), gerando mecanismos de governo da vida.
A instrução programada
Na origem do NUTES, o discurso da Tecnologia Educacional se articulava à necessidade de formação
de trabalhadores como capital humano para uso e aproveitamento pleno no progresso econômico. Os
documentos enfatizavam que o desenvolvimento de recursos humanos deveria estar vinculado ao
planejamento econômico e social do país, visando a elevação do nível de vida da população. A
tecnologia seria a solução para os problemas da educação e, a Instrução Programada, a solução para
formar em quantidade e qualidade.
O primeiro enunciado que se forma em torno da Tecnologia Educacional é o da individualização da
aprendizagem para a adequação do ensino às necessidades de cada aluno. E esse enunciado, articulado
com o discurso do capital humano, prescreve as necessidades do ponto de vista das competências para a
876
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013
NESPOLI, G.
artigos
inserção no mercado de trabalho. Assim, a adequação do trabalhador (indivíduo) ao sistema produtivo
soma-se ao primeiro enunciado. Para adaptar o ensino (com tempo de aprendizado variável, flexibilidade
de currículos e métodos instrucionais) às características de cada aluno, a instrução programada é uma
estratégia que atua por meio da fixação de objetivos claros e precisos, do desenvolvimento de recursos
instrucionais diversificados, e do bom treinamento dos professores (Lobo, 1974).
O discurso constitutivo do NUTES supõe que o ensino é inovador porque se volta para o aluno; é
ativo porque usa, como técnica principal, a autoinstrução, no lugar das aulas expositivas e dos trabalhos
em grupo, e porque dispõe de um conjunto diversificado de recursos instrucionais. Coloca o aluno no
centro do processo educativo e altera a concepção de homem do ensino convencional, o homemreceptor de informações, para a de um homem-processador de dados, “o que torna a instrução mais
orientada para os mecanismos lógicos de análise, avaliação, compatibilização e síntese de informações”
(Lobo, 1974, p.143). O homem-processador de dados enfrenta problemas, propõe e compatibiliza
hipóteses com as informações disponíveis, solicita dados adicionais, observa os resultados, revê e gera
novas hipóteses de solução dos problemas.
Assim, a Tecnologia Educacional deve auxiliar o homem no processo de desenvolvimento de
modelos mentais e de estratégias de aprendizagem. Essa sentença reforça que o problema da educação
é a aprendizagem, os modelos e caminhos cognitivos, ou como se aprende melhor o conteúdo
planejado e orientado para adaptar o homem ao mundo do trabalho.
O domínio da instrução programada fundamentou a maioria significativa dos projetos na primeira
fase do NUTES, agenciando a formação de estudantes dos cursos da saúde e dos trabalhadores
contemplados pelos programas e sistemas desenvolvidos. Os cursos eram organizados em módulos,
com divisão do conteúdo segundo os objetivos de aprendizagem (competências), formando etapas para
facilitar o domínio de uma unidade de instrução antes de passar para as subsequentes, com
procedimentos diagnósticos para fornecer feedback sobre a adequação da aprendizagem com ajudas
tutoriais ou com atividades em pequenos grupos.
Articulada num feixe de enunciados, a instrução programada opera por repetição e reforço,
reproduzindo o mesmo conteúdo em diferentes suportes e processos, sem considerar as particularidades
dos contextos, massificando e homogeneizando o processo educativo. No caso da produção do NUTES,
o conteúdo, inserido no contexto de formação para a expansão da rede de serviços de saúde da atenção
primária, continuou reproduzindo, muitas vezes, a racionalidade biomédica, por meio da transmissão de
informações que enfatizam uma concepção de saúde como ausência de doença – o que acarreta uma
prática voltada para a assistência curativa e para a medicalização; e não para uma atuação sobre os
determinantes sociais e econômicos do processo saúde e doença.
Sob o domínio da instrução programada, o discurso da Tecnologia Educacional foi difundido como
modelo formativo no campo da saúde até o final dos anos de 1970, quando as experiências entraram
em crise em função da ineficiência dos projetos e da insuficiência das respostas aos problemas da
educação. As experiências apontaram que a lógica de organização do conteúdo em módulos, além de
requerer um esforço e um consumo significativo de tempo, impedia um aprofundamento científico e a
coerência com a realidade dos diferentes países e regiões. Como consequência, a reprodução e
distribuição de recursos autoinstrucionais não resolveram os problemas da formação nem possibilitaram
uma capacidade crítica de agregar novos conhecimentos (Rodriguez Neto, Carrillo, Souza, 1979). No
contexto da luta pela redemocratização do país, os recursos autoinstrucionais passaram a ser abordados
como instrumentos de reprodução dos ideais capitalistas e de um modelo de desenvolvimento que
opera pela desigualdade social do trabalho. Esse movimento provocou uma fissura no modelo da
instrução programada, que foi preenchida pela importância do trabalho no campo da educação em
saúde. Com essa fissura, a Tecnologia Educacional desloca-se para outro domínio, o da integração
ensino-serviço.
A integração ensino-serviço
Nos anos de 1980, a crise do discurso tecnicista e o fracasso dos grandes projetos de Tecnologia
Educacional possibilitaram a emergência de concepções que colocaram em curso outros enunciados
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013
877
OS DOMÍNIOS DA TECNOLOGIA EDUCACIONAL ...
preocupados com os propósitos e finalidades da educação no contexto do movimento sanitário
brasileiro.
O novo projeto para a saúde pública trouxe, em seu bojo, um pensamento crítico que buscava
romper a hegemonia da medicina previdenciária, de cunho curativo e individual, e das práticas sanitárias
de controle, higienização e medicalização dos corpos.
A luta pela construção de um sistema público de saúde repercutiu numa necessária mudança das
concepções de educação em saúde, que passaram a abordar a tecnologia como um componente
inseparável das forças produtivas que só opera na união com outro componente: o homem. O que
significa que, sem a atividade humana, a tecnologia seria uma coisa morta. Possuindo uma dimensão
humana, a tecnologia é condicionada pelos conhecimentos científicos que dão forma a um determinado
campo de práticas. A ciência, por sua vez, é condicionada pelas forças produtivas, por fatores externos
ao método científico, como: a fixação de prioridades, a política de financiamento, as possibilidades de
divulgação e de acesso (Rodriguez Neto, Carrilo, Souza, 1979).
Para mudar a realidade de saúde, os objetivos educativos, especialmente aqueles dirigidos à formação
profissional, precisam, então, estar relacionados com o trabalho que deve ser realizado, mas, acima de
tudo, transformado. Assim, o planejamento curricular deixa de ser pensado na perspectiva da Instrução
Programada e das etapas nela embutidas, e passa a ser uma estratégia de transformação da realidade da
saúde. Organiza-se um enunciado que afirma que a Tecnologia Educacional não pode ser incorporada
como um fim em si mesmo, senão como um meio de melhorar a educação e as práticas de saúde.
Nessa passagem, o dispositivo que passa a figurar no âmbito dos projetos do NUTES nos anos de
1980 é a integração ensino-serviço, entendida como um processo social vinculado ao desenvolvimento
da sociedade, que deve formar as profissões de acordo com as necessidades de prestação de serviços,
com participação da comunidade e mantendo a individualidade das instituições (de ensino e assistencial)
com clareza das responsabilidades de cada uma. O domínio de integração ensino-serviço tem base no
movimento e nas experiências da medicina integral, preventiva e comunitária, que abriram uma
contestação da prática médica hegemônica em relação à insuficiência do modelo altamente
especializado, com ênfase numa concepção biológica da saúde e da doença, sem relação com o
contexto e as necessidades de vida das populações e comunidades (Rodriguez Neto, 1979). Na
contramão do modelo flexneriano de formação médica, foi proposto um modelo que integra os serviços
de saúde, por meio de programas de residência, treinamento clínico, formação de médicos generalistas
e integração com a comunidade. No contexto da reforma sanitária brasileira, essa perspectiva ganhou
força com a institucionalização do Programa de Integração Docente-Assistencial.
Como uma alternativa para a formação na saúde, a Integração Docente Assistencial implica um
conceito de processo ensino-aprendizagem centrado “em vivências práticas na realidade concreta”
(Rodriguez Neto, 1979, p.39). Assim, estudantes, docentes, profissionais de saúde e comunidade
trabalham de forma articulada, com novas orientações para os serviços, em torno, sobretudo, da
regionalização do sistema de saúde.
A necessidade de uma vinculação estreita com o trabalho favorece o estabelecimento de
uma pedagogia onde a dinâmica da teoria e prática seja vista como o princípio básico para
organização do ensino-aprendizagem, fugindo, deste modo, dos esquemas tradicionais em
que a maioria de nós fomos formados. (Souza et al., 198-, p.1)
Assim, a integração ensino-serviço ou, de forma ampla, educação-trabalho, foi apresentada como
um meio de formação técnica, social e política que se articula com a organização de ações em
programas de combate a doenças como: a tuberculose, a hanseníase, a hipertensão arterial, o câncer e
a aids. Decorre, dessa perspectiva, a elaboração de programas de ensino com base nas ações de saúde
e nos procedimentos que devem ser sistematizados em conteúdos para capacitar os profissionais no
serviço. Desta forma, o conteúdo deve ser extraído da necessidade prática e organizado de maneira
lógica, flexível e adaptável, definindo “os procedimentos correspondentes às ações que se quer
trabalhar” (Souza et al., 198-, p.9).
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013
NESPOLI, G.
artigos
Quanto ao discurso da Tecnologia Educacional, ele foi vinculado estreitamente ao processo de
produção de materiais educativos (da concepção à avaliação e recepção), que deve ser participativo e
democrático. Assim, a produção de Tecnologia Educacional deve levar em conta a diversidade de
olhares sobre os problemas e o envolvimento de todos como participantes comprometidos com a
transformação da realidade, por meio do diálogo, da discussão e do trabalho. Nesse sentido, o sujeitoaprendiz é um trabalhador e a educação passa a ser definida como a fonte de qualificação para o
trabalho e o trabalho entendido como meio de produção do homem.
O domínio da integração ensino-serviço foi fundamental para estreitar as relações entre as
instituições formadoras e os serviços de saúde, e ainda permanece como uma importante prática no
campo de formação do trabalhador. No entanto, essa integração sozinha não é suficiente como
estratégia de mudança da formação e do trabalho na saúde; daí surge uma diversidade de propostas que
se somam para dar conta da complexidade que é instituir práticas de educação em consonância com os
princípios do SUS e com um trabalho pautado no cuidado e na defesa da vida.
A educação em saúde
A partir de 1990, a produção de conhecimento no campo saúde desdobrou-se tanto quanto as
políticas e iniciativas em busca de práticas orientadas para a mudança do modelo de atenção e de
gestão. Em relação às tecnologias educacionais, multiplicaram-se os objetos e cenários de produção de
saberes e práticas, pois múltiplos também são os desafios colocados ao SUS. Assim, novos olhares
emergem e formam uma rede discursiva em torno dos processos, métodos e recursos educacionais na
saúde. São fragmentos que se unem, que absorvem saberes anteriores, que os modificam e inauguram
novas problemáticas. Foi neste contexto que a produção discursiva do NUTES atravessou e evidenciou
um terceiro domínio, o da Educação em Saúde.
Os saberes passaram a situar a educação como processo social, construído no diálogo, nas relações e
trocas de experiências e sentidos entre as pessoas (Struchiner et al., 1998). Essa posição afirma que as
relações educativas, mediadas por tecnologias, são construtoras do conhecimento e devem, portanto,
estar comprometidas com a transformação da sociedade. Nesse sentido, o quadro teórico que se
apresenta possui variáveis conceituais, contempla uma pluralidade de ideias, leva em conta os
fundamentos da teoria crítica, apresenta o construtivismo como concepção pedagógica e o trabalho
como princípio educativo no campo da saúde (Nutes, 1998).
A visão crítica reclama formas mais democráticas de participação e de construção do currículo como
um processo de produção do conhecimento e de exercício da autonomia dos sujeitos nas relações de
poder. Com a consolidação das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação na área da
saúde, a partir de 2001, ficou mais evidente a necessidade de mudança na formação dos profissionais
de saúde de forma conjugada com a construção do SUS; e reafirmou-se a importância de articulação
entre as instituições formadoras e os serviços de saúde, especialmente no campo da atenção básica.
A reforma curricular condizente com o SUS implica entender que o “cuidado, e não mais a
assistência, deve conjugar ações de prevenção de doenças, promoção da saúde, além da cura e da
reabilitação – todas exigindo pluralidade de saberes – e o trabalho em equipe interdisciplinar e
multiprofissional, preferencialmente em rede” (Ciuffo, Ribeiro, 2008, p.126). A noção de cuidado no
lugar da assistência (que corresponde ao conjunto de intervenções disponíveis no sistema para
responder uma queixa ou um sintoma) é um reforço à dimensão interativa e relacional que envolve o
trabalho na saúde, que deve, por sua vez, compreender: o acolhimento, a escuta, o respeito e o
reconhecimento das histórias e dos contextos de vida dos sujeitos (Ciuffo, Ribeiro, 2008).
Assim, as competências profissionais no âmbito do SUS devem ultrapassar a excelência técnica e
incluir as dimensões socioeconômicas e culturais no enfrentamento dos problemas de saúde com foco
na atenção primária (Ribeiro, 2005). Nessa perspectiva, é preciso inverter a lógica que enuncia que
“primeiro se aprende para depois trabalhar” (Ribeiro, 2005, p.93) – o que implica uma mudança dos
métodos e processos educativos de forma a alterar a realidade, as concepções e o ato educativo. A
noção de inovação é, então, reapresentada como “o que se opõe ao tradicional” (Saviani apud Ribeiro,
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2005, p.96), numa perspectiva dialética que se interessa pelo homem concreto. Inovar significa,
portanto, “introduzir algo novo que altera, de alguma forma, o antigo, abalando sua composição original
sem, contudo, alterá-lo estruturalmente” (Ribeiro, 2005, p.96).
No domínio da Educação em Saúde, o trabalho continua sendo compreendido como categoria
fundamental, seja no âmbito da docência ou da assistência que, no caso da saúde, possuem estreita
conexão. Ou seja, além da questão do conhecimento puramente teórico, estamos diante da presença
de uma prática que é, ela mesma, cenário e objeto de conhecimento, e que comporta, também,
múltiplas dimensões – técnicas, políticas e ideológicas – que se definem socialmente. Desta forma, as
instituições de ensino e as assistenciais, por intermédio do trabalho, podem reproduzir as racionalidades
hegemônicas ou constituir espaços de transformação e criação de novas racionalidades, saberes e
práticas. A ênfase no trabalho como princípio educativo e transformador do mundo ressignifica a
Tecnologia Educacional, enunciada, agora, como uma dimensão dos saberes e práticas que promove
mediações entre os sujeitos (e entre sujeitos e objetos) em contextos educativos.
Ao se fortalecer o enunciado que define a Tecnologia Educacional como um dispositivo de
mediação, ampliam-se os estudos acerca da integração e uso das tecnologias de informação e
comunicação nos processos de educação em saúde. Entende-se que os materiais ou tecnologias
educativas produzem mediações simbólicas que regulam e constituem subjetividades, por isso, deslocase o foco dos estudos dos meios para a recepção das mensagens, no processo de interação dos sujeitos,
que atribuem significados e sentidos às coisas: ao corpo, à sexualidade, à morte, à saúde, à doença, à
velhice, à identidade profissional, à educação, à prática docente. Assim, enuncia-se que as tecnologias
são constitutivas dos sujeitos e das coisas.
Todavia, a dimensão educativa dos meios se assegura no diálogo e na problematização que
despertam. Em relação à saúde, a problematização envolve tanto a prática educativa quanto as
assistenciais e, particularmente, dirige-se à:
problematização do modelo biomédico, então, como primeiro passo para a construção do
objeto na área da saúde, implica questionar suas possibilidades, apontar seus limites,
suspeitar da sua contribuição por muitos considerada absoluta na formação dos
profissionais da área e, quem sabe, colocar como uma primeira questão se este modelo da
conta de compreender o homem na sua totalidade... (Magalhães et al., 1999, p.172)
Nesse sentido, o discurso da Tecnologia Educacional, ao se inserir no domínio da Educação em
Saúde, sofre um alargamento conceitual. A Educação em Saúde constitui um campo interdisciplinar de
saberes e práticas implicado com a melhoria das condições e da qualidade de vida da população, um
campo em formação constante e permeado por diferentes objetos e por disputas conceituais e políticas;
que se preocupa, sobretudo, em instituir práticas comprometidas com a construção do SUS como um
sistema de saúde universal, democrático e equânime.
Os saberes, nesse domínio poroso e multifacetado, se desdobram de políticas, programas e projetos
de educação em saúde que se formam no contexto e na rede do SUS, e de uma sociedade onde as
tecnologias se complexificam, se acumulam, se convergem, se expandem e atuam por mediação. A
Tecnologia Educacional é então afirmada como um meio, uma possibilidade, sempre ambivalente, de
construção da realidade.
Conclusão: a passagem entre os três domínios
O NUTES, como instituição, se articula com o arquivo da educação e da saúde e, como um lugar
discursivo, comporta enunciados que “remetem a um meio institucional sem o qual os objetos surgidos
nesses lugares do enunciado não poderiam ser formados, nem o sujeito que fala de tal lugar” (Deleuze,
2005, p.21). De seus documentos, foi possível extrair uma leitura que mostra como a formação
discursiva da Tecnologia Educacional na Saúde passou por diferentes contextos e se inscreveu em três
domínios de saber, sustentados por diferentes enunciados.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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NESPOLI, G.
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artigos
O primeiro domínio, o da instrução programada, pressupõe que os problemas da educação podem
ser resolvidos com a utilização de tecnologias qualificadas para atender um grande número de alunos/
trabalhadores de forma individualizada. A instrução programada configurou-se como um mecanismo de
individuação, uma técnica de produção de normas e de condução de comportamentos. Sua base
behaviorista prevê a Tecnologia Educacional como uma forma de bom adestramento, por meio da
autoinstrução, que atua como um mecanismo de governo de si. Prevalece uma visão tecnicista, em que
a preocupação recai sobre os meios e métodos para se aprender melhor os conteúdos previamente
definidos para a inserção no mundo do trabalho, um mundo quase inerte.
O segundo domínio, o da integração ensino-serviço, situa o trabalho como eixo e referência principal
para a formação; não mais uma forma inerte, o trabalho é o fundamento, é o princípio educativo capaz
de transformar a realidade da saúde. Nesse sentido, os objetivos educativos precisam estar relacionados
com o trabalho, mas não somente com sua dimensão técnica e instrumental, sobretudo política e
organizacional. A Tecnologia Educacional serve como mediadora no processo de construção de ações de
saúde, assentando-se com os preceitos do SUS, especialmente o de integralidade, que desafia a
organização das práticas de atenção e cuidado no sentido de atender o conceito ampliado de saúde e,
consequentemente, as necessidades integrais do ser humano. Aponta-se uma outra abordagem que, de
alguma forma, incorpora e modifica a anterior. Ficam os objetivos de aprendizagem definidos em termos
de competências, a ativação do aluno por meio da resolução de problemas, a seleção de conteúdo e a
avaliação de acordo com os objetivos; mas mudam as competências, o processo e o espaço de ensino e
aprendizagem. As competências voltam-se para um trabalhador capaz de atuar na construção do SUS, e o
espaço-tempo educativo desloca-se da sala de aula e do terminal de computador para os serviços de
saúde. E, no lugar da autoinstrução e da individualização da aprendizagem, afirmam-se o coletivo, a troca
e o diálogo entre os sujeitos-trabalhadores.
O terceiro domínio, o da educação em saúde, é caracterizado pela variedade de objetos, contextos
e olhares sobre os meios, processo, métodos e recursos – materiais e simbólicos – que operam na
relação entre educação e saúde. Assim, a Tecnologia Educacional não se estrutura mais pela divisão em
módulos e pela organização dos conteúdos em grau crescente de dificuldade, e os pressupostos do
behaviorismo cedem lugar ao construtivismo, que “volta-se para as formas de facilitar o processo
construtivo de aprendizagem” e “leva a uma abordagem muito mais centrada na provisão de
experiências de aprendizagem ao aluno do que no planejamento da instrução” (Rezende, 2000, p.11).
A tecnologia passa a ser percebida, de forma geral, como um modo de realização do homem e de
transformação do mundo, de forma específica, como uma forma de construção de novos processos
educativos no contexto do SUS.
No entanto, o fato de o discurso estar, na atualidade, imerso no domínio da Educação em Saúde, não
garante que as práticas consigam superar as dificuldades inerentes ao sistema capitalista, maquínico, que
se firma na separação entre política e técnica, entre aqueles que sabem e os que executam, entre os
incluídos e os excluídos. O próprio NUTES, em seus documentos, adverte que as práticas sociais
continuam operando pela polarização de componentes que, para um conhecimento sólido, devem ser
indissociáveis; e os processos educativos, sobretudo no campo da formação profissional em saúde, ainda
se organizam em disciplinas e em especializações. As metodologias são simplificadas, burocratizadas e
restritas à ordem técnica de modelos importados alheios à necessidade do contexto brasileiro. E, no que
tange ao currículo no campo da saúde, por exemplo, “há décadas acalenta-se um discurso de
mudanças, mantendo-se quase intocável o modelo flexneriano – biológico, individualista, especializado”
(NUTES, 1995, p.4).
Discursos e práticas implicados com a participação coletiva e com a autonomia do trabalhador na
construção de seu itinerário formativo e profissional ainda são minoritários, e, muitas vezes, são
capturados pela lógica dominante que embute esses fatores a favor da manutenção da desigualdade
social expressa no mundo do trabalho. A construção do SUS constitucional enfrenta diversos desafios, de
ordem social, econômica, política, cultural e tecnológica, desafios que são sedimentados em camadas,
cristalizando estruturas.
Contudo, ainda que existam continuidades, a passagem entre os três domínios de saber marca uma
ruptura significativa, de uma visão tecnicista, que se formou no contexto do governo militar e da teoria
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OS DOMÍNIOS DA TECNOLOGIA EDUCACIONAL ...
do capital humano, para uma visão crítica, que se formou no contexto do movimento da reforma
sanitária brasileira e de constituição do SUS. Hoje, prevalecem, nos documentos do NUTES, enunciados
que reforçam a tecnologia como uma forma de pensar e fazer o mundo. Uma vez que possui dimensão
política, econômica e social, a tecnologia deve ser compreendida na relação com o homem e de forma
articulada com os desafios da saúde pública, especialmente os relativos à reorientação do modelo de
organização das práticas, que devem fundamentar-se nos princípios constitucionais defensores da saúde
como um direito de cidadania e da atenção como uma ação universal e integral.
Além disso, pode-se afirmar que os três domínios não operam, necessariamente, de forma separada;
eles se atravessam e reativam componentes de outro domínio, como o trabalho, componente comum
na integração ensino-serviço e na educação em saúde. O tempo de cada domínio também não é regido
por sucessão, pois os domínios podem conviver, em níveis diferentes de força, no mesmo tempo e
espaço, como a Educação em Saúde, que começou sua inscrição no NUTES ainda no final dos anos de
1970, mas que não teve, naquele momento, a “lei de raridade do discurso” (Foucault, 2009, p.135) a
seu favor; foi preciso um acontecimento, a luta pela reforma sanitária, para que uma passagem fosse
aberta. A luta pela reforma sanitária foi o movimento criativo necessário para reanimar a história.
Os três domínios são constituídos na relação entre o discursivo e o não-discursivo, o que significa
que eles operam por relações de poder. Desta forma, os domínios da integração ensino-serviço e da
educação em saúde não escapam dos mecanismos de individuação e totalização que tomam os corpos
individual e social como objetos de investimento. Em todos os domínios, o corpo é individualizado e
classificado como “o aluno, o escolar, o aprendente” (Gadelha, 2009, p.178) e socializado como
objeto, como mão de obra, força de trabalho, já que este é um mecanismo necessário ao
funcionamento das sociedades capitalistas. Ainda que não correspondam mais aos rígidos regimes
disciplinares, as tecnologias educacionais, distribuídas no tempo e no espaço, atuam por meio da
governamentalidade, uma espécie de governo da população que consiste em gerir os indivíduos e
dispor as coisas corretamente (Foucault, 2001). Assim, nas escolas, nos serviços de saúde, nos
ambientes virtuais de aprendizagem, as relações transitam, contraditoriamente, em processos de
dominação e liberdade.
Por estarem implicadas com a constituição da existência humana, as tecnologias educacionais
aportam uma dimensão biopolítica que estabelece uma norma, um padrão: apto ou não apto, ajustado
ou desajustado, motivado ou desmotivado (Gadelha, 2009). O controle, estendido à vida, envolve ações
educativas e de saúde que incidem sobre a população para normalizá-la e torná-la homogênea,
massificada e compacta, num mundo de inovações tecnocientíficas onde a vida humana tornou-se alvo
do capital, “o capital por excelência” (Pelbart, 2003, p.82). Deste modo, no contexto da sociedade de
controle (Deleuze, 2008), as tecnologias educacionais tornam-se, em muitos casos, dispositivos que
estendem o tempo do trabalho para o tempo da vida, subsumindo o trabalho, a cultura e a própria vida
ao tempo da produção.
Assim, é num mundo onde “a defesa da vida tornou-se um lugar comum” (Pelbart, 2003, p.13),
onde a linguagem foi dissecada e a subjetividade esvaziada, que as tecnologias na educação devem ser
pensadas: na relação paradoxal e contraditória em que se confundem linhas de dominação e liberação.
E, neste sentido, a saúde deve ser percebida como um vetor, uma resultante da relação maior que as
tecnologias educacionais estabelecem com a organização da vida. Isso significa colocar a saúde sob a
perspectiva ética, relativa à construção do mundo em que vivemos, e de nós mesmos. Isso significa
pensar a saúde também como efeito da conjugação de saberes e práticas, como efeito das tecnologias.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013
NESPOLI, G.
artigos
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Interface (Botucatu), v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013.
Este artículo presenta los resultados de un estudio cuyo objetivo fue comprender la
formación discursiva de la Tecnología Educativa y su relación con el contexto histórico,
político y social de la reforma sanitaria brasileña, por medio de un análisis del acervo
del Núcleo de Tecnología Educativa para la Salud de la Universidad Federal de Río de
Janeiro, creado en 1972. Con base en nociones teóricas de la arqueología de Michel
Foucault se seleccionaron y analizaron documentos que permiten identificar
enunciados y evaluar las continuidades y discontinuidades discursivas que determinan
la formación de dominios del saber sobre la Tecnología Educativa. Se concluye que se
constituyeron tres dominios del saber: instrucción programada, integración enseñanza
servicio y educación en salud, que constituyen una disputa entre diferentes enunciados
y posibilitan el paso de una visión tecnicista para una visión crítica comprometida con
la construcción del Sistema Único de Salud.
Palabras clave: Tecnología educacional. Discurso. Historia. Salud.
Recebido em 16/04/13. Aprovado em 08/09/13.
884
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.873-84, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/S1414-32832013005000027
artigos
A inserção do profissional de educação física
na atenção primária à saúde e os desafios em sua formação
Denise Mourão Falci1
Soraya Almeida Belisário2
FALCI, D.M.; BELISÁRIO, S.A. The position of physical education professionals within
primary healthcare and the challenges in their training. Interface (Botucatu), v.17,
n.47, p.885-99, out./dez. 2013.
The presence of physical education
professionals within Family Health
Support Centers has shown the weakness
of their training regarding primary care.
The aim of this article was to analyze
these professionals’ training to work in
primary care, in Minas Gerais. This was a
qualitative exploratory investigation, of
case study type. Data were collected
through focus groups. The results
showed that their presence is positive for
the profession and for the healthcare
services, but indicated that there are some
difficulties. Among these, undergraduate
training was mentioned as insufficient for
working in primary care. Postgraduate
training was identified as one strategy for
minimizing this insufficiency.
A inserção do profissional de Educação
Física no Núcleo de Apoio à Saúde da
Família evidenciou a fragilidade de sua
formação para a atenção primária.
Objetivou-se analisar sua formação para
a inserção neste campo, em Minas Gerais.
Trata-se de pesquisa qualitativa e
exploratória, do tipo estudo de caso. Os
dados foram obtidos utilizando-se
grupos focais. Os resultados apontaram
essa inserção como positiva para a
profissão e para os serviços de saúde,
porém indicaram algumas dificuldades,
dentre elas, a graduação foi mencionada
como insuficiente para atuar na atenção
primária. A pós-graduação foi
identificada como uma das estratégias
para minimizar essa insuficiência.
Keywords: Physical education and
training. Primary healthcare. Support
Center for Family Health. Human
resources formation. Family health.
Palavras-chave: Educação física e
treinamento. Atenção primária à saúde.
Núcleo de Apoio à Saúde da Família.
Formação de recursos humanos. Saúde da
Família.
Escola de Saúde Pública
do Estado de Minas
Gerais. Rua Direita, nº
70, Centro. Diamantina,
MG, Brasil. 39100-000.
denisemfalci@
yahoo.com.br
2
Departamento de
Medicina Preventiva e
Social, Faculdade de
Medicina, Universidade
Federal de Minas Gerais.
1
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.885-99, out./dez. 2013
885
A INSERÇÃO DO PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA ..
Introdução
A Saúde da Família (SF) é a estratégia prioritária para a expansão e consolidação da Atenção Primária
à Saúde (APS) (Brasil, 2011b), sendo operacionalizada mediante a implantação de equipes
multiprofissionais compostas por médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde e auxiliares de
enfermagem.
Objetivando apoiar essa estratégia na rede de serviços e ampliar a abrangência e o escopo das ações
das equipes, foi criado o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) pela Portaria 154, de 24 de janeiro
de 2008. Desde então, outros profissionais foram formalmente inseridos na APS, dentre eles o
Profissional de Educação Física (PEF) (Brasil, 2008).
A partir do reconhecimento da importância da atividade física para a promoção da saúde e prevenção
de doenças crônico-degenerativas, importantes causas de morbimortalidade no Brasil, houve, ainda que
de forma incipiente, o aumento da demanda pelos PEF na APS, o que evidenciou a fragilidade de sua
formação para a área (Bonfim, Costa, Monteiro, 2012; Pasquim, 2010).
Na tentativa de tornar a formação dos profissionais de saúde consonante aos princípios e diretrizes
do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde e da Educação vem desenvolvendo e apoiando
ações na graduação e na pós-graduação, destacando-se a homologação, em 2004, das Diretrizes
Curriculares Nacionais (DCN) do curso de graduação em Educação Física (EF). Essas diretrizes preveem
formação de profissionais capazes de avaliar a realidade social e nela intervir por meio das manifestações
e expressões do movimento humano (Brasil, 2004).
Nesse contexto, algumas Instituições de Ensino Superior (IES) promovem mudanças curriculares para
aproximar a formação das diretrizes. Essas mudanças, ainda insuficientes, tornam necessária a formação
pós-graduada para minimizar essa deficiência (Costa et al., 2012; Anjos, Duarte, 2009; Brugnerotto,
Simões, 2009).
Quanto à pós-graduação, destaca-se, aqui, o Curso de Especialização em Atenção Básica em Saúde
da Família da Universidade Federal de Minas Gerais (CEABSF/UFMG), gerenciado pelo Núcleo de
Educação em Saúde Coletiva (NESCON), o qual é ofertado na modalidade a distância e em escala. Esse
curso lato sensu foi implantado em 2008, para atender a uma demanda do Ministério da Saúde de formar
profissionais (médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas) formalmente vinculados à SF de Minas Gerais.
A parceria do CEABSF com o Conselho Regional de Educação Física da 6ª região/ Minas Gerais
(CREF6/MG), a Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO)/UFMG e o
Laboratório do Movimento/UFMG resultou em uma oferta especial dirigida ao PEF: a turma Épsilon.
Nesse processo, o Laboratório do Movimento intermediou o vínculo entre o NESCON e a EEFFTO, a
qual assumiu o CEABSF como projeto institucional e elaborou conteúdos específicos à EF. Já o CREF6/
MG publicou esse material, divulgou a especialização entre seus membros, e colaborou
operacionalmente para os encontros presenciais. Essa parceria resultou em uma experiência pioneira
para a formação do PEF.
Assim, este artigo objetivou analisar a formação do PEF para sua inserção na APS, em Minas Gerais,
a partir da visão de diferentes atores envolvidos no processo.
Método
Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa e exploratória, do tipo estudo de caso. Conforme
critérios descritos por Yin (2005), esta pesquisa é classificada como estudo de caso, visto que se
pretendeu responder questões do tipo “como” e “por que”, e por ter se trabalhado sobre eventos
contemporâneos, em situações que os comportamentos não podem ser manipulados.
Para a coleta de dados, utilizou-se de grupo focal e entrevista semiestruturada. Foram realizados
dois grupos focais, compostos por PEF, alunos do CEABSF, sendo constituídos por sete e oito integrantes
– números coerentes com o sugerido pela literatura (Carlini-Cotrim, 1996). Os alunos foram
selecionados segundo os critérios: possuir experiência na APS e estar em fase final do curso.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.885-99, out./dez. 2013
FALCI, D.M.; BELISÁRIO, S.A.
artigos
Os grupos foram realizados na Faculdade de Medicina da UFMG em um único encontro, com
duração média de uma hora e 15 minutos.
As entrevistas semiestruturadas foram realizadas individualmente, com duração média de trinta
minutos, com os seguintes informantes-chave: representante da coordenação do CEABSF; representante
da coordenação do curso de graduação em EF/UFMG – Bacharelado; e representante da presidência do
CREF6/MG.
A coleta de dados se deu no primeiro semestre de 2012, sendo as falas gravadas em áudio para
posterior transcrição. Os grupos focais e entrevistas semiestruturadas foram guiados por roteiros
específicos que abordavam os seguintes temas: inserção do PEF na APS; formação do PEF para a APS, e
dificuldades para essa inserção.
A análise dos dados se deu pela técnica de Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2008). Após a
leitura exaustiva das entrevistas transcritas, houve a sua codificação e posterior categorização, resultando
nas categorias: Inserção na APS; Formação para a APS; Dificuldades.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG. Todos os entrevistados
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, garantindo a participação voluntária e
anônima.
Resultados e discussão
Inserção na APS
Os entrevistados consideraram o reconhecimento do PEF enquanto profissional da saúde como um
ganho da profissão, que favoreceu a ampliação do seu mercado de trabalho e levou a reflexões em
relação à sua formação.
Para eles, a inserção do PEF na APS representou: quebra de paradigma, reforço à necessidade de
mudanças na formação, progresso para a profissão e contribuição aos serviços de saúde. Essa última foi
relacionada à possibilidade de o mesmo gerar maior qualidade nas ações que envolvem a atividade física
e de ampliar seu escopo no que se refere à promoção e proteção à saúde. Entretanto, relataram que o
PEF ainda não foi incluído, de fato, neste campo.
“[...] esse paradigma que está sendo mudado é o mesmo de [...] quando o desporto passou
a ter uma legislação específica no Brasil, e aí fez com que o Brasil pudesse [...] deslanchar
bastante [no desporto] [...]”. (E1)
“[...] por enquanto esse profissional ele só foi inserido, ele não foi incluído no sistema, mas
é o caminho que a gente tem que traçar pra ser incluído definitivamente [...]”. (GF1)
Loch et al. (2011) também acreditam que a inserção do PEF na APS contribuiu para a profissão e o
serviço, já que possibilitou interação com outros profissionais e incentivou um estilo de vida ativo na
população. Em Pedrosa e Leal (2012), membros de categorias tradicionais da SF pontuaram que a
inserção do PEF no NASF é uma oportunidade de uma maior interdisciplinaridade na promoção da saúde
e redução da demanda dos usuários aos serviços do SUS de maior complexidade.
Estar no NASF foi percebido como um momento em que o PEF foi alçado à mesma condição de
profissões da saúde mais consolidadas, e como uma oportunidade de maior reconhecimento pela
população, este apontado como um fator motivador.
“[...] a profissão já é mais reconhecida pela população por não ser mais aquela que explica
exercícios físicos, ela já está sendo vista como uma profissão que pode oferecer qualidade de
vida [...]”. (E1)
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“[...] o reconhecimento da população [...] é que faz a gente ser criativo pra montar o material
que a gente não tem, [...] percorrer vários bairros [...]”. (GF2)
Os entrevistados acreditam que a inserção do PEF na APS se deu em decorrência da maior incidência
das doenças crônicas não transmissíveis e do incentivo da política de saúde. Contudo, ressaltou-se que
esta inserção ainda é dependente do apoio dos gestores de saúde.
“[...] na visão do NASF, você tem vários profissionais que o gestor municipal pode escolher,
se escolhe uma visão de prevenção, ele vai ter preferência por alguns profissionais, se
escolhe uma visão de promoção, ele vai ter tendência a escolher outros profissionais [...]”.
(GF1)
Para Loch e Florindo (2012), a inserção do PEF no NASF por si só representa, além de uma
importante conquista da profissão, o reconhecimento da EF enquanto profissão da saúde, e da atividade
física enquanto pauta da Saúde Pública.
A promoção da saúde e a prevenção de doenças foram mencionadas como foco do trabalho do PEF
na APS. Entretanto, reconheceram que sua atuação se dá por meio das atividades físicas, desportivas e
recreativas.
“[...] o Profissional de Educação Física tem a cara do NASF porque o NASF é promoção da
saúde, NASF é grupo, é grupo operativo [...]”. (GF2)
“[...] pras atividades físicas, desportivas, recreativas em geral, é que o Profissional de
Educação Física tem de se inserir na área de saúde”. (E1)
Segundo Pedrosa e Leal (2012), pensar a atuação do PEF nas ações voltadas à promoção da saúde
implica análise da sua formação e maior aproximação com os profissionais que já atuam no setor.
Médicos e enfermeiros, neste mesmo estudo, se disseram favoráveis à inserção do PEF nos NASF,
porém consideraram necessário repensar a sua formação para que suas ações sejam efetivas neste
contexto.
A ideia de que a promoção da saúde deve ser uma prática desenvolvida por todos os profissionais da
saúde foi convergente entre os membros dos grupos focais. Contudo, afirmou-se que a prescrição da
atividade física deve ser prerrogativa do PEF.
“[...] antigamente [...] qualquer pessoa podia prescrever atividade física, [...] e, hoje, dentro
da área da saúde está tendo outra conotação específica profissional [...]”. (GF1)
Loch e Florindo (2012) defendem que a EF tem um papel central na prática da atividade física,
porém acreditam que seria irresponsabilidade não admitir a colaboração de outras categorias
profissionais. Hallal (2011) vai além ao afirmar que ações que incentivem hábitos fisicamente ativos na
população devem ser desenvolvidas por meio de uma articulação multissetorial.
Alguns autores acreditam que compete ao PEF facilitar a prática de atividade física e monitorá-la, na
maioria das vezes, por meio de grupos específicos (Souza, Loch, 2011; Brugnerotto, Simões, 2009;
Freitas, 2007). Freitas (2007) também afirma que o PEF, na APS, deve direcionar sua prática para o
aspecto educativo, e não apenas reproduzir a atividade física, pois ações com essa concepção ampliam
as formas de atuação e de concepção da saúde na área da EF e vice-versa.
Para os depoentes, ao contrário de outros profissionais que são relacionados à doença, os usuários
têm, no PEF, uma referência de bem-estar.
“[...] o Profissional de Educação Física que está no NASF representa alegria, descontração,
um renovar, porque os usuários não vão mais na busca da cura da doença, então quando
fala pro doutor, pra enfermeira, [...] tem um referencial de busca [...] pra sua cura, ao mesmo
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tempo, recorre ao professor de Educação Física no prazer, [...] a gente entra na parte
psicossomática [...]”. (GF2)
A inserção do PEF na APS deve incentivar hábitos saudáveis através de diferentes estratégias.
Entretanto, tais estratégias devem ser pensadas e discutidas com a comunidade, chamando atenção para
o cotidiano em que vivem e para os valores que priorizam (Freitas, 2007).
Apesar de os entrevistados alegarem que sempre estiveram envolvidos com a saúde, reconhecem
que este envolvimento não se dava no contexto da APS e que estavam despreparados para ingressar
neste campo.
“[...] a Educação Física sempre mexeu com a saúde, não na perspectiva da saúde da atenção
primária [...]”. (GF1)
“[...] a gente não estava preparado pra isso, [...] falar que eu ia trabalhar com a saúde
primária, que eu ia tá lá nos PSF, [...] não imaginava que isso fosse acontecer tão cedo,
apesar de que eu sabia que isso um dia ia acontecer [...]”. (GF2)
Dificuldades
A falta de conhecimento ou reconhecimento, pela equipe de saúde e população, quanto ao seu
papel e importância na APS foram algumas das dificuldades apontadas nos grupos focais.
“[...] quando a equipe da Saúde da Família direcionava o usuário pra gente, eles chegavam
até a mim como se eu fosse uma fisioterapeuta, [...] então eu tive que mostrar que eu era
uma Profissional de Educação Física, [...] tive que mostrar a importância do profissional
dentro da saúde primária [...]”. (GF2)
“[...] o usuário tá lá, o médico é doutor, a enfermeira é doutora [...] e nós somos os
professores, [...] realmente existe uma diferenciação, [...] a pessoa [...] vê [...] o Profissional
da Educação Física talvez [como] o que gosta da brincadeira, [...] que não entende muito
[...]”. (GF2)
Para Silva e Trad (2005), as relações entre profissionais promovem um trabalho integrado a partir do
momento em que conhecem as competências e a importância de cada profissional para a atenção
integral à saúde.
Os depoentes acreditam que o não-reconhecimento do PEF por outros profissionais da saúde gera
uma frágil relação no trabalho interprofissional. Embora tenham interesse em atuar em equipe,
declararam ter dificuldade em se integrar à mesma, reconhecendo que parte desta dificuldade se deve
ao próprio PEF.
“[...] o maior desafio [...] na atenção primária é o trabalho multidisciplinar, é a integração
entre os profissionais. Às vezes [...] quero desenvolver determinado grupo operativo com
outro profissional e [...] não consigo [...]”. (GF2)
“[...] ainda existe uma grande dificuldade de relacionamento interpessoal, inclusive nós,
Profissional de Educação Física, com as outras profissões [...]”. (GF2)
Loch e Florindo (2012) ressaltam que esta dificuldade também é enfrentada por outras categorias
profissionais e acreditam que, para confrontá-la, seja necessário que os envolvidos estejam abertos a
compartilhar conhecimentos.
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O trabalho em equipe é apontado como uma oportunidade de troca de informações e uma
possibilidade de desenvolver trabalhos coletivos (Souza, Loch, 2011). Além disso, Freitas (2007) acredita
que a complexidade dos problemas na APS exige que se tenham diferentes profissionais atuando juntos,
e que o envolvimento do PEF com os mesmos traz novos elementos para se discutir saúde na área da EF.
Para os entrevistados, esta dificuldade de relacionamento está atrelada à ideia comum, entre os
demais profissionais, de que os PEF trabalham de forma isolada, e às expectativas específicas que os
membros do serviço e a própria comunidade têm quanto ao seu trabalho.
“[...] a visão que eles ainda têm do profissional [é de] trabalho que fica isolado [...]”. (GF1)
“[...] a gente chega com uma proposta, e a demanda do lugar é outra, eles esperam que o
Profissional de Educação Física vá atuar de uma maneira específica ali, [...] às vezes nem
recebem bem o que você quer propor, [...] depende da visão do outro, às vezes de uma
gerência do centro de saúde, de uma equipe, de um grupo, da comunidade [...]”. (GF1)
Freitas (2007) afirma que é necessário considerar os objetivos do PEF, do serviço e do usuário, sendo
igualmente importante que o PEF saiba adaptar esses elementos à sua prática, sem se descaracterizar
em função dos interesses institucionais.
Outra dificuldade apontada foi a falta de apoio do serviço aos PEF, o que confere, aos mesmos, um
sentimento de discriminação.
“[...] eu pude perceber, logo que entrei no NASF, a gente não teve muito apoio, então eu
senti um pouco discriminada [...]”. (GF2)
Loch et al. (2011) afirmam que esse aparente desinteresse do serviço pelo PEF pode estar
relacionado à concepção médico-curativista, que parece ainda ser hegemônica, não se sabendo até que
ponto o serviço de saúde está aberto a essa categoria profissional. Uma forma evidenciada por Souza e
Loch (2011) para minimizar a resistência de outros profissionais ao trabalho do PEF foi a capacitação
entre os profissionais das unidades básicas de saúde.
