Revista Educação & Tecnologia. Curitiba, Editora do
CEFET-PR, v.8, p. 185 - 208, 2004.
OS IMPACTOS SOCIAIS E AMBIENTAIS DO CRESCIMENTO ECONÔMICO NO
TERRITÓRIO URBANO: INTERESSES LOCAIS ENTRE AGENTES DO SETOR
PRIVADO NA CIDADE DE PONTA GROSSA - PR
Eric Bomfati
Maclovia Corrêa da Silva
Resumo
O presente artigo pretende discutir as questões ambientais resultantes da
regulamentação do uso do solo abordando o caso de uma indústria de alimentos na cidade de
Ponta Grossa, no Estado do Paraná, que interagiu com o poder público para garantir melhor
qualidade de vida para os possíveis moradores dos arredores da fábrica. Ele está baseado na
monografia de conclusão de curso de especialização realizado no ano de 2003. A intenção é
mostrar como a setor secundário e a Prefeitura encaminharam o caso de uma empresa de
alimentos situada em área industrial que foi circundada por residências. A empresa escolhida
para este estudo, considerada de grande porte e importância para a arrecadação do Estado do
Paraná, teve que enfrentar a lentidão do sistema burocrático, os interesses do setor
imobiliário, e o impasse gerado pelos proprietários de uma área vizinha às suas instalações.
Palavras-chave: industrialização, urbanização, planejamento urbano,
ambiente
uso do solo,
meio
1. As cidades brasileiras: contrastes e desigualdades
Muitos municípios brasileiros, preocupados com o crescimento da economia e a
geração de empregos, consideram que a problemática ambiental não é um fator que interfere
diretamente na melhoria de condição de vida das populações. Porém, dissemina-se
rapidamente a consciência de novos paradigmas para o desenvolvimento econômico, e os
cidadãos buscam a qualidade ambiental. Para garantir para as cidades uma forma diferenciada
de produzir bens e serviços, tendo como meta o cuidado com o ambiente urbano, é preciso
que as políticas públicas estimulem novos processos produtivos consentâneos com a
sustentabilidade. As restrições e regulamentações de uso do solo devem atender estas
prerrogativas.
A indústria faz parte de políticas públicas e ela colabora para um aumento no ritmo da
urbanização. Muitas áreas residenciais existentes em cidades de médio e grande porte já estão
totalmente ocupadas, e a crescente demanda habitacional se dirige para áreas marginais ao
processo de urbanização estruturado. Novos espaços são ofertados sem a adequada infraestrutura para construções o que acaba gerando uma gama de problemas e caos para as
periferias no que se refere ao meio ambiente e à oferta de serviços públicos como transporte
coletivo, saneamento, pavimentação e outros requisitos básicos para uma aceitável qualidade
de vida. Tanto os pequenos municípios quanto as metrópoles apresentam déficit em serviços
de infra-estrutura urbana. Além, disso, problemas sociais e econômicos como o emprego, a
saúde e a educação, abastecimento, energia e transporte dependem de programas setoriais da
União, dos Estados e dos Municípios.
O planejamento urbano é um instrumento de poder que as prefeituras utilizam para
levantar as potencialidades das cidades, e assim poder organizar ambientes com diversidades
socioculturais e econômicas, diminuindo as práticas excludentes de pouco alcance social.
Quanto á legislação do uso e parcelamento do solo, ela acompanha positivamente as políticas
de planejamento. As áreas para as indústrias e a moradia precisam estar determinadas em um
plano diretor, pois isto permite que a regulação do solo esteja em harmonia com a dimensão
ambiental. Do outro lado do campo está o setor privado, representado pelos empreendedores
imobiliários. A lógica deste mercado está orientada para investimentos em áreas onde o lucro
estará assegurado. O processo de produção, consumo e apropriação do setor que se firmou ao
longo dos anos está baseado em regras e parâmetros voltados para a valorização imobiliária.
Administradoras e corretoras de imóveis trabalham dentro dos conceitos de especulação
imobiliária, e as prefeituras precisam estar munidas de leis e de planos urbanísticos para criar
condições de interferir nos conflitos entre os investimentos lucrativos e produtivos.
2. Industrialização e urbanização: espaços disputados no território brasileiro
A evolução e o crescimento das cidades, decorrentes, dentre outros fatores, do
desenvolvimento econômico e do aumento populacional ou migrações internas, pautam-se
pelas regras do jogo capitalista, com base na propriedade privada do solo, regidas por uma
lógica de mercado que, muitas vezes, está expressa no conteúdo da legislação.
A ocupação dos espaços urbanos nas cidades brasileiras veio na esteira da
industrialização dos anos 60 e 70, "de uma industrialização rápida provocadora de uma
escassez de recursos a serem investidos nas cidades, e de uma concentração de renda social,
que termina por sendo espacial", diz Cândido Malta Campos Filho (1983, p.32), arquiteto
ambientalista. Além do mais, a construção de infra-estrutura produtiva ocorreu com recursos
obtidos por emissões inflacionárias e endividamento no exterior. Proporcionalmente, poucas
áreas receberam melhoramentos provindos de investimentos públicos. Então, pode-se
entender porque indústrias de pequeno porte instaladas no centro das cidades passaram a
médio porte, e continuaram crescendo sem desejo de abandonar o centro da cidade. No
decorrer dos anos, aproximaram-se, gradativamente, as áreas destinadas para a indústria e a
habitação. Os seus arredores, com insuficiente oferta de serviços públicos básicos, receberam
as populações de baixa renda. O processo de loteamentos para essas classes se deu em áreas
insalubres, inundáveis, de formas clandestina, acarretando custos sociais para os moradores.
As cidades brasileiras foram inchando desmesuradamente e tiveram suas cercanias
transformadas, com áreas sub-urbanizadas e com habitações classificadas como favelas e
barracos. Seria difícil a compreensão deste fenômeno sem um estudo aprofundado de diversos
fatores presentes nos processos de urbanização, entre eles o processo migratório, o mercado
imobiliário, o acesso à habitação, os equipamentos públicos, a integração social.