A indefinição das atribuições dos PEF, por parte do serviço, e a inexistência de um plano de metas
para direcionar o seu trabalho na APS foram também apontadas como dificuldades. Em alguns casos, tal
situação fez com que o profissional desenvolvesse sua própria sistemática de trabalho.
“[...] a gente caiu meio de paraquedas [...], não tinha mesmo uma questão burocrática de
serviço [...] às vezes o coordenador não sabia: ah... começa a visitar as unidades aí. [...] não
tem uma meta direito, quantos você tem que atender, porque e quem, então fica tudo meio
solto [...]”. (GF2)
“A gente criou um modelo, uma forma de trabalhar, [...] buscando a portaria, buscando
artigos, [...] a partir do que a gente entendia [...]”. (GF2)
“[...] no meu serviço a gente acaba fazendo um plano de ação e metas no início do ano,
colocando as metas que a gente quer atingir [...]”. (GF2)
Os entrevistados afirmaram que o PEF ainda necessita conquistar espaço na APS, o que acontecerá
por meio do conhecimento sobre o serviço de saúde e sobre seu papel neste ambiente.
“[...] ele precisa mais trabalhar na organização do serviço, ele tem que saber como ele se
insere [...] é um espaço que ele tem que conquistar, então para conquistar ele tem que
conquistar a linguagem, conteúdo, aprender a fazer planejamento [...]” (E2)
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Dado semelhante foi encontrado por Santos e Benedetti (2012), que relacionaram a dificuldade do
PEF em definir seu papel e competências para o SUS à sua pouca experiência na saúde pública. Freitas
(2007) ressaltou que o conhecimento prévio do sistema de saúde e do serviço facilita o reconhecimento
do próprio profissional nesse contexto, ajudando-o a direcionar melhor as suas ações.
A infraestrutura inadequada, nas unidades, para o desenvolvimento satisfatório das ações de saúde
foi outra dificuldade destacada.
“[...] a unidade de saúde não estava preparada pra receber essa equipe nova, não tinha
estrutura e como não tem ainda, muitas vezes, um local pra tá atuando [...]”. (GF2)
Resultado semelhante foi observado por Souza e Loch (2011), em que os PEF entrevistados
mencionaram o espaço inadequado como um importante desafio ao seu trabalho. Diante disso, o
Ministério da Saúde instituiu o Programa Academia da Saúde em 2011, com o objetivo de criar espaços
adequados a atividades de promoção da saúde, dentre elas a prática da atividade física. Este programa
prevê a implantação de polos com infraestrutura, equipamentos e quadro de pessoal qualificado para a
orientação de modos de vida saudáveis (Brasil, 2011a).
A dificuldade em atender a um grande número de equipes de SF por NASF também foi ressaltada. A
demanda elevada e o número reduzido de PEF vinculados ao NASF foram mencionados como fatores
negativos na busca pela qualidade do cuidado nas comunidades atendidas.
“[...] a gente tem 32 unidades de saúde e só um NASF. Eu não dou conta de atender todo
mundo, eu atendo menos da metade, e a realidade que a gente vê é que nas unidades que
não têm o Profissional de Educação Física os enfermeiros, os agentes de saúde fazem
atividade física semanalmente, então a gente vê o que não era para estar acontecendo [...]”.
(GF2)
“[...] espero que [...] o Profissional de Educação Física, ele passe a atender menos unidades,
ele tenha um contato maior com os grupos de atividade física, [...] ou que [...] seja criado [...]
o Profissional de Educação Física [...] por PSF [...]”. (GF2)
Este fato foi evidenciado por Santos e Benedetti (2012), ao afirmarem que, em 2011, o Brasil
contava, em média, com 0,69 PEF por cem mil habitantes cobertos pela SF, indicando uma baixa
representação deste profissional. Acreditam que, para a melhora dessa relação, é necessário
investimento político e acadêmico para a definição de estratégias que contribuam para a integração do
PEF no SUS. Contudo, entre as 13 profissões previstas para o NASF, o PEF foi a quinta categoria mais
recrutada para este serviço, estando presente em 49,2% das equipes do NASF, podendo ser ainda maior
em alguns estados.
A falta de acesso ou o acesso restrito aos prontuários foi apontado como outro fator dificultador da
troca de informações entre os membros da equipe. Esse acesso possibilitaria ao PEF tanto conhecer o
histórico do usuário e sua relação com a unidade, como divulgar seu trabalho na equipe.
“[...] o acesso ao prontuário que alguns profissionais têm, e nós não, [...] prejudica também
a questão do trabalho em rede, [...] se nós tivéssemos um acesso maior [...] talvez nós
conseguíssemos mostrar um pouco do que a gente faz, [...] como nós estamos contribuindo
com o serviço [...]”. (GF1)
Por fim, todos os sujeitos desta pesquisa apontaram a insuficiente formação do PEF para a APS como
uma importante dificuldade.
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Formação para APS
No que tange, especialmente, a esta categoria, os resultados demonstraram convergência de
opiniões entre os diferentes atores abordados: profissionais/alunos do CEABSF e dirigentes, educacional
e corporativo. Tal fato pode ser evidenciado por algumas falas expostas que se associam.
Formação inicial
Para os entrevistados, a formação do PEF ainda é focada no treinamento esportivo, mas acreditam
que a APS deve ser a área prioritária, já que é preferencialmente neste nível que deve ocorrer o
cuidado inicial.
“[...] a gente vem percebendo que a área prioritária é a atenção primária, que ela vai ser a
possibilidade, pra atuação nas outras áreas, [...] a nossa atenção tem que se dar,
primeiramente, na porta de entrada [...]”. (E3)
Todavia, corroborando o verificado pelos entrevistados, estudos mostram que a formação
demasiadamente voltada ao esporte ainda se faz presente nos dias atuais (Souza, Loch, 2011; Pasquim,
2010).
Costa et al. (2012), ao avaliarem as grades curriculares de 61 graduações em EF, observaram que a
maioria não abordava conteúdos referentes à Saúde Coletiva/Saúde Pública. Também reconhecendo
essa carência, Loch et al. (2011) indicaram a formação como o principal fator a ser discutido para uma
melhor integração do PEF ao contexto da Saúde Pública.
Por ser um campo novo, a inserção do PEF na Saúde Pública foi identificada como um incentivo às
mudanças na formação em EF, a fim de torná-la qualificada para a área.
“[...] para trabalhar na área da Saúde Pública tem que ter uma formação para além da que
eu tive, porque é muita construção que a gente vai ter que enfrentar. Um território
totalmente novo. E acredito que vai levar certo tempo pra chegar ao que a gente idealiza
hoje [...]”. (GF1)
Tendo em vista a ampliação dos campos de atuação profissional e as mudanças ocorridas no sistema
de saúde vigente, Santos e Benedetti (2012), bem como Costa et al. (2012), ressaltaram a necessidade
de as IES repensarem suas estruturas curriculares.
Costa et al. (2012) afirmaram ainda que disciplinas relacionadas à Saúde Coletiva auxiliam na
compreensão do sistema de saúde e apropriação do processo de trabalho e da realidade das
comunidades, possibilitando aumento da resolubilidade das ações dos PEF.
Os sujeitos da pesquisa avaliaram sua formação como insuficiente para a inserção na APS, e
acreditam que, mesmo com as alterações já estabelecidas, os recém-formados também terão
dificuldades.
“[...] não houve uma preparação pra que isso acontecesse, [...] a gente caiu de paraquedas
na atenção primária, [...] a gente não tinha orientação nenhuma de como seria o trabalho, o
que a saúde precisava pra gente tá atuando [...]”. (GF2)
“[...] o primeiro concurso da secretaria de saúde, o qual contemplou vagas para a Educação
Física, os estudantes precisaram fazer um cursinho fora, exatamente pelo fato deles não
terem uma formação específica para essa área [...]”. (E3)
Resultados semelhantes foram encontrados por outros estudos. Souza e Loch (2011) observaram que
a maioria dos PEF afirmou ter tido uma graduação centrada no esporte, ou que não havia uma
aproximação com a área da Saúde Pública. Do mesmo modo, Freitas (2007) constatou que o modelo de
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formação em EF tem privilegiado o trabalho individual e o espaço privado. Já Pasquim (2010) afirma que
as graduações em EF que apresentaram disciplinas na área da Saúde Coletiva parecem não ser
suficientemente estruturadas para produzir superações curriculares que permitam o desenvolvimento de
uma formação densa na área.
Os entrevistados identificaram que a tradicional inserção do PEF no setor privado faz com que
posturas e concepções advindas desse campo sejam reproduzidas também no setor público, o que
impulsiona o aprendizado quanto ao último na prática do serviço. Entretanto, acreditam que essa
condição seja inadmissível atualmente, já que percebem que o sistema público de saúde está mais
exigente em relação aos profissionais admitidos em seu contexto.
“[...] atuava dessa forma, de achar que a atividade física é só incumbência minha, [...] a
gente trouxe a visão do outro mercado. Vejo isso muito dentro do setor privado, que as
coisas são fracionadas. [...] trouxe muito pelo motivo da gente não ter tido [...] essa
formação enquanto graduação [...]”. (GF1)
“[...] a maioria de nós aprendeu muito na prática, enfrentando as dificuldades e aprendendo
dentro do processo. [...] a rede hoje, acredito que ela seja menos paciente do que foi
conosco no momento que nos inserimos, porque era uma coisa nova, [...] agora algumas
coisas já estão muito bem construídas [...]”. (GF1)
Afirmaram também que a formação do PEF é biologicista e insuficiente para a atuação na APS.
“[...] a gente vem com a visão biologicista da atividade física, [...], se vamos trabalhar com
saúde, eu vejo que só essa visão ela é pequena perto do que a gente deveria pensar e estar
pronto a fazer. [...] é preciso que tenha uma capacitação, que tenha talvez alguma
especialização, alguma coisa que prepare melhor esse profissional [...]”. (GF1)
A formação biologicista do PEF pode ser justificada em virtude de sua história com a área médica, o
que o fez se apropriar, de forma geral, do conceito de saúde como ausência de doença (Freitas, 2007).
A relação da formação da EF com a base biológica foi também evidenciada por Brugnerotto e Simões
(2009), ao concluírem que a concepção de saúde dos planos de ensino de graduações em EF no Paraná
é norteada pelo modelo biomédico, em que ficou claro que compete, ao PEF, avaliar, prescrever e
monitorar programas de atividade física através de bases biológicas. Pasquim (2010), por sua vez,
ressaltou a tendência da formação biologicista da EF ao afirmar que a atuação do PEF, se não está ligada
diretamente à clínica e ao doente, está em função deles.
Anjos e Duarte (2009) acreditam que o ensino em saúde para a APS deva ser dirigido não apenas
aos aspectos biológicos, mas, também, ao seu contexto e relações, numa abordagem integral. Para elas,
a identificação de novas demandas em saúde possibilitaria a contextualização das ações do PEF.
Os depoentes identificaram as mudanças ocorridas na formação, para propiciar a atuação do PEF na
Saúde Pública, como estratégias complementares, efetivadas por meio de disciplinas optativas. Dado
semelhante foi percebido por Pasquim (2010) ao evidenciar a marginalização da temática Saúde Pública/
Saúde Coletiva nas graduações em EF.
“[...] aqui no curso de Educação Física diurno, nós temos algumas disciplinas optativas que
têm esse olhar, não temos disciplinas obrigatórias [...]”. (E3)
“O curso bacharelado noturno, [...] que vai ter início, [...] tem [...] numa formação
complementar, não na grade básica, [...] [disciplina] focada na atenção primária [...]”. (E3)
A estruturação do curso de EF em licenciatura e bacharelado é considerada uma alternativa para
melhor caracterizar o campo de intervenção de cada habilitação e melhor definir as competências e
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saberes de cada eixo (Nunes, Votre, Santos, 2012; Souza, Loch, 2011). Contudo, os entrevistados
acreditam que esta separação fez com que o bacharel perdesse a essência humanista, prejudicando sua
atuação, sobretudo no que concerne ao cuidado integral.
Dado semelhante foi encontrado por Brugnerotto e Simões (2009), ao observarem que o enfoque
humanista da saúde, quando abordado, ocorre nos cursos de licenciatura; e por Pasquim (2010), ao
afirmar que a separação dos conteúdos da EF desfavorece a prática integral do PEF. No entanto, a
expectativa é de que os conteúdos relacionados à Saúde Pública sejam aprofundados com o bacharelado
(Souza, Loch, 2011).
No caso das experiências dos informantes-chave, a reestruturação da formação inicial do PEF foi
citada por todos como fundamental para uma atuação exitosa na APS.
Para Guimarães e Silva (2010), rever a formação em saúde é pensar no desenvolvimento de
competências específicas para a atuação na Saúde Pública, incentivando, no profissional, a capacidade
de: avaliar, criticar, interagir, integrar e reformular suas práticas, considerando a diversidade dos
indivíduos e das coletividades. Já para Brugnerotto e Simões (2009), repensar a formação é refletir sobre
o real sentido da EF na promoção da saúde.
Para os entrevistados, o mercado de trabalho almeja profissionais de saúde com uma formação mais
ampla, reforçando, portanto, a necessidade de uma formação que amplie a visão do PEF quanto à
saúde, abrangendo indivíduos hígidos e doentes.
“[...] a formação tem que abrir mais o leque, [...] se o profissional não tiver uma formação
ampliada nesse conteúdo multidisciplinar, [...] ainda vai ser muito deficitário [...]”. (GF1)
“O Profissional de Educação Física [deve] começar a conhecer um pouco mais de doença. É
um paradoxo, a gente tá falando de saúde, atenção primária, mas, até então, a gente não
trabalhava com essas questões, [...] trabalhava [...] com a preparação física, com treinamento
esportivo, com escola [...]”. (E3)
No entanto, o PEF não conseguirá interferir no processo saúde-doença se sua formação e atuação
forem alheias ao que diz respeito à dimensão coletiva, pública e social do mesmo (Anjos, Duarte,
2009).
Assim, acredita-se que sejam necessárias alterações na estrutura dos projetos político-pedagógicos e
dos planos de ensino das graduações em EF. Tais alterações devem ofertar maiores oportunidades de
estágio no contexto da APS, disciplinas específicas à área e/ou que a Saúde Pública seja tema
transversal na grade curricular dos cursos.
“[...] hoje a educação e a saúde, elas têm que estar caminhando muito juntas, [...] não só de
ter as matérias específicas, isso aí é evidente, [...] é o que tá faltando, mas, além disso, ainda
ter o foco mesmo de formar, bater na tecla da saúde todo dia com eles”. (GF2)
Costa et al. (2012) também acreditam que disciplinas relacionadas à Saúde Pública, nas graduações
em EF, podem favorecer um despertar para essa área de atuação. Além disso, a sua carência tem feito
com que muitos dos PEF se sintam incapazes de atuar na área e, por vezes, não reconheçam esse
campo como de sua competência (Anjos, Duarte, 2009).
Brugnerotto e Simões (2009), ao analisarem currículos de cursos de EF, observaram que, a despeito
de existirem temas afeitos à Saúde Coletiva, o enfoque ainda é predominantemente biológico, o que
leva os autores a acreditarem na insuficiência de apenas criar disciplinas específicas. Para Pasquim
(2010), o ideal é que não fosse necessária a criação de disciplinas específicas, mas que toda a formação
tivesse a Saúde Coletiva como campo de atuação.
Quanto aos estágios, eles foram considerados, pelos entrevistados, como uma importante ferramenta
para promover o desenvolvimento profissional, aproximando a teoria da prática e facilitando a inserção do
recém-egresso na APS. Anjos e Duarte (2009) observaram a ausência de estágios da EF na APS e
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asseguram que a falta de convívio com a realidade do serviço desfavorece a prática naquele ambiente. Já
Santos e Benedetti (2012) afirmam que o estágio contribui, efetivamente, na qualificação profissional e
na melhor assistência às necessidades da população, o que favoreceria a inserção do PEF na APS.
Os depoentes também destacaram a necessidade de discussão interdisciplinar e trabalho
interprofissional na graduação através de disciplinas integradas, de forma a incentivar o trabalho em
equipe.
“[...] essa discussão interdisciplinar deveria ser trabalhada melhor nas universidades [...].
Fazer disciplinas integradas [...]. Chega lá na unidade de saúde tá todo mundo misturado,
todo mundo tem que trabalhar junto, e na faculdade tá todo mundo trabalhando na sua
salinha, na sua disciplina isoladamente [...]”. (GF2)
Para Pasquim (2010), a inexistência do contato com outros cursos de graduação em saúde produz um
empobrecimento do processo de formação, que, por consequência, não orienta os acadêmicos da EF
para uma atuação em equipe multidisciplinar.
Foi ressaltada a necessidade de capacitação dos docentes, bem como a contratação de outros já com
formação para a área da APS.
“[...] se o professor universitário não buscar se capacitar com esse olhar voltado pra saúde,
não adianta mudar grade curricular porque ele vai continuar repetindo a sua formação, [...] a
musculação vai ser musculação, a ginástica vai ser ginástica e a saúde vai continuar sendo
separada [...]”. (GF2)
Para eles, as DCN para o curso de graduação em EF não preveem a inserção do PEF na APS ou são
insuficientes para a mesma.
“[...] elas não previam, e não preveem, até então, a inserção do Profissional de Educação
Física na APS”. (E3)
“[...] a mudança curricular [...] tem que ser muito mais complexa [...]”. (GF1)
As diretrizes pressupõem a atuação do PEF em espaços públicos e em equipes multiprofissionais, e
definem que o egresso deve ser responsável pela prevenção, promoção, proteção e reabilitação da
saúde (Brasil, 2004). No entanto, para Pasquim (2010), esta afirmativa surge, aparentemente, apenas
como reserva de mercado, buscando garantir um espaço no SUS e não impondo, a princípio, nenhuma
alteração em sua intervenção ou formação profissional.
Os entrevistados defenderam que uma formação satisfatória para a APS favoreceria uma atuação
mais segura, com maior clareza do papel do PEF, facilitaria a abordagem de alguns grupos de risco e
melhoraria a relação na equipe.
Em consonância com essa afirmação, alguns autores alegam que a formação inicial adequada
contribuiria, ainda, para a redução das dificuldades atuais de inserção e para a consolidação da profissão
neste novo campo de intervenção; aumentaria o conhecimento sobre sistema e serviços de saúde, e
incentivaria a admissão do PEF em cursos de pós-graduação em Saúde Coletiva, aumentando o número
e a qualidade das pesquisas e publicações envolvendo sua atuação no SUS e potencializando sua
abordagem neste campo (Costa et al., 2012; Pasquim, 2010; Anjos, Duarte, 2009).
Formação continuada
Os entrevistados reconhecem a formação pós-graduada como uma estratégia para o
desenvolvimento profissional neste campo e, também, como uma forma de minimizar a defasagem da
graduação.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.885-99, out./dez. 2013
895
A INSERÇÃO DO PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA ..
“[...] se na graduação ainda não se consegue dar uma informação e uma formação mais
acentuada na área de saúde, na especialização que isso seja feito [...]”. (E1)
Apesar de enxergarem a pós-graduação como uma forma de suprir a deficiência da graduação, Costa
et al. (2012) afirmam que a aproximação deficiente da formação inicial a temas relacionados à Saúde
Pública pode acarretar em uma baixa inserção do PEF nos programas de pós-graduação com essa
abordagem.
A procura pelo CEABSF se deu pela necessidade, dos entrevistados, de incorporarem conhecimentos
da APS e, consequentemente, melhorarem a sua atuação na área.
“[...] a gente veio [...] com essa sede de conhecimento, querendo entender como é que
funcionava, buscando uma direção pro nosso trabalho, pra esclarecer todas as nossas
dúvidas, [...] as nossas dificuldades e [...] entender qual a função da Educação Física na
Saúde da Família [...]”. (GF2)
Já a admissão do PEF no CEABSF foi motivada: pela inserção deste profissional na equipe do NASF,
pela necessidade de que os mesmos tivessem uma formação voltada para a APS, e pelo interesse
manifestado pelo CREF6/MG.
“[...] houve várias circunstâncias, uma era essa aspiração pra Educação Física ter uma
formação na área da saúde e ligada à questão da saúde da família, a outra foi uma
manifestação do Conselho Regional de Educação Física, que também queria que a gente
fizesse [...]”. (E2)
O CEABSF foi avaliado como um importante instrumento de formação do PEF para a APS,
fornecendo a abertura de seu campo de trabalho através do conhecimento sobre o SUS e APS, e da
apropriação do papel e importância da EF neste contexto.
Outro importante ganho mencionado a partir do conhecimento obtido no CEABSF foi o aumento da
confiança para o trabalho, o que influenciou, positivamente, o relacionamento com os demais
profissionais e no trabalho em equipe.
“[...] ter uma visão geral, uma visão da rede, uma visão dos campos que ele tem de estar
atuando, [...] uma visão dos outros profissionais, essa integração, [...] da importância que
tem o Profissional de Educação Física pra área da saúde, para melhora da qualidade de vida
das pessoas”. (GF1)
“[...] abre o campo de trabalho, [...] mas um campo de trabalho a partir de uma questão
ética, ético-profissional, que é saber para trabalhar [...]”. (E1)
“[...] foi onde eu comecei a me relacionar, que eu comecei a me sentir melhor pra trabalhar
na saúde primária [...]”. (GF2)
Entretanto, apontam a existência de dificuldades em acompanhar uma especialização que envolve
um campo de atuação novo para este profissional, ainda pouco explorado nas graduações.
“[...] foi um choque de pegar tanta informação num curso de especialização”. (GF2)
Creem também que a possibilidade de uma especialização com turma específica, como a Turma
Épsilon do CEABSF, é importante para o atual momento da EF. Esta afirmativa foi comum nos grupos,
mesmo acreditando que seria mais enriquecedora a participação em uma turma multiprofissional.
896
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.885-99, out./dez. 2013
FALCI, D.M.; BELISÁRIO, S.A.
artigos
“[...] seria muito mais efetivo se fosse uma turma multidisciplinar, mas [...] enquanto a
Educação Física não tiver transformada, as turmas vão ter que ser só de Profissionais de
Educação Física [...]. A gente tem que começar do básico [...], porque a gente não teve nada
disso na faculdade, [...] o dia que o Profissional de Educação Física tiver uma formação
comparável com a do enfermeiro, com a do odontólogo, com a do nutricionista, aí sim [...]”.
(GF2)
Desta forma, sugeriu-se que, futuramente, as turmas fossem de composição multiprofissional,
vendo, nesse novo arranjo, um importante espaço para trocas de experiências, informações e
habilidades.
“[...] seria interessante [...] essa especialização integrada com as outras profissões, porque eu
vejo na minha equipe que eles têm mais dificuldade de atender a população, de falar a
língua dessas pessoas. A população, muitas vezes, aproxima mais da gente, [...] a gente tem
muito conhecimento pra passar pra eles também [...]”. (GF2)
Os resultados da Turma Épsilon são aguardados com ansiedade, uma vez que há interesse em
ampliar esta estratégia para todo o território nacional.
“[...] outros Conselhos Regionais de Educação Física no Brasil, e também o Conselho Federal
de Educação Física, têm esperado com muita avidez como que será o término da primeira
turma pra que esse modelo possa ser replicado no Brasil [...]”. (E1)
Considerações finais
O estudo demonstrou que a inserção do PEF na APS é vista como um caminho novo, pavimentado
por perspectivas positivas no que se refere à sua atuação e integração na equipe de saúde, com reflexos
também positivos nos serviços e na comunidade.
Contudo, identificou-se que essa inserção acarreta desafios, o que faz com que o PEF passe por
dificuldades de diferentes matizes, como: a frágil relação interprofissional, infraestrutura inadequada e,
dentre outras, com destaque, a frágil formação para a APS.
A superação das limitações de sua formação inicial dar-se-á, entre outras questões, pelo
estabelecimento de estratégias que contribuam para a integração qualificada do PEF na APS, tais como
as sugeridas neste trabalho: reestruturação curricular, maiores oportunidades de aproximação da
realidade através de estágios, transversalidade do tema na grade curricular, e interação com outras áreas
do conhecimento através de disciplinas integradas.
A formação pós-graduada foi ressaltada, por todos os entrevistados, como uma estratégia positiva, no
sentido de subsidiar os profissionais já inseridos no mercado de trabalho. Seu enfoque multidisciplinar
foi ressaltado como necessário para a formação dos profissionais da APS.
No que diz respeito ao CEABSF, a parceria estabelecida entre as diversas instâncias da UFMG e o
CREF6/MG demonstra o pioneirismo e a positividade da iniciativa. Assim, acredita-se que a mesma
deva ser não só continuada, mas, também, expandida, o que poderá resultar em profissionais mais
preparados para a APS e uma consequente abertura de mercado aos mesmos.
Desta forma, para que a inserção do PEF na APS se dê conforme preconizado pelos princípios e
diretrizes do SUS, acredita-se que a formação deste profissional deva ser construída continuamente,
levando em consideração a perspectiva dos atores envolvidos, o que neste trabalho indicou a
necessidade de mudanças na formação inicial para que a EF possa assumir, de forma consciente e
qualificada, esse campo de atuação.
Por se tratar de um estudo de caso, esta pesquisa não permite generalizações de seus resultados,
porém, espera-se contribuir para avanços na discussão do tema e no despertar para novos estudos.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.885-99, out./dez. 2013
897
A INSERÇÃO DO PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA ..
Colaboradores
As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.
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La inserción del profesional de educación física en el NASF dejó clara la fragilidad de su
formación para la atención primaria. Este artículo tiene el objetivo de analizar su
formación para la inserción en este campo, en el Estado de Minas Gerais. Se trata de
una investigación cualitativa y exploratoria, del tipo de estudio de caso. Los datos se
obtuvieron utilizándose grupos focales. Los resultados señalaron esa inserción como
positiva para la profesión y para los servicios de salud, pero mostraron algunas
dificultades, entre ellas, la formación durante la graduación se mencionó como
insuficiente para actuar en la atención primaria. El postgrado se identificó como una de
las estrategias para minimizar esa insuficiencia.
Palabras clave: Educación y entrenamiento físico. Atención Primaria de Salud. Núcleo
de Apoyo a la Salud de la Familia. Formación de recursos humanos. Salud de la Familia.
Recebido em 11/03/13. Aprovado em 16/09/13.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.885-99, out./dez. 2013
899
DOI: 10.1590/1807-57622013.0661
artigos
Contribuição ao estudo do imaginário social contemporâneo:
retórica e imagens das biociências em periódicos de divulgação científica
Madel Therezinha Luz1
Cesar Sabino2
Rafael da Silva Mattos3
Alcindo Antônio Ferla4
Barbara Andres 5
Rafael Dall Alba6
Anderson dos Santos Machado7
Richard Assimos8
LUZ, M.T. et al. Contribution towards studying the contemporary social imaginary:
rhetoric and images of biosciences in popular scientific periodicals. Interface
(Botucatu), v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013.
This is an analytical article on the rhetoric
of bioscience images in periodicals
available from newspaper kiosks. The aim
was to contribute towards empirical
investigations on the dominant social
representations in the contemporary
imaginary, through analyzing the frontpage images of magazines on life, health
and disease. The messages carried sought
to cause an impression, to be attractive
and, especially, to be convincing. This led
to an analysis on the rhetoric, with its
capacity to convince through words
strengthened through the image. This
paper comprises a theoretical essay on
the methodology of rhetoric analysis, and
it presents preliminary field results
gathered in Porto Alegre and Rio de
Janeiro. This approach contributes
towards analyzing the social role of
dissemination of the biosciences within
present-day culture.
Keywords: Culture. Biosciences. Media.
Rhetoric. Imaginary.
Artigo analítico sobre a retórica das
imagens de biociências em periódicos em
bancas de jornal, que pretende contribuir
para pesquisas empíricas sobre
representações sociais dominantes no
imaginário contemporâneo, analisando as
imagens das capas da mídia impressa
sobre vida, saúde e doença. As
mensagens veiculadas buscam ser
impressionantes, atrativas e, sobretudo,
convincentes, o que mobiliza a análise da
retórica, com sua capacidade de
convencimento da palavra fortalecida
pela imagem. O texto articula um ensaio
teórico sobre metodologia de análise da
retórica, com a apresentação de
resultados preliminares de campo,
coletados em Porto Alegre e Rio de
Janeiro. A abordagem contribui para a
análise do papel social da divulgação das
biociências na cultura atual.
Palavras-chave: Cultura. Biociências.
Mídia. Retórica. Imaginário.
1
Professora
colaboradora, Programa
de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva,
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
(UFRGS). Porto Alegre,
RS, Brasil.
[email protected]
2
Departamento de
Estudos Políticos, Escola
de Ciência Política,
Universidade Federal do
Estado do Rio
de Janeiro (UNIRIO).
3
Departamento de
Ciências da Atividade
Física, Instituto de
Educação Física
e Desportos,
Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
4
Programa de
Pós-Graduação em
Saúde Coletiva, UFRGS.
5,6,8
Bolsistas
pesquisadores, Rede
Governo Colaborativo
em Saúde.
7
Mestrando, Programa
de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva, UFRGS.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013
901
CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO IMAGINÁRIO SOCIAL ...
Introdução
Os efeitos da circulação e do consumo de notícias da área das biociências pela
população em geral constituem o campo temático deste artigo, contendo os
primeiros resultados de um projeto de pesquisa visando contribuir para o
tratamento metodológico do estudo do imaginário9 contemporâneo “estampado”
na mídia impressa. Temos especial interesse em centrar nossa análise interpretativa
na retórica presente em capas de revistas vendidas em bancas de jornais. Embora,
complementarmente, também em matérias internas aos veículos estampadas nos
órgãos voltados para a divulgação de experiências e resultados de pesquisas das
biociências em geral e da saúde em particular. Trata-se, portanto, primariamente,
de analisar a divulgação midiática voltada para o chamado grande público urbano
instruído, isto é, majoritariamente com instrução superior. Para nós, é importante
estabelecer uma relação entre o crescimento da divulgação midiática científica e
alguns sintomas de crise de educação do saber erudito: a perda de importância da
escola; a crise no ensino universitário; a ascensão de novas tecnologias de
informação na comunicação dos saberes; e o fim da formação a partir do saber de
mestres. Dortier (2001) ressalta que, na década de 1980, houve a morte de
grandes mestres do conhecimento, “maîtres à penser”, nas ciências humanas.
Afirma, também, que nenhum modelo pode encerrar, em si mesmo, a explicação
do real. Em matéria de ciência, não pode haver pensamento único: a abertura
crítica se estabelece, inclusive, com a difusão da ciência em periódicos
considerados “não científicos”, isto é, não ligados estritamente à difusão de
pesquisas disciplinares. Atualmente, encontramos inúmeros artigos de professores
altamente titulados em periódicos de divulgação de massa, que não geram
pontuação acadêmica para esses docentes, por não serem periódicos indexados
em “bases qualificadas”. Neste projeto pudemos constatar, junto às bancas de
revistas e jornais, uma procura crescente por estes periódicos10.
Picon (1968) ressaltou que cada domínio da pesquisa científica exige métodos
e linguagens específicas. A ciência utiliza-se, atualmente, não somente dos seus
periódicos – difusão científica – , mas, também, de revistas de massa para
divulgação de informações e conteúdos de seu interesse. Multiplicam-se, por
exemplo, as reportagens sobre: saúde, qualidade de vida, exercícios físicos,
alimentação saudável, prevenção de doenças crônicas, assim como
rejuvenescimento e prolongamento da vida, todas supostamente embasadas em
pesquisa científica de disciplinas ligadas às biociências. As neurociências, por
exemplo, têm, cada vez mais, presença em jornais e revistas, divulgando
frequentes “descobertas”.
No presente estudo, lidamos com a análise dos efeitos da veiculação desse tipo
de informações, com fatos supostamente objetivos, verificáveis, tal como são
transmitidos pelas fontes que as originam – as pesquisas –, nas revistas voltadas
para esse público, que se articulam com outras tecnologias de disseminação, como
a comunicação virtual.
Sabemos do crescimento avassalador de tecnologias em constante mutação no
domínio da informação, na última década, e do papel da imagem e da
comunicação virtual na difusão e discussão de informações científicas. Sabemos,
também, que essas técnicas de informação e comunicação vêm se confirmando
como um ramo especializado da sociologia da comunicação, sobre o qual vem se
debruçando, em face do seu papel sociopolítico, um número crescente de
pesquisadores (Baumgarten, 2008, 2005).
Lévy (2002, 2000, 1997) tem se dedicado ao que poderíamos chamar de
sociologia da comunicação virtual ou filosofia da virtualidade. O autor conceitua
902
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013
O termo imaginário
não é utilizado aqui em
oposição à realidade. O
imaginário é uma
realidade (Maffesoli,
2001). O projeto sobre
Imaginário social e
retórica das biociências,
cadastrado na UFRGS,
está em
desenvolvimento desde
2012.
9
É preciso considerar,
nesta ascendente
procura, sinais de
questões relacionadas à
difusão do
conhecimento: 1estrangulamento da
divulgação da produção
científica da maioria das
disciplinas, em função da
limitação da difusão
academicamente legítima
a periódicos indexados
em bases de dados,
bases estas geralmente
privadas, as quais,
frequentemente, no
que concerne às ciências
da vida e das doenças,
estão comprometidas
com grandes
organizações
econômicas, o que vem
sendo denunciado por
grupos de pesquisadores
e cientistas renomados,
comprometendo, de
algum modo, a
valorização social dessa
produção; 2- aumento
considerável do que
podemos denominar
força de trabalho
científica, que produz
continuamente, para
manter-se no sistema,
novas tecnologias e
produtos científicos, sem
garantia de divulgação,
buscando veículos
alternativos neste
sentido; 3- nossas
revistas em estudo são,
sem dúvida, um item
importante para este
“escoamento” pois,
pudemos constatar,
observando autores e
editores, que estes são,
na quase totalidade,
academicamente
qualificados: doutores,
pós-doutores e alguns
mestres com importante
percurso profissional.
10
LUZ, M.T. et al.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013
artigos
categorias como: cibercultura, ciberespaço, tecnologias da inteligência, tecnodemocracia, entre outras.
As técnicas de comunicação virtual, sobretudo através das denominadas redes sociais, vêm assumindo
um papel social inquestionavelmente importante nos últimos dez anos, não apenas no campo das
sociabilidades, pondo em contato pessoas, grupos e organizações com interesses similares
compartilhados, como no dos movimentos sociais, culturais e políticos, atuando como força aglutinadora
de atores sociais, reunindo milhares (até mesmo milhões) de indivíduos em curto espaço de tempo –
fato inimaginável há poucas décadas, gerando mobilizações praticamente instantâneas de multidões,
produzindo verdadeiros “tsunamis” sociais e políticos, colocando indiretamente em xeque conceitos e
teorias da sociologia clássica ligadas a noções como: pessoa, grupo social, e classe social.
De fato, as novas técnicas de comunicação e de informação colocam as eras da imprensa, do rádio e
da televisão, praticamente, na pré-história das mass media, levando-nos a afirmar que se trata de uma
revolução análoga à de Gutemberg, com a criação da imprensa. Do mesmo modo que se “previu”,
socialmente, a morte da imprensa escrita com o advento da internet, há afirmações e juízos sociais mais
ou menos baseados em estudos de mercado prevendo a morte do livro e da revista impressos como
fontes de informação. Hoje, vivemos no que denominamos Sociedade, ou Era da Informação. Trata-se
de uma sociedade na qual a base do funcionamento econômico é assegurada pelos serviços, pelas
informações e pelo conhecimento gerado por novas tecnologias e inovações técnicas.
O nascimento da informação como conceito e como ideologia está ligado ao desenvolvimento do
computador e das tecnologias daí derivadas no período das guerras mundiais, sobretudo a Segunda
Grande Guerra. Havia, então, grande demanda por computadores e sistemas de informação para as
tropas. Componentes elétricos miniaturizados foram desenvolvidos, pelos militares, durante a II Guerra
Mundial, para: detonar bombas à distância, desenvolver computadores menores adequados para a
corrida espacial, e realizar cálculos relacionados à criação e uso da bomba atômica (Kumar, 2006). Essas
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) não se restringiram ao meio militar, sendo
gradualmente incorporadas pelos meios civis, vindo a tornar-se instrumento vital de funcionamento da
vida econômica.
Existe, atualmente, uma cibercultura (Lévy, 2002), definida como: o conjunto de técnicas materiais e
intelectuais, de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem com o
crescimento do ciberespaço, que se estende por diversas esferas da vida cotidiana. A cibercultura se
constrói e se estende por meio da interconexão das mensagens entre si, por meio da veiculação e troca
permanente de informações. Todavia, não podemos deixar de ressaltar que, por trás das técnicas de
informações, existem: projetos sociais, ideias, utopias, interesses econômicos e estratégias de poder de
grupos.
A “geração internet” pode ser definida (Marmion, 2010) como uma nova massa de consumidores
que têm acesso a informações sobre ciência e saúde, contribuindo para um imaginário social associado,
muitas vezes dependente do pensamento biocientífico.
Embora saibamos que o texto em papel pode vir a se acabar, em futuro não muito distante, o livro,
assim como as revistas, sejam elas mais ou menos esotéricas, sobreviverão no espaço virtual,
digitalizados. Mas é impressionante a constatação da presença atual e crescente de livros e revistas
voltadas para a cultura científica disciplinar, se atentarmos apenas às bancas de jornal: todas as disciplinas
científicas, sejam da área das ciências humanas, ou das biociências, ou das exatas, ou mesmo das
aplicadas (à terra, por exemplo), se encontram ali representadas. São instrumentos de divulgação que se
tornaram parte integrante, não apenas de culturas disciplinares específicas voltadas para suas novas
descobertas ou propostas, mas, também, instrumentos pedagógicos de assimilação de informações e
reflexões, preenchendo vazios pedagógicos na formação de alunos, resultantes da deterioração do
sistema escolar, dos vazios provenientes da debilidade da formação, ou da ausência de atualização de
professores, até mesmo nas universidades. Nunca se viram tantas revistas informativas, tantas obras
literárias, e, mesmo, filosóficas, impressas, convivendo lado a lado, acessíveis, em preço e qualidade, ao
público “leigo” que deseje e busque aquelas informações. Nessas revistas, as informações procuram ser
impressionantes e atrativas, mas buscam ser, sobretudo, convincentes, persuasivas.
Isto coloca em cena para nós, como objetivo central de pesquisa, o estudo da retórica, presente não
apenas nos textos, mas, sobretudo, nas capas das revistas, em que o poder de convencimento da
903
CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO IMAGINÁRIO SOCIAL ...
palavra é reforçado pela imagem, mas, também, vice-versa, a impressão causada
pela imagem é fortalecida pela palavra, especialmente pelo “tom” da palavra.
Deste modo, a aliança imagem/palavra é a chave para construir e veicular a
mensagem que deve convencer o público de sua importância, e levá-lo a
adquirir o produto que orientará suas ações em face da vida e da saúde11.
É neste universo de pesquisa, em que a retórica é fruto da simbiose imagem/
palavra, e palavra/imagem, que buscamos fundamentar as questões aqui
lançadas, analisando e interpretando as capas de revistas de divulgação presentes
em bancas de jornal, tendo, como conteúdo principal de análise de retórica, as
biociências, em aproximação com outras áreas disciplinares, em face da sua
importância atual na Saúde Coletiva: a Nutrição e as Ciências Humanas ligadas à
vida e à saúde: Psicologia, Sociologia, Antropologia, Filosofia, sobretudo.
Nossa preocupação central, na interpretação da retórica, em termos
metodológicos, é com o imaginário social e a vida e a saúde das pessoas, na
cultura atual, em sua relação com as biociências. O que envolve, praticamente,
todas as fases e atividades do viver humano.
Instrumentos de pesquisa qualitativa da mídia impressa:
como operar a análise de revistas de divulgação de pesquisas
e de resultados científicos?
Nosso estudo busca ser uma contribuição analítica para pesquisas empíricas,
cujas unidades básicas de análise são representações sociais dominantes no
imaginário cultural contemporâneo, representações referentes prioritariamente –
mas não exclusivamente – às biociências, e sua (re)produção discursiva. Em
termos de análise teórica, nosso objeto é o universo simbólico da sociedade
contemporânea, através dos discursos ligados às pesquisas científicas, e dos
sentidos que reproduzem nas imagens divulgadas na mídia impressa.
Consideramos, para efeito de nossa análise, que a construção narrativa, ou o
relato midiático de um fato, representa uma construção social da realidade, capaz
de nela produzir efeitos práticos, sejam eles de mobilização ou desmobilização,
de controle ou liberação social, sendo, portanto, factíveis de interpretação pelas
ciências humanas.
Privilegiamos, neste caso, uma análise metodológica ilustrativa dos sentidos e
representações recorrentes na divulgação midiática de revistas de divulgação
científica presentes em bancas de jornal, examinando os estilos de prática
discursiva científica divulgados nos periódicos, buscando interpretar a retórica
dessas práticas, e o(s) modo(s) como esta retórica pode influenciar o imaginário
social, assumindo, por vezes, um caráter normativo (Medrado, 2000; Spink,
Medrado, 2000; Bourdieu, 1997).
A retórica, com seu efeito de influência e convencimento social, é, deste
modo, nosso núcleo central de análise. Metodologicamente, nos interessa muito
mais o “tom convincente” do discurso que a veracidade de seu conteúdo, seja
em termos informativos, comunicativos ou ideológicos. Tampouco estamos
interessados em fazer uma análise linguística estrutural clássica, com uso de
semiótica (Eagleton, 1997). Interessa-nos compreender como a simbiose
imagem/palavra sobre vida, saúde e doença exerce um pathos retórico sobre os
sujeitos, originado do discurso das biociências. Em outras palavras, achamos
necessário retomar o texto clássico Retórica, de Aristóteles (1998), considerado a
primeira obra ocidental na Antiguidade greco-romana que se dedica à análise da
retórica. A retórica, segundo Aristóteles, tem três finalidades principais: 1)
influenciar a escolha; 2) influenciar o julgamento; 3) comover.
904
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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11
Sabemos da
importância do papel da
imagem na cultura
contemporânea desde a
emissão de frases como:
“uma imagem vale mais
que mil palavras”,
quando esta valorização
ficou evidente.
Entretanto, estamos
interessados no poder de
convencimento que
podem ter as imagens
quando associadas a
termos convincentes, e
que podem nos induzir a
determinados
comportamentos, hábitos
e atitudes.
LUZ, M.T. et al.
Ousaríamos acrescentar uma quarta finalidade, adequada ao papel da retórica das
revistas de divulgação das biociências: o temor, o medo coletivo12 de “punição” se as
regras e normas de conduta apresentadas como objetividades resultantes da pesquisa
científica não forem seguidas. Há, aqui, uma aproximação com o que Foucault
chamou de biopoder. Trata-se de um conjunto de relações de poder/saber que
incidem sobre a vida, normatizando-a e controlando-a ininterruptamente. A vida
procura se ajustar a essas regulações buscando a “boa saúde” (Foucault, 2004a,
2004b, 1997, 1976).
Pudemos perceber, na leitura e análise inicial das capas que as revistas adotam,
no tom do discurso, uma perspectiva retórica, direcionando o leitor para práticas
condizentes com a normatividade biocientífica e para as atividades recomendadas
pelas reportagens, infundindo, ao mesmo tempo, um temor difuso de que algum
mal à saúde – ou à vida –, suceda, em caso de não-seguimento de tais práticas.
Foucault (2009), em um de seus cursos no Collège de France, mais
especificamente no curso dos anos 1983-1984, tratou de conceito de parresia. Para
esclarecer e aprofundar esse conceito greco-romano, Foucault precisou contrapô-lo
ao seu oposto: a retórica. Esta era definida e praticada na Antiguidade como uma
técnica que concerne à maneira de dizer as coisas. Trata-se de uma arte, uma
técnica, um conjunto de procedimentos que permitem, a quem fala, dizer alguma
coisa que não seja necessariamente verdadeiro ou nem mesmo aquilo que ele
pensa. O objetivo da retórica é produzir, na pessoa a quem se dirigir o discurso, um
conjunto de convicções que induzirá certas condutas.
A retórica não tem compromisso com a verdade ou com o dizer verdadeiro, na
perspectiva de Foucault (2009). Não há uma courage de lavérité no discurso retórico.
A retórica é um discurso eficaz que busca constranger o outro. A força argumentativa
está no convencimento, independentemente do compromisso com a verdade.
Por outro lado, a força dos argumentos em revistas “não científicas” fundamentase não na capacidade discursiva do próprio autor do texto, mas na fundamentação de
seu discurso em estudos científicos experimentais realizados em instituições de
pesquisa. Se tais estudos são divulgados em revistas de base de indexação de países
europeus ou dos Estados Unidos, o peso das afirmações é mais valorizado. Esse status
acadêmico mais elevado pode ser compreendido não apenas pelo que Bourdieu
denominou poder simbólico, operando no campo científico, mas, também, pelo que
Bruno Latour procurou demonstrar em seus textos: com a historicidade das ciências,
criticando o “substancialismo moderno”, através do qual a sociedade, a linguagem e
a natureza são enquadradas dentro da lógica científica como objetos de estudo
histórico (Latour, 2004, 1995, 1989, 1984; Bourdieu, 1989).
Nossa pesquisa procura apreender e analisar o discurso retórico com o objetivo de
interpretar o imaginário social na cultura contemporânea em torno das imagens das
biociências veiculadas nos periódicos em análise, e seu papel de convencimento
coletivo. Trata-se de um estudo qualitativo, do ponto de vista metodológico,
distanciando-se, claramente, das análises correntes de conteúdo de discursos,
quantitativas ou qualitativas.
Neste sentido, selecionamos, para estudo, um conjunto de veículos de
divulgação científica com distribuição significativa nas metrópoles brasileiras, embora
o trabalho de campo se restrinja às capitais, Rio de Janeiro e Porto Alegre, em
revistas distribuídas de 2011 a 2013. Assim, a partir de observação-piloto em Porto
Alegre, foram selecionadas, para análise, as seguintes revistas: Scientific American,
Mente Cérebro, Super Interessante, Medicando, Women’s Health, Men’s Health,
Psique, Viva Saúde, Saúde é Vital, Sua Saúde, Corpo a Corpo, embora veículos de
ciências humanas e sociais façam parte de nosso universo de observação, sobretudo
os divulgados pelo grupo Scientific American.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013
artigos
Este sentimento de
“temor coletivo” é
uma das finalidades
sociais atribuídas por
Aristóteles à tragédia.
12
905
CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO IMAGINÁRIO SOCIAL ...
As revistas mencionadas foram selecionadas por terem edição regular (semanal
a mensal), e trazerem sempre, em suas capas, temas relacionando pesquisas em
saúde e biociências. Outros periódicos de grande tiragem – não necessariamente
de divulgação cientifica – vêm sendo analisados, por trazerem informações
relevantes em edições especiais, específicas de um determinado tema, ou de
escopo generalista, não entrando no rol de veículos escolhidos para a pesquisa. O
número de revistas em análise ultrapassa, atualmente, cem.
Não estabelecemos um número definido, ou uma amostra específica de
veículos para análise. Bauer (2002) considera que uma amostra pequena,
sistematicamente selecionada, é muito melhor do que uma grande amostra de
materiais escolhidos ao acaso. Constata que 12 edições selecionadas,
aleatoriamente, de um jornal diário fornecem uma estimativa confiável do perfil
de suas notícias anuais. A representatividade, o tamanho da amostra e a divisão
em unidades temáticas dependem, em última instância, do problema da pesquisa,
que, aliás, determina o referencial teórico a ser utilizado. Neste projeto, optamos
por uma abordagem qualitativa para a seleção e análise da retórica presente nos
veículos.
Costa (2001) argumenta que a informação veiculada pelos meios de
comunicação não se encontra separada do modo de produção industrial e da
lógica do mercado. Para Goetz et al. (2008), revistas são ambientes de circulação e
difusão de representações sociais, sendo consideradas fontes legítimas para
pesquisas qualitativas. Coerentemente, nosso estudo das capas privilegia a análise
das imagens, palavras e conteúdos implícitos que veiculam informações e
representações sobre vida, saúde e doença. A validade da análise deve ser julgada
não como uma leitura da verdade – objetividade – das capas, mas em termos do
teor de convencimento/persuasão presente nos materiais analisados.
Para auxílio da coleta de dados, utilizamos instrumentos clássicos de pesquisa
qualitativa das ciências sociais, tais como: observações etnográficas das bancas,
com anotações de campo, fotografias da distribuição das revistas nas bancas13, e
conversas informais com compradores e responsáveis pelas bancas de jornal
(Arborio, Fournier, 1999), situadas na zona urbana das cidades do Rio de Janeiro e
Porto Alegre. As bancas selecionadas vendem revistas com temas voltados para as
descobertas recentes das biociências, nutrição e saúde. Para isso, buscamos
utilizar, como recurso técnico, a análise das imagens e a retórica implícita nas fotos
estampadas nas capas, assim como a sua disposição em “vitrine” ou “cartaz”
(Moles, 2005) nas bancas de jornal. A fotografia é, portanto, um instrumento de
coleta do projeto, embora com objetivo diferente do das pesquisas etnográficas
ou sócio-históricas. As “fotos” com que lidamos não são documentos factuais, são
produções tecnológicas, resultantes de montagens, sem intenção de identificar
bancas ou pessoas que circulam (ver nota 13).
Sabemos que há, no Brasil, uma gama significativa de revistas de divulgação
científica, variando da mais próxima da ideia de “difusão de resultados de
experiências de laboratórios”, como a pioneira Scientific American14, com edições
em muitos países, até a Revista Super Interessante, em sua origem muito ligada à
ideologia new age, estando, em anos recentes, muito próxima das ideologias
científicas ligadas à vida, à mente e à saúde.
Tendo como marco de periodização as revistas comercializadas entre 2011 e
2013, menos que a quantidade e a representatividade dos periódicos numa
totalidade abstrata de veículos, o que nos interessa são os temas neles abordados
e seu tom – retórica –, que forneceram o critério fundamental de recorte para a
escolha dos veículos analisáveis.
906
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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A fotografia tem, no
projeto, papel auxiliar na
captação da distribuição
dos veículos nas bancas;
dos temas que neles
estão colocados em
relação ao objeto de
pesquisa, e da forma que
adquirem com a
organização das capas.
Não adotamos a
perspectiva
antropológica, sociológica
ou histórica no uso da
fotografia, em que as
fotos descrevem
hierarquias e status
sociais, formas de
organização da sociedade
em diferentes épocas
etc. O objetivo das
fotos, no projeto, é
captar a veiculação da
retórica presente nas
capas, e na organização
em forma de cartaz ou
vitrines dos painéis de
revistas dispostos nas
bancas (Moles, 2005).
13
A revista Scientif
American é composta por
reportagens sobre o
impacto produzido pela
ciência e pelas inovações
tecnológicas no cotidiano
e na construção de
estratégias para o futuro.
Ela foi criada em 1845 e
patenteada em 1850,
nos Estados Unidos.
Desde sua criação, vem
tratando dos avanços da
ciência em linguagem
acessível ao público
considerado leigo. 144
ganhadores do prêmio
Nobel já escreveram para
a revista. Nos Estados
Unidos, ela é editada em
Nova York, lida por mais
de 3,5 milhões de
pessoas. É uma revista
traduzida para 14 idiomas
e acessível em mais de
trinta países. No Brasil, a
revista é bimestral e
temática. Disponível em:
http://www.
scientificamerican.com/
sciammag/. Acesso em:
18 set. 2012.
14
LUZ, M.T. et al.
Pudemos observar que
é possível caracterizar
três “passos” ou
momentos, em que o
convencimento do
público comprador, se
dá: 1° pela “captura
visual”, em que o olhar
do futuro leitor é atraído
para a imagem; 2° pela
“sedução pelo olhar”,
em que o leitor se volta
para o conjunto palavra/
imagem e dela “toma
conhecimento”; 3° o
convencimento retórico
através da mensagem
visual: o leitor acredita
no que vê e quer se
informar.
15
O espaço midiático é
caracterizado, por
Medrado (2000), como
sendo constituído por
textos e imagens
publicados em jornais,
revistas ou livros.
16
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013
artigos
Quanto a este aspecto, já Malinowski e Evans-Pritchard haviam criticado os
métodos quantitativos de pesquisa, em face da dificuldade que os mesmos
apresentam para obtenção e interpretação de significados sociais (Evans-Pritchard,
2005; Malinowski, 1976). Minayo (2007), por sua vez, afirma que o objeto das
Ciências Sociais é essencialmente qualitativo, pois a multiplicidade de significados
da realidade social não pode ser apreendida por medidas numéricas. Os códigos
matemáticos e das demais ciências exatas não são capazes de recortar e conter a
totalidade da vida social. As pesquisas, nas ciências sociais, lidam com estruturas,
processos, significados e representações simbólicas.
As produções midiáticas são práticas sociais de caráter discursivo, responsáveis
pelo processo de construção e circulação de significados sobre determinado tema.
São socialmente constituídas por grupo(s) específico(s), mediados a partir da
seleção e reconfiguração de determinados repertórios temáticos. Esses repertórios
funcionam como substratos na composição da retórica midiática. Ao adquirirem
visibilidade, tornam-se disponíveis às pessoas, que podem compor suas práticas
discursivas no cotidiano, tornando possível a produção de sentidos e versões
diversas sobre si e o mundo a sua volta (Medrado, 2000). Tais sentidos são, muitas
vezes, tomados como verdade pelo público em virtude de uma correspondência,
no senso comum, entre representação e verdade. Mas sabemos que o sujeito do
conhecimento está inserido na sociedade que toma por objeto. A independência
do olhar científico é, assim, ilusória, um efeito das condições sociais da produção
do intelecto, como afirmavam pesquisadores da Escola de Frankfurt, pioneiros no
interesse pelos efeitos sociais da mídia (Cusset, 2009).
Walter Benjamim (1994) foi um dos autores pioneiros que problematizaram a
utilização da fotografia (imagens) e seus efeitos. O autor afirma que a imagem
dirige nossa percepção, e as legendas (palavras) associadas a elas reforçam o que
ele chama de “valor de exposição”. Nosso campo etnográfico revela, inicialmente,
que a exposição das revistas nas bancas de jornal evidencia algum tipo de
reprodutibilidade técnica visando a convencer o leitor da força das imagens e
palavras das capas. Assim se reafirma seu efeito retórico15.
Conforme analisou Freitas (1999), a mídia contribui para a solidificação e a
divulgação de um tipo específico de identidade; esta promove um primeiro
contato motivador de um tema, tendências, avanços científicos e tecnológicos,
com o público leitor.
De acordo com Medrado (2000), na sociedade contemporânea, a mídia adquiriu
um papel fundamental no processo de construção e circulação de repertórios,
sendo fluente entre o público, por conseguinte, influenciando o cotidiano das
pessoas. Os acontecimentos, informações e descobertas ganham uma visibilidade
sem precedentes ao ganharem o espaço midiático16. A mídia impressa se constitui,
assim, em canal de informação. Como salientara Luz (1986), os jornais são veículos
de socialização dos fatos, das normas, do suceder na sociedade e, ao mesmo
tempo, um agente institucional organizador do espaço social.
A pesquisa empírica empreenderá, em etapa a seguir, a análise da retórica das
imagens das capas divulgadas pelos veículos de divulgação, de modo
compreensivo e interpretativo, por ser a capa a primeira forma de aproximação das
revistas com o seu leitor. As matérias, em especial, as de capa com estampas de
fotos, longe de atenderem apenas a um apelo de informação, ou de fazerem com
que o leitor reflita sobre os temas, são parte da lógica concorrencial do mercado
midiático (Bourdieu, 1997).
907
CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO IMAGINÁRIO SOCIAL ...
A construção da análise das imagens e palavras nas bancas
De nossa perspectiva, capas das revistas impressas, através das imagens e
legendas nelas impressas, assumem, por sua disposição e estilo de fotos e
palavras-chave, um caráter indutor de representações, atitudes, opiniões e
comportamentos, constituindo-se em um construto simbólico que nos induz ao
que nos convém ler e proceder (Weller, Bassalo, 2011). Isso nos remete à análise
da retórica das imagens das capas que, juntamente com as expressões utilizadas
nas chamadas, fazem menção direta ao tema de convencimento da matéria
publicada no interior do periódico. Podemos perceber que certas imagens
associadas a palavras de ordem, estampadas nas capas, funcionam no sentido de
sugerir e estimular, no leitor, a compra da revista, apesar de ninguém poder
“obrigá-lo” a tal. A lógica da persuasão se impõe, sem que percebamos, como
um mecanismo para atender às necessidades que operam no mercado e são
dominantes na sociedade atual (ver nota 15).
Na tentativa de atenderem às expectativas dos leitores, e de se anteciparem à
concorrente, as editoras procuram despertar uma curiosidade, no leitor, que pode,
então, querer ou não comprar a revista. Entre as editoras, pensar na capa é uma
maneira de vencer – e convencer – fatias maiores do mercado mediante uso de
montagens e de fotografias que sofrem retoques digitais “com o intuito de alterar
a realidade”, revelou Tony de Marco, diretor de arte da revista Macmania, à Editor
& Arte17, transformando-as em “cenários” verossímeis de persuasão. O jornalista
José Arbex Júnior chamou a atenção para a “guerra de imagens” nas capas, que
são, muitas vezes, preconceituosas em relação a alguns assuntos. Deste modo,
trabalhar com as capas mostrou-se importante para este projeto: apoiados em
linhas de pesquisa como as de Pollak (1990) e Champagne (1998), pudemos
observar que as escolhas de imagens por jornalistas irão ilustrar as informações
ali contidas, exercendo um “efeito de evidência poderoso: mais, sem dúvida, que
o discurso, elas parecem designar uma realidade indiscutível, se bem que sejam
igualmente produto de um trabalho mais ou menos explícito de seleção e
construção” (Champagne, 1998, p.64; Pollak, 1990, p.100).
A pesquisa empírica: análise da retórica
nas publicações em bancas de revistas
O mapeamento e a coleta de dados das bancas implicaram uma etnografia
simples, constando de: conversas informais com donos ou vendedores de
bancas18, observação visual da distribuição dos periódicos, dos seus potenciais
consumidores, assim como documentação fotográfica, que vêm sendo realizados
desde 2012. A segunda fase da pesquisa, prevista para o segundo semestre de
2013, envolverá: a classificação, análise e interpretação do material coletado,
redação de relatório, e produção de artigos referentes aos resultados obtidos.
Além das contribuições teóricas e metodológicas, desenvolvidas
anteriormente19, interessa-nos a apresentação da dinâmica do campo empírico,
pelos participantes no projeto, com possível realização de seminários.
Até o presente momento, em Porto Alegre, foram observadas 15 bancas de
jornais e revistas. Todas as bancas observadas encontram-se em ambiente urbano,
mais especificamente no centro e bairros de classe média. Essa escolha geográfica
se deu por serem locais de fácil acesso e grande rotatividade de pessoas. Apenas
uma banca se encontra dentro de um imóvel, as demais se situam nas calçadas.
No Rio de Janeiro, um estudo-piloto fotografou quantidade semelhante de bancas,
908
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013
“Com que capa eu
vou?”. Editor & Arte ,
n.15, s/d.
17
18
Expressão utilizada para
designar uma abordagem
informal de vendedores
e compradores, sem foco
em dados dos indivíduos
e, portanto, sem manejo
de qualquer dado
relativo aos mesmos,
onde se busca
compreender a cena em
análise: a organização das
revistas e a motivação
para o consumo. O
vendedor e o comprador,
nesse caso, não se
caracterizam como
sujeitos da pesquisa na
medida em que se
buscam, deles,
informações sobre as
revistas e sobre a
organização das bancas,
tal qual faria qualquer
interessado em
adquiri-las. O registro
desse fato se materializa
na escolha de partes da
banca para a captura de
fotografias e na síntese
de apontamentos do
trabalho de campo.
Artigo relativo à parte
teórica do estudo foi
publicado,
recentemente, por Luz,
Sabino e Mattos (2013).
19
LUZ, M.T. et al.
artigos
na zona sul (Catete, Flamengo, Laranjeiras), e em bairros da zona norte, anotando as revistas expostas,
com suas diferentes formas de disposição das capas.
As bancas foram sendo fotografadas à medida que eram visualizadas pelos pesquisadores, andando
pelas ruas, sem prévia busca de localização das mesmas. As fotografias foram focadas em revistas com
temáticas de saúde, a partir de observação dos pesquisadores e de conversas com o vendedor (“onde
estão as revistas sobre saúde?”). Além disso, foram realizadas conversas informais, com os vendedores,
com os seguintes dispositivos desencadeantes: “Você vende revistas sobre saúde? Onde elas ficam na
sua banca? Como são organizadas? Quem as organiza? Qual tipo de revista é mais procurado na sua
banca? Quem procura mais revistas de saúde? O que vende mais? As pessoas buscam assuntos
específicos? Quais?”
As fotografias de Porto Alegre, em campo-piloto, foram feitas durante três dias, no mês de outubro
de 2012. Uma observação anterior fora realizada no Rio de Janeiro um ano antes, constatando fatos
semelhantes. Nosso universo envolve revistas de grande circulação, além de números especiais sobre
saúde, e revistas específicas de nutrição relacionadas a alimentos e ervas. Entretanto, foi possível
observar a presença de certas revistas, na maioria das bancas, que tratam de temas semelhantes, muitas
vezes repetitivos, distribuídas de forma similar nas diferentes bancas em ambas as localidades, isto é,
em espaços similares.
Os vendedores relataram a grande procura por materiais sobre “saúde”, entendendo-os como
revistas que trazem receitas de emagrecimento, chás, substâncias e alimentos saudáveis de combate a
doenças crônicas e o envelhecimento. Estas, organizadas em painel – “cartaz” –, em um espaço
dedicado à temática, encontram-se, na maioria dos casos, próximas às revistas direcionadas ao público
feminino, como, por exemplo, revistas de novelas e celebridades. Dois vendedores em Porto Alegre
relataram que, em suas bancas, localizadas à calçada, muitos transeuntes acabam comprando revistas
após se interessarem pela capa, e poucos chegam ao local procurando algum veículo específico. A
“retórica do olhar”, nesses casos, demonstra capacidade de produzir efeitos. Dentre as bancas visitadas,
uma delas tem a particularidade de se localizar em frente a um grande hospital público. Nela, as revistas
de biociências e saúde ganham destaque na sua organização, ficando bem visíveis aos olhos de quem
por lá transita. Durante a entrevista com o vendedor, ele nos disse que este tipo de publicação é o mais
vendido, especificamente com edições sobre patologias como: hipertensão, diabetes e colesterol. No
seu entendimento, esse fato ocorre porque quem está saindo ou chegando ao hospital tem algum
problema de saúde, e procura uma solução através da informação nas revistas e outras publicações.
Conclusões preliminares
Percebemos, a partir da aproximação com o trabalho de campo, que, atualmente, há, nas bancas de
jornal, uma grande diversidade de revistas e livretos com a temática das biociências, com variadas
abordagens, mas todas visando a “divulgação científica”. Mesmo as revistas que não entraram no escopo
desse estudo (generalistas semanais), têm suas vendas acentuadas quando apresentam capas com o tema
saúde, conforme registros realizados durante observação. Situação verificada em ambas as capitais, Rio e
Porto Alegre. Como apontado anteriormente, a pesquisa empírica segue em andamento, e a próxima
etapa consiste em analisar, de modo compreensivo e interpretativo, as capas dos veículos de divulgação
observadas até o momento, bem como voltar a realizar novas observações nos dois locais de pesquisa.
No entanto, já nesta etapa da pesquisa, podemos afirmar que a construção teórica sobre a retórica, do
início do artigo, e a proposição metodológica consequente, que se segue à primeira, demonstraram
capacidade de identificar efeitos de convencimento nas capas para influenciar seu público quanto a
julgamentos e escolhas, induzir emoções e despertar temor em relação à saúde. Certas situações locais
fortalecem esses efeitos, como a proximidade de serviços de saúde e academias de ginástica.
Os efeitos de retórica originam, também, nas bancas, técnicas de distribuição das revistas – como a
distribuição em painel, cartaz, ou vitrine do material visual –, visando a proximidade com temas e
gêneros de leitura similares e a visibilidade das capas tematizando biociências, particularmente a saúde.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013
909
CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO IMAGINÁRIO SOCIAL ...
A próxima etapa da pesquisa, analítica, permitirá aprofundar essas conclusões prévias. O
compartilhamento das contribuições teóricas, metodológicas, e empíricas, produzidas pela equipe,
possibilitará, esperamos, ampliar o diálogo sobre o estudo do fenômeno do consumo atual de notícias
sobre as biociências e, em particular, sobre a saúde, pela população urbana, e seus efeitos no imaginário
social.
Colaboradores
Madel Luz, Rafael Mattos e César Sabino escreveram o artigo e fizeram o trabalho de
campo no Rio de Janeiro/RJ. Anderson Machado, Bárbara Andres, Rafael Dall Alba e
Richard Assimos fizeram o trabalho de campo em Porto Alegre/RS e contribuíram na
redação da segunda versão deste artigo. Alcindo Ferla fez a revisão crítica do texto,
propondo diversas alterações.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013
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CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO IMAGINÁRIO SOCIAL ...
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imágenes de las bio-ciencias en periódicos de divulgación científica. Interface
(Botucatu), v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013.
Artículo analítico sobre la retórica de las imágenes de bio-ciencias en periódicos en
kioscos. Pretende contribuir con las investigaciones empíricas sobre las
representaciones sociales dominantes en el imaginario contemporáneo, analizando las
imágenes de las portadas de los medios impresos sobre vida, salud y enfermedad. Los
mensajes publicados buscan ser impresionantes, atractivos y, principalmente,
convincentes, lo que moviliza el análisis de la retórica, con su capacidad de
convencimiento de la palabra fortalecida por la imagen. El texto articula un ensayo
teórico sobre metodología de análisis de la retórica con la presentación de resultados
preliminares de campo, colectados en Porto Alegre y en Río de Janeiro. El abordaje
contribuye para el análisis del papel social de la divulgación de las bio-ciencias en la
cultura actual.
Palabras clave: Cultura. Biociências. Divulgación. Retorica. Imagines.
Recebido em 03/08/13. Aprovado em 03/09/13.
912
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.901-12, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/1807-57622013.0403
debate
Como o Brasil tem enfrentado o tema provimento de médicos?
How has Brazil dealt with the topic of provision of physicians?
¿Cómo ha enfrentado Brasil la cuestión de la provisión de médicos?
Mônica Sampaio de Carvalho1
Maria Fátima de Sousa2
The aim was to analyze how Brazil has
dealt with the shortage of physicians and
the attempts to overcome the situation in
coordination with healthcare policies and
strategies for training and establishment
of these professionals in accordance with
the needs of the Brazilian National Health
System (SUS). PROVAB (Program for
Primary Care Enhancement), created by
the federal government in 2011, was
used as a case study. This seeks to
provide healthcare professionals to
localities in need. The program offers a
score of 10% in residency examinations
after evaluation of the professional and
structured distance education activities
and supervision. PROVAB was analyzed
within the current context of the work
management and healthcare education
policies, in order to comprehend its
implementation through discussions,
movements, events and qualitativequantitative data available from the
Ministry of Health. Ways to develop work
management and healthcare education in
Brazil are indicated.
Keywords: PROVAB. Primary health care.
Medical education. Professional practice.
Continuing education.
Analisa-se como o Brasil tem enfrentado
a carência de médicos nas tentativa de
superar a situação de forma articulada
com as políticas de saúde e estratégias de
formação e fixação desses profissionais,
de acordo com as necessidades do
Sistema Único de Saúde (SUS). Tomou-se
como estudo de caso o Programa de
Valorização da Atenção Básica (PROVAB)
criado pelo governo federal em 2011,
que busca prover profissionais de saúde
para as localidades necessitadas,
destacando-se as seguintes ofertas do
programa: pontuação de 10% nas provas
de residência após avaliação do
profissional e atividades estruturadas de
educação a distância e supervisão. O
PROVAB foi analisado dentro do
contexto atual da política de Gestão do
Trabalho e da Educação na Saúde, na
tentativa de compreender sua
implementação mediante discursos,
movimentos, acontecimentos e dados
qualitativos e quantitativos,
disponibilizados pelo Ministério da
Saúde.Dessa forma, apontam-se
caminhos para o desenvolvimento da
Gestão do Trabalho e da Educação na
Saúde no Brasil.
Palavras-chave: PROVAB. Atenção Básica
à Saúde. Educação médica. Prática
profissional. Educação permanente.
1
Doutoranda,
Universidade de Brasília
(UnB). Faculdade de
Ciências da Saúde,
Campus Universitário
Darcy Ribeiro. Brasília, DF,
Brasil. 70910-900.
monicarvalho19@
gmail.com
2
Departamento de
Saúde Coletiva, UnB.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.913-26, out./dez. 2013
913
COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
Introdução
Entre as perspectivas de estudo do tema da saúde com destaque crescente nos últimos anos, está o
campo temático da gestão do trabalho e da educação. Os estudos, inicialmente articulados em torno da
administração, enfocam a força de trabalho como “recurso” sob o ponto de vista taylorista de produção
no trabalho.
Os estudos clássicos de Maria Cecília Donnangelo (1975; Donnangelo, Pereira, 1979) analisam, a
partir das ciências sociais, o trabalho médico e a diversificação das especializações no interior dos
hospitais. No mesmo sentido, estão os estudos de Ricardo Bruno Mendes Gonçalves (1992, 1978), que
introduz o conceito de processo de trabalho e aborda, por meio da óptica marxista, o processo de
produção, as tecnologias e os saberes que servem de base para os estudos de Emerson Merhy (2002,
1997), com a micropolítica do trabalho vivo em ato na saúde, este ampliando para os esquizonalistas
como Deleuze e Guatarri, assim como Gastão Wagner de Souza Campos (2000), que critica a
abordagem gerencial hegemônica e o taylorismo.
Esses autores criticam, no contexto da formação e do trabalho, a fragmentação e a especialização
crescentes, do mesmo modo, a abordagem gerencialista, que toma o trabalho e o trabalhador como
“recurso” a ser talhado e administrado, segundo os interesses da direção de serviços e sistemas
(Ceccim, 2005).
O grande aumento do número de postos de trabalho, com a aguda expansão de cobertura
assistencial da Atenção Básica, produzida pela progressiva implantação do Sistema Único de Saúde
(SUS), torna a temática estratégica não apenas na perspectiva de propor estratégias de provimento e de
fixação profissionais de saúde, mas também aponta a necessidade de investir no processo de formação
médica e de educação permanente dos trabalhadores do SUS de acordo com o modelo assistencial
centrado no cuidado em saúde.
Embora a regulação da formação profissional já é uma premissa presente desde a Constituição
brasileira em seu artigo 200 que estabelece a competência do Sistema Único de Saúde em “ordenar a
formação de recursos humanos na área da saúde”, sendo reforçada pela Lei Orgânica da Saúde, na qual
explicita no artigo 15, item IX, a responsabilidade do sistema de saúde “[...] na formulação e na
execução da política de formação e desenvolvimento de recursos humanos para a saúde” (Brasil,
1990, p.18055), sendo tema de diversas conferências de saúde com propostas que vão desde a
regulamentação do artigo 200 da Constituição brasileira, fomento a capacitações, educação continuada,
educação permanente, política de provimento, mudanças na graduação, reforma nos currículos,
formação de especialistas de acordo com as necessidades do SUS, carreira, melhores condições salariais
e de trabalho (Ceccim, Armani, Rocha, 2002), pautas estas reforçadas com a criação da SGTES
(Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde) em 2003, na prática, ainda tem desafios
importantes a serem enfrentados no que diz respeito aos processos regulatórios e a política de gestão
do trabalho e de educação na saúde.
Este artigo é parte do estudo que teve por objetivo analisar como o Brasil tem buscado enfrentar um
problema crônico no SUS, que é a falta de médicos para atuarem nos serviços públicos de saúde,
sobretudo, na Atenção Básica à Saúde. Esse problema vem comprometendo significativamente as
gestões municipais e estaduais do sistema de saúde há pelo menos uma década, com algumas
tentativas governamentais de buscar soluções para essa questão, com visões diversas a respeito do tema
e que disputam uma hegemonia no discurso e na prática. Para isso, foi realizada a análise do processo
de implementação do Programa de Valorização da Atenção Básica (PROVAB), política de provimento do
Ministério da Saúde do Brasil desde dezembro de 2011 e suas repercussões entre os diversos atores
governamentais, corporações e profissionais para extrair elementos essenciais dos movimentos, visões e
relações de poder existentes (Foucault, 1996).
914
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.913-26, out./dez. 2013
NEVES, C.A.B.
debate
Método
Trata-se de pesquisa histórica de caráter exploratório associado a um estudo de caso, o PROVAB, e
está no campo da investigação social. Segundo Minayo (2004, p.13), o “objeto das Ciências Sociais é
histórico” e carregado de significados, intencionalidades de grupos, da sociedade em geral e de visão
ideológica de mundo, trazendo a implicação do sujeito no estudo.
Goode e Hatt (1969), Yin (1989), e Bonoma (1985) apud Minayo (2006, p.164) abordam o estudo
de caso como um método que utiliza “estratégias de investigação qualitativa para mapear, descrever e
analisar o contexto, as relações e as percepções a respeito da situação, fenômeno ou episódio em
questão”.
Foram utilizadas como categorias analíticas o poder, o saber, o trabalho e a meritocracia.
Os aspectos analisados dessas categorias estão no campo político e das ciências sociais a partir das
posições dos atores estratégicos em relação ao PROVAB, do processo de trabalho, da proposta
pedagógica do PROVAB e da visão de meritocracia.
Alguns recortes ao objeto foram utilizados como referenciais de análise: a formação médica, a
educação permanente, os saberes tecnológicos, o poder médico, a relação médico-paciente, a
autonomia, a disputa entre corporações e governo e o poder, entre outros.
O processo de observação e pesquisa foi por meio de análise documental e análise dos dados
secundários da Atenção Básica qualitativos e quantitativos oriundos do Sistema de Informação e de
Gestão do PROVAB (SIGPROVAB/SGTES/MS), do Formulário Eletrônico do SUS (FormSUS/SGTES/MS) e
da Plataforma Arouca / Universidade Aberta do SUS (UnA-SUS/SGTES/MS) e observação de seminários,
reuniões e oficinas com os atores envolvidos no processo.
As políticas de provimento e a Atenção Básica no Brasil
– um caminho a ser percorrido
O Decreto no 7.508, promulgado em junho de 2011 que regulamenta a Lei 8.080/1990, reforça o
papel da Atenção Básica, uma vez que define “[...] Atenção Básica como porta de entrada preferencial
do sistema” e “ordenadora da rede e do cuidado em saúde” (Brasil, 2011a, p.7).
Por ser a porta de entrada prioritária do sistema de saúde, compete à Atenção Básica, segundo o
decreto supracitado, assegurar aos usuários “[...] acesso universal, contínuo e de qualidade” e “a
integralidade da atenção e do cuidado”, tanto individual como coletiva para dentro da Unidade Básica
de Saúde e para fora na Rede de Atenção à Saúde (Brasil, 2012a, p.21).
A alta rotatividade dos médicos na atenção básica, entretanto, associado à total escassez em algumas
localidades, compromete a continuidade do cuidado e consequentemente a qualidade dos serviços
ofertados. Estudo feito por Campos e Malik (2008) realizado no Estado de São Paulo sobre satisfação de
médicos no Programa de Saúde da Família mostra os fatores que contribuem para a rotatividade de
médicos nas unidades básicas de saúde que são principalmente a distância, a falta de condições
materiais e de capacitação.
Capozzolo (2003), em sua tese de doutorado, analisando as condições de trabalho das equipes de
saúde da família, considera que a sobrecarga de trabalho, a falta de medicamentos, materiais e
retaguarda de outros níveis de atenção, além da insegurança gerada pela falta de capacitação dos
profissionais para exercer a prática de generalista, levariam à alta rotatividade dos médicos.
Outro dado relevante do estudo de Campos e Malik (2008) é que, embora o salário seja um dos
atrativos para os médicos se apresentarem para contratação no programa, este não tem garantido a sua
fixação. Atribui-se ao fato de que, em geral, as melhores propostas remuneratórias são em áreas
longínquas e pouco atrativas em termos de desenvolvimento econômico e sociocultural, forte fator de
retenção de médicos já demonstrado em pesquisas realizadas.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.913-26, out./dez. 2013
915
COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
Essa análise coincide com o estudo de Girardi, Pierantoni e Dal Poz (2012), sobre o índice de escassez
de profissionais da Atenção Básica, utilizando o método Full Time Equivalent (FTE) e os parâmetros de
um médico na Atenção Básica para cada três mil pessoas, por meio dos quais observou-se que as regiões
de maior escassez são aquelas em que há uma elevada mortalidade infantil e utilização do Programa
Bolsa Família, ou seja, áreas desprovidas de serviços e que, portanto, mais sofrem com o acesso à saúde.
Essas dificuldades de provimento e fixação de médicos na Atenção Básica têm repercutido no acesso
e na qualidade dos serviços prestados, o que revela o Índice de Desempenho do SUS (IDSUS), “um
indicador-síntese” do Ministério da Saúde, que mede o acesso e a efetividade do sistema. O reflexo
destas dificuldades tem gerado insatisfação por parte dos usuários com o SUS.
Associado aos fatores acima sinalizados, a baixa responsabilização do sistema de saúde no
atendimento às necessidades do usuário nos serviços e a baixa qualidade e resolutividade da Atenção
Básica no Brasil contribuem também para o agravamento da situação.
Há necessidade, portanto, de, além de prover profissionais para a atenção básica, articular
mecanismos para fixação desses profissionais nos serviços e propor mudanças no modelo de atenção e
cuidado à saúde e na formação médica.
As políticas de indução para provimento e fixação de profissionais
estabelecidas no Brasil e no Mundo
Há vários mecanismos utilizados pelos países para prover profissionais de saúde, que vão desde as
propostas mais voluntaristas até ações articuladas com incentivos, por exemplo, bolsa com auxílios
alimentação e moradia, alguns propõem processos de educação continuada com envolvimento de
instituições universitárias e em outros casos a atuação nessas áreas tornou-se pré-requisito para a
obtenção de registro profissional, créditos educativos e ingresso em especialidades médicas ou bolsas
de pós-graduação. Ainda há outros que articulam carreira com provimento.
Maciel Filho (2007) descreve, em sua tese de doutorado, as estratégias de alguns países para
enfrentamento desse problema e o histórico dos programas de provimento no Brasil. Relata a experiência
de serviço civil obrigatório no Peru, Equador, na Costa Rica, Colômbia e no México, sendo este, a
experiência mais consolidada, adotada desde 1945 por meio dos centros rurais cooperativos, em que o
estudante permanece por 12 meses no local como requisito obrigatório para obter o registro de
médico.
Outras experiências observadas articulam provimento e carreira sanitária, como no Chile,
considerando distâncias geográficas, o risco, e prevendo estrutura e condições de trabalho, ascensão
profissional e oportunidades de desenvolvimento técnico (Maciel Filho, 2007).
Na Austrália, busca-se prover profissionais por meio de bolsas de estudo para os estudantes
ingressarem em cursos de medicina, sendo obrigatória, nos currículos, a atuação da escola médica em
áreas rurais e remotas, além de tornar obrigatória a atuação por seis meses dos profissionais que se
formam em Clínica Geral (Maciel Filho, 2007).
No início dos anos 1990, o tema do provimento de médicos foi considerado um dos pontos críticos
do sistema de saúde no Canadá (Campos, Girardi, Machado, 2009).
No Brasil, os programas de provimento e fixação remontam à época da ditadura militar, que
implementou o Projeto Rondon: iniciativa com o objetivo de levar estudantes a atuarem em locais de
difícil acesso, expandindo ações e serviços de saúde (Maciel Filho, 2007).
Ainda, nesse período, surge o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS),
o Programa de Interiorização do Sistema Único de Saúde (PISUS) e o Programa de Interiorização do
Trabalho em Saúde (PITS), sendo este uma das estratégias de fortalecimento do Programa Saúde da
Família (PSF), que estava surgindo à época e foi responsável pela ampliação do acesso e da cobertura
assistencial de várias localidades carentes de atendimento à saúde. Maciel Filho (2007) relata
minuciosamente, em sua tese de doutorado, as iniciativas de enfrentamento dessa questão pelo Brasil.
O PITS, programa anterior ao PROVAB teve por objetivo ampliar a cobertura do PSF por meio do
provimento de médicos e enfermeiros em áreas cujo PSF ainda não tenham sido implementado. As
9
16
6
91
20092013
v.17,supl.,
n.47,p.781-95,
p.913-26,jul./set.
out./dez.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13,
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.913-26, out./dez. 2013
debate
ofertas apresentadas para os profissionais eram bolsa federal e formação profissional, como tutoria e
supervisão continuada semipresencial contratada pelo CNPQ, cursos autoinstrucionais, curso introdutório
do PSF, curso de especialização em saúde da família, seguro de vida e acidentes pessoais, moradia,
alimentação, transporte e certificação. Apesar do grande número de inscritos, apenas trezentos
municípios, 421 profissionais, sendo 181 médicos e duzentos e quarenta enfermeiros, concluíram o
programa.
Embora o Estado tenha se esforçado para instituir políticas de provimento ao longo de todos estes
períodos, sendo estas responsáveis pela inserção de vários profissionais nesta experiência, segundo
Médici (1993 apud Maciel Filho, 2007), essas medidas não foram suficientes por si só para enfrentar o
problema da má distribuição de médicos no País e, consequentemente, da fixação. Alguns fatores
influenciam nesse processo, entre eles, o fator econômico e social, como importantes fatores
impeditivos de fixação, as condições de trabalho e a possibilidade de formação e capacitação.
Desde 2011, o Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério da Educação, baseado no Plano
Nacional de Saúde, resolveu lançar um conjunto de medidas que buscam atrair profissionais de saúde,
mais especificamente médicos, nas localidades necessárias. Entre essas medidas, destacam-se:
1 O Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), criado pela Medida Provisória
nº 1.827, de 27/05/99, regulamentado pelas Portarias MEC nº 860, de 27/05/99 e 1.386/99, de 15/
19/99 e Resolução do Conselho Monetário Nacional 2647, de 22/09/99. Em 2010, através da Lei
no 12.202/2010, o governo ampliou os benefícios para os médicos que atuam na Atenção Básica em
regiões prioritárias para o SUS.
2 Vinda de médicos estrangeiros no país por meio de termo de cooperação internacional com o
Governo Brasileiro e revisão do processo de revalidação de diplomas no Brasil, o Revalida;
3 Ampliação da oferta de vagas de cursos de medicina em localidades com rede de atenção
estruturada e com condições de funcionamento de acordo com os elementos das novas portarias GM/
MEC n° 1/ 2013 e portaria GM/MEC n° 2/2013. Nesses cursos, busca-se desenvolver um projeto
pedagógico voltado para atender à integralidade do cuidado e as redes de atenção à saúde;
4 O PROVAB que objetiva prover e incentivar profissionais a atuarem na atenção básica, por meio
de estratégias de educação à distância e supervisão pedagógica articulada ao “bônus” de 10% nas
provas de residência médica para aqueles que tiverem interesse em ingressar nos programas de
residência;
5 Expansão de residências médicas como importante estratégia de fixação e de formação de médicos
para o sistema de saúde.
Essas várias estratégias estão sendo implementadas em tempos diferentes e compõem o escopo da
política de fortalecimento da Atenção Básica do Governo Federal.
O PROVAB, programa criado pelo Ministério da Saúde para prover médicos, enfermeiros e
cirurgiões-dentistas prioritariamente em áreas de difícil acesso ou em populações vulneráveis, também
prevê estratégias de educação à distância, como a especialização em Saúde da Família e telessaúde,
atividades de supervisão presencial e à distância, além do bônus de 10% para os médicos que
pretenderem ingressar em Programas de Residência Médica a partir de uma avaliação de desempenho
(Brasil, 2011b).
A gestão do Programa, em sua primeira versão, é centralizada na União, destacando por meio de
Portaria Interministerial 2.087/2011, o papel do município na contratação dos profissionais de saúde e
evidenciando uma ausência do papel do Estado, papel que foi sendo construído gradativamente através
das oficinas realizadas para repactuação com os entes federativos e universidades neste processo.
Em termos de abrangência, diferentemente do Projeto Rondon e do PITS, o PROVAB 2012 permitiu
com que os 5.565 municípios brasileiros pudessem concorrer a uma vaga, manifestando a sua adesão de
acordo com cinco perfis articulam critérios como capital e região metropolitana, municípios beneficiados
pelo FIES, população rural com extrema pobreza.
Na primeira versão do programa, segundo dados do SIGPROVAB, foram inscritos 2.176 municípios.
Deste total, foram selecionados novecentos e cinquenta municípios para receberem 4.671 profissionais de
saúde. A Tabela 1 mostra o percentual de profissionais selecionados e contratados pelo programa, assim como o
percentual de retenção.
917
COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
Tabela 2. Quantitativo de profissionais selecionados e contratados no
PROVAB e percentual de retenção
Profissionais Selecionados
Médicos
Enfermeiros
Dentistas
Total
1.460
1.889
1.322
4.671
Contratados Percentual de retenção
381
126
110
617
26%
6,67%
8,32%
13,2%
Fonte: SIGPROVAB, Departamento de Gestão da Educação na Saúde(DEGES)/
Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES)
Ainda segundo dados do SIGPROVAB/SGTES/MS, os médicos estão distribuídos por região do País,
na seguinte proporção: região Nordeste (67%), seguida das regiões Sudeste (20%), Centro-Oeste
(6%), Sul (5%) e Norte (2%).
Este baixo percentual de retenção de médicos pode ter várias explicações, uma delas estão
relacionados a problemas de comunicação, instabilidade contratual por meio dos municípios e
mobilizações de segmentos da medicina e algumas instituições de ensino na tentativa de desestabilizar o
programa. Muitos dos relatos atribuem este fenômeno a informações pouco precisas que chegavam à
“ponta do sistema”, gerando confusão e insegurança por parte dos profissionais de saúde. Muitos
municípios, por sua vez, desconheciam as regras estabelecidas em edital e quais as responsabilidades dos
gestores frente ao programa, mais especificamente no tocante à contratação de profissionais. Alguns
profissionais tinham a expectativa de vantagens acima dos valores de mercado local e acordos contratuais
de jornada parcial de trabalho. Além disso, alguns profissionais, segundo relatos, depararam-se com
situações insalubres para o exercício da profissão. Outros decidiram por ingressar nos programas de
residência, após a publicação dos resultados das provas. Somado a tudo isso, os atrasos nas contratações
geraram instabilidade por parte dos profissionais, mais especificamente médicos, que tinham como
expectativa o cumprimento de um ano para realização das provas de residência no final do ano.
No caso dos enfermeiros e dos dentistas, o problema estava mais relacionado à oferta de mercado,
já abordada, resultando no desinteresse por esses profissionais pelos municípios. A alternativa aí
apresentada pelo Ministério da Saúde foi então o Curso de Especialização em Atenção Básica pelo
Sistema UnA-SUS com bolsa de estudos na modalidade trabalhador - estudante. Essa estratégia resultou
em 1.147 bolsistas contratados entre enfermeiros e dentistas.
O Curso de Especialização com foco em Atenção Básica, constitui-se como uma oferta do PROVAB,
ainda não obrigatória na primeira fase, executado por instituições de ensino vinculadas ao UnA-SUS
(Universidade Aberta do SUS – rede criada por Decreto no 7.385/2012, de 8 de dezembro de
2010 com o objetivo de oferecer ações de educação a distância.
A supervisão, obrigatória para médicos no PROVAB, acabou se restringindo a esta categoria e o
curso de especialização para os enfermeiros e dentistas prioritariamente uma vez que esta oferta não
obrigatória na primeira versão teve uma baixa adesão dos médicos.
A supervisão definida por categoria profissional e com forte vinculação às Instituições de Ensino
Superior teria o objetivo de coordenar e sistematizar o processo de avaliação para fins de pontuação das
provas de residência.