O Brasil começou na virada do último milênio, a enfrentar outros desafios que
perpassam pela preservação do meio ambiente, pelo desenvolvimento sustentável, pela
escassez de recursos naturais, exigindo do poder público análises mais amplas, de maior
abrangência teórica para o sistema urbano brasileiro.
O fenômeno social da urbanização transforma a vida cotidiana das cidades na medida
em que aumenta as possibilidades de mobilidade no espaço físico-territorial das cidades. Para
Remy, citado por Moreira, a mobilidade espacial interfere tanto no deslocamento das pessoas
e dos bens, quanto na forma como ocorre a circulação das mensagens e das informações. Ele
destaca o papel dos atores sociais e as qualidades de suas relações na esfera política. Moreira
afirma que “a urbanização conduz a uma nova definição da incidência de modos de
territorialidade sobre as formas sociais de trocas e de estruturação das relações sociais”
(Moreira, 2002, p. 75).
3. Novas concepções de ação do poder público no território
Conciliar qualidade de vida e eficiência produtiva, evitar a marginalização das classes
sociais de baixa renda, legislar o parcelamento do solo são algumas medidas que fazem parte
do processo social e político de produção e consumo do espaço urbano. A responsabilidade
dos poderes públicos quanto à organização dos serviços públicos locais restringe-se hoje aos
problemas de acumulação de capital do setor privado, e para Fernandes (2001, p.38) a "nova
concepção da ação do poder público local consiste num ajuste reativo e subordinado aos
interesses hegemônicos, no mais das vezes inócuo, dramaticamente custoso aos fundo
públicos e à integridade do tecido urbano - físico e social". Ficam visíveis dois lados
destoantes, sendo eles, o poder econômico que comanda produção de riqueza e do espaço e o
poder público com um limitado grau de controle político. A herança de um caldeamento
cultural repercute na mais absoluta complacência com normas de convívio entre as mais
diversas classes sociais e um completo descaso pelas regras de urbanismo.
A maneira como se deu a criação da maioria dos municípios acabou atropelando os
modelos de organização do território e gestão urbana tradicionalmente utilizados, e a máquina
administrativa mostrou-se inadequada. O resultado tem sido o surgimento de cidades sem
infra-estrutura e disponibilidade de serviços urbanos capazes de comportar o crescimento
provocado pelo contingente populacional que migrou para as cidades com mais oferta de
empregos e serviços.
Entre as décadas de 50 e 90, a parcela da população brasileira que vivia em cidades
cresceu de 36% para 75%, sendo que em 1991, nove regiões metropolitanas possuíam mais de
1 milhão de habitantes cada. Neste contexto, foram evidentes os desequilíbrios gerados por
essa rápida expansão, agravados pela falta de uma legislação municipal que dispusesse sobre
o uso e ocupação do solo urbano e urbanizável.
Cabe aqui colocar as reflexões de Veiga (2002) quanto às aglomerações qualificadas
como urbanas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esta instituição
considera toda zona municipal, independente do número de habitantes, de caráter urbano.
Calculando um número total de 5.507 municípios brasileiros, vale dizer que, no ano de 2000,
1.176 reuniam menos de 2.000 habitantes e 3.887 menos de 10.000 habitantes.
Grandes assentamentos urbanos concentram problemas como desintegração
social, desemprego, perda de identidade cultural, de produtividade econômica além é claro,
dos impactos ambientais como poluição e destruição de recursos naturais. Nas cidades com
forte concentração industrial exacerbam-se os problemas de trânsito, enchentes, favelização e
assentamentos em áreas inundáveis, de risco e carentes em saneamento. Como centros de
produção, essas cidades mostram saturação de indústrias em áreas restritas, trazendo diversos
problemas a seus habitantes, provocados pelos elevados índices de poluição do ar, sonora e
hídrica que apresentam.
4. A ocupação territorial nas grandes metrópoles
A capacidade de suporte de determinadas áreas territoriais do globo terrestre tem sido
tencionada beirando seus limites, especialmente nas chamadas cidades-regiões globais. Há
décadas vêm ocorrendo movimentos populacionais para as megacidades, incrementando a
urbanização destas áreas. Movidas pela reestruturação produtiva, que exclui a mão-de-obra
das indústrias e procura realocá-la no setor serviços, as "metápolis" e suas regiões
metropolitanas criam novas formas urbanas. Esta metropolização expandida pode ser
expressa por um tecido urbano marcado pelas desigualdades sociais e produtivas. As
paisagens mudam em função dos investimentos. É importante citar o caso da região em torno
da cidade de São Paulo, denominada ABC paulista, constituída pelos municípios de Diadema,
Mauá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Santo André, São Bernardo do Campo e São
Caetano do Sul, segundo palavras de Anau (2002):
O pioneirismo do ABC nos processos de modernização industrial associado à globalização e à
reestruturação produtiva consubstancia-se na liderança territorial da sub-região em face da metrópole e
do estado. ... A terceirização de atividades industriais faz parte do processo. A seu lado, avança a
terceirização do território econômico do Grande ABC, processo iniciado no final dos anos 80 e
intensificado na década de 90, cujo potencial, como já foi dito, poderá enfrentar limites em futuro
próximo, decorrentes do estreitamento do mercado de trabalho industrial (p.55,56).
Os abismos criados entre as diversas áreas que compõem as grandes cidades e
metrópoles estão socialmente condicionados pelas políticas que ora definem o adequado e o
inadequado, ora legitimando direitos, ora interferindo neles. As dificuldades têm gerado
divisões sociais, fazendo com que as carências sejam ressaltadas e induzam movimentos e
movimentações como ocupações desordenadas de terrenos, crescimento anômalo sem infraestrutura e sequer planejamento primário, com conseqüente desequilíbrio socio-ambiental e
riscos para os moradores e para as propriedades.