O processo de discussão com a equipe do DEGES levou à necessidade de ampliar o escopo de
atuação deste supervisor, introduzindo conceitos de educação permanente, apoio matricial, campo e
núcleo de atuação profissional. A grande questão era, portanto, definir se a supervisão atuaria apenas no
campo e no núcleo profissional ou apenas no núcleo como pensado inicialmente.
Ao longo do processo, foram introduzidas como atividades de supervisão a realização de um
diagnóstico inicial do território e do processo de trabalho da equipe vinculada ao profissional
supervisionado, elaboração de plano de educação permanente e projetos de intervenção por parte dos
profissionais no território.
918
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.913-26, out./dez. 2013
debate
Entretanto, as disputas no âmbito do papel da supervisão e as pactuações já estabelecidas com as
instituições de ensino, com a corporação e a Comissão Nacional de Residência Médica fizeram
prevalecer o modelo inicial de supervisão médica com foco no processo avaliativo para fins de
pontuação nos programas de residência.
Poder, saber, trabalho e meritocracia:
afinal como se revelam os atores neste processo?
Ao analisar as características dos programas de provimento no Brasil observam-se, no aspecto
político, dificuldades no âmbito governamental nas primeiras experiências por conta dos regimes
totalitários e da transição democrática em que vivia o país; enquanto, no momento atual, os entraves
políticos são de natureza coorporativa.
Em relação ao provimento de médicos no Brasil, há uma posição clara dos gestores do SUS, no
sentido de que faltam médicos no País e temos importantes vazios assistenciais decorrentes dessa
escassez. Recentemente, no Encontro dos Prefeitos, em Brasília, ocorrido em janeiro de 2013, a Frente
Nacional de Prefeitos criou uma campanha intitulada ”cadê o médico?” reivindicando medidas ao
governo federal para prover médicos nas diversas regiões do País. Entre as propostas deste segmento,
destaca-se a flexibilização de regras para a entrada de médicos estrangeiros para atuarem na atenção
básica.
Esse pensamento é reforçado pelo gestor federal em seu discurso onde defende, baseado na análise
comparativa da proporção de médicos por habitantes no Brasil e em outros países que implantaram
sistemas de saúde universais, que há escassez e má distribuição de médicos nas regiões brasileiras. Um
dos argumentos se dá através da relação de médicos por habitante no país, que hoje tem a média de
1,8 médico por habitante.
De fato, quando se faz uma análise comparativa em países com sistemas de saúde organizados
tomando a Atenção Básica como prioritária, observa-se uma proporção maior de médicos por habitante,
a exemplo, na Inglaterra cuja relação é de 2,7 médicos/habitante, em Portugal 3,87 médicos/habitante,
na Espanha, 3,96 médicos/habitante e na Argentina, 3,2 médicos/habitante.
Esses argumentos também se baseiam em estudos de Girardi, Pierantoni e Dal Poz (2012) em que se
comprova por meio de pesquisa feita pelo Observatório de Recursos Humanos do NESCOM/UFMG
(Núcleo de Saúde da Comunidade/ Universidade de Minas Gerais), pela qual o autor analisa a proporção
de egressos e o primeiro emprego. Observa-se, no caso da medicina, um mercado de trabalho
extremamente favorável para os egressos de medicina no Brasil com oferta satisfatória de emprego,
diferentemente do que se observa em outras profissões da saúde como é o caso da enfermagem cuja
proporção de egressos versus empregabilidade é inversa, com provável desemprego.
Setores da medicina, como as corporações médicas, acreditam, entretanto, que o problema não é
escassez de médicos, e sim má distribuição e pouca atratividade do setor público, principalmente, no
que se refere às condições de trabalho e remuneração. Defendem, portanto, que há médicos
suficientes no país por meio de estudo recentemente publicado intitulado Demografia Médica no Brasil.
Nele reforçam a necessidade de uma carreira nacional para a saúde semelhante à carreira do Poder
Judiciário e afirmam que o país possui, atualmente, 371.788 médicos em atividade e que, na década de
1970, havia apenas 58.994 médicos. Houve, então, um crescimento de 530%. Nesse sentido,
acreditam que com um grande percentual de médicos jovens e com o aumento de vagas de cursos de
medicina, o estoque de médicos é suficiente para atender à demanda (CFM/IBGE, 2011).
Em recentes pesquisas realizadas por Girardi, Pierantoni e Dal Poz (2012) com médicos da região
Norte e pela Fundação Saúde da Família da Bahia (FESF/BA) com médicos dessa Fundação ambas
revelaram que os principais fatores de atração do médico, além das condições sócio - econômicas da
localidade e da oferta de bens e serviços, são a remuneração, as condições de trabalho (entendido aqui
como volume de trabalho, equipamentos, materiais, entre outros) e a possibilidade de formação
continuada. A possibilidade de carreira não foi o principal fator atrativo no estudo de Girardi, Pierantoni
e Dal Poz (2012), embora ela apareça na proporção de 23,08%.
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COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
Ao analisar os discursos, observamos relações de poder e poder – saber instituídas e instituintes
nesse processo. O instituído é evidenciado pela necessidade de preservação da lógica atual de inserção
de médicos especialistas no mercado de trabalho através da Residência Médica e da lógica de titulação
pela Associação Médica Brasileira (AMB). Entretanto, o instituinte estabelecido pelo governo federal e
pelos prefeitos provoca uma certa desestabilização e desorganiza a ordem do instituído no campo molar
da conformação da política através da modificação dos critérios de ingressos nos programas de
residência a partir do trabalho na Atenção Básica e no campo molecular à medida em que este médico,
seja do PROVAB ou seja de outro país, ambos passam a atuar nos territórios de prática, interagindo com
as equipes, com as universidades através da supervisão e com a gestão local da unidade de saúde.
Foucault (1999) discute o poder como uma prática social, fruto das interações e relações
estabelecidas. Para esse autor, além do poder do Estado, o poder encontra-se em todos os lugares,
exercendo certa molecularidade e molaridade. Ainda na obra de Foucault intitulada Microfísica do
Poder, Roberto Machado escreve no prefácio o ponto de vista do autor sobre poder e relata que o:
“[...] poder é algo que se exerce, que se efetua e que funciona, não é um lugar que se ocupa, nem um
objeto que se possui. Ele se exerce, se disputa e, nesta relação unívoca, unilateral; nessa disputa ou se
ganha ou se perde”. (Foucault apud Machado, 1996, p.XV)
Ainda segundo Foucault (1975 apud Santos, 2000), o pensamento liberal procura identificar o poder
social como o poder do Estado, mas, nas sociedades modernas, surgiu outra forma de poder, bem mais
sofisticado e eficaz: o poder-saber disciplinar, caracterizado pelo poder de normalizar as subjetividades e
controlar as sociedades.
O poder disciplinar necessariamente não é uma instituição, mas um dispositivo, um método de
sujeição constante de forças e imposição de uma “relação de docilidade – utilidade” para o bom
funcionamento e manutenção de uma sociedade industrial e capitalista, conforme Foucault (apud
Machado, 1996, p.XV).
Também chamado de biopoder, este se aplica à população, à vida e aos vivos por meio das sujeições
decorrentes da normatização, punição e vigilância (Foucault, 1999).
Fica perceptível nesse processo que o poder do Estado não é a única forma de poder e que a relação
entre o poder e o saber tem forte influência nos diversos discursos. Dentro desse contexto, as tensões e
os conflitos no processo de implementação do PROVAB revelam-se por intermédio da resistência de
setores da medicina, que exercem, em alguns momentos, força maior que o aparato estatal e isso,
contraditoriamente, dentro da própria estrutura do Estado através da Comissão Nacional de Residência
Médica (CNRM), comissão responsável por regular a formação de especialistas no Brasil por meio da
modalidade de Residência Médica.
O setor privado, apesar de não compor o aparato estatal, exerce também uma força instituída que
influencia nas escolhas dos médicos e muitas vezes dificulta a priorização das necessidades do sistema
de saúde. A própria cultura liberal da profissão, o assalariamento autônomo e a formação médica
instituída pelas universidades, citados nos estudos de Campos (2006) e Feuerwerker (2002) também são
vetores de poder-saber que influenciam no senso comum da sociedade e dos estudantes de medicina
nas suas escolhas, contribuindo para o quadro demográfico atual.
Uma outra questão que se mostra em disputa é a respeito da concessão de bônus de 10% nas provas
de Residência para os participantes do PROVAB, aprovado em resolução pela CNRM/MEC. Esse
incentivo para participação no programa, entretanto, só é concedido após processo avaliativo do
desempenho do profissional inserido no programa por meio de uma instituição supervisora vinculada à
Universidade ou a Escolas de Saúde Pública, da própria equipe e do gestor local da unidade à qual o
médico faz parte, e de uma autoavaliação, com posterior certificação pelo Ministério (Brasil, 2011b). Aqui
pode-se perceber um ponto de conflito por meio do conceito de meritocracia, compondo várias visões e
percepções a respeito do assunto e com vários acontecimentos instituintes nesse processo, agregando
novos atores, como é o caso do poder judiciário que também atua neste processo. Para outros atores, o
conceito de mérito é entendido exclusivamente como resultado do esforço individual em armazenar um
conjunto de saberes científicos abordados por meio de um processo seletivo de livre concorrência.
A visão de meritocracia predominante corrobora com a lógica atual de formação dos especialistas no
país, o que difere da visão de alguns segmentos que acreditam na vivência como aprendizagem,
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.913-26, out./dez. 2013
debate
contribuindo para uma visão mais ampliada do profissional em relação à Atenção Básica. Quanto à
priorização de atuação dos profissionais na Atenção Básica, apesar de existir uma comissão que decide
sobre estes processos, a CNRM (Comissão Nacional de Residência Médica), que deveria orientar o
processo regulatório de acordo com as necessidades do SUS, contraditoriamente há uma submissão às
regras do mercado, que passa a ser um grande indutor das escolhas dos médicos que se submetem às
regras do jogo para ingressarem em uma residência médica. A ausência de uma regulação estataI mais
intensa tem trazido algumas consequências como o elevado percentual de ociosidade na ocupação de
vagas da Residência de Medicina e Comunidade, chegando a, aproximadamente, 70%, em razão do
alta falta de interesse dos médicos nessa especialidade não atrativa do ponto de vista do mercado.
Todo esse cenário tem contribuído para a proliferação dos chamados “Med Cursos”, verdadeiros
cursinhos preparatórios para os programas de residências uma vez que o critério de seleção mais
relevante é a prova que reforça o modelo de memorização estabelecido no curso de medicina, muitas
vezes, desarticulados com a realidade e com as necessidades de saúde da população.
Apesar de a Residência Médica ser uma das mais eficientes estratégias de fixação de profissionais de
saúde, acaba sendo um funil a que poucos têm acesso e muitos ficam de fora, entrando no mercado de
trabalho com grande oferta de emprego e altos salários (Giradi, Pierantoni, Dal, 2012).
O modelo de formação médica atual por sua vez positivista, centrado no biológico, tendo o hospital
como o lugar central de formação do médico, traduz em todos os ciclos acadêmicos o poder-saber
disciplinar.
A lógica de aprendizagem fragmentada e tendo como objeto o saber científico tem produzido “uma
relação de dependência do aluno com o docente, este visto como fonte quase exclusiva de saber, e
uma baixa autonomia do aluno na compreensão dos problemas de saúde da população” (Comissão
Interinstitucional de Avaliação do Ensino Médico, 2000 apud Santos, 1998, p.97) em contraposição a
uma visão onde o objeto da formação médica são as necessidades de saúde da população e que os
diversos saberes articulados em torno desse objeto servem como insumos do processo pedagógico e, o
docente passa a ter um papel de tutor e mediador da aprendizagem e o aluno sai da condição passiva
para de sujeito do processo de aprendizagem (Feuerwerker, 2002; Santos, 1998).
Essa relação de poder – saber disciplinar se transpõe para as práticas profissionais e acabam
fabricando o médico que hoje temos na sociedade, atuando nas relações do trabalho do médico com as
equipes de saúde e a comunidade e, no caso do PROVAB, por exemplo, de diversas maneiras, na
discussão de mérito, nas atividades de supervisão exercida pelas instituições supervisoras e na atuação
do médico no território.
As relações de trabalho operam, portanto, nas relações de poder sejam de opressão, sejam de
subordinação, sejam de liberdade ou de alteridade, dependendo do modo como é compreendido o
sentido e o significado do trabalho.
No âmbito das ações educativas do PROVAB, constituída pela supervisão e pelo Curso de
Especialização em Saúde da Família e Atenção Básica, observamos que os conteúdos abordados, assim
como o processo avaliativo, buscam o fortalecimento da Atenção Básica.
“A Estratégia de Saúde da Família se apresentou para mim como meio de ganhar experiência
na área depois de formada e como intermeio para a residência antes pensada em pediatria.
Após menos de seis meses de trabalho me encantei pelo programa e todas as suas
possibilidades de poder colocar o que aprendi na prática, olhar o paciente de forma integral
e não apenas como uma doença”. (médica vinculada ao PROVAB)
No artigo intitulado “Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: fazendo um exercício
sobre a reestruturação produtiva na produção do cuidado”, Merhy et al. (2000) trazem como
contribuição a este debate, a reflexão sobre saberes e tecnologias, trabalho vivo e trabalho morto para o
ato de cuidar.
As três valises citadas por Merhy são a da mão, responsável pelos procedimentos e pelas técnicas
realizadas, a da cabeça, na qual cabem os saberes da epidemiologia e da clínica e a outra valise que
está no espaço relacional, fruto do encontro entre trabalhador e usuário, onde contém tecnologias leves
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COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
para lidar com este campo das relações. A interação com o usuário e a tensão entre as três valises
contribuem com os processos de captura do trabalho vivo pelo trabalho morto e as diferentes formas de
realizar o trabalho médico e os atos em saúde na perspectiva do cuidado ou na perda da dimensão
cuidadora.
Na obra do autor, o trabalho vivo é visto como o trabalho criativo, instituinte e inovador,
desempenhado pelo profissional que usa a sua subjetividade para criar novas formas de fazer, utilizando
diversas tecnologias de acordo com as necessidades apresentadas e, o trabalho morto é caracterizado
como o trabalho instituído, que corresponde a todos aqueles produtos-meios que nele estão envolvidos
como matéria-prima e que são resultados de um trabalho humano anterior (Merhy, Onocko, 1997).
Merhy (2002) diferencia ainda os saberes em não estruturados, semiestruturados e estruturados. No
primeiro, estão as tecnologias leves utilizadas no campo relacional como o acolhimento, a produção de
vínculo entre profissional e usuário e entre usuário e equipe, o compromisso com a resolutividade e a
multiprofissionalidade, entre outros. Já os saberes semiestruturados estão no campo das tecnologias
leve-duras, em que se destacam os saberes da clínica e da saúde pública dentro de uma visão voltada
para Atenção Básica. Por fim, os saberes estruturados compõem as tecnologias duras e se referem a
procedimentos e técnicas necessárias para algumas situações que ocorrem nas unidades de saúde
(Exemplo: sutura, curativo, espirometria, eletrocardiograma).
O saber - fazer do médico e do supervisor do PROVAB, assim como a maneira como estes articulam
as tecnologias, os saberes e suas valises tecnológicas na interação com os usuários - pode revelar uma
prática clínica centrada em procedimentos e técnicas ou no cuidado à saúde. Apesar de não termos o
objetivo de afirmar nenhuma hipótese a respeito, observamos, por meio de fragmentos de falas, relatos
e análises no webportfólio, nas oficinas e reuniões e nos instrumentos de supervisão um recorte focado
na doença onde os saberes estruturados e semiestruturados, assim como as tecnologias duras e leveduras, citados por Merhy (2002) ainda prevalecem na prática clínica dos profissionais.
De acordo com o relato do supervisor:
“Na prática de atenção à saúde e educação permanente, observa-se ainda a atenção com
foco na doença, a inexperiência, a insegurança na prática clínica, o pouco conhecimento
sobre abordagem familiar, abordagem comunitária, educação em saúde, SUS, dificuldades
em habilidades de comunicação, processo de trabalho e gestão da agenda/tempo, incluindo
o horário para estudo”. (relato dos supervisores)
Observando os relatos e as descrições qualitativas e quantitativas, identificamos as diversas faces da
supervisão, que vai desde o supervisor fiscalizador, com “conhecimento superior” e aferidor de
conceito ou corretor de uma conduta, reproduzindo o modelo pedagógico hegemônico das escolas
médicas, no qual se estabelece a relação de detentor do saber científico.
Outra dimensão de supervisão é a do supervisor apoiador ou facilitador dos processos de
aprendizagem, comprometido com o trabalho e com uma relação de “alteridade” entre os sujeitos
trabalhadores, buscando compartilhar saberes e práticas para mudança nos processos de trabalho,
produzir autonomia do profissional e comprometimento com a vida.
Essa relação de poder é reproduzida na relação médico-paciente, em que, muitas vezes, o paciente
é objeto da prática médica e não sujeito. A interação médico-paciente pode também estabelecer uma
relação de autoridade de um sobre o outro, mediada pelo saber científico e não pelas necessidades de
saúde e pela subjetividade de cada indivíduo frente ao sofrimento.
Toda essa visão é decorrente do modelo de sociedade e assegura a base de sustentação do modelo
assistencial vigente, sendo a escola médica um locus de poder-saber que interfere de forma
significativa no perfil do médico formado e na proposta de formação no PROVAB.
A relação assimétrica de poder no âmbito da educação entre docentes e aprendizes com
incorporação tecnológica acrítica vai moldando as relações de poder explicitados por meio do saber
médico baseado em homogeneização do conhecimento, normalização, hierarquização e centralização
(Foucault, 1999).
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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debate
Em proposta pedagógica, baseada na mediação do processo de aprendizagem, ambos os atores
aprendem com o processo, cabendo ao supervisor muito mais a função de mediador do processo de
aprendizagem. É necessário, portanto, reconhecer que esses profissionais atuam nos territórios de
prática com as suas valises ou caixas de ferramentas que eles acumulam com a vida. Apoiar estes
profissionais para que eles ampliem as suas caixas de ferramentas ou valises (Merhy, 2002) podem
agregar novos saberes e novas práticas em saúde a partir do encontro entre o trabalhador e usuário.
Essa perspectiva pode gerar um deslocamento desses profissionais de uma postura centrada em
procedimentos, na queixa-conduta, para uma atitude agenciadora do cuidado.
A educação permanente passa, então, a ser estratégica para mudar o processo de trabalho e investir
em práticas cuidadoras (Merhy, 2002). A educação permanente, diferentemente de outras ações
educativas como cursos, Telessaúde e outros é um dispositivo que propõe articular aprendizado no
trabalho e a partir do trabalho, produzindo implicações e compromissos com a mudança do processo de
trabalho e com as necessidades de saúde da população.
Para produzir potência, as políticas de provimento devem ter o compromisso com a mudança do
processo de trabalho. Para que isso ocorra, é necessário o aprendizado mútuo entre a academia e os
serviços, na busca de compromisso com a mudança da realidade sanitária local e a perspectiva da
educação permanente, cujo conceito ainda não foi devidamente incorporado pelo SUS, produzindo
fatores de confusão com as práticas educativas no âmbito da educação continuada.
Inquietações do presente, rumo ao futuro:
a regulação da formação profissional e do trabalho por parte do Estado
Analisando esses processos de forma dinâmica e dialética, observamos que o PROVAB está, a cada
momento, passando por mudanças, seja no âmbito das modelagens de contratação, seja na proposta
educacional. Novos formatos para o PROVAB 2013 foram incorporados, um deles refere-se ao
profissional médico, que passa a receber bolsa federal pelo trabalho, na modalidade
trabalhador-estudante, com a obrigatoriedade de cursar a Especialização em Atenção Básica. Essa
dimensão de bolsa de estudo, que articula trabalho e educação, tem a perspectiva de fortalecer o
aspecto de formação e de educação do PROVAB.
O PROVAB, apesar de todas as dificuldades no seu processo de implantação, está contribuindo para
o provimento de médicos nas diversas regiões do Brasil. Como avanços dessa experiência, podemos
destacar a possibilidade de levar assistência médica à população, ampliando o acesso às ações e serviços
de saúde nas regiões mais remotas do país e a integração ensino-serviço por intermédio da inserção das
universidades no SUS por meio das atividades de supervisão.
Entre as dificuldades relatadas na primeira versão do programa, destacam-se as desistências dos
profissionais em participar do programa, a dificuldade de comunicação entre os diversos atores, a falta
de integração dos diversos componentes do programa, ainda operando de forma fragmentada e
desarticulada, concepção de supervisão médico – centrada e com viés avaliativo e punitivo.
Embora prover médicos seja necessário, a agenda do campo temático do trabalho e da gestão da
educação na saúde se constitui uma agenda estratégica para o SUS. A regulação do trabalho e da
formação profissional previsto na Constituição Brasileira e na Lei 8.080/1990, ainda não foi
implementada, apesar da política de provimentos de médicos trazer alguns elementos regulatórios na
agenda.
A análise dos processos de implementação do PROVAB nos revela, entretanto, que, além de uma
agenda no campo da macropolítica, há a necessidade de formular propostas que considerem a
micropolítica dos processos produtivos, considerando que “todos fazem gestão, todos fazem educação
permanente e todos de uma certa maneira governam” (Merhy, 2013) ao definirem condutas dentro dos
seus consultórios, nas visitas domiciliares e na dinâmica da vida.
A incorporação da educação permanente como estratégia para superar a dicotomia ensino e serviço,
revela-se como um dispositivo potente para a mudança do modelo de atenção e do cuidado à saúde da
população.
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COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
O fortalecimento da proposta de supervisão sob a perspectiva do apoio às equipes e de forma
multiprofissional, nos princípios da educação permanente, reconhecendo, cooperando com os
trabalhadores do SUS, entre eles os profissionais do PROVAB, produzindo agenciamentos, pode ser um
importante fator de mudança das práticas e do cuidado em saúde.
Desse modo, dialogar sobre quais modelos de formação profissional e de educação permanente se
quer construir e quais as disputas e os interesses, assim como definir qual marco regulatório na gestão
do trabalho e da educação para o país, são desafios importantes a serem discutidos em uma agenda
propositiva nesse campo temático.
Colaboradores
Os autores Mônica Sampaio de Carvalho e Maria Fátima de Sousa participaram da
elaboração do artigo de sua discussão e da redação e da revisão do texto.
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Se analiza como ha enfrentado Brasil la carencia de médicos y los intentos de superar la
situación de forma articulada con las políticas de salud y estrategias de formación y
fijación de esos profesionales, de acuerdo con las necesidades del Sistema Único de
Salud (SUS). Se consideró como estudio de caso el PROVAB (Programa de Valorización
de la Atención Básica) creado por el Gobierno Federal en 2011, cuyo objetivo es
proporcionar profesionales de salud a las localidades que los necesitan, destacándose
las siguientes ofertas del programa: puntuación del 10% en los exámenes de prácticas
después de evaluación del profesional y actividades estructuradas de educación a
distancia y supervisión. El PROVAB se analizó dentro del contexto actual de la política
de Gestión del Trabajo y de la Educación en la Salud, buscando entender su
implementación mediante discursos, movimientos, acontecimientos y datos cualitativos
y cuantitativos puestos a disposición por el Ministerio de la Salud. Se señalan caminos
para el desarrollo de la gestión del Trabajo y de la Educación en la Salud en Brasil.
Palabras-clave: PROVAB. Atención Básica a la Salud. Educación médica. Práctica
profesional. Educación permanente.
Recebido em 16/05/13. Aprovado em 08/06/13.
926
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.913-26, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/1807-57622013.0565
debate
Gestão da educação e do trabalho na saúde: enfrentando crises ou enfrentando o problema?
Management of healthcare education and work: dealing with crises or dealing with the problem?
¿ Gestión de la educación y del trabajo em salud: ¿ enfrentamento de crisis o del problema?
Alcindo Antônio Ferla1
Lisiane Bôer Possa2
O artigo de Mônica Carvalho e Maria Fátima de Sousa traz para o debate uma
questão muito relevante, que pertence a uma agenda ainda não concluída nas
políticas de saúde do Brasil: a gestão da educação e do trabalho na saúde e o
modo como essa gestão se articula com as políticas de saúde. Esse é um tema que
mobiliza diferentes perspectivas. Queremos abordá-lo sob a de política pública com o foco que as autoras propõem, ou seja, tomando o provimento e a fixação
de profissionais como questão marcadora - e dialogar com a afirmação de que é
necessário definir um “marco regulatório” para orientar as ações dos diferentes
atores.
Inicialmente, é preciso considerar que as políticas de saúde induziram a
ampliação da oferta de serviços de saúde no país. Considerando os dados da
Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária de 2009 (IBGE, 2010), verificamos um
crescimento de 220% no número de estabelecimentos de saúde no período de
1988 a 2009, sendo que tal fenômeno é maior no setor público (o número de
estabelecimentos mais que dobrou de 21,5 mil para 50,3 mil) do que na iniciativa
privada (de 12,2 mil para 24,5 mil no mesmo período). Ainda entre 1988 e 2009,
os dados mostram também uma pequena retração nos estabelecimentos de saúde
com internação e um grande crescimento nos serviços de saúde sem internação
(26,5 mil para 67,9 mil), tanto no segmento público (19,6 mil para 47,4 mil)
quanto no privado (6,9 mil para 20,5 mil). Esse crescimento do número e da
diversificação dos serviços produziu um incremento substancial no número de
empregos em todo o país, aumentando de pouco mais de 575 mil, em 1980, para
mais de 2 milhões de empregos em 2009 (IBGE, 2010). Esses dados não se
referem ao setor de saúde como um todo, mas aos serviços assistenciais. Além da
ampliação da rede, esses dados informam a mudança substancial do perfil do
trabalho, efeito que está associado, em grande medida, à implantação de políticas
de atenção básica, em particular, à Estratégia de Saúde da Família; portanto, com
expectativa de reorganização de práticas. A questão que se coloca é: como essa
mudança no perfil dos serviços foi absorvida pela formação dos trabalhadores?
O próprio artigo informa que essa mudança passou ao largo da formação e das
diversas iniciativas pontuais feitas no período, tanto nos aspectos quantitativos
quanto qualitativos. Sem alongarmos essa argumentação, basta o registro de que
as tentativas de aproximação da gestão da educação e do trabalho não obtiveram
Bacharelado em Saúde
Coletiva, Programa de
Pós-Graduação em Saúde
Coletiva, Universidade
Federal do Rio Grande
do Sul. Rua São Manoel,
963, Bairro Santa
Cecília. Porto Alegre,
RS, Brasil. 90620-110.
[email protected]
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.927-8, out./dez. 2013
1,2
927
COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
êxito em articular as necessidades do sistema de saúde e as mudanças na formação. No caso em
questão, observam-se mudanças nas ações e nos serviços e manutenção das lógicas formativas e da
inserção dos profissionais de saúde nas práticas. Evidenciam-se, também, resistências às políticas para a
superação do descompasso entre as transformações nas políticas de saúde e de gestão da educação e
do trabalho. Aqui, parece importante recuperarmos não apenas as análises sobre as características do
modelo biomédico e sua prioridade na assistência e no hospital, conforme fartamente descrito na
literatura crítica às práticas vigentes (Ferla, 2007), mas, também, o conceito de instituições médicas
(Luz, 1986), que descreve as racionalidades atuantes em organizações de saúde e de educação.
A autonomia entre políticas de saúde e educação e o predomínio de lógicas organizadas em torno
do modelo de práticas vigentes têm parte de sua explicação associada à ação de instituições médicas,
seja de âmbito corporativo, seja na reprodução do discurso hegemônico sobre a saúde. Parece-nos que
um “marco regulatório” que pretenda capacidade institucional não deve negligenciar os efeitos de
poder que essa rede de organizações e de discursos sobre a saúde tem sobre a formação e o trabalho.
Ou seja, não basta apenas a aproximação entre os Ministérios da Educação e da Saúde para a
formulação de políticas específicas, mas, também, a definição de uma orientação geral com base noutra
lógica.
Mantendo o diálogo sobre a definição de um “marco regulatório”, compartilhamos o diagnóstico de
que iniciativas pontuais, como o PROVAB, terão apenas efeitos efêmeros, conforme demonstrado no
estudo. O problema do provimento/da fixação de profissionais, sobretudo, médicos, é complexo, e não
será resolvido pontualmente. As necessidades e características do trabalho no cotidiano demandam mais
potência para a definição das mudanças. Também mais criatividade, o que nos faz lembrar a iniciativa
dos Estágios e Vivências na Realidade do SUS (VER-SUS), retomado em 2011, e que já mobilizou
estudantes e instituições, em diversas localidades do país, para o cotidiano do trabalho no SUS e a
política de educação permanente.
O novo “marco regulatório”, além de superar o modelo biomédico, precisa articular diferentes
profissões e, sobretudo, constituir mecanismos efetivos de gestão com base no interesse público. A
Constituição brasileira, na afirmação da cidadania, define a participação da população como diretriz do
sistema de saúde, como marcadora do interesse público; e o Estado, como mediador dessa condição. A
regulação corporativa, base do modelo atualmente vigente, teve início na primeira experiência da saúde
como política pública por delegação e por conveniência do Estado. No sistema de saúde atual, fóruns
híbridos de participação substituem a “especialização” na definição das bases para políticas. A superação
da lógica corporativa deve incluir o reconhecimento desses espaços como fóruns de negociação do
interesse público.
A resposta governamental às dificuldades de provimento e fixação não pode esquivar-se de colocar
como desafio não apenas a distribuição de profissionais, objeto de iniciativas pontuais implementadas há
anos, mas os avanços na qualidade da clínica, da gestão, da formação e da participação no SUS, sob
pena de reiterarmos o erro de mobilizar soluções para crises sucessivas, e não para o problema, que é o
divórcio entre a gestão da educação e a gestão do trabalho na saúde.
Referências
FERLA, A.A. Clínica em movimento. Caxias do Sul: Educs, 2007.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Assistência Médico-Sanitária 2009.
Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
LUZ, M.T. As instituições médicas no Brasil: instituições e estratégias de hegemonia.
3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
Recebido em 25/06/13. Aprovado em 06/07/13.
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DOI: 10.1590/1807-57622013.0733
debate
Médicos para o SUS: gestão do trabalho e da educação na saúde no olho do furacão!
Physicians for the Brazilian National Health System (SUS): management of healthcare education
and work at the eye of the hurricane!
!
Médicos para el Sistema Único de Salud (SUS): gestión del trabajo y de la educación em el ojo del huracán!
Laura Camargo Macruz Feuerwerker1
O artigo apresenta o problema do provimento e da fixação de médicos no Brasil,
com foco na atenção básica, e as iniciativas políticas a ele endereçadas,
particularmente, o Programa de Valorização da Atenção Básica (PROVAB).
Inspirando-se em Foucault, as autoras utilizam como categorias analíticas: o poder,
o saber, o trabalho e a meritocracia; e, também, como referenciais para a análise:
formação médica, educação permanente, saberes tecnológicos, poder médico,
relação médico-paciente, autonomia, disputa entre corporações e governo, entre
outros.
Difícil a escolha de por onde desenvolver o debate, uma vez que tudo instiga a
ação: o tema, o modo como se contou a história, como se fez a análise, como
foram usados os referenciais anunciados etc.
À luz da teoria de Foucault, creio ser possível reconstruir a história com uma
perspectiva mais crítica. Durante todo o processo de construção do SUS, as
agendas da gestão do trabalho e da educação na saúde vinham sendo
negligenciadas – até o momento atual, em que partes delas ganham importância
na intervenção política do governo federal. Explicações? A perspectiva dominante
– de considerar trabalhadores em saúde como recursos e usuários como objeto de
intervenção – visibiliza saberes (conceitos) e poderes. Trabalhadores-recursos,
insumos do processo de trabalho e usuários-objeto de intervenção não são
reconhecidos como atores ativos da produção do SUS. Mas são atores ativos, que
operam na micropolítica do cotidiano – disputando projetos, fazendo escolhas,
ocupando, uns, lugares de trabalho, e não outros – e também na definição das
políticas, como corporação, impondo ou embargando agendas e processos de
negociação.
A omissão em relação à agenda da gestão do trabalho e da educação tem
consequências graves, sobretudo, quando o sistema público convive com um
sistema privado de saúde. O SUS, assim, acumula derrotas sucessivas: na disputa
do imaginário público em relação ao conceito e à produção da saúde, na disputa
pelo modelo de atenção, na produção das expectativas e sonhos dos futuros e dos
atuais trabalhadores da saúde, na orientação da formação dos profissionais de
saúde – tanto em relação ao perfil como na localização de cursos de graduação,
residências etc. Nos últimos doze anos, houve iniciativas, mas, no geral, tímidas,
localizadas, débeis, diante da ferocidade da disputa social enfrentada.
1
Departamento de
Prática de Saúde Pública,
Faculdade de Saúde
Pública, Universidade de
São Paulo. Av. Dr.
Arnaldo, 715.
São Paulo, SP, Brasil.
01246-904 .
[email protected]
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.929-30, out./dez. 2013
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COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
Faltam médicos no Brasil? Sim! E a situação atual é uma coprodução da omissão dos governos e da
atuação ativa da corporação médica e dos agentes de mercado na saúde. De quantos médicos
precisamos? Depende do modelo de atenção, dos arranjos tecnológicos do trabalho, da aposta ou não
na produção de redes vivas, de espaços de encontro e diálogo entre trabalhadores etc. Mas, muito além
do número, é preciso discutir quanto a que médicos precisamos. Não apenas se serão generalistas ou
especialistas. Está em questão a base da formação: orientada ao biológico ou às necessidades dos
usuários, centrada em procedimentos ou na produção do cuidado, produzida para subordinar/enquadrar/
controlar ou para ampliar possibilidades de produção da vida? Essas definições são importantes para os
médicos (e trabalhadores da saúde em geral), independentemente da especialidade e local de trabalho.
Necessário importar médicos? Neste momento, sim, dada a dramática escassez experimentada não
somente na atenção básica e nos lugares distantes ou muito pobres, mas, também, na urgênciaemergência, nos CAPS, nos ambulatórios de especialidades, nas UTIs etc.
Mas é preciso enfrentar o problema de modo incisivo. Ampliar as vagas de graduação, sim, mas não
se apoiando no mercado (escolas privadas orientam-se pelo mercado e, visando ao lucro, seguirão nos
grandes centros, de maior concentração de riqueza). É preciso assegurar que os estudantes oriundos dos
bairros populares, das comunidades de trabalhadores rurais, indígenas e quilombolas tenham a
possibilidade de ocupar um significativo número de vagas nos cursos de medicina. Cotas são
importantes para isso, mas, também, é necessário regionalizar – possibilitar, por exemplo, que os
estudantes da região Norte acessem as vagas ali existentes – coisa que nem o vestibular, nem o Sisu
asseguram; os estudantes da região Sudeste têm ocupado a grande maioria das vagas dos cursos de
medicina em todo o país.
Para mudar o perfil da formação - aí discordando das autoras -, a questão principal não é a
pedagógica, a da relação saber-poder entre professores e estudantes. O embate principal se dá em
torno da relação com os usuários: usuários-corpo (com órgãos e sem órgãos), usuários-objeto, usuários
que devem ser submetidos pelos profissionais, aí, sim, numa relação saber-poder que recusa todo e
qualquer saber que não seja fruto da ciência. Há que se fazer a vida e a produção do cuidado invadirem
a formação. Não somente nas unidades básicas, mas, também, nos ambulatórios e hospitais, trazendo a
integralidade e as tecnologias leves para o centro da cena. E não somente na graduação, mas, também,
nas residências, em todas elas.
O PROVAB é uma medida em prol do provimento de médicos, especialmente, para os locais mais
distantes. A iniciativa é válida, pois há a necessidade dramática de estratégias para se interferir num
mercado de trabalho superaquecido e atrair médicos para a saúde da família. Mas o processo não é de
valorização da atenção básica, já que o principal atrativo para os jovens médicos é, exatamente, o
acréscimo na nota nos concursos para residência (por meio dos quais ascendem às especialidades e se
distanciam da atenção básica).
Salário, moradia, acesso à internet e formação, boas condições de trabalho, mas não somente para
os médicos, e, sim, para todos os trabalhadores da saúde. Boas condições de trabalho que não são
apenas materiais, mas incluem a produção de espaços de construção compartilhada, de
problematização, de produção de deslocamentos e que implicam outro encontro entre médicos e todos
os outros trabalhadores da saúde.
Inclusive, trabalhando com um conceito ampliado de cuidado, a escassez de médicos pode ser uma
boa oportunidade para se reinventarem as equipes e o trabalho interprofissional no SUS e para se
reavaliar o que podem fazer as equipes em seus encontros com os usuários, no sentido da escuta, da
desbiologização do viver, da produção mútua e do enriquecimento das existências. Oportunidade para
desmanchar o critério médico-centrado para a legitimação de equipes!
Recebido em 27/08/13. Aprovado em 03/09/13.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.929-30, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/1807-57622013.0762
debate
Alguns comentários sobre o tema
Some comments on the topic
Algunos comentarios sobre el tema
Marco Aurelio Da Ros1
O tema ganhou excepcional atualidade, além de ser altamente complexo.
Acredito que vivemos um momento histórico e de inflexão no assunto provimento
de profissionais de saúde (entre eles, os médicos) para as necessidades da
população brasileira. O artigo enviado para a discussão tem grandes méritos, e
alguns pontos que, imagino, poderiam ter sofrido maior reflexão. Localiza, já no
resumo, um dos cernes da questão: a educação.
Portanto, uma das matrizes de discussão proposta é o modelo de formação e a
necessidade de educação permanente, em especial, para a atenção básica, que é
a estrutura da organização de todos os países que conseguiram viabilizar seus
sistemas de saúde. Para encarar a situação brasileira, temos um problema quali e
quantitativo. Nosso modelo formador atual não forma para uma boa prática em
AB, e estamos formando muito poucos médicos no Brasil (temos muitas
faculdades, mas com poucos alunos cada uma), além de estarem mal distribuídos.
As residências, que formam para as especialidades embora sustentadas pelo
governo, não atendem às necessidades da população brasileira em sua grande
maioria. Isso está bem localizado no artigo, que conta, ainda, com categorias de
análise muito consistentes.
Acredito, porém, que deveríamos ser mais generosos com os antecedentes
históricos que tentaram resolver a questão da formação de médicos adequados
para a realidade brasileira. Nas décadas de 1970 a 1990, imaginávamos (nós, do
movimento sanitário, como proposta organizativa) que poucos médicos eram
atraídos para a saúde coletiva, para a Medicina Comunitária (hoje, chamada de
Família) em função da baixa oferta salarial e de não existir essa demanda, como
mercado de trabalho. As primeiras iniciativas de enfrentar essa situação datam do
PIASS, da Residência em Medicina Comunitária do Murialdo ou da Reforma
Curricular da UFMG, todas em 1976. No pós-ditadura, para acelerar o provimento,
após a criação do SUS, foi instituído o PSF, com salários mais atrativos, que fornecia
subsídios governamentais para fixação. A resposta foi pífia e correspondia a recémformados - que ainda não tinham sido aprovados nas residências sonhadas e, após
seis meses ou um ano, abandonavam seu posto de trabalho novamente em busca
da residência - ou a médicos aposentados em cidades grandes, buscando
qualidade de vida no interior do país.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Programa de
Mestrado
Profissionalizante em
Saúde e Gestão do
Trabalho, Universidade
do Vale do Itajaí. Rua
Uruguai, 458, bloco F6,
sala 311, Centro. Itajaí,
SC, Brasil. 88302-202.
[email protected]
1
v.17, n.47, p.931-2, out./dez. 2013
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COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
Especialmente com a experiência do CINAEM, “descobriu-se” que as faculdades, em sua maioria,
estavam ensinando dentro da lógica flexneriana e de sustentação ao complexo médico-industrial
(portanto: hospital, exames, remédios, seguro-saúde). Tratava-se, pois, de modificar o modelo
formativo. Para isso, as diretrizes curriculares nacionais (DCN), aprovadas em 2001, pareciam ser a saída.
Como elas, na prática, não se efetivaram, o governo, em 2002, lança o edital do Pró-Med para
estimular as mudanças curriculares na direção das DCNs. Acreditando na sua eficácia, o governo amplia,
no ano seguinte, e abre, para outros cursos da área da saúde, o Pró-saúde.
É possível que tais políticas tenham tido algum grau de impacto (não mensurado adequadamente),
mas, na prática, o problema continuava como se nenhuma medida tivesse sido tomada.
Acho importante essa história para o debate a fim de que se enfatizem as diversas tentativas criação do PSF, salários consequentes, DCN, estímulo para mudanças curriculares, ampliação de vagas
para residências em MFC (que não são preenchidas) e bolsas para preceptores-tutores nas UBSs (com o
programa PET) - e como tudo isso parece não mexer com o imaginário dos médicos em relação às
necessidades da população.
É nesse contexto, pós-experiências, que não resultaram em melhoria significativa da atenção/
distribuição dos médicos, que surge um novo discurso/programa no MS, o PROVAB, inequivocamente
o tema central da análise deste artigo.
A contextualização anterior serve não apenas para reforçar a bibliografia utilizada pelos autores, que
localizam as causas, mas, também, para ampliar a noção de que é um problema de altíssima
complexidade, e a categoria médica não responde às expectativas propostas pelos programas.
O Provab ainda não tem uma avaliação analítica de seus resultados, até pela localização temporal,
mas já se adiantam algumas coisas pelas leituras da imprensa e pelos informes ministeriais. Sua procura
é pequena, atende à necessidade dos médicos de conquistarem os 10% de pontos a mais para a busca
de vaga em uma residência; são preenchidas vagas em cidades grandes ou do litoral; a supervisão é
insuficiente, e não fixa os médicos.
Ao final do ano de 2012, em reunião nacional de prefeitos, ficou claro que era necessária uma
política mais agressiva para resolver o problema da falta de médicos. No primeiro semestre deste ano
(2013), foi apresentado, por meio da MP 621, o programa Mais Médicos para o Brasil, que
desencadeou uma reação imensa, tanto da categoria médica como da imprensa.
O desejo dos médicos é: trabalhar em cidade grande ou de litoral, especializar-se em tecnologia dura
e receber altos salários, consultório privado, hospital, especialidade de ponta; e sentem-se inseguros e
despreparados para enfrentar os desafios impostos pela tecnologia leve, e o trabalho no interior.
Não se dispõem a ir para pequenas cidades do interior da Amazônia, ou do Nordeste, mesmo com
altos salários, e justificam que é por não terem disponibilidade de equipamentos de alta tecnologia ou
planos de carreira. É nesses locais, porém, que habitam, pelo menos, trinta milhões de brasileiros e não
podem esperar esses equipamentos para serem atendidos. Vão morrer antes, de diarreia, infecção
respiratória, hipertensão e doenças por falta de vacinação. Esses médicos também não se dispõem a fazer
uma avaliação de sua capacidade médica ao finalizar seu curso (um revalida para os brasileiros formados
aqui). Reagem, de forma fascista, à chegada de médicos estrangeiros; sentem-se ameaçados; querem o
Revalida só para esses médicos, não querem modificação no tempo de formatura. Ou seja: expõem-se,
enfim, as origens de classe e o tamanho do desafio para se cumprir um SUS como foi imaginado.
A polêmica, é provável, ainda vai durar algum tempo, mas, seguramente, só a vinda de médicos do
exterior também não irá resolver o provimento dos médicos. É mais uma medida paliativa. É preciso
mexer com ideologia, com trabalho em equipe, com os outros profissionais. E, sobretudo, alterar a
política formativa, aliando a perspectiva de emprego somente para os formados, conforme a
necessidade do povo – em quantidade e qualidade boa. Cuba, um país pobre, conseguiu reverter os
indicadores de saúde e, hoje, tem o maior índice de médicos por mil habitantes do mundo. O
momento é de enfrentamento deste nó. O artigo foi escrito quando se abria a tempestade, que, agora,
continua. Vai ser histórico também.
Recebido em 27/09/13. Aprovado em 29/09/13.
932
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.931-2, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/1807-57622013.0789
debate
Réplica
Reply
Respuesta
Do provimento para a produção do encontro no SUS:
de que médicos precisamos? Qual saúde desejamos?
Nossos agradecimentos aos editores e pareceristas da revista, pelo incentivo à ampliação dos
diálogos acerca do artigo sobre provimento e fixação de médicos no Brasil, e aos docentes e
pesquisadores, Alcindo Antônio Ferla, Lisiane Bôer Possa, Marco Aurelio Da Ros e Laura Feuerwerker,
pelas concisas apreciações e agudas reflexões no entorno das dimensões analíticas que circunscrevem o
artigo (poder, saber, trabalho e meritocracia), todas com a intenção de iluminar as raízes do problema.
As observações dos debatedores instigam não só reflexões de grande relevância para a questão do
provimento e da fixação de médicos no Brasil, mas, também, para uma análise mais cuidadosa, na
conjuntura atual, no tocante aos desafios da gestão da educação e do trabalho no ano em que
celebramos os 25 anos de constituição do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os comentários dos autores/debatedores acima mencionados ressaltaram algumas dimensões das
quais não foram tratadas no artigo original, por exemplo, o Programa Mais Médicos, e a vinda de
profissionais estrangeiros para o país. Esta estratégia, como parte do planejamento governamental,
ampliou o debate sobre provimento de médicos, trazendo vários pontos de vista que divergem no
campo do poder e do conjunto de interesses conflitantes - o ponto de vista da corporação que deseja
manter sob seu controle a regulação do trabalho médico e, o ponto de vista do governo que decidiu
enfrentar o tema, de maneira a produzir uma “desestabilização” do status quo, alterando as relações no
campo institucional, da micropolítica e do cuidado em saúde.
Surge, ainda, com mais evidência, a participação da sociedade, por meio dos movimentos sociais
que, desta vez, parecem apoiar as medidas do governo.
Os autores convidados a debater concordam com os argumentos apresentados no artigo de que
temos um problema de quantidade de médicos e de distribuição, mas acreditam, como nós, que não é
apenas o provimento que vai resolver o problema da saúde no país. Da Ros aposta que o problema é
qualitativo e quantitativo; Feuerwerker traz o debate da micropolítica; e Ferla e Bôer apontam para a
superação do modelo biomédico na perspectiva da regulação. Todos os autores identificam que o
modelo de formação atual precisa mudar para uma visão mais ampliada de cuidado.
Feuerwerker propõe que seja ampliada a política de regionalização dos novos cursos e prevalência
do público, porque tais cursos, além de proporcionarem oportunidade à população local de concorrer às
vagas apresentadas, acabam contribuindo para a efetivação de seus profissionais.
Insiste Da Ros em propostas mais substanciais de provimento, para além do PROVAB, como o Mais
Médicos, e faz recordar uma série de iniciativas históricas, apresentadas, também, por nós no artigo, e
que buscaram e buscam resolver questões dessa natureza. Vale destacar que, entre as ações propostas
no Mais Médicos, a vinda de médicos estrangeiros pode, no nosso entender, trazer importantes
contribuições para as regiões brasileiras. Isso se explica, entre outros fatores, pelo compromisso desses
profissionais com a Saúde Pública e com a Atenção Básica nos seus locais de origem.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.933-5, out./dez. 2013
933
NEVES, C.A.B.
COMO O BRASIL TEM ENFRENTADO ...
No contexto das grandes conturbações, é possível concordar com Ferla e Bôer, quando destacam
que a regulação da formação médica é uma agenda estruturante, mas nosso país ainda não a tratou
como tal. Entretanto, são históricas e visíveis as várias tentativas de “resolver” essa questão.
Quanto à linha de raciocínio de Feuerwerker, com quem concordamos em parte, esclarecemos que
a contribuição que Foucault (1999, 1998, 1996) traz a esse debate e ao artigo apresentado extrapola a
discussão pedagógica. Ela vai para o campo do saber – disciplinar, que ele mesmo define como controle
das subjetividades. Isso é evidenciado no cotidiano dos serviços de saúde, nas relações de trabalho, nas
relações com os usuários e no âmbito das universidades no campo da formação.
Esse campo de saber – disciplinar – interfere nas alteridades entre os sujeitos, onde os processos de
submissão e sujeição a conceitos, conteúdos e práticas ocorrem no dia a dia e acabam conformando a
visão da sociedade sobre o médico, visto hoje, por parte desta, como um ser superior aos outros
cidadãos, acima do bem e do mal. Como, então, construir um projeto terapêutico negociado entre o
médico, a equipe e o usuário? Na maioria das vezes, a proposta é imposta na perspectiva da adesão ou
não do usuário ao tratamento.
A aposta no trabalho vivo proposto por Merhy (2002) e Merhy et al. (2003, 2000), a partir de uma
prática centrada no cuidado, e não em procedimentos, rompe com a visão medicalizante, porque
acredita na potencialidade do encontro entre sujeitos usuários – trabalhadores, estudante, professor e
equipes, entre outros –, a partir do qual todos são capazes de construir os seus modos de existência,
seja de sujeição, seja de resistência ou de alteridade.
Essa visão também dialoga com o conceito de meritocracia, identificada como ponto de conflito
entre gestores e corporação no PROVAB, e que, hoje, podemos ver sendo disputada na vinda de
médicos estrangeiros para o Brasil, mais especificamente os cubanos, nesse caso.
A meritocracia de que estamos falando aqui não é aquela que nos é apresentada por meio de uma
visão elitizada, preconceituosa e xenofóbica.
O que propomos é uma meritocracia articulada à experiência de cada um no âmbito do trabalho, por
meio do qual os saberes servem como ferramenta (Merhy et al., 2003), e o trabalho pode ser um lugar
de criação, de compartilhamento e de aprendizado.
Estamos de acordo com o que afirma Feuerwerker quando assinala a relevância da construção de
uma política pública que se desvincule da lógica instrumental. A aposta no reconhecimento e na
cooperação, como nos sugere Merhy em palestra proferida no Seminário da Rede Unida em Londrina
em 2013, significa uma mudança central nas estruturas de biopoder. Reconhecer que todos são sabidos,
que todos fazem gestão, que todos fazem educação, e que precisamos de menos adestramento e mais
potencialização dos processos existentes nos territórios. Isso é o próprio conceito de Educação
Permanente – construção, negociação, conexão com o outro.
Discordando da corporação, é óbvio que, sem o médico, não conseguiremos assegurar o mínimo de
dignidade aos seres humanos, que é o acesso a um médico quando ficam doentes. Mas, não é apenas
o fato de termos médicos nas localidades que estamos assegurando práticas cuidadoras e de satisfação
dos usuários. Se não alterarmos a formação e o modelo de atenção vigente, talvez tenhamos
dificuldades em longo prazo.
A ausência da regulação estatal também tem produzido distorções no processo de formação e de
recrutamento do médico para o mercado. Essa é uma pauta necessária, mas, não, pela perspectiva do
controle dos sujeitos, e sim pela do controle da lógica privatista que acomete o SUS hoje, interferindo
nas escolhas profissionais e na lógica de cuidar. Não passa, apenas, por copiar experiências
internacionais e adaptá-las ao Brasil. Antes, é necessário respondermos à questão já apontada por Ferla
e Bôer, quando nos instiga indagando de que médicos a sociedade brasileira precisa. Para, assim,
desenharmos o modelo de regulação que necessitamos.
E mais, é necessário não perdemos de vista outras questões, como: de que modelo de atenção à
saúde estamos falando (Sousa, 2007, 2002) e de quem estão a serviço esses médicos? Com isso,
seguiremos ampliando os diálogos, por meio de estudos e pesquisas que venham complementar essa
análise, tanto sobre o ponto de vista da reforma do ensino médico, como da educação permanente dos
trabalhadores do SUS, para que possamos, em um futuro breve, afirmar os avanços do Brasil na política
e gestão do trabalho e da educação na saúde para o seu povo!
934
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.933-5, out./dez. 2013
debate
Referências
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996.
MERHY, E.E. Gestão para a produção do cuidado em redes de atenção à saúde. In: ENCONTRO
REGIONAL SUL DA REDE UNIDA, 2013, Londrina. Palestra ... Londrina, 2013. Partes 1 e 2. Disponíveis
em: <https://www.dropbox.com/s/mi1viossy7kbklr/Emerson%20Elias%20Merhy%20%20Encontro%20Regional% 20Sul% 20da%20Rede%20Unida%20-%20.mp4>; <https://
www.dropbox.com/s/qzptbpb4nhh9vpk/Emerson%20Elias%20Merhy%20%20PARTE%2002%20Encontro%20Regional%20Sul%20da%20 Rede%20Unida.mp4>. Acesso em:
17 nov. 2013.
______. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002.
______. et al. O trabalho em saúde: olhando e experimentando o SUS no cotidiano. São Paulo:
Hucitec, 2003.
______. et al. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender
as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface (Botucatu), v.4, n.6, p.109-26, 2000.
SOUSA, M. F. (Org.). Programa Saúde da Família no Brasil: análise da desigualdade no acesso à
Atenção Básica. Brasília: Editora do Departamento de Ciência da Informação e Documentação da
Universidade de Brasília, 2007.
______. Os sinais vermelhos do PSF. São Paulo: Hucitec, 2002.
Recebido em 18/09/13. Aprovado em 25/09/13.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.933-5, out./dez. 2013
935
DOI: 10.1590/1807-57622013.3811
espaço aberto
O impacto da extensão universitária
sobre a formação acadêmica em Odontologia*
Cristina Berger Fadel¹
Danielle Bordin²
Eunice Kuhn³
Luciana Dorochenko Martins4
Introdução
Conforme o Plano Nacional de Extensão Universitária, elaborado no Fórum de
Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (Brasil, 2002a), a
extensão universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o
ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora
entre universidade e sociedade. Apresenta-se, ainda, como uma das práticas
acadêmicas com potencial para interpretar, na universidade, as demandas que a
sociedade impõe, uma vez que permite socializar o conhecimento e promover o
diálogo entre o saber científico e o saber popular. Entende-se, aqui, que esta
aproximação e (re)significação dos saberes deva ser exposta como uma
importante estratégia para a ação e a transformação da realidade em saúde de
diferentes populações, num verdadeiro processo de mudança do método
formativo tradicional.
Especificamente para o campo acadêmico, verifica-se uma preocupação
crescente com o modelo formador do profissional em saúde, na qual, cada vez
mais, se configura a necessidade de profissionais aptos a contribuírem com a
sociedade num contexto de profundas mudanças, não somente em seu próprio
campo profissional, mas, também, nos campos político e social (Costa, 2007).
Neste sentido, a extensão universitária assume o papel de potencializadora desta
relação, por meio da diversificação de cenários e metodologias de aprendizagem,
implementando novos espaços de discussão, análise e reflexão das práticas no
cotidiano do trabalho e dos referenciais que as orientam (Ferreira Fiorini, Crivelaro,
2010; Ceccim, 2005; Feuerwerker, Costa, Rangel, 2000), reafirmando, ainda, o
seu compromisso na formação acadêmica humana e social.
A partir do reconhecimento da importância de ações extensionistas para
docentes, discentes, técnicos e sociedade, com vistas a potencializar e ampliar os
patamares de qualidade das ações institucionais, o Departamento de Odontologia
da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) desenvolve uma iniciativa
inovadora intitulada ‘Projeto nós na rede: contribuições da Odontologia para
educação, prevenção e manutenção da saúde’. Como principais objetivos,
destacam-se: atenuar a carência de políticas de apoio voltadas para a comunidade
acadêmica da UEPG, especialmente em situação de vulnerabilidade social, e a sua
Departamento de
Odontologia,
Universidade Estadual de
Ponta Grossa. Rua Dr.
Paula Xavier, 909. Ponta
Grossa, PR, Brasil.
84010-270.
[email protected]
² Mestranda em
Odontologia Preventiva e
Social, Faculdade de
Odontologia de
Araçatuba, UNESP - Univ
Estadual Paulista.
1,3,4
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comunidade externa, no âmbito da saúde bucal, e oportunizar, ao acadêmico de Odontologia, uma
vivência prática de atenção coletiva em saúde. Este projeto atua como instrumento viabilizador da
estratégia de Promoção da Saúde (Brasil, 2010), disseminando informações, com ênfase no
empoderamento e na autonomia dos sujeitos, realizando ações de cunho educativo e preventivo em
saúde bucal, e acolhendo necessidades odontológicas curativas.
Percebendo a extensão universitária como uma atividade capaz de imprimir novos rumos à formação
acadêmica, constituindo-se instrumento indispensável de aprendizagem e de formação profissional e
pessoal, o presente estudo buscou avaliar a contribuição da extensão universitária, por meio do projeto
‘Nós na Rede’, na formação e história de vida de estudantes do curso de Odontologia da UEPG.
Metodologia
Este trabalho qualitativo, classificado como descritivo-exploratório, foi aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da UEPG, segundo a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
Os informantes
Constituíram-se sujeitos desta pesquisa os acadêmicos de Odontologia que participaram do projeto
de extensão ‘Nós na rede’, no período compreendido entre abril de 2011 e abril de 2012, quando em
acordo com sua participação e sob garantia de total sigilo e anonimato. Como não houve recusa por
parte dos informantes, nove acadêmicos compuseram a amostra final.
O projeto
O projeto extensionista ‘Nós na rede’ se dedica ao acolhimento das demandas educativas,
preventivas e curativas, em saúde bucal, da comunidade acadêmica da UEPG e de sua comunidade
externa em geral, atuando em três frentes de trabalho. Uma delas refere-se à capacitação continuada
dos extensionistas, efetivada por meio de reuniões periódicas, com o intuito de fomentar a discussão
sobre diferentes potenciais humanos e estratégias de atuação junto a pares acadêmicos e comunidade
externa, além de questões técnicas e científicas específicas da saúde bucal em âmbito coletivo. Outra é
destinada à atenção preventiva e curativa em saúde bucal, aos acadêmicos da UEPG, a qual é
desenvolvida semanalmente em dispensário odontológico da própria instituição. Durante esta etapa, os
extensionistas realizam, primeiramente, atividades educativas em saúde bucal utilizando-se do diálogo,
de vídeos e de materiais educativos impressos, e, posteriormente, procedem à realização de criterioso
protocolo clínico, com ampla anamnese e com o reconhecimento de necessidades odontológicas
curativas. A terceira vertente contempla a disseminação de informações junto à comunidade externa,
rotineiramente viabilizada por meio de parcerias com instituições públicas locais e regionais,
desenvolvidas em diversos espaços sociais, onde professores e alunos de Odontologia buscam
desenvolver habilidades pessoais e a ampliação das concepções humanas sobre a saúde e a doença,
capacitando os indivíduos e tornando-os aptos a minimizarem as suas situações de vulnerabilidade
pessoal e coletiva, no âmbito da saúde bucal.
Obtenção das informações
Como subsídio para a coleta de dados, utilizou-se a técnica denominada grupo focal, estruturada,
inicialmente, por Merton et al. (1956). Esta é uma modalidade científica da pesquisa qualitativa utilizada
no entendimento das diferentes percepções e atitudes acerca de um fato, prática, produto ou serviço
(Iervolino, Pelicioni, 2001). A essência do grupo focal consiste na interação entre os participantes e o
pesquisador, que objetiva colher dados a partir da discussão focada em tópicos específicos e diretivos
(Iervolino, Pelicioni, 2001).
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espaço aberto
Desta forma, no presente estudo, um único pesquisador previamente treinado e calibrado utilizou-se
de um roteiro de tópicos, elaborado no sentido de orientar uma conversa, visando apreender o ponto
de vista dos sujeitos entrevistados sobre temas preestabelecidos (motivação para participar, entraves/
contribuições, especificidades/peculiaridades, considerações); ou seja, permitiu-se o livre discurso e, ao
mesmo tempo, o delineamento da conversa, buscando manter a entrevista sintonizada com os objetivos
da pesquisa.
A técnica de entrevista em grupo focal foi realizada em espaço neutro, externo às dependências da
UEPG, visando a liberdade de expressão dos informantes. A entrevista teve duração de setenta minutos
e foi gravada, para que não se perdesse nenhuma informação que o entrevistado pudesse
espontaneamente dar, bem como para se obter, juntamente com as palavras, a emoção e/ou
sentimento passado pelo entrevistado. Posteriormente, os relatos foram transcritos e analisados.
Análise das informações
O material produzido por meio de entrevista foi tratado de acordo com a técnica de análise do
Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), proposta por Lefèvre (Lefèvre, Lefèvre, 2003). Consiste na reunião,
de um só discurso-síntese, de vários discursos individuais emitidos como resposta a uma mesma questão
de pesquisa, por sujeitos social e institucionalmente equivalentes ou que fazem parte de uma mesma
cultura organizacional e de um grupo social homogêneo.
Os relatos obtidos nas entrevistas foram analisados para a identificação das expressões-chave de
conteúdo similar, e identificação das ideias centrais, para, posteriormente, formular-se uma síntese única
originária dos discursos. Os DSCs foram discutidos com suporte da literatura científica.
Resultados e discussão
Do total de acadêmicos entrevistados (n=9), oito pertenciam ao gênero feminino e um ao gênero
masculino, distribuídos ao longo do terceiro e quarto anos do curso de Odontologia. A faixa etária
média dos participantes foi de vinte anos.
Na sequência, expõem-se as temáticas extraídas, as ideias centrais e os discursos resultantes da
análise, bem como a discussão com base em referencial teórico.
Tema 1 – Por que estou aqui?
Ideia central – Rompendo com paradigmas pedagógicos e curriculares tradicionais
DSC – Eu queria fazer alguma coisa além do teórico, algo que fosse fora clínica, fora da aula,
fora da cobrança [...] queria ver como seria trabalhar sem tensão, sem a exigência de nota
por produção, essa parte [...] eu queria fazer além, mesmo sem saber exatamente como.
O Ensino Superior vivencia, atualmente, um processo de esgotamento do seu modelo tradicional de
educação, estando a necessidade de mudanças nessa concepção nas pautas de discussão há algum
tempo (Araujo, 2006), apesar dos recentes avanços. Sobretudo quando debate os seus métodos
avaliativos nas áreas da saúde e apesar das tentativas de enfoque na ‘qualidade’ da produção acadêmica;
o método quantitativista é ainda uma estratégia que continua fortemente arraigada nas instituições de
Ensino Superior. Superar essa dicotomia e mesclar a técnica às relações humanas é um desafio que há
tempos se coloca nos currículos de graduação e nas políticas públicas e práticas de saúde (Freitas, Calvo,
Lacerda, 2012; Lanzieri et al., 2011; Villa, Aranha, 2009). Este fato contribui para que muitos
acadêmicos busquem uma maneira de inovar, capaz de contribuir com as formas alternativas de trabalho
e que rompam com as estruturas tradicionais (Lima et al., 2010). A extensão universitária assume uma
destas formas, como destacado no discurso acadêmico, uma vez que possibilita ao estudante
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(re)produzir, de maneira diferenciada, os conhecimentos adquiridos ao longo da sua graduação e
transcender os arraigados processos avaliativos universitários.
Ideia central – A realização por meio do que é coletivo
DSC - Queria vivenciar uma experiência nova e ter a oportunidade de trabalhar com pessoas
mais carentes [...] acho que conta muito para a nossa formação [...] a gente se sente útil, ver
que está fazendo alguma coisa pela comunidade. Mesmo que seja pouca coisa, mas aquilo a
gente vê que vai fazer diferença mesmo que seja na vida de uma pessoa [...] a gente sente que
está fazendo nosso papel na sociedade, a gente aprende a ser mais ético e humano também.
Estudos relatam a importância do desenvolvimento de trabalhos de caráter comunitário, uma vez que
se trata de um serviço comprometido com a sociedade e alicerçado na liberdade de escolha, o qual
busca trazer novos valores e reforçar os existentes na sociedade, para a transformação em um mundo
melhor (Reis, 2001).
Para Selliet et al. (2008), quando um indivíduo se propõe a desenvolver atividades coletivas, ele é
beneficiado pelo: aprendizado, superação de si mesmo, redimensionamento do cotidiano, encontro
com a própria humanidade, despertar da sensibilidade humana, possibilidade de aplicar os
conhecimentos adquiridos durante a graduação, e criação de vínculos com a comunidade. Ainda,
relaciona-se a sensação da realização pessoal e da satisfação íntima pelo prazer e alegria em servir (Selli
et al., 2008; Drury, Reicher, 2005; Reis, 2001).
Corroborando com o presente estudo, Reis (2001) relata ser comum o engajamento de estudantes
em atividades voluntárias, não apenas para exercitar a caridade, mas como uma forma de cidadania e
reconhecimento da importância da sociedade ao longo de sua vida acadêmica.
Ideia central – O desejo de ser reconhecido e valorizado
DSC – Você vira referência na sala de aula, perante os colegas [...] eles não têm noção às
vezes do que a gente faz e encontra, mas sabem que é diferente [...] a gente se sente
importante, quando tem eventos fora da universidade somos nós que vamos representar a
instituição [...] é gostoso se sentir referência de um projeto de extensão voltado para a
comunidade e ter mais responsabilidade! [...] conviver com os professores de maneira mais
informal também é bem bacana.
De acordo com Hallack e Silva (2005), qualquer que seja o trabalho numa organização, instituição,
ele, no mínimo, proporcionará ao sujeito um bem precioso: a possibilidade de identificação social e
cultural através da incorporação de valores. Os extensionistas, em seus discursos, traduzem os trabalhos
por eles desenvolvidos em sentimentos que tangem a necessidade de identificação, idealização,
valorização e reconhecimento pessoal. O respeito e a confiança estabelecidos entre professor-aluno e
aluno-instituição, o orgulho de fazer algo importante para si e para a sociedade, e o prazer em enfrentar
e vencer desafios, também são positivamente destacados.
Tema 2 – Mãos à obra
Ideia central – Os inevitáveis entraves e frustrações
DSC – [...] minha frustração é quando queremos abordar uma pessoa no aspecto não clínico
e ela não tem interesse, mas isso não é nossa culpa, nós queríamos levar informação, mas
tem aqueles que não estão muito afim de ouvir [...] mas se apenas um vai ouvir, temos
sempre que nos focar naqueles que fazem o nosso esforço valer a pena!
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espaço aberto
Trabalhar com ações informativas que demandem a (re)educação da população em termos de
mudanças de hábitos é muito difícil, pois envolvem a maneira como as pessoas vivem e entendem a
vida, através de uma visão plural e cultural, que consiste em valores, crenças e visões de mundo,
situados em um tempo e espaço delimitado (Alves, Aerts, 2011).
Os entraves e limitações aqui expostos, no que se refere à autonomia em saúde dos sujeitos
individuais e coletivos, com vistas a sua emancipação e empoderamento pessoal, revelam-se agente de
frustração entre os entrevistados. Entretanto, ao exercer o papel de agente dinamizador de
conhecimento em saúde, o acadêmico deve agir sobre o outro que se dispõe a receber seus cuidados,
ajudando-o a se ajudar, estimulando a capacidade de as pessoas enfrentarem seus problemas, a partir
de condições concretas de vida (Santos et al., 2008). Vale ressaltar o reconhecimento da importância
dessa missão singular como norteadora na sua formação, por parte dos acadêmicos, apesar do seu
desapontamento.
Ideia central – Dançando conforme a música
DSC – Estamos mais acostumados a trabalhar com crianças, mas o projeto exige todos os
ciclos de vida, é diferente com os jovens, por exemplo [...] é muito difícil, porque eles acham
que já sabem tudo e a gente teve que desenvolver um jeito de falar que foi um jeito entre
amigos sabe, isso foi complicado no começo [...] eu acho que a gente ainda tá
engatinhando, mas a gente vai aprendendo a lidar com pessoas de diferentes idades, sexo,
classe social, e querendo ou não a gente vai levar isso pra vida [...] é, a gente tem que se
preparar para o público alvo, descobrir qual o seu interesse, sua necessidade.
A realidade social, ou seja, a práxis, é determinante das relações sociais, fato que engloba, além dos
aspectos demográficos, políticos e econômicos, também particularidades, interesses, crenças, hábitos,
pensamentos, valores, normas e comportamentos. Dessa maneira, entende-se que é dentro da
realidade de cada ciclo de vida humano que o acadêmico deva compreender e vivenciar as suas
distintas implicações socioculturais (Lara et al., 2012), criando um espaço de reflexão crítica, de diálogo
e de construção compartilhada do conhecimento (Brasil, 2007). Esse entendimento, com vistas à ação
extensionista, é aqui claramente exposto pela percepção acadêmica.
Ideia central – A inevitável troca de saberes
DSC – Eu acho que com a comunidade a gente aprende bastante, é, aprende muita coisa. Por
mais que possa ser crença popular, sempre alguma coisa vai ter de interessante naquilo [...]
Acho que a gente tem que usar esses saberes da comunidade pra gente conseguir até
transmitir, usar o que eles sabem e embutir alguma coisa a mais pra eles [...] você tem que
saber se comunicar pra desmistificar alguma ideia pronta, formada [...] apesar de que o fato
da pessoa acreditar mesmo naquilo, ter fé, já ajuda, né? Vai saber...
O saber popular está vinculado a tradições que são conduzidas entre gerações, em que ecoam
socialmente e propiciam a cognição de práticas capazes de articular experiências presentes e passadas,
estimando a ligação de cada sujeito ao seu mundo, seus valores, saberes e problemas (Lara et al.,
2012). Nesta perspectiva, surge a educação para a saúde, caracterizada como veículo integrador dos
mais diferentes campos de saberes e práticas humanas. A profícua relação entre o saber científico e o
popular é concretizada pelos acadêmicos, os quais evidenciam que o conhecimento precisa ser
partilhado entre os diferentes sujeitos.
Segundo Drury e Reicher (2005), uma série de relatos científicos tem demonstrado que esse tipo de
atuação educativa junto à comunidade pode gerar experiências de capacitação, formando um lócus de
possibilidades, ações e mudanças na forma de pensar e agir, (re)criando cotidianamente novos modos
de fazer saúde (Romanholi, Cyrino, 2012).
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Tema 3 – O subsídio humano
Ideia central – Desenvolvendo habilidades profissionais
DSC – Fora do projeto a gente não vê o paciente como uma pessoa, é só mais um
procedimento clínico [...] aqui eu consigo fazer um planejamento e concluir um plano de
tratamento[...] a gente consegue integrar os conhecimentos de todas as áreas e ver a
aplicação prática do conteúdo teórico, tudo junto [...] e nas ações externas, aprende a
trabalhar em equipe e a falar com as pessoas [...] por isso o projeto é importante pra gente,
porque daí você aprende a ver tudo de um jeito diferente, sem aquele condicionamento que
a gente tem.
Na maioria das escolas de Odontologia, o ensino é, ainda, distribuído ao longo do curso, fazendo
com que a prática clínica seja desenvolvida de maneira isolada nas disciplinas profissionalizantes, sem
integrar os conhecimentos (Arruda et al., 2009; Villa, Aranha, 2009; Santos, 2003). Este fato pode gerar
uma fragmentação dos saberes, os quais permanecem isolados uns dos outros (Villa, Aranha, 2009),
dificultando a perspectiva de conjunto e de globalização e desfavorecendo a aprendizagem (Santos,
2003), podendo ser constatada, em alguns casos, tanto na formação quanto no exercício profissional
(Villa, Aranha, 2009). Portanto, segundo Nóvoa (1995), é importante buscar e valorizar paradigmas de
formação que promovam a preparação de profissionais reflexivos, que assumam a responsabilidade do
seu próprio desenvolvimento profissional e que participem como protagonistas na implementação de
novas formas de integralizar o conhecimento. Nesse discurso, os estudantes percebem, na ação
extensionista, a possibilidade de ruptura do enfoque tradicional do ensino e da aplicação lógica e
ordenada dos conhecimentos, habilidades e atitudes adquiridos nas diferentes disciplinas,
oportunizando, ao paciente, um atendimento de forma integral e mais humanizada.
Os achados aqui expostos corroboram, ainda, com o estudo de Lanzieri et al. (2011), o qual mostra
que a extensão universitária é capaz de promover maior convivência, troca de conhecimentos e respeito
ao saber alheio, além de facilitar o aprendizado do trabalho em equipe.
Ideia central – Desenvolvendo habilidades pessoais
DSC- Eu acho que a gente ganha bastante, que a gente consegue ver que a nossa realidade,
querendo ou não, é muito diferente do resto das pessoas [...] a gente consegue ver como as
pessoas agem, como é a vida delas e acaba dando mais importância para o que tem [...]essa
visualização da realidade do outro ajuda no repensar dos nossos valores humanos [...] nos
transforma em pessoas mais sensíveis.
A diversificação de cenários de aprendizagem, muitas vezes trazida pela extensão universitária, se
apresenta como um importante meio facilitador de interações mais dinâmicas e verdadeiras entre o
aluno e a comunidade (Pereira et al., 2011), proporcionando, ao estudante, a compreensão do mundo
de cada indivíduo, as histórias vividas e as suas diversas versões (Romanholi, Cyrino, 2012).
Por meio do estudo de Sanchez, Drumond e Vilaça (2008), constatou-se que a convivência com
cenários sociais diferenciados causa, nos estudantes, um impacto que pode superar o aprendizado pelas
vias tradicionais. Esse achado parece evidenciar que aliar a realidade social à experiência acadêmica
contribui, como parte de um processo maior (Romanholi, Cyrino, 2012; Sanchez, Drumond, Vilaça,
2008), para a formação de profissionais que respondam mais satisfatoriamente às necessidades da
população (Sanchez, Drumond, Vilaça, 2008).
Esse confronto do acadêmico com realidades socioeconômicas e culturais distintas das encontradas
em seu grupo social expõe-se aqui reconhecido pelos entrevistados, em sua importância nos quesitos
humanistas, críticos e reflexivos, e vão ao encontro das atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para os
cursos de graduação em Odontologia (Brasil, 2002b).
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Ideia central – A consciência cidadã
DSC – Tudo o que você faz na universidade, uma monitoria, um projeto de extensão é uma
formação extra além da tua graduação, um complemento [...] mas ninguém dá tanto valor a
extensão, eu acho que deveriam dar mais [...] é a gente que faz acontecer as coisas, porque
tem gente que entra na universidade e sai só pelo diploma, e a gente que tá fazendo um
trabalho de retribuição para a comunidade [...] o ser voluntário deveria ser natural pra todos
os acadêmicos, já que estamos sendo ‘bancados’ pelo estado [...] retribuir, essa á a palavra!
Tem-se, hoje, como princípio que, para a formação do cidadão, é imprescindível sua efetiva
interação com a sociedade, seja para se situar histórica e culturalmente ou para referenciar a sua
formação técnica com os problemas que um dia terá de enfrentar (Medicis, Zago, 2008; Ribeiro, 2005).
Certamente, a extensão universitária possibilita essa formação do profissional engajado social e
politicamente, com forte reconhecimento do investimento de toda a coletividade e comprometido com
a saúde e a qualidade de vida de pessoas e comunidades (Romanholi, Cyrino, 2012). A oportunidade de
inclusão nesse espaço privilegiado de produção do conhecimento é aqui evidenciada pelos
entrevistados.
Considerações finais
Esta pesquisa possibilitou uma reflexão acerca da ação extensionista na vida acadêmica e pessoal de
estudantes universitários, e seus resultados apontaram importantes direcionamentos.
As concepções acadêmicas perpassaram pelo reconhecimento da enriquecedora oportunidade de
acompanhar as condições de vida e de saúde das pessoas inseridas em sua realidade e de vivenciar uma
forma de atuação que não se limita à tradicional, o que permitiu, aos acadêmicos, um alargamento em
sua visão de futuro profissional. Ainda, os pesquisados consideraram a experiência no campo da
extensão um importante agente para o seu processo individual e coletivo de formação pessoal.
Colaboradores
Cristina Berger Fadel delineou o estudo, elaborou o roteiro para a entrevista, procedeu
com a coleta dos dados e realizou a redação do artigo. Danielle Bordin realizou a
transcrição dos dados, tratou as informações coletadas e redigiu o artigo. Eunice Kuhn
e Luciana Dorochenko Martins contribuíram com a redação do artigo.
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O IMPACTO DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA ...
Com objetivo de avaliar a contribuição da extensão universitária na formação e história
de vida de estudantes de Odontologia, realizou-se um estudo qualitativo, de caráter
descritivo-exploratório, utilizando a técnica do grupo focal. O material foi analisado
com a técnica de análise do discurso do sujeito coletivo. Os resultados referiram-se ao
impacto exercido pela vivência acadêmica em atividades extensionistas nos campos
pessoal, profissional e da cidadania. As percepções dos sujeitos revelaram a
oportunidade de desenvolvimento e aprimoramento de suas habilidades profissionais,
por meio do reconhecimento de distintas realidades de vida, da ruptura do modelo
tradicional de ensino e do profícuo relacionamento entre acadêmico, universidade e
sociedade. Foram relatados sentimentos de satisfação, realização pessoal,
reconhecimento, e de ser um cidadão ativo e crítico. Conclui-se ser a experiência no
campo da extensão um importante agente para o processo individual e coletivo de
formação acadêmica.
Palavras-chave: Educação Superior. Formação em Odontologia. Grupo focal. Relações
comunidade-instituição.
The impact of university extension on academic training in Dentistry
This qualitative study of descriptive and exploratory nature was conducted with the
aim of evaluating the contribution of university extension towards the training and life
histories of dentistry students, using the focus group technique. The material was
assessed using the collective subject discourse analysis technique. The results showed
the impact exerted by academic experience, in extension activities within the personal,
professional and active citizenship spheres. The subjects’ perceptions revealed an
opportunity to develop and improve their professional skills, through recognition of
distinct realities of life, through breaking away from the traditional model of teaching
and through fruitful relationships between students, university and society. Feelings of
satisfaction, personal fulfillment, recognition and being an active and critical citizen
were reported. It was concluded that experience within the field of extension is an
important agent for the individual and collective process of academic training.
Keywords: Higher education. Dentistry training. Focus group. Community-institution
relationships.
El impacto de la extensión universitaria sobre la formación en Odontología
Se realizó un estudio cualitativo de carácter descriptivo-exploratorio para evaluar la
contribución de la extensión universitaria en la formación e historia de vida de los
estudiantes de Odontología. Para la recolección de datos fue utilizado el grupo focal y
el material fue analizado por medio de la técnica de análisis del discurso del sujeto
colectivo. Los resultados se refirieron al impacto ejercido por la vivencia académica en
actividades de extensión en los campos personal, profesional y de ciudadanía. Las
percepciones de los sujetos revelaron la oportunidad de desarrollo y perfeccionamiento
de sus habilidades profesionales, por medio de reconocimiento de distintas realidades
de vida, de la ruptura del modelo tradicional de enseñanza y de la provechosa relación
entre el sector académico, la universidad y la sociedad. Fueron relatados los
sentimientos de satisfacción, realización personal, reconocimiento y de ser un
ciudadano activo y critico. Se concluyó que la experiencia en el campo de extensión es
un importante agente para el proceso de formación académica individual y colectiva.
Palabras clave: Educación superior. Odontología. Grupo focal. Relaciones
comunidad-institución.
Recebido em 09/09/12. Aprovado em 17/02/13.
946
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.937-46, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/S1414-32832013005000026
espaço aberto
O trabalho de campo como dispositivo de ensino, pesquisa
e extensão na graduação de Medicina e Odontologia*
Carlos Dimas Martins Ribeiro1
Ivia Maksud2
Lilian Koifman3
Márcia Guimarães de Mello Alves4
Mônica Villela Gouvêa5
Introdução
A aprovação das diretrizes curriculares nacionais (DCNs) para a área da saúde,
entre 2001 e 20026, representou importante conquista para a Reforma Sanitária
Brasileira, e tem orientado o processo de reformulação curricular nas instituições
de Ensino Superior. As DCNs visam romper com a concepção de formação de
profissionais de saúde baseada no modelo da medicina científica, que privilegia a
abordagem centrada no hospital e em procedimentos, e se relaciona com um
modelo pedagógico baseado em conteúdos, dissociados em áreas básicas e
clínicas, e no incentivo à especialização precoce (Ceccim, Feuerwerker, 2004).
O perfil definido pelas DCNs para o profissional de medicina e odontologia
(Brasil, 2002, 2001) é o de generalista, preparado para: compreender o processo
saúde-doença nas suas múltiplas determinações, analisar problemas de saúde e
buscar soluções para os mesmos. As DCNs enfatizam a importância do trabalho
em equipe multiprofissional e a integralidade de práticas na rede de atenção à
saúde; orientam os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPC) e consideram aluno
como sujeito e professor como mediador do processo ensino-aprendizagem; e
buscam uma formação integral – incluindo aspectos técnicos e éticos –, por meio
da articulação entre ensino, pesquisa, extensão e assistência.
Os PPCs são construídos mediante as especificidades de sua área de atuação e
devem ser elaborados em consonância com o Projeto Pedagógico Institucional
(PPI). Este explicita o posicionamento da instituição a respeito do ser humano, do
mundo e de sua relação na educação; pode representar um instrumento de ação
política e pedagógica (Veiga, 2004) numa conjuntura globalizada e tecnológica; e
explicitar, simultaneamente, o papel da instituição e sua contribuição social nos
âmbitos local, regional e nacional (Brasil, 2006).
Um importante elemento constitutivo do PPC é o currículo, concebido como
espaço de formação plural, dinâmico e multicultural, fundamentado em
referenciais socioantropológicos, psicológicos, epistemológicos e pedagógicos.
O Instituto de Saúde da Comunidade (ISC), uma unidade de formação da
Universidade Federal Fluminense (UFF), assumiu esta perspectiva pedagógica
desde 1994, e atua em diversos cursos na perspectiva crítica do ensinoaprendizado na área de Saúde Coletiva. Participou, ativamente, dos processos de
Elaborado com base nas
reflexões realizadas pelo
Comitê Gestor do
Departamento de
Planejamento em Saúde,
durante os anos de 2011
e 2012.
1-5
Departamento de
Planejamento em Saúde,
Instituto de Saúde da
Comunidade,
Universidade Federal
Fluminense. Rua Marquês
de Paraná, 303 (anexo),
3o andar, Centro.
Niterói, RJ, Brasil.
24030-215.
[email protected]
*
6
Exceto medicina
veterinária, psicologia,
educação física e serviço
social.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.947-57, out./dez. 2013
947
O TRABALHO DE CAMPO COMO DISPOSITIVO ...
reformulação curricular dos cursos de Medicina e Odontologia, e orienta todo o
cotidiano de investigação e práticas no campo da Saúde Coletiva desenvolvido por
estes cursos.
No curso de Medicina da UFF, a implantação do novo currículo7 contempla
essas recomendações das DCNs. Sua implantação ocorreu num contexto histórico
de articulação ensino-serviço-comunidade: a inserção da universidade na rede de
serviços de saúde de Niterói foi fundamental para viabilizar a nova proposta
curricular, e se constituiu numa “oportunidade de ampliar os cenários de práticas
docentes, aproximando-se da realidade dos serviços e das populações” (March et
al., 2006, p.298). Cabe considerar que a implementação do Sistema Único de
Saúde (SUS) em Niterói, ao valorizar “a territorialização, a adscrição de clientela, a
vinculação profissional/população, a hierarquização, a visão intersetorial, a
promoção e prevenção da saúde e o controle social”, tem “fomentado a mudança
da formação profissional, para construir uma nova lógica de atenção à saúde”
(March et al., 2006, p.298).
No curso de Odontologia, o PPC encontra-se em fase de implantação desde
2010. Após dez anos de discussão, a comunidade acadêmica delineou uma
organização curricular capaz de favorecer o desenvolvimento de competências
caracterizadas pelo vivenciar - refletir - decidir - agir, incorporando espaços
integradores de aprendizagem. Trabalha-se na perspectiva da aproximação com a
realidade do mundo do trabalho, salientando os múltiplos olhares sobre a realidade
social e buscando o equilíbrio entre vocação técnico-científica e prática
humanística.
Neste texto descrevemos a proposta de Trabalho de Campo (TC) desenvolvida
pelo ISC como dispositivo de ensino, pesquisa e extensão8 para professores/
alunos de medicina e odontologia. Está fundamentada na teoria de
desenvolvimento humano e numa pedagogia que defende que as oportunidades
oferecidas na Educação Superior, para o desenvolvimento das capacidades dos
estudantes como pessoas éticas, têm importância fundamental para a promoção da
cidadania do aluno (Walker, 2006).
Pressupostos teóricos
Pedro Demo (2001) argumenta que as dimensões ‘ensino’, ‘pesquisa’ e
‘extensão’ do trabalho acadêmico poderiam ser reduzidas a duas: “reconstruir o
conhecimento” e “educar novas gerações”, apreendidas sob os termos de
‘extensão’ ao ‘ensino’ e à ‘pesquisa’. Esses termos sugerem que o compromisso
social com a promoção da justiça, dos direitos humanos e da cidadania –
geralmente relacionado às ações extensionistas – permanece como algo separado,
voluntário e intermitente, quando deveria ser intrínseco à organização curricular
(Demo, 2001). Numa perspectiva semelhante, Boaventura dos Santos (2005)
concebe ‘extensão’ como
modo alternativo ao capitalismo global, atribuindo às universidades
uma participação ativa na construção da coesão social, no
aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social e a
degradação ambiental, na defesa da diversidade cultural. (Santos,
2005, p.73)
A universidade tem função determinante na formação de profissionais outrora
chamados ‘recursos humanos’: seja por demonstrar eficácia em comparação com
948
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.947-57, out./dez. 2013
O novo currículo tem
como pressuposto a
“constituição de um
perfil profissional [...]
adequado à realidade
sanitária local, ao
mercado de trabalho e
ao desenvolvimento
científico e tecnológico
vigente”, para formar
profissionais humanistas,
capazes de apresentar
comportamento ético e
habilidades psicomotoras
específicas do trabalho
médico (Saippa-Oliveira,
Koifman, Marins, 2004,
p.310).
7
8
Neste artigo usamos a
denominação Trabalho
de Campo (TC) para
ressaltar os aspectos
comuns destas
disciplinas, caracterizadas
por inserir alunos de
graduação, desde o
início de sua formação,
no âmbito das
organizações do Estado
(setor saúde e outros
setores), da sociedade
civil e organizações
sociais não
governamentais.
RIBEIRO, C.D.M. et al.
10
Para um pensamento
pós-abissal, Santos (2010,
p.54) propõe a “ecologia
dos saberes” que “tem
como premissa a ideia da
diversidade
epistemológica do
mundo”, onde convive
uma “pluralidade de
formas de conhecimento
além do conhecimento
científico”. Não
pretende negar o valor
do conhecimento
científico, mas “explorar
a pluralidade interna da
ciência” e “promover a
interação e a
interdependência entre
os saberes científicos e
outros saberes, não
científicos” (Santos,
2010, p.57).
espaço aberto
9
Compreende-se a
extensão universitária
como um processo em
que podem ser
destacados quatro
componentes centrais:
(a) a relação dialógica
entre teoria e prática, (b)
a indissociabilidade entre
ensino e pesquisa, (c) a
inter-multitransdisciplinaridade, e
(d) a relação dialógica
entre saber acadêmico e
popular (Silva, 2012;
Nogueira, 2001).
instituições de outra natureza, seja pelo papel único na definição da ética de
desenvolvimento nacional e como lócus privilegiado de crítica e transformação
social. Isto se dá pela atuação no ensino, na participação social a partir da
extensão, e na criação do novo como resultado do processo de pesquisa científica
(Koifman, 2011)9.
Para Edgar Morin (2004a), os problemas de nossa “era planetária” tornam-se
cada vez mais complexos e globalizados, exigindo reforma do pensamento capaz
de encontrar soluções que deem conta de sua multidimensionalidade. Para o
mesmo autor, apenas um “pensamento complexo capaz de ligar, contextualizar e
globalizar”, operando de maneira transdisciplinar, é “capaz de prolongar-se numa
ética da interdependência entre os seres humanos”, favorecendo o “sentido da
responsabilidade e da cidadania” (Morin, 2004b, p.22, 27). Esta reforma do
pensamento é, para o autor,
uma necessidade democrática fundamental: formar cidadãos capazes
de enfrentar os problemas de sua época é frear o enfraquecimento
democrático que suscita, em todas as áreas políticas, a expansão da
autoridade dos experts, especialistas de toda ordem, que restringem
progressivamente a competência dos cidadãos. (Morin, 2004a,
p.103)
Santos (2010, p.32), por outro lado, sustenta que “o pensamento moderno
ocidental é um pensamento abissal”, consistindo num “sistema de distinções
visíveis e invisíveis” que divide “a realidade social em dois universos distintos: o
universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’, de modo que
‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade”, sendo “produzido como
inexistente”. Esta distinção, na avaliação do autor, se funda em outra, “entre as
sociedades metropolitanas e os territórios coloniais”.