Trabalhar na recuperação destas áreas deterioradas conduz à maior racionalidade na
aplicação de recursos se comparado à urbanização de novas áreas. Assim a solução dos
problemas pode estar na organização regional desses municípios, cujas áreas urbanas estão
dispostas numa extensão contínua chegando muitas vezes a unirem-se umas às outras na
chamadas regiões metropolitanas.
Técnicos e estudiosos das dificuldades que as metrópoles estão enfrentando
questionam quais seriam as políticas mais viáveis para enfrentar a precariedade da situação
habitacional diante das constantes mudanças na estrutura demográfica. Para exemplificar a
complexidade do problema, Luiz César de Queiroz Ribeiro, professor da Universidade do Rio
De Janeiro – IPPUR/UFRJ – Coordenador do Núcleo de Excelência ‘’Metrópoles:
desigualdades sócio-espaciais e governança urbana”, CNPq, diz que a população de oito
regiões metropolitanas brasileiras saltou de 37 milhões para 42 milhões de habitantes e suas
periferias cresceram uma taxa de 30%, enquanto as áreas mais centrais das metrópoles não
cresceram no mesmo período mais de 5%. O quadro fica mais agravante se for considerado o
déficit habitacional que atinge a casa de sete milhões de unidades.
O mercado imobiliário e a estruturação do espaço modificam-se com a
descentralização das plantas industriais. Na cidade de São Paulo, os processos de
concentração e centralização do capital estão vinculados à expansão do espaço metropolitano
com a diversificação das atividades industriais e a ampliação das atividades econômicas.
Prédios de escritórios sombreiam pavilhões que abrigam indústrias e moradias amontoam-se
em espaços ainda vazios.
No Nordeste, a cidade do Recife tem um crescimento urbano atrelado às aglomerações do
seu entorno, composto por 14 municípios. Significativo também é o movimento migratório
neste quadro urbano, oriundo das mudanças nas relações de trabalho. Mesmo que as taxas de
crescimento demográfico apresentem decréscimos, a cidade está crescendo para fora de seus
limites.. Bitoun, Miranda e Souza explicam que
O decréscimo das taxas de crescimento do Recife, nos últimos Censos Demográficos, ao invés
de expressar o seu "esvaziamento", evidencia que a cidade se agiganta com uma população que cresce
fora dela. Nos últimos trinta anos, a população do Recife reduz a sua participação na RMR de 58%
(1970) para 43% (2000). O seu crescimento transbordou então em municípios da periferia e realizouse a conurbação física entre manchas urbanas municipais que caracteriza a aglomeração, expandida em
50 km de norte a sul e em cerca de 29 km de leste para oeste (2003, p.74,75).
Faraco diz que Curitiba é uma das metrópoles da região sul do país que teve o maior
crescimento populacional relativo, e em relação ao Estado do Paraná, este crescimento passou
de 8,45% para 16,39%. No contexto metropolitano, o autor diz que "ao mesmo tempo que a
capital paranaense experimenta uma redução de suas taxas de crescimento anual, na Região
Metropolitana de Curitiba (RMC) ocorre o inverso” (2002, p.37). A RMC apresentou uma
taxa de crescimento de 2,95% entre os anos 1980 e1991, e de 3,20% entre 1991 e 2000.
Considerando as nove regiões metropolitanas brasileiras instituídas em 1973, a região de
Curitiba foi a que apresentou maiores taxas de crescimento populacional.
Scott et al. (2001) dizem que há pelos menos 20 cidades chamadas cidades-regiões
globais com mais de dez milhões de habitantes. Este conceito remete à expressão "cidade
mundial" criada por Hall e Wolff, e à "cidade global" de Sassen. Koulioumba (2002)
considera que a análise de Hall está restrita ao cosmopolitanismo, sem levar em conta a
concentração de capitais em espaços territoriais desiguais, sendo que este fenômeno também
está presente nos países em desenvolvimento. Ele coloca que
A importância da região metropolitana de São Paulo como pólo centralizador nacional e cidade
mundial ou global na semiperiferia do capitalismo mundial, tem sido largamente abordada tanto pela
literatura nacional quanto pela internacional. ... o processo de unificação do mercado nacional,
concluído no início dos anos 70, significou em níveis macroeconômico e do espaço econômico
nacional, uma concentração espacial de atividades produtivas e de capital no estado de São Paulo e na
região metropolitana de São Paulo (2002, 33,34).
Estas manifestações se configuram em maior concentração de população e emprego,
melhores ligações terrestres e aéreas, maiores padrões de consumo e grande capacidade de
inovação tecnológica e competitividade.
5. Políticas urbanas de parcelamento e uso do solo
Embora a extensão territorial brasileira seja privilegiada, a posse de terras, por se
constituir reserva de valor, concentra as propriedades, favorecendo a permanência de
latifúndios, muitas vezes improdutivos, no campo, e de terrenos vagos na cidade. Políticas
como a da reforma agrária, o Estatuto da Cidade, uma ordenação legal definida em nível
federal, o Ministério das Cidades, ainda não conseguiram resultados significativos no tocante
aos mecanismos de formação de preços e ao equilíbrio da oferta e procura de imóveis.
Conforme a visão mercadológica, as variações de preços nos produtos são decorrentes de
desequilíbrios entre os níveis de oferta e de demanda, conforme pesquisas realizadas pela
Superintendência De Estudos e Pesquisas - Fundação Prefeito Faria Lima, na cidade de São
Paulo. Do mesmo modo, o uso do solo tem sido objeto de grandes discussões não só pelo
seu mal uso e distribuição, como também pela falta de políticas voltadas para o uso social da
terra rural e urbana.
Cândido Malta (1979) diz que é bastante difícil, a curto prazo, aumentar a capacidade
aquisitiva da população, bem como estabilizar os preços da terra urbana e rural. Dentre as
alternativas de ação do poder público, pode-se optar pelas modificações nas leis de
zoneamento consideradas exigentes e elitistas, e nas leis municipais, a fim de que sejam
constantemente reelaboradas e tenham significativa representação política.