Do ponto de vista da produção do conhecimento, “o pensamento abissal
consiste na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção entre o
verdadeiro e o falso”, tornando inexistente os conhecimentos produzidos “do
outro lado da linha” – conhecimentos populares, leigos, camponeses ou indígenas
etc.– , considerados “crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos
ou subjetivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objetos ou matériaprima para a inquirição científica” (Santos, 2010, p.34). Assim, converte este lado
da linha em sujeito do conhecimento, e o outro lado da linha em objeto do
conhecimento10.
Mora-Osejo e Borda (2006, p.715) enfatizam a necessidade de se
desenvolverem “paradigmas científicos e quadros técnicos de referência” para
entendimento das realidades locais. Disto podem “surgir descobertas e iniciativas
úteis para a sociedade local, que minorem as crises do próprio contexto”, de modo
que, deste processo, “resultem valores partilhados, geradores de solidariedades” e
fortalecedores da identidade cultural (Mora-Osejo, Borda, 2006, p.718).
Nesta perspectiva, “deve dar-se preferência às formas de conhecimento que
garantam a maior participação dos grupos sociais envolvidos na concepção, na
execução” e no controle da intervenção, favorecendo-se parcerias da universidade
com: organizações não governamentais, movimentos sociais, grupos sociais
vulneráveis e grupos sociais populares, entre outros (Santos, 2010, p.60). Para
Santos (2010), a justiça social global implica justiça cognitiva capaz de romper com
o pensamento abissal.
Adota-se, neste texto, uma pedagogia da educação superior com foco nas
capacidades e funcionamentos básicos, distinta da Abordagem das Capacitações
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.947-57, out./dez. 2013
949
O TRABALHO DE CAMPO COMO DISPOSITIVO ...
(capability), formuladas por Nussbaum e Sen, embora seguindo a tradição instaurada por estes autores
(Dias, 2009). O desenvolvimento humano concebido como promoção de capacidades e funcionamentos
fundamentais requer condições materiais de existência – econômicas, sociais, culturais etc. – para
serem efetivamente exercidos.
Tais capacidades seriam essenciais nas diferentes esferas onde os seres humanos atuam (saúde,
trabalho, educação, lazer, política etc.) e nos vários estágios de um ciclo de existência (nascimento,
infância, adolescência, fase adulta, velhice e morte) (Nussbaum, 2000).
Como capacidades centrais, Nussbaum (2000) reconhece: a liberdade de ser saudável, viver uma
vida com longevidade normal, exercer controle sobre o ambiente, estar bem nutrido e abrigado, não ser
acometido por doenças evitáveis ou morrer prematuramente; ter integridade corporal, exercer a razão
prática, pensar e imaginar, vivenciar emoções e estabelecer relações com os outros, entre outras.
Capacitações, capacidades e funcionamentos, segundo Sen, são conceitos correlacionados, porém
distintos. Capacitações (capability) correspondem à liberdade de realizar ou alcançar uma combinação
de funcionamentos que expressem oportunidades reais para realizar modos de viver, dentro de um
leque de alternativas disponíveis. Capacidades se referem às várias combinações de estados e ações
inter-relacionados em que uma pessoa pode estar ou que pode realizar. Funcionamentos referem-se a
cada ação ou estado que compõem diversas opções de combinações disponíveis.
Walker (2006) propõe uma pedagogia da Educação Superior baseada na Abordagem das
Capacitações, concebendo a pedagogia como método de ensino (envolve a relação entre professores e
alunos e as condições estruturais que possibilitam a aprendizagem) e como projeto ético (em que seus
propósitos envolvem valores éticos e o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades). Desenvolve
uma metodologia para a seleção de uma lista de capacidades a serem estimuladas com os estudantes e
como parâmetro para avaliar a aprendizagem de cada um. Inclui: “razão prática” – capacidade de fazer
escolhas refletidas e socialmente responsáveis; “relações e redes sociais” – capacidade de participar em
grupos para uma aprendizagem colaborativa; “respeito, dignidade e reconhecimento” – capacidade de
respeitar e ser respeitado; “resistência educacional” – capacidade de governar seus estudos –, entre
outras.
Capacidades/funcionamentos e TC
Nossa discussão baseia-se em experiências desenvolvidas nas disciplinas de Trabalho de Campo
Supervisionado 1 e 2 do curso de Medicina (TCS 1 e 2), e de Saúde Bucal Coletiva 3 e Estágio
Supervisionado 1 do curso de Odontologia (SBC 3 e ES 1). O corpo docente é composto por
profissionais com mestrado e/ou doutorado na área de Saúde Coletiva.
Durante o ano de 2011, foram realizadas oficinas sobre o TC promovido pelo ISC-UFF. A
sistematização das experiências e reflexões desenvolvidas por professores, técnicos e alunos monitores
permitiu analisar os resultados em termos de capacidades e funcionamentos, conforme proposto neste
trabalho.
O TC apoia-se numa pedagogia participativa e inclusiva, preocupada em promover capacidades
voltadas ao desenvolvimento humano e uma sociedade justa e democrática.
As disciplinas: breve descrição
Nas disciplinas ofertadas ao curso de Medicina, os alunos são divididos em grupos entre oito e 12
alunos, para atividades teóricas e práticas, com a carga horária de nove horas semanais. Os alunos são
preparados para entrar em campo, conhecer e observar distintas realidades socioculturais e interagir com
vários atores (pacientes/usuários, profissionais de saúde, gestores, dirigentes etc.) em diferentes
cenários, como: movimentos sociais, organizações não governamentais, unidades de saúde do SUS,
entre outros. As disciplinas TCS 1 e 2 fazem parte do Programa Prático-Conceitual do curso de
Medicina, tendo cada uma um ano de duração, a partir do primeiro período do curso. Enquanto TCS 1
fundamenta-se no reconhecimento do contexto de ação sociocultural do profissional de saúde,
compreendendo “sua responsabilidade na investigação dos determinantes sociais da saúde e da doença,
950
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.947-57, out./dez. 2013
RIBEIRO, C.D.M. et al.
espaço aberto
através da caracterização qualitativa e quantitativa do cenário ambiental, populacional e psicossocial, nos
níveis local e municipal” (Saippa-Oliveira, Koifman, Marins, 2004, p.311), TCS 2 tem como objetivo
reconhecer o perfil epidemiológico da população, analisar o funcionamento das unidades de saúde e o
“impacto das ações programadas sobre as condições locais diagnosticadas pelos serviços de saúde”
(Saippa-Oliveira, Koifman, Marins, 2004, p.313).
No curso de Odontologia, formam-se grupos de até seis alunos para discussões teóricas e atividades
práticas, com a carga horária de seis horas semanais. O TC compreende conhecimento e aproximação
com equipes e processos de trabalho em unidades de Saúde da Família no município de Niterói. O
grupo aprimora projetos terapêuticos de famílias adscritas a partir do diagnóstico e da lógica de
necessidades de saúde. O objetivo é alcançado por meio do: envolvimento com a dinâmica da
unidade/módulo, acompanhamento de visitas domiciliares e estudo aprofundado dos instrumentos de
registro (cadastro e prontuários), sempre envolvendo professores e equipes de saúde. Durante um
semestre, cada grupo de alunos se dedica ao estudo do território, para: entender percursos e formas de
acesso aos domicílios (incluindo áreas de risco), conhecer e potencializar aparelhos sociais (escolas,
creches, associação de moradores, igrejas, organizações sociais, entre outros), na área de abrangência
da policlínica regional que cobre o setor da equipe com a qual o grupo irá trabalhar. Ao final do
semestre, após consolidarem todos os dados observados e situações vivenciadas, os alunos elaboram e
operacionalizam, com a equipe, um plano de intervenção, sempre na perspectiva do ganho de
autonomia por parte dos moradores/comunidade.
Capacidades e funcionamentos no TC
As capacidades e funcionamentos a serem promovidos pelo TC estão relacionados,
fundamentalmente, com alguns pressupostos do campo da Saúde Coletiva, conforme foi se delineando,
no Brasil, a partir da década de 1970 (Paim, Almeida Filho, 2000). Entende-se este como um campo de
natureza híbrida, com uma “lógica teórico-epistemológica de produção do conhecimento, seja ela
interpretativa ou explicativa, dependendo da área em que se origina”, e uma “lógica operativa e
pragmática da eficácia, decorrente da intervenção normativa na ordem da vida, no sentido da
erradicação ou controle do adoecimento coletivo” (Luz, 2009, p.306).
Desenvolve-se a partir de três disciplinas básicas – a epidemiologia, o planejamento em saúde e as
ciências sociais em saúde – e opera, conforme o modelo, a interdisciplinariedade, a
multidisciplinariedade ou a transdisciplinariedade (Luz, 2009). Constrói-se como modelo de produção do
conhecimento que integra a produção acadêmica, nas suas várias modalidades, e, também, o
“conhecimento gerado a partir da prática vivenciada pelas populações ou por usuários dos serviços (ou
pacientes), superando a clivagem entre senso comum versus ciência, típica da modernidade” (Luz,
2009, p.309).
Paim e Almeida Filho (2000, p.60) caracterizam a Saúde Coletiva a partir de alguns pressupostos
básicos: a saúde articulada à estrutura da sociedade por meio de suas instâncias econômica e políticoideológica, possuindo, portanto, uma historicidade; as ações de saúde (promoção, proteção, recuperação,
reabilitação) como prática social, permeada por relações técnicas e sociais, e sujeitas às “influências do
relacionamento dos grupos sociais”; o objeto da Saúde Coletiva construído nos limites entre biológico e
social, e compreendendo a investigação dos determinantes da produção social das doenças e da
organização dos serviços de saúde, e o estudo da historicidade do saber e das práticas sobre os mesmos.
Para que o TC possa operar como dispositivo de ensino-pesquisa-extensão e promover capacidades e
funcionamentos como descritos acima, sua organização deverá estar baseada na aproximação com
espaços/territórios específicos, como define Milton Santos (2009) e Monken e Barcellos (2005), e o
processo ensino-aprendizagem estar conectado aos princípios da pesquisa-ação.
Pesquisa-ação é uma modalidade de pesquisa constituída por um ciclo básico – investigação de um
problema, planejamento e execução de ações para resolvê-lo, avaliação de resultados destas ações e
programação de mudanças necessárias para a resolução do problema (Tripp, 2005). Alguns princípios
fundamentais para que o TC possa se desenvolver dentro desta perspectiva são: o compromisso político
de busca pela justiça social e cidadania, para conhecer problemas comunitários e formular estratégias
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.947-57, out./dez. 2013
951
O TRABALHO DE CAMPO COMO DISPOSITIVO ...
para enfrentá-los a partir da realidade vivida no cotidiano pelos indivíduos e
coletividades (Thiollent, 2006); a relação entre investigador-educador e grupos
populares, com o pressuposto de que todas as pessoas e todas as culturas são
fontes originais de saber (Brandão, 2006); o relacionamento dinâmico entre teoria
e prática (Demo, 2008); e a natureza formativa da metodologia – podendo-se falar
no tripé pesquisa-formação-ação –, a impulsionar processos dialógicos de
aprendizagem coletiva nos quais “o sujeito deve tomar consciência das
transformações que vão ocorrendo em si próprio e no processo” (Franco, 2005,
p.486).
Na proposta aqui apresentada, consideram-se dois ciclos de pesquisa-ação,
dentro de uma determinada abrangência territorial: um corresponde aos cenários
onde se desenvolvem práticas e saberes que operam na sociedade civil e nas
políticas setoriais do Estado, não apenas no setor saúde; outro acontece em
cenários do setor saúde, no nível primário ou secundário da rede de atenção.
Primeiro ciclo
Este ciclo conta com quatro fases: na primeira, os alunos têm preparação
inicial para atividades práticas com estudo introdutório à pesquisa social,
reconhecimento teórico do tema analisador11, busca do conhecimento das diversas
abordagens e contextos, e mapeamento de locais a visitar. No eixo teórico-prático,
discutem as relações entre condições de vida e determinantes econômicos,
sociais, culturais do processo saúde-doença, por um lado, e as respostas, do Estado
e da sociedade civil, a estas condições, por outro. São ressaltados diferentes
grupos sociais e suas condições de vida específicas; utilizam-se dados quantitativos
e qualitativos (primários e secundários) após consulta a bancos de dados,
pesquisas, visitas, observação participante, entrevistas, entre outras possibilidades,
durante todas as fases. Na segunda, os alunos exploram o território tendo, como
eixo teórico-prático, a dimensão cultural do processo saúde-doença e grupos/
atores sociais da sociedade civil (igrejas, ONGs, movimentos sociais, grupos
comunitários etc.). Reflete-se sobre: a relação entre cultura, políticas públicas e
cidadania, a dicotomia saber médico versus popular, e as diversas racionalidades
médicas. As redes de apoio social devem ser reconhecidas, bem como seu papel
na promoção da cidadania. O eixo teórico é a integralidade em saúde. Na
terceira, os alunos analisam a presença do Estado no território, considerando as
políticas públicas setoriais. O eixo teórico-prático é a integralidade da atenção e a
intersetorialidade das ações. Enfatizam-se dimensões culturais, sociais e políticas
do ato de cuidar e de redes sociais de solidariedade. Na quarta, os alunos
identificam um problema de saúde a ser trabalhado, com ênfase num dos polos do
processo, pesquisa ou ação.
Segundo ciclo
Deve ser desenvolvido numa região, no nível primário (em especial) ou
secundário da rede de saúde. Na quinta fase, os alunos são apresentados à área
de abrangência de unidades de saúde de nível primário, e fazem o
reconhecimento teórico-prático do território. Na sexta, são inseridos numa
unidade de saúde primária e analisam seu funcionamento nos seus espaços/ações
(recepção/pré-consulta, vacinação, pequenos procedimentos, consulta de
enfermagem ou médica, farmácia, vigilância em saúde etc...); observam e
problematizam o processo de trabalho dos profissionais da unidade e sua relação
com a rede de atenção à saúde. O eixo teórico é formado pelos modelos
952
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.947-57, out./dez. 2013
11
Os alunos são inseridos
num território,
considerando-se as
práticas e saberes que
operam na sociedade civil
e nas políticas setoriais do
Estado, tendo como eixo
um tema analisador
predefinido, tais como:
Bioética, Racionalidades
Médicas, Maternidade,
Saúde e Meio Ambiente,
AIDS, Saúde da Mulher,
Saúde do Adolescente,
Doenças Negligenciadas,
Envelhecimento, Saúde
Mental, Pessoas com
deficiência etc..
RIBEIRO, C.D.M. et al.
espaço aberto
tecnoassistenciais, o processo de trabalho e o trabalho em equipe multiprofissional, com ênfase na
promoção e proteção da saúde. Na sétima, os alunos são apresentados à comunidade em que estão
inseridos por meio da unidade, e realizam diagnóstico de necessidades de saúde de famílias
selecionadas, segundo: condições de vida, acesso às tecnologias, constituição de vínculo e grau de
autonomia do usuário. Na última fase, constroem ou aprimoram projetos terapêuticos singulares com a
equipe de saúde e desenham plano de intervenção, sendo, o eixo teórico, a produção do cuidado em
saúde. Nessa fase, devem recorrer aos conceitos trabalhados nas fases anteriores, enfatizando a reflexão
sobre estilos de vida, redes sociais de apoio e itinerário terapêutico.
Considerações finais
Neste trabalho, descrevemos e analisamos uma proposta pedagógica que aposta no trabalho de
campo como dispositivo articulador entre ensino, pesquisa e extensão. As disciplinas apresentadas têm,
como pressuposto geral: o processo de ensino-aprendizagem com metodologias ativas, uma relação
dinâmica entre teoria e prática, propondo, ao estudante, a interação com o mundo do trabalho e a
reflexão sobre a realidade vivenciada.
Tais disciplinas de campo atendem à necessidade que os estudantes têm, desde o início de sua
graduação, de conhecer experiências dos cenários reais de trabalho, bem como questões de saúde que
enfrentarão futuramente.
As disciplinas de campo, bem como suas atividades elaboradas para atender a essa demanda, vêm
sendo analisadas e estudadas por pesquisas acadêmicas desde a iniciação científica até programas de
mestrado, doutorado, e pós-doutorado. Ao mesmo tempo em que alunos e professores vivenciam,
aprendem e pesquisam com base nesse cotidiano apresentado pelo TC, também respondem às
necessidades de saúde dos cidadãos, a exemplo dos planos de intervenção que alimentam o Programa
de Extensão “Diversificação de Cenários de Aprendizagem em Saúde – A integração Ensino-ServiçoSociedade”.
Gomes (2011) conclui que toda esta experiência possibilita “formar médicos mais adaptados às
demandas do SUS e que [...] conseguem perceber a importância de uma prática voltada para a
integralidade” (Gomes, 2011, p.58). Nogueira (2012) analisa que “a partir dessas inovações, pode-se
tentar traçar um perfil do médico formado: que conhece mais o SUS, é mais ético, possui maior
capacidade crítica e reflexiva, tem mais abertura para trabalhar em equipe, [...]” (Nogueira, 2012, p.144).
Vários autores (Nogueira, 2012; Gomes, 2011; Saippa-Oliveira, 2010; Fernandez, 2009; Pontes,
2005; Koifman, 2002, 1996) demonstram que o formato da disciplina de campo descrito neste artigo
aproxima-se da recomendação estabelecida nas Diretrizes Curriculares, para a formação de um
profissional reflexivo e humano.
A ação formativa na saúde impõe constantes desafios para se construírem redes de aprendizagem
docente sob o eixo da integralidade das ações de saúde. Referimo-nos ao processo pedagógico
desenvolvido em múltiplos cenários, priorizando situações reais. A metodologia é centrada no
compartilhamento de experiências e vivências, por intermédio de supervisão dialogada, na busca de
mudanças institucionais, apropriação ativa de saberes, fortalecimento das ações em equipe, e produção
de uma nova maneira de se organizar o trabalho em saúde (Saippa-Oliveira, Fernandez, Koifman, 2010).
Na proposta descrita, muitas vezes, os docentes são desafiados a reformular os princípios gerais dos
ciclos e fases descritos, a partir das experiências vivenciadas, discutidas e sistematizadas coletivamente,
o que, por sua vez, propicia novas sínteses a partir dos contextos nos quais o processo ocorre.
Esse movimento é uma inovação para docentes do Ensino Superior, acostumados a processos de
planejamento, execução e avaliação das suas atividades de forma individual e isolada. Superar essa
forma de atuação em nome de um processo coletivo possibilita conhecimento entre os pares e capacita
para o enfrentamento de alterações previsíveis ou imprevisíveis.
Consideramos, por fim, que o avanço na formação em saúde dar-se-á em processos concomitantes
de desenvolvimento pessoal e institucional, desafio a ser considerado na proposição político-pedagógica
dos cursos de graduação em saúde.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.947-57, out./dez. 2013
953
O TRABALHO DE CAMPO COMO DISPOSITIVO ...
Colaboradores
Todos os autores trabalharam na concepção, delineamento e redação do artigo,
construíram e revisaram a versão apresentada.
Referências
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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O TRABALHO DE CAMPO COMO DISPOSITIVO ...
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.947-57, out./dez. 2013
espaço aberto
RIBEIRO, C.D.M. et al.
Descreve-se a proposta pedagógica de disciplinas nos cursos de Medicina e
Odontologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil, tendo o
trabalho de campo como dispositivo de articulação entre ensino, pesquisa e extensão;
e, como pressuposto geral, o processo de ensino-aprendizagem baseado em:
metodologias ativas, a relação dinâmica entre teoria e prática, e a proposição, ao
estudante, de interação com o mundo do trabalho e reflexão sobre a realidade
vivenciada. Espera-se contribuir para o debate na área de formação em saúde, em
especial no campo da Saúde Coletiva, com base na reformulação determinada pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais aprovadas em 2001/2002. E, também, para a
superação das formas tradicionais de atuar por outras que possibilitem conhecimento
entre os pares e capacitação para o enfrentamento de alterações previsíveis ou
imprevisíveis no cotidiano das escolas de formação em saúde.
Palavras-chave: Formação de recursos humanos. Sistema Único de Saúde. Currículo.
Assistência integral à saúde.
Fieldwork as a teaching, research and extension device
in undergraduate Medicine and Dentistry
This study describes the pedagogical proposals of disciplines within the medicine and
dentistry courses at Universidade Federal Fluminense (UFF). Fieldwork has been
backed as a means for linking teaching, research and extension, under the general
assumption of a learning-teaching process based on active methodologies, a dynamic
relationship between theory and practice, and proposals enabling students to interact
with the world of work and reflect on the realities experienced. We hope to contribute
towards the debate on healthcare training, especially with regard to the field of public
health, consequent to the curriculum reformulation determined by the National
Curriculum Guidelines (approved in 2001/2002). We also hope to contribute towards
transforming traditional methods into other ways of acting that enable knowledge
among peers and capacitation to cope with foreseeable or unforeseeable changes to
the routine of healthcare training schools.
Keywords: Human resources formation. Brazilian National Health System. Curriculum.
Comprehensive healthcare.
El trabajo de campo como un dispositivo de enseñanza, investigación y extensión
en los cursos de Medicina y Odontología
El artículo describe la propuesta pedagógica de asignaturas en los cursos de Medicina y
Odontología en la Universidad Federal Fluminense, Río de Janeiro, Brasil, considerando
el trabajo de campo como dispositivo de articulación entre enseñanza, investigación y
extensión y como base general del proceso de enseñanza-aprendizaje basado en
metodologías activas, la relación dinámica entre teoría y práctica y la propuesta al
estudiante de la interacción con el mundo del trabajo y la reflexión sobre la realidad
vivida. Se espera contribuir con el debate en el área de Formación en Salud, en especial
en el campo de Salud Colectiva, a partir de la reformulación determinada por las
Directrices Curriculares Nacionales aprobadas en 2001/2002. También se espera
contribuir para superar las formas tradicionales de actuación, proporcionando otras
que posibiliten el conocimiento entre los pares y la capacitación para el enfrentamiento
de situaciones previsibles e imprevisibles en el cotidiano de las escuelas de formación
en salud.
Palabras clave: Formación de recursos humanos. Sistema Único de Salud. Currículo.
Atención integral a la salud.
Recebido em 24/04/13. Aprovado em 25/06/13.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.947-57, out./dez. 2013
957
DOI: 10.1590/S1414-32832013005000029
espaço aberto
Metodologias participativas
no ensino da administração em Enfermagem
Carmen Elizabeth Kalinowski1
Reinaldo Miguel Dolny Massoquetti2
Aida Maris Peres3
Liliana Müller Larocca4
Isabel Cristina Kowal Olm Cunha5
Luciana Schleder Gonçalves6
Riciana do Carmo Calixto7
Introdução
O trabalho docente requer competência pedagógica na mobilização e
articulação de diferentes saberes para motivar o estudante a assumir
responsabilidade ou corresponsabilidade no processo de aprendizagem. Para tal,
optou-se pelo uso de metodologias significativas e participativas por
proporcionarem oportunidades para a articulação do trabalho docente com as
necessidades do estudante.
As metodologias significativas possibilitam a exploração de saberes
dentro de um contexto particular, valorizando conhecimentos e experiências
anteriores, envolvendo os alunos na identificação e busca de soluções para
situações vivenciadas por eles nas atividades que compõem o processo
educativo, o que favorece a atuação efetiva do estudante no processo
pedagógico (Vannuchi, Campos, 2007).
A aprendizagem significativa pode ser definida, segundo Tavares (2004), como
a oferta de um novo conhecimento estruturado de maneira lógica; a existência de
conhecimentos na estrutura cognitiva que possibilite a conexão com o novo
conhecimento, bem como a atitude explícita de apreender e conectar o
conhecimento com aquele que pretende absorver.
Para o docente, trabalhar com metodologias significativas é transpor e superar
o uso de metodologias tradicionais, embasadas na transmissão de informações ou
conhecimentos com resultados reconhecidamente insatisfatórios para entender e
atuar na realidade. Nessa nova proposta metodológica, são criadas oportunidades
para a vivência dos discentes em experiências que representem as diferentes
situações cotidianas em saúde, com o desafio de transformá-las em práticas
educativas significativas e que possibilitem a construção reflexiva e crítica do
discente (Martínez-Riera et al., 2011; Teofilo, Dias, 2009).
Entende-se que, nas metodologias participativas, o docente assume o papel de
construtor de possibilidades para a aprendizagem. Estas consistem em criar, a partir
de situações reais do trabalho em saúde, práticas educativas que permitam a
vivência e aprendizado do discente em situações concretas problematizadas. As
práticas educativas com metodologias participativas possibilitam, aos envolvidos no
processo de aprendizagem, a articulação entre um conhecimento prévio e um
Departamento de
Enfermagem,
Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Setor
de Ciências da Saúde,
bloco didático II. Av.
Lothário Meissner, 632.
Jardim Botânico. Curitiba,
PR, Brasil. 80210-170.
[email protected]
2
Discente, curso de
Graduação em
Enfermagem, UFPR.
Bolsista Iniciação
Científica.
3-4,6
Departamento de
Enfermagem, UFPR.
5
Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP).
7
Mestranda, Programa de
Pós-Graduação em
Enfermagem, UFPR.
Bolsista CNPq.
1
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.959-67, out./dez. 2013
959
METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS NO ENSINO ...
novo. Essa articulação facilita o processo de elaboração e diferenciação do conhecimento, ou seja,
aprender a partir do que se conhece (Leite, Prado, Peres, 2010; Moreira, 1999).
As estratégias mais utilizadas nas metodologias significativas e participativas, e que atendem a este
envolvimento, são as de trabalho em grupo, jogos dramáticos, dramatizações, entre outras, que
pressupõem a importância da vivência do estudante em grupo e que a condução da aprendizagem
ocorre pelas inter-relações vivenciadas no processo, ditadas pelo próprio tempo e ritmo dos seus
componentes. O grupo motiva o indivíduo e o indivíduo motiva o grupo; o indivíduo aprende com o
grupo e o grupo com ele, assim, há destaque de que é importante a alternância entre trabalho
individual e em grupo (Leite, Prado, Peres, 2010).
A dramatização, ou drama, é “um gênero misto entre a comédia e a tragédia” (Ferreira, 2010,
p.266). Dramatiza-se com a necessidade da crítica à sociedade, de compreender os processos que se
vive, para poder viver.
Tobase, Gesteira e Takahashi (2007, p.216-7) discorrem sobre a dramatização como “uma estratégia
que confere significados aos conteúdos ensinados”. Ao contrário do método tradicional de ensino, com
o qual se espera que o conteúdo ensinado seja o conteúdo apre(e)ndido, o uso da dramatização propõe
que os conteúdos ensinados sejam experimentados pelos discentes com: o pensamento do contexto
sociopolítico-econômico-cultural, a espontaneidade, o desafio de transpor limites teóricos e a
oportunidade de enfrentar a resolução de problemas reais na sociedade, em sua organização atual,
ligando a aprendizagem proporcionada pela experiência com os conteúdos ensinados. Discentes
mencionados pelas mesmas autoras demonstraram satisfação em aprender e compromisso em exercitar
diferentes papéis no universo profissional na área da saúde.
A dramatização é um jogo de papéis que dá significado aos conteúdos, propõe a experimentação,
pelos estudantes, com a realidade do trabalho em saúde, vivenciando diferentes papéis na relação
profissional, com as atribuições e atividades em saúde, como permite uma análise crítica reflexiva no
enfrentamento de situações reais, permitindo criar novas possibilidades de soluções ou arranjos técnicos
aos mesmos (Ruiz-Moreno, 2004).
O jogo de papéis, que a dramatização possibilita, pressupõe assumir uma função social que não é a
sua, facilita a compreensão das atitudes e decisões do outro, e treina habilidades necessárias e
requeridas para, no presente caso, o trabalho em saúde; permite também que o próprio grupo elabore
gradualmente uma história para que papéis ou personagens sejam incorporados. A elaboração gradual
da história é mediada por um coordenador, papel do docente que, pelo uso de outras técnicas, facilita e
conduz o processo. A técnica não permite, ao docente, o controle do ensino como no método
tradicional. Sua participação, além do conduzir o processo de criação, é a relação final do produto com
os temas estudados. Favorece, aos estudantes, a oportunidade de vivenciarem e compreenderem
determinadas situações do trabalho em saúde (Souza, 2007).
Pode-se compreender, também, a dramatização como o resultado de um grupo, do diálogo e da
pluralidade de ideias orientados pela criatividade e pela sensibilidade. As concepções são importantes e
devem ser discutidas, pois o grupo sempre existe, mesmo que apenas uma pessoa conceba, planeje,
produza, elabore e apresente, haverá a plateia para a qual se apresentará. A criatividade se estabelece
como capacidade de que ideias discutidas ou postas pelo grupo sejam modificadas, visando a adaptação
ao resultado esperado. O docente não controla a dramatização, tal como controlaria a aplicação do
método tradicional de ensino, ele é transformador daquilo que a dramatização oferece para algo efetivo
na aprendizagem (Souza, 2007).
Estudiosos no assunto colocam as três modalidades da estratégia de dramatização mais utilizadas no
processo de ensino: o sociodrama/psicodrama, que prioriza e permite avaliar a interação e as relações
no grupo; o role playing, ou jogo de papéis, que possibilita, aos envolvidos no processo de ensino,
assumirem um papel social que não é o seu; e a oficina de educação em saúde, metodologia voltada
para ações de educação em saúde articulada com a cultura da comunidade (Leal, Nova, 2009; Souza,
2007; Tobase, Gesteira, Takahashi, 2007; Brasil, 2001).
O sociodrama é teorizado para que o enfoque esteja no grupo, em suas inter-relações, ou seja, há
uma dependência de um e de outro pertencente ao mesmo grupo. O psicodrama é teorizado para se
avaliar a interação de um com o grupo, conferindo a ele a responsabilidade de compreender e atuar
960
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.959-67, out./dez. 2013
KALINOWSKI, C.E. et al.
espaço aberto
sobre suas comédias e tragédias da vida. Ao retirar o constituinte psicológico-terapêutico, a
compreensão da dramatização como sociodrama/psicodrama se dá por um problema do grupo,
evidenciado por métodos de ação (Souza, 2007; Tobase, Gesteira, Takahashi, 2007).
O role playing é considerado como jogo de papéis, porque implica assumir um papel social que não
o seu, para que se elabore, gradualmente, uma história para esse papel, ou personagem. A elaboração
dessa história é mediada por um coordenador, que aprovará ou reprovará a história elaborada
gradualmente. A proposta busca facilitar a compreensão das atitudes e decisões do outro no jogo, em
que um assume o papel do outro (Rodrigues, 2004). Os discentes assumem os papéis de outros para
treinar suas habilidades.
A oficina de educação em saúde é apresentada, dentro de programas governamentais brasileiros
(Brasil, 2001), como metodologia de educação com foco na intervenção social em saúde. As oficinas
valorizam a identidade cultural local, tecendo-a com o agregado de processos que diferenciam um
grupo de outro, com o interesse principal de ter produtos finais palpáveis com o uso das artes (cênicas,
plásticas, visuais, musicais), propagandas (cartazes, panfletos, cartilhas e outros) e publicidades
(divulgação da iniciativa).
Neste estudo, a opção definida foi a do role playing, por permitir aos estudantes criarem a partir de
um conhecimento construído e por meio da arte de representar, vivenciar e perceber, pelo olhar do
personagem, as questões relacionadas à situação e às intervenções do trabalho em saúde. A elaboração
da história é mediada por um docente, que conduzirá o grupo para que o texto elaborado represente a
realidade, permita o processo educativo e facilite a compreensão das atitudes e decisões de todos
envolvidos, treinando habilidades e competências necessárias para o trabalho em saúde.
O estudo tem como objetivo relatar a experiência de docentes da área de administração e gerência
em saúde no processo de aplicação e avaliação de uma prática de aprendizagem participativa, com
discentes do Curso de Graduação em Enfermagem, na disciplina de Planejamento e Administração em
Saúde.
Desenvolvimento da experiência
Atividade educativa, desenvolvida, no segundo semestre de 2010, com: 23 estudantes cursando a
disciplina de Planejamento e Administração em Saúde, em um Curso de Graduação em Enfermagem,
na cidade de Curitiba; quatro docentes; cinco enfermeiras de diferentes serviços relacionados à
assistência à saúde da mulher, de um município da região metropolitana de Curitiba, e um discente
monitor. Foram três meses de construção, preparação, desenvolvimento, aplicação e avaliação da prática
educativa.
Às docentes coube a escolha das temáticas de planejamento em saúde, funções gerenciais e
Sistema Único de Saúde – SUS, com ênfase na organização e a operacionalização do sistema. Ressaltase que todas compõem o universo de temas desenvolvido na disciplina de Planejamento e
Administração em Saúde. A seguir, foram definidas e organizadas as estratégias de ensino, com foco no
trabalho em grupo e role playing. O grupo de docentes, entendendo a necessidade de mudança do seu
papel para facilitadoras do processo, elaborou e discutiu as atividades que conduziriam os discentes na
aprendizagem; avaliou e percebeu as necessidades de mudanças no processo em conjunto com os
discentes, e proveu os recursos necessários para o desenvolvimento das ações.
As temáticas planejamento em saúde, funções gerenciais e SUS, com ênfase na organização e sua
operacionalização, foram desenvolvidas por meio do estudo dos programas da Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Mulher (pré-natal, parto, mulher vítima de violência, câncer de mama e
câncer de útero) e do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento, com o olhar no
conhecimento sobre a gestão dos serviços de saúde e a gestão das práticas dos profissionais em saúde,
especialmente da equipe de enfermagem, acrescido e articulado ao conhecimento prévio dos discentes
na prática clínica do cuidado de enfermagem. O ensino das práticas clínicas – como a consulta do
enfermeiro, as intervenções de enfermagem que abordam as dimensões da promoção, prevenção,
assistência e reabilitação – foi desenvolvido em semestre anterior, o que foi considerado, pelas
docentes, como um facilitador, por terem, os discentes, o domínio prévio desses saberes.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.959-67, out./dez. 2013
961
METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS NO ENSINO ...
O estudo dos programas de saúde foi realizado na estratégia de trabalho em grupo. Foram
constituídos cinco grupos, por escolha livre dos discentes, tanto para a composição de cada grupo
quanto para a escolha do programa a ser estudado. Cada grupo se responsabilizou por um dos
programas e realizou pesquisa nos documentos na biblioteca virtual em saúde localizada no portal virtual
do Ministério da Saúde e em outros, oficiais e gratuitos. Para esta prática, cada grupo recebeu um
roteiro orientador sobre quais informações e conhecimentos deveriam reconhecer nos referenciais
localizados, bem como a descrição de situações problematizadas relacionadas à saúde da mulher que os
ajudassem a compreender o trabalho em saúde e o da enfermagem, com ênfase no papel e atribuições
do enfermeiro.
Com estes novos conhecimentos, elaboraram um roteiro para uma visita técnica a serviços
relacionados à assistência à saúde da mulher, em um município da região metropolitana de Curitiba,
com o propósito de compreender a organização e a gestão do sistema, assim como a gestão do trabalho
em saúde. Importante destacar que, nesta disciplina, a multiprofissionalidade e a intersetorialidade do
trabalho em saúde são discutidas com os discentes. Estes percebem a relação e interdependência das
práticas de cuidado de enfermagem com as dos demais profissionais de saúde, como, também, com
outros setores (educação, social, entre outros) importantes para a busca de possíveis resoluções para
algumas situações-problema em saúde.
A seguir, cada grupo elaborou e entregou um relatório sobre esta atividade, que foram apresentados
em um encontro com as docentes e enfermeiras responsáveis pelos serviços visitados. A apresentação
proporcionou um debate construtivo e reflexivo, permitindo a percepção e avaliação positiva sobre a
construção e/ou a inserção de novos conhecimentos. Segundo os próprios discentes, eles conseguiram
aprofundar, compreender e reconhecer: a organização do SUS, a relação entre as diferentes práticas
profissionais em saúde e, sobretudo, que o envolvimento e o compromisso foram determinados pelo
grupo e pelos seus componentes.
Para o processo de consolidação dos conhecimentos tratados e a possibilidade de exercitarem as
funções gerenciais (planejamento, coordenação, direção e avaliação), o grupo foi desafiado a realizar
uma apresentação com a modalidade da dramatização role playing.
Inicialmente, as docentes se reuniram com os discentes escolhidos para formarem o grupo diretor,
para apresentação e discussão sobre o resultado esperado nesta atividade. A proposta de role playing
teve como fundo temático a história de vida de uma família e sua relação com os serviços sociais,
relatados em um estudo de caso. Os discentes tiveram orientação sobre a técnica do role playing e
foram disponibilizados artigos que tratavam do presente assunto.
Um segundo encontro, agora com todos os 23 discentes matriculados na disciplina, foi para discutir e
refletir sobre a técnica do role playing e o estudo de caso com a história a ser representada. A seguir, o
grupo diretor procedeu à apresentação do planejamento dos trabalhos e à organização dos alunos. Para
tal, a turma foi organizada em três subgrupos: um responsável pela elaboração do roteiro, com oito
discentes; um responsável pela sonoplastia e iluminação, com seis componentes; e um responsável pela
divulgação, com três discentes. O grupo diretor definiu atribuições e metas para cada grupo, solicitou
que cada grupo elaborasse um plano de ação, definisse seu coordenador e estabelecesse um cronograma
de encontros.
O grupo responsável pelo roteiro conduziu uma reunião com todos para: fomentar ideias e
sugestões para a composição do texto final; sugestões para cenário, figurino, e a definição dos
discentes-atores. Foi exitoso ao aplicar a dinâmica de “chuva de ideias”. Percebeu-se que a maioria dos
discentes contribuiu para a possibilidade de construir um texto denso, com riqueza de situações e
propostas de intervenções em saúde.
A técnica e a condução do encontro possibilitaram a vivência de duas das funções gerenciais:
coordenação e direção de maneira lúdica, agradável, porém real. Os discentes perceberam que a
responsabilidade final retornou ao grupo do roteiro, que assumiu o compromisso de construir o roteiro,
sua atribuição nesta etapa da prática. O roteiro final foi apresentado e aprovado pela docente
responsável. O trabalho em grupo prescinde deste processo de ir e vir: momentos do pequeno grupo
com sua tarefa, momentos de apresentação e aprovação por todos os envolvidos.
962
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.959-67, out./dez. 2013
KALINOWSKI, C.E. et al.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.959-67, out./dez. 2013
espaço aberto
O estudo de caso relatava a história de vida de uma família, com ênfase em saúde da mulher, e,
também, nas relações com os vínculos familiares, no contexto do cotidiano familiar, na comunidade, e
na relação com os diferentes serviços sociais; continha breves relatos de uma gestante hipertensa e com
antecedentes obstétricos de aborto; seu esposo com problemas de alcoolismo e violência doméstica.
Também apresentava a mobilização da comunidade e a relação com outros movimentos sociais; os
recursos sociais na comunidade – escola, creche, projetos sociais, entre outros; e finalizava com um
breve relato sobre a organização da saúde na comunidade, a unidade de saúde, seus recursos e ações
em saúde disponíveis para a comunidade.
Importante ressaltar que o estudo de caso permitia, aos discentes, o acréscimo e/ou o detalhamento
de situações em saúde ou sociais, bem como as intervenções em saúde necessárias. Foi um instrumento
utilizado com maestria pelos discentes, com criação e demonstração do conhecimento apreendido ao
elaborarem o texto final que, efetivamente, abordou situações reais do cotidiano familiar, dos serviços
de saúde e da relação destes com os outros serviços sociais necessários para o encaminhamento das
questões abordadas. Os discentes canalizaram a oportunidade de perceber como o indivíduo se insere
no Sistema de Saúde a partir de problemas de saúde reais identificados.
As docentes perceberam que o conhecimento das temáticas de administração – foco deste relato –
foi apreendido pelos discentes, por apresentarem situações não só do cuidado individual ou coletivo, mas
de gerenciamento ou nas dimensões individuais ou coletivas, de relação organizacional da atenção à
saúde, demonstrando que os problemas em saúde não são isolados ou iguais, porém o tratamento, aos
indivíduos e grupos, deve respeitar a individualidade e a coletividade. Essa reflexão surgiu por causa do
embasamento teórico dos temas abordados, ou seja, a estruturação do roteiro a partir do estudo de caso.
O grupo responsável pelo cenário, figurinos e sonoplastia desenvolveu um plano de ação para
viabilizar os recursos necessários para a apresentação, como: arrecadar material para figurino, cenário;
conseguir autorização para o uso dos equipamentos e materiais de saúde existentes no laboratório de
enfermagem do curso. O grupo criou um fundo musical, com músicas de autores brasileiros que cantam
histórias parecidas com a do estudo de caso. O cenário foi uma composição de equipamentos e
projeções de figuras com diferentes espaços que retratavam a história.
Posteriormente, houve um momento em que se discutiu que o conhecimento tratado na prática foi
entrelaçado com outros conhecimentos que não são de domínio ou objeto de estudo do curso; mas a
vivência pessoal e do grupo em transitar em outras áreas de conhecimento possibilitou a criatividade e
ludicidade, importantes neste processo de aprendizagem.
O grupo da divulgação, além de cartazes colocados no Setor de Ciências da Saúde da universidade,
convidou os discentes, especialmente os ingressantes do curso. Em relação aos enfermeiros dos serviços
visitados e docentes, o grupo encaminhou convite individual e à equipe. Preparou um programa do dia
da apresentação, com sinopse da peça, e da atribuição de cada discente, que foi entregue a todos os
ouvintes.
O grupo diretor acompanhou e realizou os encontros com a presença de responsáveis de cada grupo
e, sistematicamente, repassava as informações às docentes, mas não necessariamente todas, criando
expectativa, própria da estratégia adotada, demonstrando a possibilidade de provocar, também no
docente, a curiosidade, importante para o processo avaliativo.
A apresentação aconteceu em sala de aula, que foi organizada em dois espaços distintos, um
destinado à apresentação e um aos convidados. Os convidados, em torno de cinquenta, foram
recepcionados pelos grupos diretor e de divulgação. A apresentação, com duração de uma hora, foi
extremamente rica em situações que abordaram todos os programas da saúde da mulher estudados e as
questões sociais inseridas no texto. A inserção, na peça, de situações do cotidiano que permeiam a
assistência de enfermagem na Atenção à Saúde da Mulher e a gestão pública, permitiu também aos
discentes raciocinarem sobre as funções gerenciais no roteiro.
Após a apresentação, os discentes diretores coordenaram um debate articulando as temáticas,
esclarecendo dúvidas, sobretudo dos discentes ingressantes, e envolvendo todos na discussão, apoiados
pelas docentes presentes.
Os discentes ingressantes no curso, que, no período, discutiam as áreas de atuação do enfermeiro,
avaliaram que a apresentação permitiu concretamente entender o trabalho do enfermeiro,
963
METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS NO ENSINO ...
compreendendo as práticas profissionais do enfermeiro nas dimensões assistencial e gerencial. Também
apontaram a importância de conhecerem um pouco sobre a organização do SUS.
Uma questão ressaltada, no momento do debate, pelos dois grupos de discentes – ingressantes e
cursantes da disciplina – foi a reflexão sobre o trabalho do enfermeiro, seja como cuidador ou como
gestor do cuidado. Considerou-se que as possibilidades de cuidar são inúmeras e diversificadas, que há
importância de o trabalho em saúde ser multidisciplinar e interdisciplinar, e que as situações em saúde
vão para além da competência técnica, necessitam da competência de comunicação para se articularem
intersetorialmente.