Políticas de combate à especulação imobiliária através de adicionais ao imposto
territorial urbano municipal também causam impactos na movimentação do mercado de terras
urbanas. O descontrole público sobre o crescimento das cidades, segundo Cândido Malta
Campos Filho, provoca o caos urbano, e induz à concentrações de grandes massas
populacionais em determinadas áreas urbanas favorecendo um aumento dos lucros originários
de transações imobiliárias. As forças de pressão geradas no sentido de obter um mínimo de
ordenamento tornam-se indispensáveis, e "se a infra-estrutura fizer parte dos planos urbanos,
é preciso que esses planos sejam para valer, ou seja, que se tenha certeza de que será
instalada, em planos bem fundamentados, ... respaldados pela opinião pública majoritária,
decididos após debate realmente democrático (1979, p.80).
A propriedade da terra sempre foi um fator importante na obtenção de riqueza, ou
como os economistas clássicos definem, na apropriação de excedente social. No Brasil, este
processo começou com o Império português que redistribuiu gradativamente os direitos a
posse da terra, tendo o Município uma Câmara, a qual competia o governo econômico e
municipal. Com a República, as normas urbanísticas passaram a ser oriundas das três esferas
de Poder, em que a União fornecia as bases e diretrizes legais, e os Estados ficavam
incumbidos do desdobramento normativo.
As políticas nacionais de desenvolvimento que se seguiram após 1930 acumularam
uma dívida social urbana que culmina hoje com um marketing territorial e um
empresarialismo urbano. Os proprietários de terra vangloriam-se com vantagens como baixos
impostos sobre a terra, a omissão de taxação sobre melhorias resultantes da ação
governamental e ausência de impostos sobre o lucro imobiliário. Com um elevado grau de
poder de monopólio no mercado, um seleto grupo de proprietários e empresários pode
controlar os preços através de restrições nas ofertas.
Como conseqüência, as taxas de retorno de capital investido sobre a terra tendem a ser
muito altas, em termos reais. Investimentos de outras espécies não costumam oferecer tais
retornos e segurança, e com isso, a terra torna-se um excelente investimento, atraindo uma
demanda que prefere esta forma de reserva de valor, o que acaba por estimular grandes fluxos
de capitais para o setor imobiliário.
As políticas públicas, muitas vezes alheias a ação dos loteadores e incorporadores,
contribuem, em grande parte, com o rápido crescimento do valor da terra e consequentemente,
a expulsão das classes de menores rendas por meio de projetos de renovação urbana.
Fernandes relata que "a implementação dos grandes projetos de renovação urbana quase
sempre acontece à custas dos interesses das classes de renda baixa". Paulatinamente, as
famílias que estavam localizadas no centro da cidade e áreas próximas, as quais contribuíram
com os investimentos públicos ali realizados e dos quais se beneficiavam, foram sendo
expulsas porque "estes projetos terminaram por elevar os preços fundiários e imobiliários,
atraindo grupos de renda mais elevada, portanto mais interessantes para a ampliação da base
de arrecadação da cidade" (2001, p. 27).
Apesar de algumas políticas defenderem a descentralização econômica e maiores
investimentos em algumas regiões menos desenvolvidas como a do Nordeste do país, a
mundialização da economia divergiu para as chamadas políticas implícitas com ênfase no
crescimento industrial da microeletrônica e nas exportações, produzindo uma concentração de
riquezas mais acentuada na então desenvolvida região Sudeste.
As disparidades regionais tendem para um movimento crescente. Hoje, as
intervenções urbanísticas na região metropolitana do Recife estão sendo concretizadas através
de acordos entre os grandes proprietários de terra e políticas públicas seletivas, financiados
por agências internacionais que procuram alojar as populações de baixa renda em lotes
comercializáveis, em grande parte clandestinos, nas áreas mais distantes do núcleo
metropolitano, e incentivar o crescimento dos negócios turísticos.
6. Aspectos Jurídico-Institucionais da propriedade
Os novos conceitos jurídico-institucionais do uso do solo urbano só podem ser
aplicados através de modernas concepções sobre o direito de propriedade. Voltando às
questões debatidas por Veiga (2002), não basta estabelecer a distinção entre solo rural e solo
urbano para efeito de planejamento, bem como estabelecer as diferenças entre direito de
propriedade e o direito de construir, sem se discutir de qual "rural" e de qual "urbano" está se
abordando.
Conceitos como estes ultrapassam os limites territoriais e se confundem dentro de
legislações. No norte do Brasil, cidades como Belém e Ananindeua, no Estado do Pará,
discutem há décadas seus espaços territoriais, com populações dispersas e concentradas em
bairros. A região Metropolitana de Belém, em 1995 era composta de dois municípios: Belém
e Ananindeua. Foram sendo acrescentados municípios à esta região, e hoje, o aglomerado
metropolitano conta com dois conjuntos fisiográficos: "um composto por área continental e
outro envolvendo um conjunto insular composto por mais de quarenta ilhas" (Lima, 2003).
Não pairam hoje dúvidas e tem-se como pacífico que qualquer tipo de solo, seja
urbano ou rural, é considerado, economicamente, um fator de produção ou um insumo
indispensável à concretização do ciclo produtivo capitalista. Bitoun diz que em áreas
nordestinas, o urbano se especifica pela impotência das autoridades municipais em
administrar os seus territórios. Pode-se constatar esta realidade no litoral, onde o tipo de
loteamento compromete o desenvolvimento do turismo, e também em áreas irrigadas ou de
produção de grãos "onde as cidades crescem através de periferias parecidas com as das
metrópoles" (2003, p. 58).
Cândido Malta (2003, p.192) explica que "os loteamentos irregulares, também
chamados de clandestinos, não seguem os padrões legais e com isso caracterizam qualidade
urbanística muito baixa, prejudicando enormemente seus moradores, em geral de menor
renda". Por um lado, é habitual que os moradores reivindiquem a regularização fundiária
deste tecido urbano pouco qualificado. Porém, existem outros ângulos da questão. Cândido
Malta distingue dois lados importantes desta situação. Um deles é o fato do morador ser
vítima do processo de produção, apropriação e consumo do espaço urbano, e o outro é a
transgressão das leis em busca de maiores lucros, o que muitas vezes desmoraliza
planejamentos instituídos em legislações urbanísticas.
As famílias de baixa renda estão prejudicadas pela ausência de um controle legal da
propriedade da terra, e adquirem lotes em periferias desurbanuizadas por não poderem pagar o
preço exigido pela terra com os requisitos de infra-estrutura. São obrigadas a viver em
loteamentos clandestinos em áreas periféricas quando não em favelas, sem, muitas vezes, o
direito ao registro definitivo do imóvel. Os métodos tradicionais de controle de uso do solo no
Brasil historicamente têm sido utilizados como meio de manter o valor da terra e de excluir
grupos sociais indesejáveis de certas estruturas urbanas.
Quando instrumentos de controle urbanístico, como o zoneamento, são
implementados, impedindo que os empreendedores imobiliários aumentem o valor da terra,
exerce-se uma pressão no sentido do (re)zoneamento, ou seja, novas leis urbanas que
garantam aumento de valor para as áreas de interesse dos proprietários de imóveis.
Para o urbanista francês Agache, um dos fundadores da ciência urbanística no início
do século XX, a regulação do uso do solo deveria abranger seu parcelamento, zoneamento,
direito de construir, estímulos e restrições de uso. Estas ferramentas constituem instrumentais
do planejamento urbano para evitar e corrigir a ocupação desordenada de áreas, e exercem um
papel ativo na condução do processo de urbanização:
O êxito na aplicação de um plano de urbanização repousa, pois, nesses três elementos: a)
propaganda; b) comissão do plano da cidade e c) legislação urbanística”. ... Um plano sem a
legislação urbanística que desde logo lhe dá aplicação, lhe delimite as funções, regule a forma
administrativa, fixe as características das obras e imponha penalidades é um plano fadado a empoeirarse numa gaveta (Boletim da PMC, Ano II, nº 12, nov. / dez. 1943, p. 95 e 97 – Plano de Urbanização
de Curitiba).
Moreira (2002) afirma que a mensuração do grau de urbanização não se faz
simplesmente através de dados referentes ao crescimento da população urbana. Estes
elementos são importantes mas desde que estejam integrados aos meios urbanos constitutivos
e suas especificidades. O conceito de urbanização, historicamente, perpassou por diversas
transformações e os destaques versaram sobre temas como as forças sociais, as variações das
organizações sociais, as relações sociais, o valor do espaço como agente modificador, os
modos de regulação, e as dimensões sociais, econômicas, políticas e culturais
contextualizadas no desenvolvimento das cidades.
Existem hoje programas de urbanização para regularizar parcelamentos e reverter a
ocupação urbana em áreas adensadas com implantação de redes de água e de esgoto,
recuperação de áreas públicas e produção de unidades habitacionais. Uma outra forma legal
de reorganizar uma estrutura fundiária urbana é a desapropriação da terra, onerosa para as
prefeituras, que buscam hoje recursos nas agências internacionais para programas de remoção
de favelas, renovação urbana e obras públicas. Torna-se indispensável a criação de leis
municipais de zoneamento do uso do solo, bem como a garantia de sua aplicação através de
políticas sustentáveis. Para que haja um controle da especulação imobiliária, as
administrações municipais precisam equilibrar a oferta e a demanda de infra-estrutura. Outros
instrumentos de controle podem ser apropriados pelas prefeituras como a contribuição de
melhoria e os impostos progressivos.
7. O zoneamento como instrumento legal de parcelamento e ocupação do solo
Uma das formas de se controlar o uso e a ocupação do solo urbano pelo poder público
é o zoneamento, como já foi dito acima. Considerado por muitos como um método elitista,
que privilegia apenas as camadas mais abastadas da sociedade, Silva explica que o
zoneamento, instrumento urbanístico com caráter de ordenamento físico-territorial, “pode ter
um papel positivo ou negativo na cidade”. Será positivo, por exemplo, quando em um bairro
populacional, o zoneamento impedir que prédios de apartamentos de classe média substituam
casas populares, fazendo com que os moradores de baixa renda permaneçam em suas casas.
Será negativo quando impedir que populações de menor renda habitem bairros de melhor
infra-estrutura, ou que sejam criados estímulos pecuniários que atraiam a expulsão dos
mesmos (2000, p. 170).
O confronto de interesses entre os agentes que atuam sobre o sistema político gera
mudanças nas decisões de elaboração e de reformulação de normas, as quais organizam as
relações sociais. Delas são gerados significados, que determinam as estratégias de
intervenções urbanísticas, permitindo definir o papel dos interventores na materialização de
um planejamento. Diversos agentes de produção, consumo e apropriação conseguem
“sensibilizar” os responsáveis pela elaboração, fiscalização e cumprimento da legislação
urbanística numa tentativa de valorizar seus terrenos e seus negócios. Proprietários e a
construção civil estão interessados em ampliar as responsabilidades de uso de seus terrenos,
de especular, de maximizar o potencial de lucro e de salvaguardar direitos individuais, como o
da propriedade privada. Assim, a legislação urbanística pode adquirir um caráter elitista,
explica Brasileiro, quando ela funciona como instrumento de proteção aos bairros habitados
pela população de mais alta renda, influindo no custo final das unidades de moradia de modo
a dificultar a entrada na área de amplos segmentos da população:
A tendência elitista é explicável. A elaboração legislativa municipal e a atuação do Poder
Executivo, obviamente, não se processam no vácuo. Ambas absorvem e refletem as características que
impregnam a sociedade como um todo e marcam o estilo e o momento do seu desenvolvimento. Sendo
a sociedade elitista, e dada a pequena representatividade do sistema político e a ausência de canais
adequados para a participação popular, é de se esperar que a legislação urbanística e a atuação
municipal sejam também, em muitos aspectos elitistas. Na base desse etilismo encontra-se a
propriedade privada da terra, um dos grandes divisores de água entre a elite e a não-elite; entre os que
têm e os que não têm (1978, p.9).