A avaliação da atividade foi conduzida pelo grupo diretor a partir de um roteiro proposto pelas
docentes, com questões relacionadas à modalidade definida, role playing, e às temáticas. O grupo
acrescentou outras questões relacionadas ao processo de condução da turma. O encontro foi
coordenado e dirigido pelo grupo no dia seguinte e com respostas satisfatórias sobre o processo de
aprendizagem. O momento de apropriação e consolidação das práticas das funções gerenciais, um dos
destaques da avaliação, revelou que a atividade permitiu a todos exercitarem as quatro funções
gerenciais, com variações e formas de trabalhar diferentes entre eles. Em outro momento de
apropriação do conhecimento, reconheceu-se a individualidade e as diferenças. A estratégia permitiu o
exercício das funções gerenciais em uma situação real, concreta e com significado para todos.
A presença de convidados e dos discentes ingressantes foi positiva, porque os discentes atores se
preocuparam em representar com exatidão e clareza as situações, permitindo a compreensão do
trabalho do enfermeiro, foco do outro grupo de discentes, que, em uma situação real e problematizada,
puderam debater a profissão que escolheram. Avaliaram que, além da aplicação das funções gerenciais,
conseguiram compreender um pouco mais sobre o SUS e que há muito, ainda, a aprender sobre este
tema. Entenderam que foram introduzidos de uma forma aprazível a serem defensores deste sistema.
Em outro momento, as docentes conduziram a avaliação da prática educativa inteira, desde os
estudos dos programas em saúde até a apresentação. Foram apontadas a viabilidade e a efetividade do
aprendizado com o uso de metodologias participativas, e destacado que requerem tempo e mobilização
de recursos, especialmente por parte dos docentes e dos discentes, e destes últimos, um deslocar para
ser um participante ativo e compromissado.
Considerações finais
As docentes destacaram que a construção de práticas de aprendizagem com metodologias
participativas requer tempo, motivação, dedicação e comunicação, mas, sobretudo, a mudança do seu
processo de trabalho. Envolver-se, acompanhar os discentes em diferentes tempos e lugares é uma das
exigências, pois o processo de aprendizagem não acontece exclusivamente na sala de aula ou nos
espaços previamente determinados pelos docentes, como o relato demonstrou.
Requer do docente uma atenção aos diferentes discentes ou grupos de discentes que estão em
momentos diferentes do processo de aprendizagem. Exige, também, planejamento detalhado e acurado
destes momentos, e habilidade de adaptação, seja das estratégias ou dos papéis que o docente assume
ao utilizar metodologias participativas.
O docente passa a ser um dos membros do grupo envolvido no processo, com funções
determinadas, sendo a principal a de ser um facilitador, com competências em comunicação e
observação, e com sentidos alertas para perceber os diferentes momentos de aprendizagem em que
estão os envolvidos.
Importante destacar que as temáticas definidas também foram facilitadoras no processo de
aprendizagem, e que a prática possibilitou uma avaliação positiva na construção do conhecimento
relacionado a elas. O mesmo pode-se ressaltar para as estratégias do trabalho em grupo e dramatização,
que além de favorecerem a aprendizagem, reforçaram sentimentos de valorização nos discentes, ao
assumirem funções e papéis de outros, provocando significação no conhecimento.
É necessário refletir se, no processo de trabalho docente – atualmente, com inúmeras atividades em
projetos de pesquisa, de extensão, de orientação, de participação em programa de pós-graduação
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KALINOWSKI, C.E. et al.
espaço aberto
(stricto e lato sensu), entre outras – podem ser disponibilizados tempo e energia para se construírem,
efetivamente, práticas pedagógicas com o uso de metodologias participativas.
Uma reflexão importante é se todos têm opção de decidir ou escolher em participar de uma prática
pedagógica mobilizadora. Inicialmente, percebe-se um recuo ou indecisão, seja dos docentes ou dos
discentes. Sair do comodismo ou do conhecido requer mobilizações e mudanças, individuais e coletivas.
É importante que os docentes acompanhem e motivem os discentes, e que estes, reciprocamente,
façam o mesmo. Os discentes, questionados, no final, sobre seus sentimentos e percepções da prática,
relataram que se sentiram incomodados e preocupados, no início, e, em determinados momentos,
confusos. Entretanto, quando se debruçaram para construir relatórios, ampliar o estudo de caso, debater
e, sobretudo, exercer as funções gerenciais, perceberam que, afirmativamente, apreenderam, e, por
isso, sentiam-se seguros para iniciar a exercer estas funções nas atribuições do profissional enfermeiro.
A reflexão do contexto geral e final da prática educativa validou a permanente construção e
reconstrução de saberes, que deve ser somatória e transformadora. Ao se acrescentarem novos
conhecimentos a um anterior, permite-se reconhecer diferentes percepções da realidade e, a partir
destas, associá-las e relacioná-las com conhecimentos teóricos que permitam entender um pouco mais
a complexidade da organização social.
Colaboradores
Carmen Elizabeth Kalinowski planejou, organizou e conduziu as práticas, trabalhou na
organização e análise dos dados, na redação e revisão final do texto; Reinaldo Miguel
Dolny Massoquetti colaborou na revisão bibliográfica, organização dos dados,
discussão e redação final; Aida Maris Peres e Liliana Müller Larocca colaboraram na
redação e revisão final; Isabel Cristina Kowal Olm participou da discussão, análise dos
dados e redação; Luciana Schleder Gonçalves participou do desenvolvimento das
atividades, organização dos dados, discussão e redação final; Riciana do Carmo Calixto
colaborou na revisão bibliográfica e revisão final do manuscrito.
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saúde e comunicação. Brasília: Ministério da Saúde, 2001.
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METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS NO ENSINO ...
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espaço aberto
KALINOWSKI, C.E. et al.
O trabalho relata a experiência de docentes da área de administração e gerência em
saúde no processo de construção e desenvolvimento de uma prática de aprendizagem
significativa e participativa, desenvolvida no segundo semestre de 2010, com 23
estudantes de um curso de graduação em Enfermagem, na cidade de Curitiba-PR. As
estratégias de trabalho em grupo e a dramatização na modalidade do role playing
foram escolhidas por facilitarem a participação e a motivação para a aprendizagem. O
sistema de saúde, planejamento em saúde e funções gerenciais foram temáticas
definidas para compor a prática. O aprendizado permitiu o exercício das funções
gerenciais em uma situação real, concreta e com significados a todos, e, ainda, o
destaque das docentes sobre a construção de práticas de aprendizagem com
metodologias participativas, que requerem tempo, motivação, dedicação e
comunicação, mas, sobretudo, a mudança do processo de trabalho.
Palavras-chave: Educação em enfermagem. Metodologia participativa. Administração e
gerenciamento em enfermagem.
Participative methods in teaching administration within nursing
This paper reports the experience of teachers within the field of healthcare
administration and management in the process of building and developing practices of
participative and meaningful learning, which took place in the second semester of
2010, with 23 students in an undergraduate nursing program in the city of Curitiba,
Paraná. Strategies for group work and dramatization through role playing were chosen,
since these facilitate participation and motivation for learning. The healthcare system,
healthcare planning and managerial functions were the themes defined for constituting
the practice. The learning experience allowed managerial functions to be performed in
a real and concrete situation, with meaning for all participants. The teachers’ role in
constructing learning practices was highlighted, with participative methods that
required time, motivation, dedication, communication and, especially, changes to their
work processes.
Keywords: Nursing education. Participative methods. Administration and management
in nursing.
Metodologías participativas en la enseñanza de la administración en enfermería
El trabajo relata la experiencia de docentes del área de administración y gestión en
salud en el proceso de construcción y desarrollo de una práctica de aprendizaje
significativa y participativa, desarrollada en el segundo semestre de 2010, con 23
alumnos de un curso de graduación en Enfermería, en la ciudad de Curitiba, Estado de
Paraná. Se eligieron las estrategias de trabajo en grupo y la dramatización en la
modalidad de role playing porque facilitaban la participación y la motivación para el
aprendizaje. El sistema de salud, planificación en salud y funciones de gestión en una
situación real, concreta y con significados para todos, y también el destaque de las
docentes sobre la construcción de prácticas de aprendizaje con metodologías
participativas que requieren tiempo, motivación, dedicación y comunicación pero,
sobre todo, el cambio del proceso de trabajo.
Palabras-clave: Educación en enfermería. Metodología participativa. Administración y
gestión en enfermería.
Recebido em 01/08/12. Aprovado em 07/12/12.
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967
DOI: 10.1590/1807-57622013.3683
espaço aberto
Metodologias ativas de ensino-aprendizagem
para educação farmacêutica: um relato de experiência
*
Jane Beatriz Limberger1
Introdução
Em tempos de sociedades globalizadas e acesso massivo da população à
informação por meio de mídias digitais, faz-se necessário o repensar de nossas
metodologias de ensino utilizadas diariamente, a fim de se agregar maior
conhecimento, tornar o dia a dia da sala de aula mais dinâmico, além de
proporcionar a quebra do paradigma professor-aluno, uma vez que a velocidade
da construção do conhecimento favorece a complementação destes personagens,
que, cada vez mais, aprendem juntos.
Neste contexto, o aluno não deve mais ser visto como um ser passivo, mas
estimulado a construir seu conhecimento por meio da avaliação da informação
disponível, sendo o professor o responsável pela orientação adequada, pelo
acompanhamento e pelo estímulo constante pelo aprendizado de qualidade.
A utilização de recursos de aprendizagem em sala de aula deve contemplar o
universo de ferramentas disponibilizadas pela internet e softwares de computador,
considerando que o aluno de hoje possui familiaridade com estes recursos, uma
vez que grande parte os utiliza em suas atividades diárias de estudo, e, sobretudo,
de entretenimento.
Observa-se uma evolução profunda na internet, que surgiu como mera rede
de interligação entre computadores, e que hoje representa um espaço interativo
do qual todos nós somos parte integrante (Santos, 2010). Pode-se, além de
acessar conteúdos nas mais diversas áreas de conhecimento, produzir textos,
complementar informações, gerar avaliações, contribuindo para o ensino à
distância ou para a complementação das atividades diárias de sala de aula,
mediante utilização da internet 3.0.
Acompanhando este processo constante de mudança, a educação de novos
profissionais de saúde necessita de reformulações, visando formar profissionais
adequados às necessidades de saúde da população brasileira e do Sistema Único
de Saúde, integrando a efetiva articulação das políticas de saúde com a educação.
Dá-se ênfase à educação problematizadora, centrada no estudante, que constrói
seu conhecimento e desenvolve um discurso próprio de maneira ativa através de
novas metodologias de ensino e aprendizagem, com o professor no papel de
facilitador do processo. Nesta situação, o futuro profissional de saúde é convidado
*
Relato de experiência
vivenciada pela autora em
sua prática docente.
1
Curso de Farmácia,
Centro Universitário
Franciscano (Unifra). Rua
dos Andradas, 1614.
Santa Maria, RS, Brasil.
97.010-032.
[email protected]
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METODOLOGIAS ATIVAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM ...
a trabalhar com problemas reais, assumindo responsabilidades crescentes e interagindo com a população
e os profissionais de saúde das áreas afins.
Este novo profissional exigido pelas últimas reformas curriculares dos cursos da área de saúde, e, em
específico, o curso de Farmácia, tem perfil generalista, humanista, crítico e reflexivo, para atuar em
todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor científico e intelectual (Brasil, 2002). Este perfil
vai ao encontro das necessidades de mudanças profundas no aparelho formador dos profissionais da
saúde, porque o atual, individualista e antropocêntrico, não atende mais às necessidades das pessoas
nem do processo de trabalho em saúde (Ferreira, Ramos, 2006).
Dentre a variedade de metodologias ativas disponíveis, se faz necessário escolher aquela que melhor
se adapta à fase do curso. Assim, simulações, discussões em classe, dramatizações, mapas conceituais e
mentais são adequados aos primeiros semestres, enquanto, em etapas intermediárias e finais, o uso de
metodologias de problematização, estudos de caso e aprendizagem baseada em projeto trazem
melhores resultados para a formação do egresso (Oliveira, 2010).
A disciplina de Assistência e Atenção Farmacêutica tem por finalidade preparar o estudante de
farmácia para a atuação efetiva no ciclo da assistência farmacêutica, contribuindo para a melhoria das
práticas de gestão de medicamentos no Sistema Único de Saúde - SUS, dentro do que preconiza a
política nacional de medicamentos. Além disso, proporciona enfoque na prescrição, dispensação e
utilização de medicamentos pelos usuários, visando o uso racional e contribuindo para a detecção e
resolução de Problemas Relacionados a Medicamentos (PRMs).
Visando a adequação da disciplina às novas diretrizes curriculares e considerando o perfil do
estudante atual, buscou-se utilizar metodologias ativas de ensino-aprendizagem como ferramenta para a
construção do conhecimento do aluno, contribuindo, inclusive, para o despertar da prática em educação
em saúde, uma vez que os saberes e fazeres situados na perspectiva da interatividade se manifestam
quando há utilização expressiva de interfaces de compartilhamento de informações e de colaboração,
inclusive, multiprofissional.
Metodologia empregada
O primeiro passo para a implementação de metodologias ativas no ensino da atenção farmacêutica
foi o entendimento de que o polo de ensino, centrado no professor, teria de ser direcionado para o polo
da aprendizagem, centrado no aluno. Isto só é possível por meio da substituição da concepção da teoria
antecedendo a prática para a articulação teoria/prática; a saída das concepções de saúde como ausência
de doença para a saúde enquanto condições de vida.
A experiência de outros cursos foi relevante na organização e sistematização das práticas a serem
realizadas. Nessa perspectiva, postulou-se que a disciplina de Assistência e Atenção Farmacêutica, com
carga horária semanal de 51h, seria submetida a um processo contínuo de construção e reconstrução,
considerando a relação entre ensino e a prática profissional, prática e teoria, resolução de problemas e
interação professor-aluno-comunidade.
Os encontros com os alunos aconteceram semanalmente, de maneira presencial durante o período
da aula e de maneira virtual durante todo o semestre. A proposta da metodologia contemplou a
divulgação semanal de estudos de caso de pacientes pertencentes aos grupos específicos constantes no
programa da disciplina, e a resolução destes pelos acadêmicos, agrupados em duplas, a fim de fomentar
a discussão e a observância de diferentes pontos de vista do mesmo caso. Como ambiente de discussão
extraclasse, foi planejado o desenvolvimento de um blog, que reuniria, além dos estudos de caso a
serem comentados, fontes de referência on-line para subsidiar as discussões.
Semanalmente, foram elaborados estudos de caso (sete durante o semestre), obedecendo aos
seguintes critérios: o foco do estudo se concentra na terapia, e não no diagnóstico; o caso deve
possibilitar a identificação de um medicamento que seja de escolha, segundo diretrizes de tratamento
preestabelecidas; a ênfase no processo de escolha do medicamento, considerando as peculiaridades do
paciente; a identificação e resolução de problemas relacionados a medicamentos.
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LIMBERGER, J.B.
espaço aberto
No planejamento da avaliação dos alunos, considerou-se que esta deveria estar voltada para as
competências, traduzidas no desempenho, por meio de um instrumento de acompanhamento de todo
o processo ensino-aprendizagem, como forma de garantir o desenvolvimento das competências
necessárias à formação do profissional.
.
Contextualizando o cenário da prática
A disciplina de Assistência e Atenção Farmacêutica é ministrada no sétimo semestre do curso de
Farmácia da Unifra, Santa Maria, RS, e ocorre concomitantemente ao Estágio em Assistência e Atenção
Farmacêutica, permitindo uma correlação entre a teoria e a prática do uso racional de medicamentos. O
conteúdo referente à atenção farmacêutica é direcionado ao estudo de grupos específicos de pacientes
que apresentam características ou problemas de saúde comuns, tais como: diabetes, hipertensão,
doenças infectocontagiosas, distúrbios menores (insônia, resfriados, tosse etc.), ou em grupos de
pacientes com características semelhantes, como crianças, idosos, mulheres, gestantes, entre outros.
Primeiramente, foi criado um blog (www.atenfar.wordpresss.com) para divulgação do estudo de caso
semanal, bem como a inclusão de materiais bibliográficos, textos de interesse, notícias e links que
pudessem auxiliar o estudante na busca pelo conhecimento teórico necessário para a discussão do caso.
A ferramenta permite que o estudante insira comentários sobre o caso, sempre acompanhada da
referência bibliográfica científica consultada. A leitura do comentário inserido por outras duplas pode, e
deve, despertar o olhar crítico e promover a avaliação dos comentários, gerando a discussão necessária
para a observação de diferentes pontos de vista, ou diferentes referenciais, sobre o mesmo assunto.
Na elaboração do estudo de caso buscou-se contemplar diferentes aspectos referentes aos
problemas de saúde, farmacoterapia proposta e problemas relacionados a medicamentos, considerando
as complexidades comuns ao indivíduo em estudo. Assim, os estudantes receberam a tarefa de,
semanalmente, visitar o blog, avaliar o estudo de caso proposto e inserir comentários sobre algum
aspecto específico do caso. A avaliação completa do caso gerou um relatório, discutido em aula. Nesse
momento os estudantes sentavam em círculo, junto à professora, que selecionava: um voluntário para a
tarefa de relator, responsável pela compilação dos resultados obtidos pelos diferentes grupos; e um
secretário, responsável pela anotação dos resultados do consenso, que seriam posteriormente
divulgados no blog na forma de uma súmula do caso clínico.
Ao final da discussão, os aspectos relevantes do conteúdo que não puderam ser encaixados no caso
foram complementados pela professora.
A construção dos casos
O indivíduo é o conjunto de seus Conhecimentos, Habilidades e Atitudes (CHA), ou seja,
compreende as competências necessárias para que a pessoa desenvolva suas atribuições e
responsabilidades usando a sua criatividade e inovação (Dutra, 2004). Quando o aprendizado ocorre por
meio de metodologias ativas, o conhecimento dos estudantes é comparável ao do método tradicional,
porém, seu desempenho em relação às suas habilidades e atitudes é superior, reflexo da visão críticoreflexiva proporcionada pelo método. Além disso, observou-se uma satisfação maior por parte dos
acadêmicos quando foram solicitados a avaliar o método, por considerarem que a utilização de casos
práticos proporciona uma maior relação com a realidade, facilitando a fixação de conteúdos e
promovendo o pensamento crítico.
Apesar de o estudo baseado em problemas focar o aprendizado por parte do aluno, o professor (ou
instrutor) tem um papel fundamental na descrição do caso a ser estudado, uma vez que este deve
contemplar o conteúdo em questão, considerando a complexidade dos sujeitos. A abordagem dos
alunos, em um primeiro momento, pode parecer simples, mas, na prática, a mudança de papéis pode
não ser tão facilmente concebida: O professor não é mais o condutor, mas companheiro na busca do
aprendizado. A aula tradicional, na forma de palestra, é substituída por perguntas. Saber quais perguntas
são importantes nem sempre é tarefa fácil.
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METODOLOGIAS ATIVAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM ...
Os casos propostos durante os estudos não foram acompanhados por questões formuladas, uma vez
que a avaliação dos aspectos mais importantes do caso faz parte do processo de aprendizagem e
proporciona a prática da visão integral do sujeito em estudo. Neste contexto, a atuação do farmacêutico
deve contemplar: a descrição adequada do caso, o levantamento e a correlação dos problemas de saúde
e dos problemas relacionados a medicamentos, e as condutas para a intervenção farmacêutica que
visem o uso racional de medicamentos e a melhoria da adesão e da qualidade de vida do paciente.
Um bom cenário clínico para atenção farmacêutica deve deixar claro o diagnóstico do paciente e
contemplar a farmacoterapia em uso, de maneira completa, com dados sobre dosagem, posologia e
tempo de tratamento. Outras informações que podem ser importantes contemplam: a utilização de
terapias alternativas, como uso de plantas medicinais, fitoterápicos e medicamentos homeopáticos;
doenças associadas; aspectos socioeconômicos, como escolaridade, faixa etária, renda familiar; adesão
ao tratamento medicamentoso ou não medicamentoso, e grau de informação do paciente sobre o
medicamento em uso.
Abordar aspectos socioeconômicos é de fundamental interesse para os estudos, uma vez que visam
avaliar a relação custo-efetividade do tratamento e, por consequência, a adesão. Pacientes que não têm
acesso a medicamentos por outra via que não o Sistema Único de Saúde devem receber,
preferencialmente, prescrições de medicamentos constantes na RENAME (Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais), sob pena da descontinuidade do tratamento.
A avaliação do nível educacional do paciente permite adequar as informações dispensadas a este
paciente de acordo com seu grau de compreensão, permitindo que este fique ciente de seus problemas
de saúde e da importância da adesão aos esquemas terapêuticos propostos.
Com base no caso, se faz necessária a determinação do objetivo terapêutico para o paciente, ou
seja, busca-se: a cura de um problema de saúde, o controle de um quadro, a resolução de um
problema relacionado ao medicamento (interações medicamentosas, dose inferior ou superior à
adequada, processos alérgicos, efeitos adversos etc.). É importante ressaltar que a determinação do
objetivo terapêutico deixa claro qual é o resultado de intervenção esperado, não cultivando falsas
expectativas tanto para o paciente quanto para o futuro farmacêutico.
O conteúdo do caso proposto deve refletir a prática diária profissional, seja o seu local de trabalho
uma farmácia comercial, um ambulatório, um hospital, um laboratório de análises clínicas ou outro
estabelecimento farmacêutico. Por isso, deve-se buscar a inserção de informações tanto farmacológicas
quanto clínicas, como resultados de exames laboratoriais, por exemplo. A correlação de dados
laboratoriais com o quadro do paciente permite uma avaliação clínica completa e a visão do paciente
em todos os seus aspectos.
A inclusão de informações na história clínica do paciente permite que o caso seja dificultado ou
facilitado, dependendo dos objetivos propostos para o caso. A inclusão de efeitos adversos pode, por
exemplo, evidenciar problemas relacionados a medicamentos comumente encontrados na prática
clínica, e possibilitar a busca por formas de resolução deste problema específico. Outro exemplo de
modificação consiste na inclusão de uma gravidez, no caso de paciente do sexo feminino, que vai
alterar a necessidade e a segurança na utilização de grande número de fármacos.
Na prática clínica, quando utilizamos casos reais para avaliação, é possível encontrar erros de
prescrição no que tange à incompletude de informações no receituário, especialmente quanto: à
duração de tratamento, utilização de nomes comerciais em prescrições do SUS, sobreprescrição e
padrões de prescrição muitas vezes baseados em informações promocionais de propagandistas de
medicamentos. A utilização de estratégias de marketing duvidosas favorece o uso de medicamentos
sem a necessária avaliação do risco/benefício e resultando, geralmente, em prescrições
economicamente inviáveis.
Quando o acadêmico se depara com a grande quantidade de informações disponíveis acerca de
fármacos e terapias medicamentosas, é comum se angustiar com o montante de informações
necessárias para a prática profissional. Neste contexto, destaca-se o aprender a aprender, e a busca de
informações qualificadas para subsidiar a tomada de decisão para a intervenção farmacêutica.
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LIMBERGER, J.B.
espaço aberto
Estudos randomizados, duplos-cegos ou controlados por placebo são superiores à opinião de um
único indivíduo. Outro aspecto diz respeito a estudos financiados pelas indústrias farmacêuticas,
gerando conflito de interesses e desqualificando a informação. Assim, mesmo informações oriundas de
portais de pesquisa devem ser avaliadas criteriosamente, evitando situações de viés.
É comum se observarem informações conflitantes quando consultadas em fontes diferentes, por
exemplo: livros de farmacologia, cartilhas, artigos científicos etc. Nestes casos, é importante aproveitar
este momento para fazer a avaliação da fonte de acordo com critérios como: fator de impacto do
periódico ou qualidade do livro consultado.
Durante as atividades, a intervenção do professor deve ser restrita a momentos em que a discussão
não avança, ou quando o grupo tem dificuldade de entrar em um consenso. Outro caso que exige
intervenção diz respeito a estudantes mais calados, por questões de personalidade. Nestes casos, é
importante que a inclusão ocorra por meio de questionamentos ou que estes alunos sejam chamados a
sumarizar algum aspecto do caso.
Processo avaliativo
A avaliação deve oportunizar, a professores, alunos e a própria instituição, um momento de reflexão
sobre as práticas desenvolvidas e desempenhos alcançados, bem como oportunizar a elaboração de
estratégias para o aperfeiçoamento da aprendizagem. Para tanto é necessário: observar, escutar,
acompanhar, registrar, discutir, comparar, intervir, mudar e melhorar continuamente (Costa, 2011).
Durante a execução das atividades, buscou-se ampliar os métodos de avaliações, não apenas de
maneira somativa, ao final do processo de ensino/ aprendizagem, mas, também, formativa, durante o
processo, por meio da observação dos estudantes, das perguntas, das respostas aos questionamentos, da
elaboração de sínteses orais e escritas. É importante considerar: a capacidade de reflexão e análise crítica
sobre a situação em estudo, a aplicabilidade e pertinência das soluções apresentadas para a resolução do
problema. Compuseram a nota final do estudante testes contemplando: o conteúdo, a participação em
sala de aula, a elaboração de relatórios orais e escritos, e discussões em ambiente virtual.
Considerações finais
Atualmente, o mercado de trabalho exige que o profissional de saúde tenha condições não apenas
de reproduzir informações recebidas em sala de aula, mas também, e sobretudo, de produzir seu
próprio conhecimento ao longo de sua vida profissional, ampliando seu campo de aprendizagem. Buscase a mudança de um paradigma em relação ao estudante e ao processo de ensino/aprendizagem.
Observa-se que o aluno tradicional é pouco motivado, imediatista, passivo, muitas vezes dividido entre
o trabalho e o emprego.
A utilização de metodologias ativas na disciplina de Assistência e Atenção Farmacêutica permitiu,
aos acadêmicos, construírem o próprio caminho, mais seguros de seu potencial, com maior autoestima,
autonomia e motivação, uma vez que ampliou a consciência dos estudantes acerca da tolerância, da
ambiguidade e da complexidade, e estimula o respeito a opiniões e experiências diversas. Também foi
possível observar: o desenvolvimento de uma maior compreensão sobre o tema, maior retenção de
conhecimentos, o despertar para a importância da interdisciplinaridade, sempre tendo, por foco, a
resolução de um problema do paciente.
Obviamente, as práticas baseadas em problemas exigem momentos de reflexão para a melhoria da
didática frente às dificuldades apresentadas, e constante autoavaliação e replanejamento; além de
habilidade comunicativa, exercício de liderança, e observação de aspectos referentes à
interdisciplinaridade dos conteúdos envolvidos no curso de farmácia e a complexidade dos indivíduos,
sujeitos dos casos, exigindo sensibilização, motivação e participação docente, discente e institucional.
Não é um caminho fácil, mas, certamente, é recompensador, já que estudar passa a ser um ato
desafiador e motivador.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.969-75, out./dez. 2013
973
METODOLOGIAS ATIVAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM ...
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conteúdos dinâmicos: utilização em ambientes educacionais contribuindo para o
sucesso educativo no ensino secundário em Portugal. 2010. Dissertação (Mestrado) Comércio Eletrónico e Internet, Universidade Aberta, Lisboa. 2010.
974
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.969-75, out./dez. 2013
espaço aberto
LIMBERGER, J.B.
As práticas e os projetos pedagógicos dos cursos da área da saúde têm sido alvo de
intervenções a fim de se contemplarem as necessidades da sociedade contemporânea.
A formação do farmacêutico não foge a esta linha, na qual se destaca a correlação entre
teoria e prática, ressaltando a necessidade de uma visão integral do indivíduo e do
meio que o cerca. Com base nestas considerações, o presente artigo visa abordar a
utilização de metodologias ativas de ensino-aprendizagem na disciplina de Assistência
e Atenção Farmacêutica do curso de Farmácia do Centro Universitário Franciscano
(UNIFRA), relatando avanços e dificuldades observadas. Foram realizados,
semestralmente, sete estudos de caso abordando problemas de saúde, farmacoterapia
e problemas relacionados a medicamentos. Como resultados, destaca-se a formação de
um aluno capaz de intervir e construir o próprio futuro com responsabilidade e
comprometimento com a formação humanística e generalista.
Palavras-chave: Metodologias ativas de ensino-aprendizagem. Problematização.
Educação farmacêutica.
Active teaching-learning methodologies for pharmaceutical education:
a report on experience
The pedagogical practices and projects of healthcare courses have been the target of
interventions aimed at taking into account the needs of contemporary society. The
training for pharmacists is no exception and, in this, the correlation between theory
and practice is highlighted, along with the need for a comprehensive view of
individuals and the environment that surrounds them. Based on these points, this
article aimed to address the use of active teaching-learning methodologies in the
Discipline of Pharmaceutical Care and Assistance of the Pharmacy Course at the
Franciscan University Center (UNIFRA), reporting on the advances and difficulties
observed. Each semester, seven case studies covering health problems,
pharmacotherapy and problems relating to medications were conducted. The results
highlighted the shaping of students who were capable of intervening in and
constructing their own futures with responsibility and commitment towards humanistic
and general training.
Keywords: Active teaching methodologies. Problem-based learning. Pharmacy
education.
Metodologías activas de enseñanza-aprendizaje en educación farmacéutica: un
relato basado en la experiencia
Las prácticas y los proyectos pedagógicos de los cursos del área de salud han sido
objeto de intervenciones con el fin de atender las necesidades de la sociedad actual. La
formación del farmacéutico no escapa de esta línea, en la que se destaca la correlación
entre teoría y práctica, subrayando la necesidad de una visión integral del individuo y
del entorno que lo rodea. Con base en tales consideraciones el presente artículo busca
abordar el uso de métodos activos de enseñanza-aprendizaje en la asignatura de
Asistencia y Atención Farmacéutica del curso de Farmacia en el Centro Universitario
Franciscano (UNIFRA), relatando avances y dificultades observadas. Fueron realizados,
semestralmente, siete estudios de caso que abordaban problemas de salud, fármacoterapia y problemas relacionados con medicamentos. Como resultado, se destaca la
formación de un alumno capaz de intervenir y construir su propio futuro con
responsabilidad y compromiso con una formación humanística y general.
Palabras clave: Metodología activa de enseñanza y aprendizaje. Problematización.
Educación farmacéutica.
Recebido em 20/08/12. Aprovado em 24/04/13.
Jane - Submissão: 20/08/2012 - Aprovação: 24/042013
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Cristina - Submissão: 09/09/2012 - Aprovação: 17/02/2013
v.17, n.47, p.969-75, out./dez. 2013
975
DOI: 10.1590/1807-57622013.3971
livros
SANTOS, R.V.; GIBBON, S.; BELTRÃO, J. Identidades emergentes,
genética e saúde: perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro: Garamond,
2012.
Waleska de Araújo Aureliano¹
A análise das dimensões socioculturais
e políticas envolvidas na era da
genômica é a preocupação central dos
artigos reunidos em Identidades
Emergentes, Genética e Saúde:
perspectivas antropológicas. A obra
é fruto de um seminário realizado em
2010 na cidade de Belém (PA). O
evento reuniu historiadores,
antropólogos, geneticistas e
pesquisadores da saúde coletiva num
esforço reflexivo sobre o que, segundo
os organizadores, seriam os
desdobramentos de uma biopolítica
contemporânea que encontrou, nos
genes, novas formas de apresentar
velhas questões envolvendo a biologia
humana: da reprodução ao uso
controverso do conceito de raça, do
melhoramento do corpo humano à
identificação de grupos ou indivíduos
considerados “biologicamente
perigosos”.
O livro está dividido em três partes.
Na primeira, intitulada “Saúde,
Genética e Sociedade: novas/velhas
questões, novas/velhas configurações”,
os autores analisam como a histórica
biologização da existência, que marca a
formação da sociedade ocidental
moderna, aponta
contemporaneamente para
possibilidades de intervenção sobre
corpos individuais e grupos sociais
específicos.
No primeiro artigo, Sandra Caponi
realiza uma análise histórica do campo
da psiquiatria a partir das teorias
degeneracionistas e eugênicas
desenvolvidas na Europa entre os
séculos XIX e XX. Tais teorias tiveram
como característica comum o fato de
considerarem que as patologias
mentais e a tendência à criminalidade
seriam hereditárias e possuíam traços
físicos.
Na França, as políticas propostas
pela psiquiatria para o controle da
transmissão das doenças mentais
envolviam medidas higiênicas sobre o
meio ambiente, tais como: a melhoria
das condições de salubridade e
trabalho, e o controle da miséria
urbana. Já a psiquiatria alemã, a partir
dos trabalhos de Emil Kraepelin,
sugeria que esse controle deveria se
dar sobre os indivíduos considerados
degenerados, através de intervenções
sobre a sua reprodução.
Seguindo essa premissa, no início
do século XX, vários países propuseram
a esterilização de doentes mentais e
criminosos como forma de conter a
transmissão hereditária dos desvios.
Assim, teóricos da degeneração e
eugenistas relacionaram indivíduo,
meio e hereditariedade de forma
distinta, embora ambos
compartilhassem um mesmo ponto de
partida para pensar a degeneração: o
¹ Museu Nacional,
Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Bolsista
CNPq, Pós-Doutorado
Júnior. Quinta da Boa
Vista, s/nº, São
Cristóvão. Rio de Janeiro,
RJ, Brasil, 20940-040.
waureliano26@
yahoo.com.br
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.977-81, out./dez. 2013
977
LIVROS
mito da normalidade hereditária, que poderia ser
auferida através de traços físicos.
Em sua conclusão, a autora chama a atenção
para o modo como algo desse momento histórico
da psiquiatria se estende até nossos dias através
da obsessão surgida em torno de teorias fisicalistas
que deem conta de explicar cada um de nossos
comportamentos e aflições. Para Caponi, vemos
hoje pesquisadores que buscam as origens de
nossas ações e escolhas em um determinismo
neurogenético capaz de explicar, por exemplo, a
homossexualidade, o alcoolismo ou a
criminalidade.
É nesse cenário contemporâneo que se insere
o texto de Gláucia Silva. A autora tematiza o
binômio natureza/cultura, tão caro à formação da
antropologia, a partir da leitura de dois artigos: um
da socióloga Maria Cecília Minayo (Fundação
Oswaldo Cruz) e o outro do geneticista Renato
Flores (Universidade Federal do Rio Grande do
Sul). Ambos abordam a questão da violência, mas
por ângulos distintos, o que leva a autora a
questionar as possibilidades e os limites de uma
interlocução entre ciências sociais e biologia na
compreensão do humano. Do artigo de Minayo,
Silva destaca o argumento de que qualquer
esforço de análise sobre a questão da violência
deve ter em perspectiva a pluralidade de sentidos
que um ato violento pode assumir, dependendo
do contexto onde ocorre. Minayo sugere que se
fale de “violências” no plural, a fim de não
reduzir seu escopo à noção restrita de
“delinquência”. Para ela, a violência deve ser
entendida como veículo e manifestação de
alguma causa que só pode ser compreendida pela
análise de casos específicos, que são formados por
fatos políticos, sociais, subjetivos, históricos e
econômicos particulares, embora pontos comuns
possam ser articulados, como: os conflitos de
autoridade, a luta pelo poder ou o domínio e
aniquilamento do outro.
Já o artigo de Flores analisado por Silva propõe
que os atos de violência e o “comportamento
criminal” seriam, em muitos casos, reflexos de
uma “doença mental” resultante da dificuldade
de algumas pessoas em processar informações
características da “sociedade contemporânea”,
por seus cérebros estarem geneticamente
adaptados a “uma sociedade mais simples”. Para
ele, fatores como ambiente familiar e agressões
sofridas na infância podem desencadear uma
doença mental que levaria a atos criminosos. No
978
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
entanto, seria uma base biológica que permitiria
esse acionamento, visto que, segundo o autor,
nem todos que vivem sobre as mesmas condições
sociais apresentam os mesmos comportamentos
violentos/criminosos (inversamente, poderíamos
dizer que nem todos que são diagnosticados com
alguma doença mental praticam atos criminosos
ou violentos).
Para Silva, ao biologizar as causas do que
denomina “comportamento criminal”, Flores
reedita, de forma mais refinada, alguns
argumentos presentes na teoria de Cesare
Lombroso, médico criador da antropologia
criminal, que afirmava o “caráter hereditário do
crime”. Lombroso propunha que as sentenças
jurídicas levassem em conta o criminoso, e não o
ato violento em si, esvaziando os elementos
sociais implicados nele. De forma análoga, Flores
propõe que a violência seja vista como um
“problema médico”, passível de ser tratado em
sua origem, evitando-se, assim, que ela se torne
um problema social.
Luis Castiel encerra essa seção com um texto
que se inicia apresentando sites curiosos nos quais
a maximização da longevidade é abordada através
de uma articulação entre genética,
comportamentos e ações. Utilizando uma
linguagem que soa ao mesmo tempo futurista e
salvacionista, esses sites propalam uma “guerra
científica” contra o envelhecimento e a morte. O
que o autor destaca é como nestes contextos
virtuais, com seguidores no mundo real, se
constroem discursos biomoralizantes sobre saúde,
articulando mercado e tecnologia,
responsabilidade individual e controle social.
Inspirando-se nos conceitos foucaultianos de
biopoder e biopolítica, Castiel propõe o conceito
de epidemiopoder, que consistiria “em idiomas/
vocabulários e aspectos morais sustentados pelos
conhecimentos produzidos pela epidemiologia
como um dispositivo de técnicas e práticas de
investigação cujos resultados ‘revelam’ as
condições de saúde (riscos e agravos) de grupos
humanos” (p.83).
Com base nesse conceito, o autor apresenta
algumas questões importantes sobre o modo
como a genética e as biotecnologias estão sendo
utilizadas na produção de discursos sobre risco,
saúde e longevidade. Uma delas diz respeito ao
aspecto mercadológico envolvido na promoção de
possíveis formas de intervenção genética capazes
de deter o envelhecimento. Para quem elas
v.17, n.47, p.977-81, out./dez. 2013
recente sobre o estatuto de fetos e embriões no
Brasil. Sua análise se detém sobre as audiências
públicas, realizadas com especialistas no Supremo
Tribunal Federal (STF), que discutiram o uso de
embriões restantes de reprodução assistida nas
pesquisas com células-tronco e a interrupção da
gravidez nos casos de fetos anencéfalos. Nos dois
casos, dados genéticos foram utilizados para
fundamentar argumentos tanto de especialistas e
grupos pró-vida, contrários ao uso de embriões
nas pesquisas e à interrupção da gestação de
anencéfalos, quanto por aqueles com posições
opostas. No debate, podemos observar como a
genética é articulada a valores estruturantes da
nossa sociedade, tais como: as noções de
autonomia, individualidade, escolha e
singularidade, na construção de argumentos que
buscam definir o início da vida, e as possíveis
implicações jurídicas atreladas a essa definição.
Parte dos especialistas pró-vida toma, como
critério de definição de início da vida, o fato de o
embrião já possuir um “código genético próprio”
que, embora herdado dos genitores, é com
relação a eles autônomo, portanto, deve ser
considerado um ser dotado de direitos individuais.
Por sua vez, para os especialistas favoráveis ao uso
de embriões em pesquisas e ao aborto de
anencéfalos, assim como para a maioria dos juízes
do STF, o código genético, por si só, não basta
para dar a condição social e jurídica de pessoa ao
embrião ou feto. Nesse ponto, a argumentação
recai, algumas vezes, sobre a fisicalidade do
cérebro e do sistema nervoso central, sistemas
considerados essenciais para a constituição da
pessoa. Luna nos apresenta um embate complexo
em torno da construção de identidades e
definições para o humano que está marcado pelo
modo como, historicamente, na cultura ocidental
moderna, buscamos definir marcos fixos para a
condição de pessoa, utilizando a biologia como
base para prescrições de ordem moral.
No último artigo dessa seção, Marko Monteiro
e Ricardo Vêncio discutem os processos de
“molecularização” da vida ao analisarem o
conceito de representação molecular a partir das
pesquisas sobre os genes que seriam
“biomarcadores” do câncer de próstata. Ao
distinguir a produção de formas fisiológicas e
moleculares desse tipo de câncer na ciência, os
autores chamam a atenção para o modo como,
nesse processo, o conceito de representação
como algo que substitui ou “representa” outra
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.977-81, out./dez. 2013
livros
estariam disponíveis e de que forma? Outra
questão diz respeito às noções de risco em saúde.
Como os riscos são definidos, por quem e com
base em que critérios? Essas questões apontam
para um processo de transformação da biopolítica
em bioeconomia, segundo o autor, e tornam
evidente o desenvolvimento de novas
comunidades de especialistas cuja tarefa seria
normatizar questões de saúde.
A segunda parte do livro “Reprodução,
Molecularização e Biopolíticas da Vida em Si”
inicia-se com o artigo de Rosely Costa. A autora
apresenta uma análise sobre bancos de sêmen no
Brasil, e como, nesses espaços, questões relativas
à raça emergem na intermediação que é feita
entre equipe médica e casais na busca por
doadores de gametas. No Brasil, ainda não há
legislação específica sobre a reprodução assistida.
Clínicas, hospitais e bancos de sêmen trabalham
com base numa resolução do Conselho Federal de
Medicina que determina que a doação de gametas
deve ser anônima. Deste modo, o doador não
deve conhecer o casal que utilizou seus gametas
nem as crianças assim geradas, bem como estas e
o casal receptor não terão acesso à identidade do
doador. A escolha de um doador é mediada pela
equipe médica, que busca conciliar as expectativas
do casal com as classificações que são feitas de
forma arbitrária pelos médicos, no que diz respeito
ao quesito cor/raça. A autora chama a atenção
para o modo como essa identificação é marcada
por critérios subjetivos que estão informados pelo
modo como as classificações raciais foram
construídas historicamente no Brasil. A textura do
cabelo, por exemplo, seria capaz de determinar se
alguém deve ser classificado, a sua revelia, como
negro, mulato ou moreno.
Para Costa, ao decidirem sobre a classificação
racial de doadores e receptores e sobre que
características físicas ou genéticas serão
introduzidas na descendência de um casal, os
serviços médicos desrespeitam, pelo menos, três
princípios éticos: o da autonomia, o da privacidade
e o da igualdade. Ela, no entanto, reconhece que
essa questão não é de fácil resolução,
considerando os modos particulares de
classificação racial no Brasil e o fato de o
anonimato na doação de gametas exigir a
intermediação das equipes médicas na escolha de
um doador.
Na sequência, Naara Luna analisa o uso de
argumentos pautados na genética no debate
979
LIVROS
coisa se perde, pois os mesmos conceitos que
seriam usados para “representar” aspectos do
corpo se transformam em formas de manipulação
e interferência sobre ele. Para os autores, os
elementos moleculares utilizados para descrever a
doença são os mesmos que deverão ser
manipulados através das biotecnologias, de modo
que a descrição do corpo em termos genéticos
fornece não apenas uma representação teórica da
verdade do corpo, mas, também, produz “uma
série de ferramentas com as quais se pode
manipular e mudar a realidade material que tais
conceitos buscam explicar” (p. 168). Um exemplo
interessante dos efeitos dessa molecularização da
vida através da genética é o caso do coelho
fluorescente Alba, criado em laboratório sob
encomenda do artista brasileiro, radicado em
Chicago, Eduardo Kac. Alba seria um exemplo
extremo da manipulação molecular na produção
da vida, porém não muito diversa em termos
político-sociais de outras formas de intervenção
sobre a natureza, como a criação do milho ou da
soja transgênica.
Abrindo a última parte do livro intitulada
“Tecnologias Genéticas e Identidades ÉtnicoRaciais Emergentes”, Elena Calvo-Gonzáles
apresenta dois estudos de caso para mostrar como
os discursos sobre raça – considerada aqui uma
categoria híbrida entre o social e o biológico –
estão sendo mobilizados politicamente no campo
das políticas públicas em saúde no Brasil nas
ultimas décadas. O primeiro caso trata das
disputas trabalhistas de operários da indústria
petroquímica baiana durante os anos 1980 e
1990, diagnosticados com leucopenia (baixa
contagem de leucócitos). Neste contexto, órgãos
sindicais reclamaram a contaminação dos
trabalhadores pelo benzeno, produto químico que
seria o responsável pela ocorrência da leucopenia
entre os operários. No entanto, parte dos
industriais, com base em argumentação médica,
considerou a leucopenia como resultante de
diferenças raciais, afirmando que a população
negra seria suscetível a esse fenômeno por uma
condição “natural” de seus corpos. Em um
segundo estudo, Calvo-Gonzáles analisa como a
leucopenia é utilizada tanto por ativistas políticos
como por cientistas em discussões acerca da
necessidade do desenvolvimento de políticas de
saúde para a população negra que considerem
suas especificidades genético-raciais. Nos dois
casos, a autora nos mostra como, a partir da
980
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
biomedicina, um mesmo evento, a leucopenia,
pode ser lido e mobilizado de modos distintos: no
primeiro caso, como forma de esvaziar as lutas
sindicais através da estigmatização do “corpo
negro”, e, no segundo, como meio de reclamar o
reconhecimento da existência das iniquidades
raciais no campo da saúde no Brasil.