As decisões sobre o uso intensivo do uso do solo sempre trazem considerações
relativas à segregação funcional e social. A distribuição entre os usos residencial e não
residencial parte do pressuposto que a parcela a ser consumida pelo coeficiente de
aproveitamento deverá reproduzir o padrão existente. A lei do zoneamento, ao estabelecer
coeficientes distintos para segmentos do tecido urbano, limita a oferta de terrenos e cria a
segregação espacial. Em 1972, a cidade de São Paulo incluiu na sua legislação urbanística o
zoneamento do solo urbano que manteve a tendência histórica de caráter concentrador e
excludente da produção, do consumo e da apropriação da cidade.
Silva (2000) expõe uma situação relatada por Cândido Malta, em que o zoneamento
foi favorável à população de um bairro paulistano. Na Zona 1, havia incompatibilidades de
interesses entre proprietários e empreendedores imobiliários. Na área, conhecida como
“Jardins” onde ficou estabelecida a construção de casas unifamiliares e onde não foi permitida
a verticalização houve um grande interesse do mercado imobiliário em investir na região dada
a grande aceitabilidade do mercado, mas os proprietários defenderam o zoneamento que
permitiu que os moradores permanecessem em suas casas. Mesmo entre os proprietários da
área havia antagonismos. Os que estavam localizados próximos aos corredores viários de
intenso tráfego preferiam mudanças no zoneamento que valorizariam especulativamente suas
propriedades e os localizados nas áreas internas às quadras se opunham à qualquer
modificação temendo que o tráfego afluísse para essas áreas reduzindo a qualidade de vida.
Isso quer dizer que os moradores, abriram mão da valorização especulativa em
benefício de qualidade ambiental de vida, e por isso, podem ser denominados de
ambientalistas urbanos, como bem observa Cândido Malta, que é partícipe desse movimento
social.
Dentre as finalidades primordiais do zoneamento, estão a de controlar a densidade de
ocupação e até mesmo a densidade demográfica, ao se restringir o número de dormitórios por
edificação; o aproveitamento de lotes como por exemplo a obrigatoriedade de recuos;
prevenção de invasão de espaço privativo (direito ao sol) e outras condições de higiene e
saúde pública. Mas talvez a mais significativa seja o estabelecimento de certos padrões e
modelos que se queiram determinar para um bairro ou área, enfatizando suas características e
marcos urbanísticos.
As leis de zoneamento foram consolidando um padrão de comportamento social e um
padrão urbano formados ao longo dos diferentes períodos da história da cidade. Elas definem
a existência de distintas “cidades” na cidade, que se formaram lado a lado em setores urbanos
específicos, ou ainda que se sobrepuseram pela invasão sucessiva de grupos sociais diferentes.
O meio urbano será estimulado pelo zoneamento para desenvolver certos setores
gerando distintos níveis de centros urbanos, com funções complementares entre si, como
também poderá desestimular, ou mesmo proibir a ocupação de outros setores, como por
exemplo, aqueles das imediações dos mananciais de abastecimento d’água da cidade.
Todavia, não é a simples instituição de uma zona que imprime à área as características
pretendidas para um bairro. Tome-se como exemplo um bairro onde pretenda-se estimular o
comércio, serviços e residências mantendo o bom nível de aproveitamento. Estima-se, através
de um planejamento, que as edificações sejam predominantemente verticais. O que acontece,
reforça Cândido Malta Campos Filho, é que estas zonas só não atingem seus objetivos quando
as configurações produtivas imobiliárias não são compatíveis com as configurações
produtivas dos "serviços urbanos" (2003, p.92).
8. Valorização e especulação imobiliárias
A prática da especulação imobiliária se tornou comum em grandes cidades brasileiras.
Como dito anteriormente, os bens imóveis são tidos como bons investimentos já que não
tendem a desvalorizar como outros bens de consumo. Eles não oferecem riscos operacionais
tais como aqueles investimentos realizados no mercado financeiro e possuem impostos
relativamente baixos se comparados aos retidos em outros tipos de aplicações. Um imóvel
pode ter uma grande valorização se a área onde está situado receber infra-estrutura para
moradia, ou ainda quando empreendimentos como supermercados, shopping centers e outros
similares são construídos nas suas proximidades. A existência de bens e serviços urbanos
pontuais no interior das cidades, como água, luz e esgoto, atrai investimentos valorizantes de
bens imóveis, e a valorização decorrente, quando retida pelos proprietários, não é distribuída
para as comunidades.
Com isso, a terra tem se tornado um dos primeiros itens da lista de bens a serem
adquiridos por aqueles que dispõem de capital excedente. O problema é que nem sempre estes
imóveis ao serem adquiridos passam a serem devidamente ocupados, ou seja, não há interesse
por parte dos proprietários em edificar residência ou qualquer outro tipo de construção civil
no imóvel. Estas atitudes dos proprietários geram um número elevado de terrenos baldios em
áreas já ocupadas e empurram a população para as periferias das cidades, expandindo os
limites do município cada vez mais, exigindo a extensão infra-estrutura como transporte,
saneamento e fornecimento de energia.
Há também que se considerar aqueles proprietários de imóveis de grandes dimensões,
que normalmente amparados por leis e com apoio de imobiliárias, dividem a terra em lotes,
normalmente de tamanho exíguo, para garantir maiores lucros na venda. A cidade de Ponta
Grossa no Paraná tem um exemplo significativo deste tipo de procedimento. Em menos de 5
anos, o tecido urbano seguiu a lógica da concentração de habitação. Houve um número
crescente de loteamentos residenciais para áreas nas periferias, sem uma estrutura mínima de
serviços urbanos para construção de moradias. Os loteadores, burlando a lei, deixaram a cargo
da Prefeitura prover para estas áreas infra-estrutura de acesso aos serviços públicos.
Embora as leis urbanísticas tenham o poder de limitar e disciplinar as ações do
mercado imobiliário, através de permissões e proibições, a ocupação do solo urbano depende
da oferta de terrenos e da demanda por habitações. Assim ocorre que alguns municípios,
engatinhando ainda no campo da política tributária, fazem contratos para estabelecer planos e
programas de incentivos fiscais, procurando estimular a construção civil ou a instalação de
novas indústrias em troca de isenções e reduções de tributos municipais.
Normas tributárias imobiliárias de uso e ocupação do solo fazem parte dos
regulamentos que ordenam a utilização de infra-estrutura física de transporte, saneamento
básico e energia na organização do espaço. No Brasil, ao nível urbano, convivem as
legislações e a clandestinidade. As leis de zoneamento e os códigos de edificações são
burlados pela elite e pelas classes de baixa renda, pois, a regulamentação, ao exigir padrões
elevados de urbanização, faz com que loteadores e construtores trabalhem entre as linhas do
investimento e da especulação, e as classes de baixa renda partam para a autoconstrução.
Na atualidade, o que ocorre é que os municípios estão concedendo isenções e/ou
reduções para os proprietários e capitalistas que se disponham a aplicar suas rendas. Assim,
como observa Fernandes “encolhe a capacidade de investimento do município, à medida que
cresce a oferta de benefícios e incentivos à iniciativa privada” (2001, p.38). A solução está na
privatização dos serviços públicos e na conversão das atividades locais que recuperem o
equilíbrio fiscal. Estas atividades intensiva de capital geram valorização do solo, e
consequentemente, maior arrecadação municipal.
Segundo Cândido Malta, os custos sociais e econômicos da urbanização estão
relacionados com as regras que ordenam a densidade de uso e ocupação do solo urbano, e
com o processo imobiliário de produção e consumo. A desigual distribuição destes custos
pode ser alimentada por políticas públicas, que ao abrir novas áreas com estrutura viária
expande novas áreas para a elite. Em Recife elas, localizadas em orlas marítimas, foram
inicialmente apropriadas como segundas residências e lotes para reserva de valor, conforme
palavras de Bitoun. Esta lógica interna de segregação também está acontecendo em Belo
Horizonte, onde a distribuição espacial desigual apresenta áreas urbanas informais - favelas,
invasões, loteamentos e condomínios clandestinos – sem assistência direta do setor público e
sem o direito à propriedade.
Villaça explica que as classes sociais têm acessos diferenciados aos diversos pontos do
espaço urbano e que a centralidade está “na possibilidade de [as pessoas] minimizarem o
tempo gasto e os desgastes e custos associados aos deslocamentos espaciais de seres
humanos” (1998, p. 242). Obviamente, são as classes mais abastadas que produzem espaços
para si com melhores condições de deslocamento. A simples presença destas classes em
bairros com infra-estrutura aliada a projetos de expansão viária atrai investimentos para estas
áreas. É o que aconteceu na cidade de São Paulo, na região da marginal do rio Pinheiros,
onde, entre 1985 e1999, foram viabilizados empreendimentos a cargo da iniciativa privada
com a colaboração da Prefeitura Municipal de São Paulo, que implantou projetos viários e de
urbanização através do instrumento urbanístico da operação urbana, sobretudo na gestão
Maluf (1993-1996): “...é notório os investimentos dessa gestão em projetos viários na região
da marginal do rio Pinheiros, área de grande dinamismo imobiliário e de concentração de
camadas de alta renda, em detrimento de outras zonas menos privilegiadas da cidade e,
principalmente, em detrimento da área social” (Bonfim & Nobre, 2002, p. 63).
Como as intervenções do setor público podem ser legitimadas e como controlar a
valorização e a especulação imobiliárias se o que é bom para as empresas é também bom para
a cidade? O que chama-se “clima de negócio” entra em conflito com a codificação de
políticas locais e regras flexíveis de negociação. Jessop (1998) citado por Scott et al., coloca
que “sem um alto grau de responsabilidade, as iniqüidades sociais locais (na forma de
disparidades de renda e bem-estar, acesso diferencial ao poder local disparidade na provisão
de bens e serviços públicos entre áreas diferentes dentro da cidade-região, etc.) criadas pela
busca de eficiência estarão prontas a conduzir ao conflito social e à instabilidade” (2001,
p.20).
8.1 Planejamento urbano: instrumento de ordenação territorial?
O planejamento urbano, historicamente, sempre se posicionou de certa forma
impotente, no sentido jurídico-institucional, para solucionar os problemas de carência de
serviços públicos, bem como regulamentar o uso e ocupação do solo.
Durante duas décadas do século XX, mais especificamente entre os anos 50 e 70, a
população metropolitana no Brasil triplicou, saltando de 3 milhões para 8,5 milhões de
habitantes. São Paulo, no final da década de 70, tinha 8.137.421 habitantes; o Rio de Janeiro
possui então 7.082.404 habitantes. Este crescimento vertiginoso, embora diferenciado de
acordo com as regiões brasileiras, contribuiu para que o Brasil chegasse aos anos 90 com uma
taxa de 75% da sua população vivendo nas cidades e metrópoles.
A nova escala urbana intra-urbana, metropolitana e regional enfrenta um processo
desordenado de crescimento, e os planos diretores, com suas leis de zoneamento não
encontram respostas imediatas para a contextura da mundialização da economia.
Compreender melhor o processo socioeconômico no qual as cidades são produzidas e
consumidas permite analisar a problemática urbana sob um olhar mais crítico. O planejamento
urbano tem um papel muito significativo neste momento, pois ele pode assegurar aos
moradores das cidades uma legislação urbanística que combata os interesses especulativos e
incentive os investimentos produtivos. Cândido Malta afirma que “uma cidade sem
planejamento é o caos. São Paulo não tem falta de planejamento. Tem falta é de sua
obediência. Mudar casuisticamente o zoneamento, mesmo que se pague por isso, é instituir o
caos com ares de ação social” (Campos Filho, 2003, p. 219).