No artigo seguinte, Michael Kent explora as
disputas étnico-identitárias que levam a genética
para o campo político dos movimentos sociais
indígenas. Kent analisou uma pesquisa conduzida
por geneticistas entre os Uro, povo indígena
peruano que vive em ilhas flutuantes no meio do
lago Titicaca. O objetivo da pesquisa, patrocinada
pela National Geographic Society, era mapear a
ancestralidade e “autenticidade” desse grupo
frente acusações que partiam especialmente do
Estado peruano, mas, também, de intelectuais e
acadêmicos da região, de que eles não seriam Uro
“de verdade”.
Embora apresentando uma forma de
organização sociocultural particular e recorrendo a
registros linguísticos e históricos para legitimar sua
distintividade étnica, é na genética que os Uro vão
buscar argumentos que consideram decisivos para
comprovar essa distinção. O projeto foi bem
recebido pela comunidade e seus resultados se
mostram positivos para sua luta política, uma vez
que os geneticistas atestam a continuidade
genética entre os Uro peruanos e povos
pré-colombianos. Kent aponta, assim, para o
modo como o conhecimento em genética tem
sido articulado politicamente por diferentes atores,
e as possíveis consequências de seu uso, como os
perigos da formação de identidades
essencializadas por uma dimensão biológica que
pode ser utilizada tanto para legitimar como
deslegitimar as demandas dos movimentos sociais
indígenas.
O último artigo da coletânea, de autoria de
Gaspar Neto, Ricardo Santos e Michael Kent,
também nos traz um debate sobre a construção
de discursos identitários a partir da utilização dos
testes genéticos de ancestralidade. Os autores
analisam três laboratórios em diferentes países
(Estados Unidos, Inglaterra e Brasil) que realizam
esse tipo de testagem para mostrar como
questões socioculturais relativas à noção de raça e
ancestralidade presentes nesses contextos
informam o modo como os testes são
apresentados, justificados e interpretados por
especialistas e clientes. Os autores analisaram os
v.17, n.47, p.977-81, out./dez. 2013
informa o modo como os testes são justificados e
apresentados socialmente. Os autores analisam
um projeto realizado pelo principal geneticista
desse laboratório em parceria com a BBC Brasil,
no qual foram testadas sete personalidades
brasileiras negras. Tendo por foco apresentar o
grau de miscigenação presente em nossa
população e, desta forma, colocar em xeque
discursos discriminatórios baseados no conceito
biológico de raça, o projeto causou reações
diversificadas entre seus participantes. Algumas
leituras sobre a mistura foram positivas, como a da
atleta Daiane dos Santos, considerada o “protótipo
da brasileira” por apresentar um perfil genético
“bem equilibrado” de genes europeu, africano e
indígena. Já para outros participantes do estudo,
como o músico Seu Jorge e o ativista do
movimento negro Frei David, os testes soaram
como afronta ao insinuarem que todos seríamos
igualmente brancos ou negros em função do
resultado percentual de um teste genético. Em
lugar de deslegitimar o racismo, os testes foram
vistos, por Frei David, como forma de desestimular
a população negra a lutar por seus direitos já que
“todos temos genes afro”.
As análises reunidas em Identidades
Emergentes, Genética e Saúde nos mostram
como as tecnologias produzidas no campo da
genética têm seus usos informados pelos
contextos sociopolíticos particulares nos quais se
desenvolvem. Neste sentido, mais do que apontar
para determinações biológicas na definição do
humano, a construção social de tais tecnologias
coloca em evidência as complexidades daquilo
que chamamos vida e que, a despeito da
singularidade dos genes de cada pessoa, só pode
ser realizada numa coletividade.
livros
sites das empresas americana e inglesa que
oferecem os testes de ancestralidade. O
laboratório americano oferece testes que buscam
localizar os países de origem de cidadãos afroamericanos, oferecendo, entre seus produtos, um
certificado de ancestralidade que tem por objetivo
particularizar uma identidade até então definida
em termos genéricos. Neste processo, não apenas
características biológicas são ressaltadas pelos
clientes na produção da ancestralidade, mas,
também, traços culturais que poderiam ser
transmitidos (imagina-se que geneticamente) aos
descendentes. Além disso, alguns clientes irão
produzir ligações de ordem afetiva e espiritual
com essas comunidades africanas a partir do
resultado dos seus testes.
Já o laboratório inglês oferece testes genéticos
que tentam localizar os clãs dos quais uma pessoa
supostamente descende. A empresa não utiliza a
categoria “raça”, mas, sim, “clã ancestral”, e
trabalha com o que seriam os clãs nativos do
continente europeu. De modo semelhante ao que
se observa nos depoimentos dos clientes da
empresa americana, os europeus também passam
a identificar comportamentos com base no
resultado de seus testes, e alinham histórias
pessoais a determinadas características projetadas
para essas “comunidades ancestrais”, como se
pode ler no depoimento de um cliente que, “ao
se descobrir” descendente dos Vikings, disse
estar se sentindo “mais nórdico”, comendo mais
peixe e ansiando por mares abertos.
Por fim, os autores apresentam dados de um
laboratório brasileiro que oferece testes similares
aos das empresas americana e inglesa, com o
diferencial de que aqui é a retórica da mistura das
três raças (indígena, negra e europeia) que
Recebido em 26/11/12. Aprovado em 04/01/13.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.977-81, out./dez. 2013
981
DOI: 10.1590/1807-57622013.0007
livros
ALMEIDA FILHO, N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2011.
Alan Camargo Silva1
Jaqueline Ferreira2
Naomar Monteiro de Almeida Filho,
médico, mestre em Saúde Comunitária
e doutor em Epidemiologia, possui
uma larga experiência acadêmicoprofissional, sendo autor de uma série
de livros-texto e inúmeros artigos
primordialmente voltados às questões
de saúde-doença. Renome nos
âmbitos nacional e internacional,
dentre outros motivos, Almeida Filho é
reconhecido por se distanciar da
racionalidade metodológica
quantitativista tão hegemônica na
ciência moderna e que,
inevitavelmente, repercute na Saúde
Coletiva. Esta característica está
expressa na robustez teórica e análise
crítica da forma com que aborda o
pequeno livro O que é Saúde?
O que é Saúde? destaca a lacuna
epistemológica que cerceia o processo
de (re)construção histórica do campo
da Saúde Coletiva. Com base no
contexto sanitário, o autor discute
sobre as diversas tensões que
atravessam a definição conceitual do
fenômeno saúde-doença, objeto este
que não deve ser explicado somente
pelo referencial biomédico, clínico e/
ou epidemiológico, mas
compreendido, também, pela sua
complexa totalidade constituída de
influências sociais, políticas,
institucionais e ideológicas. Embora o
título da obra indique uma
problematização eminentemente
filosófica, no texto emerge um debate
amplo, plural e profícuo acerca da
necessidade de reflexões em torno de
aspectos teórico-metodológicos que
subsidiam a noção ampliada de saúde.
Assim, no primeiro capítulo,
intitulado Saúde como Problema, o
autor já anuncia que “[...] a saúde é
um problema simultaneamente
filosófico, científico, tecnológico,
político e prático.” (p.15). Por meio de
uma breve discussão
histórico-etimológica, Almeida Filho
problematiza o conceito saúde e aponta
a polissemia do termo “doença”3 na
literatura. Carvalho (2005) aponta que
os estudos concernentes à saúdedoença em uma perspectiva histórica
exigem a análise dos seus próprios
conceitos e seus limites.
O autor ainda argumenta que o
conceito saúde-doença deve ser
entendido como um problema
filosófico e científico. Tendo em vista
os grandes autores de distintas escolas
de pensamento, pode-se registrar que
a saúde, pelo seu caráter
multidimensional, relacional e holístico,
conceitualmente4, por vezes, é
reconhecida como um fenômeno, uma
metáfora, uma medida, um valor ou
uma práxis.
Nesse contexto, o segundo
capítulo, com o título Saúde como
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
1,2
Doutorando em
Saúde Coletiva, Instituto
de Estudos em Saúde
Coletiva (IESC),
Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Avenida
Horácio Macedo, s/n,
Próximo a Prefeitura
Universitária da UFRJ,
Ilha do Fundão, Cidade
Universitária. Rio de
Janeiro, RJ, Brasil.
21941-598.
[email protected]
No texto, os significados
dos termos pathology,
disease, disorder, illness,
sickness e malady são
esclarecidos.
3
Minayo, Hartz e Buss
(2000), e Seidl e Zannon
(2004) discutem alguns
aspectos conceituais e
metodológicos referentes
à qualidade de vida e à
saúde.
4
v.17, n.47, p.983-6, out./dez. 2013
983
LIVROS
Fenômeno, aponta que tal conceito é
visto como um fato, um atributo, uma
função orgânica ou uma situação social,
envolvendo determinados juízos de
valor na medida em que pode ser
definido negativa ou positivamente.
Negativamente, a saúde significaria
ausência de doenças, riscos, agravos e
incapacidades; positivamente,
denotaria desempenho,
funcionalidades, capacidades e
percepções.
À luz de aspectos
sócio-históricos, de maneira densa,
Almeida Filho pondera que a saúde
pode ser entendida por meio de um
equilíbrio em que haveria uma
regulação para um padrão normal de
adaptação bioecológica; como função,
na medida em que o resultante da
saúde seria provindo de uma
manutenção entre o organismo
(interno) e o ambiente (externo); como
mera ausência de doença, no sentido
de neutralizar agentes patológicos; ou,
ainda, como processo mais amplo da
resultante de diferentes aspectos
determinantes no defeito, lesão, falta
ou déficit em organismos vivos.
No terceiro capítulo, Saúde como
Medida, a análise gira em torno,
especificamente, das possibilidades e
limites do tratamento quantitativo
bioestatístico do fenômeno saúde no
plano individual e singular. Os aspectos
de mensuração constitutivos da
abordagem clínica da saúde devem ser
relativizados na medida em que podem
existir indivíduos funcionais e
produtivos com uma série de sintomas,
e outros com limitações e sofrimentos
sem evidência clara de doença. Assim,
o estado ou grau de saúde é
multidimensional, tornando difícil a
elaboração de instrumentos para medir
o completo bem-estar físico, mental e
social, noção esta divulgada pela
Organização Mundial de Saúde.
O aporte clínico contribui,
substancialmente, para a abordagem
epidemiológica ao identificar casos de
(não) doença em dada amostra ou
984
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
população. No entanto, Almeida Filho
lembra que a abordagem
epidemiológica da Saúde Coletiva é
uma aproximação dos potenciais riscos
à saúde, uma vez que definir grupos
de (não) doentes é uma complexa
tarefa pela presença de distintas
condições sociais, políticas e
econômicas5 que envolvem os
indivíduos.
No quarto capítulo, Saúde como
Ideia, delineia-se a crescente
necessidade de se definirem,
objetivamente, os conceitos de saúde
e de doença. Aponta-se que a
construção de modelos linguísticos ou
simbólicos referentes a tais constructos
está ligada a dispositivos ideológicos.
Desde meados do século XX, teorias
socioantropológicas relativas à saúde
buscam compreender o complexo
doença-moléstia-enfermidade
engendrado por aspectos psicossociais
e culturais. Carvalho e Luz (2009)
discutem sobre a importância
interpretativa dos significados e dos
sentidos atribuídos à saúde-doença,
pelos sujeitos, para o desenvolvimento
da prática profissional.
À esteira dessa discussão,
aproximando-se das explicações
interdisciplinares de cunho não
biológico, resumidamente, Almeida
Filho resgata os clássicos pensamentos
de antropólogos do ensino médico que
objetivavam dar ênfase aos fatores
socioculturais que atravessam o
fenômeno saúde-doença. Distanciandose do pensar e do agir em saúde
pautados na racionalidade médica
ocidental, de modo aprofundado, o
autor esclarece os avanços dos
pressupostos teóricos (microssociais)
que sustentam a teoria semiológica e as
análises (macrossociais) das relações de
produção calcadas em dimensões de
poder sócio-históricas, políticas e
econômicas.
Saúde como Valor, título do quinto
capítulo, indica a possibilidade da
concepção de saúde configurar-se
como um valor de uso, de troca e de
v.17, n.47, p.983-6, out./dez. 2013
5
Abordagens
econométricas da saúde
em que economistas
avaliam certos marcadores
para mensurar os impactos
sociais das patologias
ainda são discutidas no
texto (ver Almeida Filho,
2000).
saúde, ontológicas ou dinâmicas, reguladas pela
negatividade ou pela positividade, aplicadas ao
indivíduo ou ao coletivo, de base biológica ou
sociocultural [...]” (p.125) ainda são insuficientes
para contemplar uma noção ampliada do conceito
de saúde, haja vista seus aspectos
multidimensionais, complexos, articulados e
dinâmicos. O autor considera a possibilidade de
construir uma concepção holística da saúde.
Baseando-se nas premissas teóricas relativas à
noção filosófica e científica elaboradas por
Georges Canguilhem, e nos pensamentos
epistemológicos vinculados às abordagens acerca
da complexidade das questões constitutivas da
saúde, desenvolvidos por Juan Samaja, o capítulo
indica alguns modos de entender tal constructo.
Almeida Filho faz um balanço crítico acerca de
diferentes discursos contemporâneos responsáveis
por determinados problemas teóricos que
obstaculizam conceber a saúde (ou, na
perspectiva do autor, as várias “saúdes”) como um
“[...] objeto plural, mutante, relativo e não
ontológico [...]” (p.138).
Portanto, mais do que uma pergunta a ser
respondida, sobretudo de forma unívoca, o título
do livro lança diversas questões ainda a serem
debatidas no campo da Saúde Coletiva brasileira.
Há uma significativa inconsistência epistemológica
e conceitual que abrange os referenciais teóricometodológicos relacionados à saúde, sobretudo
pelo fato de o diálogo entre os saberes
disciplinares ainda ser desarticulado, como
exposto em Almeida Filho (2005). A produção
acadêmica parece se prender a modelos que
ainda enfatizam as análises biomédicas da saúdedoença no nível individual em detrimento do
coletivo – denúncia esta constantemente realizada
por filósofos e cientistas sociais.
Por fim, vale frisar que, embora este livro seja
considerado sintético em seu conteúdo, tal obra
pode ser entendida como um grande vulto no
campo da Saúde Coletiva. Torna-se indispensável
a leitura deste excitante texto, para se pensar o
processo saúde-doença de modo amplo na
produção acadêmica e na intervenção profissional,
seja na interface com a subárea das Ciências
Humanas e Sociais, na Epidemiologia e na Política,
Planejamento e Administração.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.983-6, out./dez. 2013
livros
vida. Conceber a saúde em si, no sentido de
encarnar um ideal utópico positivista de estado ou
situação ótima do ser humano, já foi ampla e
criticamente discutido ao longo de décadas,
sobretudo a partir das denúncias concernentes às
desigualdades e iniquidades em saúde.
Mediante distintas contribuições de matrizes
conceituais e teórico-metodológicas relativas às
teorias da justiça, por meio de uma abordagem
ampla, o autor confronta diferentes propostas de
minimizar as desigualdades e iniquidades sociais
que interferem (in)diretamente no “valor” saúde
dos indivíduos. Na direção do trabalho de Vieira
da Silva e Almeida Filho (2009), os autores
elucidam, brevemente, os pressupostos
epistemológicos e as teorias sociais relativas aos
conceitos de desigualdade e diferença que,
constantemente, obscurecem o de igualdade e
equidade, que, por consequência, conectam-se à
dimensão da atenção-cuidado.
Em seguida, no sexto capítulo, intitulado
Saúde como Campo de Práticas, tendo como
ponto de análise o viés histórico-epistemológico,
de modo objetivo, argumenta-se que os campos
de saberes são atravessados por certos paradigmas
coexistentes em constante tensão, atingindo,
inevitavelmente, os setores das práticas. De modo
preliminar e genérico, o autor apresenta o que se
entende por “paradigma” e por “campo social”, a
fim de, no segundo momento, relacionar tais
conceitos aos saberes e práticas em saúde.
Almeida Filho problematiza as diferentes
acepções do termo “paradigma” e seus usos
ideológicos no “campo” da Saúde Coletiva.
No Brasil, tal campo vem se consolidando em
diferentes espaços acadêmico-profissionais e se
fundamentando por meio de diferentes áreas do
conhecimento, o que exige, de acordo com o
autor, práticas transdisciplinares, multiprofissionais,
interinstitucionais e transetoriais. Mais que
fundamentar as estratégias de prevenção,
proteção, promoção (sentido restrito) e
precaução, para se propor um quadro
paradigmático de síntese acerca do complexo
promoção-saúde-doença-cuidado, é mister
minimizar a práxis hegemônica da Saúde Coletiva
voltada ao plano individual e mecanicista.
No último capítulo, Saúde como Síntese,
emerge a ideia de que “[...] teorias restritas de
985
LIVROS
Referências
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paradigma pós-disciplinar na saúde. Saude Soc.,
v.14, n.3, p.30-50, 2005.
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MINAYO, M.C.S.; HARTZ, Z.M.A.; BUSS, P.M.
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Cienc. Saude Colet., v.5, n.1, p.7-18, 2000.
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Eqüidade em saúde: uma análise crítica de conceitos.
Cad. Saude Publica, v.25, supl.2, p.217-26, 2009.
Recebido em 28/03/13. Aprovado em 07/04/13.
986
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.983-6, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/1807-57622013.0637
teses
A concepção de condição humana na prática pedagógica do professor-enfermeiro
num diálogo com o pensamento complexo
The conception of the human condition in the teacher-nurse’s pedagogic practice
in a dialogue with the complex thought
La concepción de condición humana en la práctica pedagógica del maestro-enfermero
en un diálogo con el pensamiento complejo
A formação em enfermagem vem questionando
sobre o processo de profissionalização e a
formação humana, o que suscita reflexões sobre
como a condição humana está sendo vivenciada
na sala de aula. O professor constrói com os
alunos – a partir dos objetivos da aula, dos
conteúdos, da metodologia, das estratégias
avaliativas e do relacionamento que estabelece
com eles – uma concepção de ser humano.
Sendo assim, esta pesquisa tem como objetivo
refletir sobre a compreensão de condição humana
que vem sendo construída pelo professorenfermeiro na sua prática pedagógica.
Esta investigação é qualitativa, do tipo
explicativa, tendo como cenário a Faculdade de
Enfermagem – FAEN da Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte – UERN, em Mossoró/
RN. Contamos com a participação de quatro
professores-enfermeiros, que lecionaram em
disciplinas ministradas no sétimo período do curso
de Enfermagem, no semestre letivo 2012.1. Para
a construção dos dados, utilizamos três técnicas
complementares: a observação das aulas, a
entrevista semiestruturada e a entrevista reflexiva.
Os dados foram analisados à luz dos teóricos
que nos alicerçam na construção deste estudo.
Nesta pesquisa, além de conhecermos a
concepção dos professores-enfermeiros sobre a
condição humana na formação em Enfermagem,
apresentamos a eles algumas ideias de Edgar
Morin e solicitamos a sua opinião sobre a vivência
delas no curso de Enfermagem. Morin nos propõe
a experiência de um pensamento complexo, isto
é, uma forma de ver a realidade a partir das
diversas perspectivas que a constituem. Enquanto
resultados, os docentes-enfermeiros expuseram
concepções diferentes sobre a condição de ser
humano: apenas como um ser influenciado pelo
contexto no qual está inserido; ou um ser que é
influenciado assim como tem a possibilidade de
influenciar e transformar a realidade da qual faz
parte; ou, ainda, um ser movido por razões,
emoções e sentimentos, que necessita dos outros
para viver.
Ao observarmos as aulas, percebemos que os
professores, em alguns momentos, construíram
uma concepção de ser humano diferente da que
expressaram na entrevista. Os docentes afirmaram
que a concepção de ser humano como um ser, ao
mesmo tempo, biológico, cultural, histórico, social
e emotivo, que estabelece relações com outros
sujeitos, proposta por Edgar Morin, pode ajudá-los
a vislumbrar o aluno em outras dimensões que
não seja somente a profissional. Identificamos,
ainda, que os docentes, durante as entrevistas,
demonstraram dificuldade de refletir sobre a sua
condição de ser humano.
Essa situação está relacionada com o próprio
processo de formação desses professoresenfermeiros, no qual não houve espaço para que
conhecessem mais a si mesmos. Por fim,
percebemos que muitos personagens continuam
atuando, embora que discretamente, na formação
em enfermagem: o cartesianismo, o racionalismo,
o modelo biomédico. Em alguns momentos, vão
mais além e levam os docentes a se distanciarem
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.987-9, out./dez. 2013
987
TESES
de si próprios. Por isso, a importância de que
outras pesquisas sejam realizadas com o intuito de
pensarem estratégias que auxiliem os professoresenfermeiros a refletirem mais sobre a sua
condição de ser humano na formação em
Enfermagem, para que possam ajudar os alunos a
se conhecerem mais enquanto seres humanos.
Palavras-chave: Condição humana. Prática pedagógica.
Professor-enfermeiro.
Keywords: Human condition. Pedagogical practice.
Teacher-nurse.
Palabras clave: Condición humana. Práctica pedagógica.
Maestro-enfermero.
Elane da Silva Barbosa
Dissertação (Mestrado), 2013
Programa de Pós-graduação em Educação –
POSEDUC, Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte
[email protected]
988
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.987-9, out./dez. 2013
Recebido em 21/07/13. Aprovado em 24/07/13.
DOI: 10.1590/1807-57622013.0747
teses
A psiquiatrização da existência: dos manicômios à neuroquímica da subjetividade
Psychiatrization of existence: from asylum to the neurochemistry of subjectivity
La psiquiatrización de la existencia: de los manicomios a la neuroquímica de la subjetividad
O presente trabalho tem como objetivo
elaborar uma crítica da psiquiatrização da
existência focalizando, particularmente, as
relações entre a racionalidade biológica e as
estratégias de ampliação da intervenção
psiquiátrica em contingentes populacionais cada
vez maiores e nas mais variadas esferas da vida.
Inspirada na genealogia foucaultiana, a pesquisa
inicia seu exame histórico pelo alienismo
pineliano, compreendido como o modo disciplinar
pelo qual se deu a apropriação inaugural da
loucura pela medicina. A seguir, são analisados os
diferentes formatos historicamente apresentados
pelo organicismo psiquiátrico, desde sua
introdução pela teoria da degenerescência
moreliana do século XIX até as reformas
preventivistas do pós-guerra. Desenvolve-se,
então, à luz da análise histórica encetada, um
exame do conjunto de fatores envolvidos na atual
ênfase psicofarmacológica pela qual a psiquiatria
contemporânea vai estender seu reducionismo
biológico – agora apoiado na química da
neurotransmissão – às mais diversas circunstâncias
da existência humana. No percurso da análise, são
abordados o conluio entre a psiquiatria e a
indústria farmacêutica, e o correlato papel
desempenhado pelas sucessivas edições dos DSM
(Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais) na extraordinária multiplicação das
possibilidades diagnósticas pela qual a psiquiatria
vem dispondo a sua psicofarmacologia como
recurso explicativo e regulador da pluralidade das
manifestações da subjetividade contemporânea.
Sob essa base, são criticamente problematizadas
as perspectivas atuais de uma psiquiatria que, na
busca de realizar o sonho de integrar-se à
medicina científica que a embala desde o século
XIX, teria aceitado a sobredeterminação da
identidade de seu domínio de saber e de sua
prática clínica por uma psicofarmacologia
promovida pelos grandes fabricantes de
psicofármacos. Por fim, à guisa de conclusão,
sugere-se que a psiquiatria, reduzida ao
desempenho de mera intermediação prescritora
entre o paciente e os laboratórios farmacêuticos,
corra o risco de ser gradativamente descartada
pelo dominante e global desenvolvimento de uma
racionalidade de mercado que privilegia as
relações mais diretas entre as instâncias de
produção e as de consumo.
Daniele de Andrade Ferrazza
Tese (Doutorado), 2013
Programa de Pós-Graduação, Faculdade de
Ciências e Letras, UNESP - Univ Estadual Paulista
[email protected]
Palavras-chave: Psiquiatrização. Loucura. Psicofármacos.
Biologização. Subjetividade.
Keywords: Psychiatrization. Madness. Psychopharmacs.
Biologization. Subjectivity.
Palabras clave: Psiquiatrización. Locura. Psicofármacos.
Biologización. Subjetividad.
Recebido em 06/09/13. Aprovado em 14/09/13.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.987-9, out./dez. 2013
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DOI: 10.1590/1807-57622013.0688
notas breves
Graduação e pós-graduação em Farmácia no Brasil: convergências e fortalecimento de capacidades
Undergraduate and postgraduate pharmacy courses in Brazil: convergences and strengthening of capacities
Graduación y postgrado en Farmacia en Brasil: convergencias y fortalecimiento de capacidades
Nos últimos anos, as Ciências Farmacêuticas têm
evoluído expressivamente como área de interesse
nacional, seja pela sua influência no setor
produtivo, seja como direito social à saúde, mas,
também, como campo de investigação de grande
impacto e como área em constante expansão na
formação graduada e pós-graduada.
Durante o I Congresso da Associação Brasileira
de Ciências Farmacêuticas (ABCF) (disponível em:
<http://www.abcfarm.org.br/>), ocorrido em
outubro de 2012, em Pernambuco, membros da
sociedade científica das ciências farmacêuticas
reuniram-se para refletir sobre uma questão por
muito tempo negligenciada no país: a busca de
convergência das capacidades e necessidades da
graduação e da pós-graduação em farmácia no
contexto nacional. Durante três dias,
representantes de instituições farmacêuticas,
pesquisadores e coordenadores de cursos de
graduação e de pós-graduação debateram
proposições iniciais com o objetivo de apresentar,
para a comunidade acadêmica, possibilidades e
desenvolvimento de estratégias que visam
aperfeiçoar a formação, a pesquisa e o
atendimento às necessidades sociais.
O contexto da formação na área farmacêutica
da pesquisa e do setor farmacêutico no Brasil foi
revisitado para nortear discussões, considerando
sobretudo:
- as mudanças no ordenamento da educação
no Brasil, a partir da constituição de 1988, e,
especialmente, com a LDB, de 1996 (Brasil,
1996), instituindo o fim dos currículos mínimos, a
autonomia universitária, a flexibilização e
liberalização do setor, permitindo que a lógica da
competitividade de mercado exerça maior poder
sobre a regulação dos cursos de graduação que o
próprio Estado;
- a determinação de um âmbito privativo para
a atuação do profissional farmacêutico em 1981,
pelo Decreto n.85.878 (Brasil, 1981), com as
atividades relativas aos medicamentos (produção,
manipulação, dispensação, distribuição, pareceres
técnicos, fiscalização e ensino) definidas como
atividades exclusivamente farmacêuticas,
enquanto outros campos de atuação como
compartilhados com outros profissionais, não
exclusivos do farmacêutico (mais de 70 campos
de atuação definidos por resoluções do Conselho
Federal de Farmácia, incluindo: as análises clínicas
e bromatológicas, a cosmetologia, o controle
ambiental etc.);
- as Diretrizes Curriculares para os Cursos de
Farmácia (Brasil, 2002), que estabeleceram o
objetivo da formação do farmacêutico como
profissional de saúde preparado para atuar no
sistema de saúde brasileiro, e sobre as
necessidades sociais do país, gerando grande
movimento de discussão e modificação curricular
nos cursos de graduação;
- dados sobre a formação farmacêutica,
indicando o número de 444 cursos de farmácia
em atividade no país, o crescimento exponencial
da oferta de vagas, especialmente em instituições
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.991-4, out./dez. 2013
991
NOTAS BREVES
privadas, a partir de 1996, e a iniquidade de oferta
de vagas entre as regiões brasileiras (Conselho
Federal de Farmácia, 2012);
- o diagnóstico de que há grande
distanciamento entre realidade social e a
academia, comprometendo a educação para a
cidadania e a formação de profissionais
competentes para atuar com integralidade sobre a
complexidade social (Brasil, 2008; Leite et al.,
2008);
- o crescimento do número de cursos de
graduação em Farmácia, indicando uma demanda
por formação de docentes de nível superior na
área;
- o crescimento significativo da pós-graduação
em Farmácia no Brasil, que chega a 56 programas
em 2012;
- a extrema disparidade entre os sistemas de
avaliação e regulação para a graduação (INEP) e
pós-graduação (Capes), desenvolvendo muito
maior dedicação do corpo docente das unidades
acadêmicas à última;
- a disparidade da valorização, dentro e fora
das universidades, das atividades docentes
relativas à graduação e à pós-graduação.
A partir destas considerações iniciais, os
participantes quedaram-se sobre algumas
questões que merecem atenção no meio
acadêmico da área da Farmácia:
- Como as diretrizes curriculares para os cursos
de Farmácia têm refletido na pós-graduação da
área?
- Como a Pós-graduação tem contribuído para
a formação do farmacêutico crítico, reflexivo e
preparado para atender as necessidades sociais
para o desenvolvimento do Brasil?
- Em que e de que formas a pós-graduação e a
graduação em Farmácia podem e devem
convergir para ampliar e consolidar a área no país?
- Como a ABCF, representante do setor das
ciências farmacêuticas no Brasil, pode colaborar
neste sentido?
Com base nestas considerações e
interrogações, com as experiências e expectativas
dos participantes e a perspectiva de
desenvolvimento de ações coordenadas pela
ABCF, foram levantadas as proposições abaixo
descritas:
1. Definir, após trabalhos conduzidos pela
ABCF – realizados juntamente com o Fórum de
Coordenadores dos Cursos de Pós-graduação da
Área da Farmácia na Capes, do Comitê de
992
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Assessoramento da Farmácia no CNPq e da
Coordenação da Área da Farmácia na Capes –, as
diferentes subáreas para a área Farmácia,
sinalizando e fomentando o desenvolvimento e
valorização da diversidade de conhecimentos,
práticas e necessidades que compõem a pesquisa
e desenvolvimento da área, e que devem se
refletir no processo de formação do profissional
farmacêutico em todos os níveis;
2. Incentivar pesquisas sobre a educação e as
demandas sociais na área farmacêutica para
subsidiar definições políticas e regulatórias no
setor saúde e no âmbito da educação profissional;
3. Buscar atuar junto aos órgãos de regulação
da formação farmacêutica para colaborar com a
qualificação do processo de avaliação e das
políticas educacionais, com fins de garantir melhor
qualidade da formação do profissional
farmacêutico no país;
4. Colaborar ativamente com as instituições e
os movimentos nacionais e internacionais pela
qualificação da formação profissional em Farmácia;
5. Estimular a criação, no âmbito da ABCF, de
núcleos de debate e de proposição de
intervenções por tema de interesse dos
pesquisadores, incluindo a questão do ensino e do
desenvolvimento da graduação como parte
inerente do desenvolvimento da área de pesquisa
e de inovação tecnológica farmacêutica;
6. Induzir a realização de estratégias de
formação complementar integradas entre pósgraduação e graduação, como as experiências já
conhecidas das “escolas de inverno” ou “de
verão” e os eventos acadêmicos integrados.
Outro conjunto de proposições foi elaborado
com o objetivo de gerar ações coordenadas pelo
Fórum de Coordenadores de Cursos de Pósgraduação na Área da Farmácia na CAPES,
instância de interlocução entre os programas de
pós-graduação, que vem discutindo e sugerindo
ações relativas à área, especialmente quanto à
regulação, avaliação e estratégias para o
fortalecimento da pós-graduação na área.
Sugere-se que o Fórum deva discutir e buscar
desenvolver, no âmbito dos programas de pósgraduação em Farmácia, as proposições abaixo
relacionadas:
1. Desenvolver atividades de extensão
universitária, como: atividades destinadas à
sociedade, que possam integrar as finalidades de
interação e assistência para a população, campo
de estágio e formação acadêmica, e campo e
v.17, n.47, p.991-4, out./dez. 2013
Curriculares e os Projetos Político-Pedagógicos dos
cursos de graduação em que estão estagiando.
A iniciativa de levar, para o I Congresso da
ABCF, a pauta da relação graduação–pósgraduação denota, claramente, a política proposta
pela instituição de trabalhar pela valorização e
desenvolvimento da área farmacêutica, e a
compreensão de que a plena consolidação da
pesquisa e da pós-graduação em farmácia
depende de escolas de farmácia fortes, bem
articuladas, estruturadas e formadoras de
profissionais farmacêuticos altamente
competentes e preparados para atuar na pesquisa,
nos serviços, no mercado farmacêutico e na
política de saúde brasileira.
A validade das proposições relatadas se dará na
medida do comprometimento da categoria com a
causa, transcrevendo, na prática da formação e da
pesquisa nas instituições de ensino, o desejo e a
certeza de que a educação farmacêutica pode
crescer e gerar as respostas de que a sociedade
necessita.
Por fim, espera-se que os pontos levantados
sejam ingredientes para a construção de uma
agenda estruturada para subsidiar o processo de
formulação e avaliação de políticas e programas
para a área farmacêutica no país.
notas breves
linha de pesquisa para a pós-graduação (a
exemplo das farmácias-escolas, unidades
hospitalares, programas desenvolvidos em diversos
tipos de instituições);
2. Buscar formas de institucionalizar a oferta de
disciplinas que possam ser validadas para a pósgraduação, a graduação e os programas de
residência;
3. Desenvolver estratégias de planejamento de
curto, médio e longo prazo que envolvam a
graduação e a pós-graduação como um conjunto
integrado e interdependente dentro das unidades
acadêmicas e universidades;
4. Validar carga-horária de pesquisa para as
atividades de iniciação de graduandos e de tutoria
de iniciação científica para os pós-graduandos;
5. Buscar estratégias de integrar a formação e
a pesquisa também com as áreas afins da
Farmácia, para o desenvolvimento da pesquisa, da
formação e ação interdisciplinar;
6. Discutir e apontar indicadores concretos e
sensíveis da relação entre a graduação, a extensão
e a pós-graduação para fins de avaliação e de
norteamento das ações da pós-graduação em
Farmácia;
7. Identificar os mecanismos existentes para
fomentar e promover a formação docente para
atender as necessidades do grande número de
cursos de graduação em Farmácia no país;
8. Qualificar as atividades de Estágio de
Docência, definindo, em sua ementa, o estudo do
histórico e do contexto da educação farmacêutica
no Brasil (Diretrizes Curriculares, Lei de Diretrizes
e Bases da Educação, demandas sociais, avanços e
desafios da área), justificando e embasando as
atividades didático-pedagógicas propostas pelos
pós-graduandos, pelos norteadores das Diretrizes
Silvana Nair Leite
Departamento de Ciências Farmacêuticas, Universidade
Federal de Santa Catarina. Campus Universitário Reitor
João David Ferreira Lima, Trindade. Florianópolis, SC , Brasil.
88040-900. [email protected]
Suely Lins Galdino
Programa de Pós-Graduação em Inovação Terapêutica,
Universidade Federal de Pernambuco. In memoriam.
Palavras-chave: Farmácia. Educação
Farmacêutica. Universidades.
Keywords: Pharmacy. Pharmaceutical
education. Universities.
Palabras clave: Farmacia. Educación
farmacêutica. Universidades.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.991-4, out./dez. 2013
993
NOTAS BREVES
Colaboradores
Os autores participaram, igualmente, de todas as
etapas de elaboração do artigo.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. I Fórum Nacional
de Educação Farmacêutica: o farmacêutico de
que o Brasil necessita. Relatório final. Brasília: MS,
2008.
______. Resolução CNE/CES 2, de 19 de
fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Farmácia.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/
arquivos/pdf/CES022002.pdf>. Acesso em: 10
jan. 2013.
______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/
leis/lein9394.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2013.
______. Decreto nº 85.878, de 07 de abril de
1981. Estabelece normas para execução de Lei nº
3.820, de 11 de novembro de 1960, sobre o
exercício da profissão de farmacêutico, e dá outras
providências. Disponível em <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/
D85878.htm>. Acesso em: 10 jan. 2013.
CONSELHO FEDERAL DE FARMÁCIA. VIII
Encontro Nacional de Coordenadores de
Cursos de Farmácia. Brasilia: CFF, 2012.
LEITE, S.N. et al. I Fórum Nacional de Educação
Farmacêutica: o farmacêutico que o Brasil
necessita. Interface (Botucatu), v.12, n.25,
p.461-2, 2008.
Recebido em 08/08/13. Aprovado em 26/08/13.
994
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.17, n.47, p.991-4, out./dez. 2013
DOI: 10.1590/1807-57622013.0275
criação
Uma desmontagem humanizada
através de fotografias em Saúde Coletiva*
Humanized disassembly through photographs within public health
Un desmontaje humanizado por medio de fotografías en Salud Colectiva
Carlos Alberto Severo Garcia Júnior1
Radilson Carlos Gomes2
Margem
Margem: contorno externo e imediato de algo.
Margear: situar-se em uma relação.
Marginal: sujeito que beira a vida.
Marginalista: adepto à criação de anotações em imagens.
(Garcia, 2013, p.44)
Kossoy (2007) considera a noção de desmontagem como
algo implicado na ideia de decifração. Na busca, através das
imagens fotográficas, de suas realidades e seus códigos.
Através de uma análise iconográfica e de interpretação
iconográfica, detecta seus elementos constitutivos
(fotógrafo, assunto, tecnologia) e suas coordenadas de
situação (espaço, tempo). Propondo, assim, a reconstituição
do processo que originou a representação. Nesse sentido,
tratamos de um território-imagem3 vivo e em movimento,
como se pode ver a seguir.
Texto sem conflitos de
interesses nem
financiamento. Seu
resultado é o encontro
entre fotografias e
produções textuais na
publicização de um modo
de pensar “saúde
coletiva: imagem
coletiva”.
1
Consultor, Política
Nacional de
Humanização, Ministério
da Saúde. Setor
Administrativo Federal Sul
(SAF Sul), Trecho 2,
Bloco F, sala 19, Ed.
Premium, Torre II.
Brasília, DF, Brasil.
70070-600.
carlosgarciajunior@
hotmail.com
2
Fotógrafo de Saúde
Pública, Ministério da
Saúde.
*
3
Usamos o acervo
“foto-saúde”: um
dispositivo virtual com
fotografias distribuídas
gratuitamente pelo
fotógrafo documentarista
Radilson Carlos Gomes,
sobre diversos segmentos
da saúde pública no país,
como: universidades
(faculdades de saúde),
secretarias estaduais e
municipais de saúde,
entidades e associações
voltadas para o
fortalecimento do SUS.
Disponível em: <http://
www.radilsongomes.com.br/
fotosaude.php>
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.47, p.995-1002, out./dez. 2013
995
CRIAÇÃO
Figura 1. Agente Comunitário da Saúde, Cuiabá
Vida-família. Cozinha, ponta de alimento, porta de entrada.
Cozinha-família, entrada da vida. Domicílio, meio de vida,
meio da vida. Visita, todos entram. Visita domiciliar, aquela
em busca (se ativa). Tempo de conversas, barriga cheia e
calor. Tempo de silêncio, panela vazia e desânimo. A imagem
além de compor contrastes de luzes e momentos, apresenta
uma abertura para enxergarmos a partir de um lugar de
“dentro”, ao mesmo tempo, um lugar de “fora”, e perder-se
naquilo que não se vê. Tem-se a proteção de paredes entre a
vida pública e a vida privada. A saúde (ora pública) tenta
entrar na casa (ora privada) pela porta aberta. Vida e família,
bem público-privado, porta de entrada de tudo.
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criação
Figura 2. Casa de Saúde Indígena, Itacoatiara, Amazonas
“Dona de divinas tetas, derrama o leite bom na minha cara e
o leite mau na cara dos caretas”, diria Caetano Veloso na
música “Vaca Profana”. Leite, alimento sagrado e
acalentador. Seios e bustos, imagem divina da vida. Vida
fértil, vida pulsante. História revelada na transmissão e na
passagem do líquido. Hoje, mãe. Ontem, jovem. Amanhã,
senhora. Entre rios, sinuosas margens que revelam a mãe
natureza resguardada pela vida ainda humana. Um olhar
feminino. Mulheres, mães, meninas e avós de um povo que
carrega uma herança. Uma cultura com seus respeitos e seus
rituais. Entre redes, entre pontos, entre vidas. A
naturalização de vidas em redes. Num primeiro plano: olhos
abertos-acima, atentos ao fora. No segundo plano: olhos
fechados-abaixo, atentos ao cuidado (dentro).
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997
CRIAÇÃO
Figura 3. Unidade Básica de Saúde, Parnaíba, Piauí
Uma mesa em distâncias. Entre histórias de distâncias e
distâncias de histórias, mulheres e crianças numa ciranda.
Uma família viva, uma passagem de tempo, em busca de
cuidado. Perguntas: quem quer atenção quer encontrar
solução? Quem escuta visa qual saída? Quem olha, diz o
quê? Com licença, doutora, entramos aqui para saber o
que temos, mas acho que só sabemos o que não temos.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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criação
Figura 4. Colônia de hanseníase, Colônia João Paulo II – Marituba, Pará
Tem fogo? Indagaria parado. Como se o caminho já não
revelasse nenhuma surpresa. Um caminho que há muito se
caminha sabendo para onde se vai. Já foram deixados pelo
percurso alguns restos de cinzas. Fogo? Claro! Prazeres e
paixões não se esvaem em si mesmas, elas conduzem
caminhos, avisam aos menos atentos. Sinais e alertas que
advertem, dizem de sua saúde. Caminhar parado e rodar em
rodas. No escuro, num corredor solitário, vive restos e fumaças.
Se já lhe amputaram as pernas, do que lhe servem, se o corpo
segue a andar?
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CRIAÇÃO
Figura 5. Atendimento domiciliar, periferia de São Paulo, SP
Planos em três porções, divididos entre pequenos objetos
humanos. Conversas e condições. Mulheres postas a dialogar sobre
a vida, banalidade em forma de uma tela. Um emaranhado de
semicoisas entre a vida. Vale a pena ver de novo. Quem não vê
perde a chance de chegar, e quem chega é porque quis ver. Uma
visita abre o impulso de organizar a casa. O estranho que entra
sempre pode estranhar aquela casa. Como se tentássemos mostrar
um pouco daquele outro que não somos. Um visitante impõe um
reajuste. O relógio, a mobília, a bagunça habitual da vida passa a
ser um possível desconforto.
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criação
Figura 6. Ananindeua, Pará
Pressões e marcas, impressões de expressões. Pressões e
contrastes, menção de tensão. Se o olhar e o vento não
conseguem revelar um tempo ou, mesmo, um lugar, ao menos,
pode-se ter um instante já-mais (Garcia, 2013) o mesmo.
Instante já-mais o mesmo é incapacidade de prender, escolha
de extrair o medo e o fim. Entre medidas capazes de relevar a
normalidade, temos sujeitos comuns, vida legítima, base sólida
de um território. Medidas e médias. Normalização que varre
extremos que jamais se tocam. Minha amiga, como vai você?
Ainda que não nos conhecemos, mas sei quem é você. Você
entrou em minha casa e esqueceu-se de dizer seu nome. Pediu
uma xícara de açúcar, um pedaço de pão e nunca mais voltou.
Deixou de aparecer. Por favor, apareça minha amiga, e diga
quem realmente é você.
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CRIAÇÃO
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos na concepção desta publicação. Carlos Garcia Jr.
produziu o texto e Radilson Carlos Gomes fotografou as imagens.
Referências
GARCIA, S. Marginais. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013.
KOSSOY, B. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia: Ateliê
Editorial, 2007.
Recebido em 14/06/13. Aprovado em 31/10/13.
PSF - Foz do Iguaçu
1002
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