No Estatuto da Cidade (2001) está a institucionalização do planejamento urbano e de
planos diretores na forma de um instrumento regulador do mercado imobiliário urbano, e a
propriedade precisa cumprir sua função social. Um processo contínuo de aperfeiçoamento das
decisões, o planejamento urbano não pode ser confundido com estudos setoriais para resolver
problemas específicos. Desenvolvimento urbano, aprimoramento institucional e criação de
instrumentos de controle são acompanhados por diferentes taxas de crescimento demográfico
e econômico. Cabe aos municípios a atualização de suas estruturas administrativas e
legislações urbanas para atender as demandas por serviços como saneamento e transporte, e
habitação, para as populações.
A urbanização como processo social acontece no desenrolar de atividades promovidas
pelos agentes que produzem, consomem e se apropriam do espaço constituído. Essas relações
estão atreladas à divisão internacional do trabalho e à alocação do capital financeiro. Inseridos
neste contexto, os atores interagem com grandes interesses econômicos imobiliários que
tendem a agir dentro da lógica de lucros e sobrelucros. Cândido Malta afirma que as cidades
não podem prescindir de regras que organizem os usos dos espaços urbanos, e destaca a
necessidade de que os princípios da igualdade da lei sejam válidos para todos os cidadãos.
Uma importante ferramenta que faz parte da sistemática do planejamento urbano, é o
Plano Diretor, considerado pela cultura administrativa das prefeituras, e pelo Estatuto da
Cidade, como um meio para viabilizar a implementação de políticas públicas. A colocação em
prática do planejamento como técnica de gestão nem sempre visa a organização de todo o
espaço socialmente estruturado. Existem prioridades, geralmente ditadas pelas necessidades
do capital. Em função do comportamento do consumo e da produção, nasce uma lógica de
ordenação do espaço urbano.
Todavia, pela não capacidade do sistema de incluir todas as pessoas no sistema
produtivo, as cidades vão sempre conviver com formas desordenadas de ocupar o espaço, e
suas conseqüências comportam quadros de congestão de áreas que acarretam elevação dos
custos de melhorias e conservação do capital social existente. Cândido Malta acredita que a
falta de controle do processo imobiliário gera condições de vida de baixa qualidade. Quando
as esferas do planejamento urbano e nacional reestruturarem o sistema de decisões,
elaborando estratégias ao nível metropolitano, com suporte jurídico, haverá um aumento de
garantias para a solução de problemas conflitantes.
Neste momento de mundilização da economia, restrita ao mundo dos negócios, em
que as intervenções públicas têm por objeto mais a geração de empregos do que o combate às
desigualdades no meio ambiente urbano, o planejamento territorial e urbano tornou-se uma
prática bastante complexa. As administrações municipais atentas ao papel produtivo dos
trabalhadores, deixam de criar medidas apropriadas para as questões referentes à educação e à
moradia. Bitoun diz que o que faz a especificidade do urbano nordestino “é a sua própria
impotência em administrar o seu território municipal” (2003, p. 58), encontrando dificuldades
para regular o uso do solo e controlar a especulação fundiária e imobiliária.
Planos diretores articulados ao desenvolvimento social e ambiental precisam analisar
os problemas de gestão territorial nas áreas urbana e rural, evitando a reprodução de modelos
históricos de expansão urbana dos anos sessenta e setenta do século XX, com generalizações
inadequadas e propostas rígidas para a organização física, e com pouca participação da
sociedade civil.
A reestruturação produtiva que acontece nas grandes cidades brasileiras promoveu
mudanças no trabalho organizado na década de 1940, pelas leis trabalhistas. O mercado com
trocas descentralizadas acentuou as relações informais do trabalho impondo desafios para as
administrações públicas no sentido de criar planos urbanísticos inovadores e estratégicos que
interfiram na promoção econômica. As medidas de cooperação pública e privada ainda não
avançaram para além do nível de prestação de serviços, a ponto de criar sistemas de gestão
expressivos intergovernamentais que acompanhem a crescente pressão das demandas sociais.
9. A industrialização dentro das cidades
A redução da participação da indústria no desenvolvimento econômico e a ampliação
do setor serviços intensificaram as necessidades de comunicação entre os centros
metropolitanos e suas conexões internacionais. Nas aglomerações do sudeste e sul do país, a
estrutura produtiva é mais diversificada e não está diretamente sujeita aos ciclos econômicos
conjunturais. Cidades paulistas como São Caetano do Sul e Santo André passam por um
processo de substituição crescente da indústria pesada pelo comércio e serviços, e São
Bernardo do Campo, Diadema e Mauá preservam suas características de cidades
essencialmente industriais.
Hoje, as questões urbanas, envolvidas com as diversidades apresentadas pelas
atividades econômicas dentro das cidades, movimentam as metrópoles regionais – Manaus,
Belém, Goiânia, Campinas -, metrópoles nacionais – Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza,
Brasília, Curitiba, Recife, Porto Alegre – e metrópoles globais - Rio de Janeiro e São Paulo -,
no sentido de administrar a dicotomia concentração e desconcentração que constrói novos
espaços economicamente dinâmicos.
As alterações nas legislações urbanísticas ficam limitadas uma vez que os poderes
públicos estão negociando com capitais de grande mobilidade que descartam o papel indutor e
fomentador do desenvolvimento urbano. Cãndido Malta fala de “estranhas alianças” que são
trocadas entre os poderes público e privado que apoiam processos sociais produtores de
pobreza e degradação ambiental:
O que vimos na aprovação do Plano Diretor para a cidade de São Paulo é a utilização dessa
estranha aliança. A moeda de troca utilizada na madrugada, para a obtenção de uma desnecessária
quase unanimidade de votos dos vereadores, foram mudanças especulativas de três tipos: criação de
corredores de serviços, que logo desejarão ser de comércio, dentro de zonas estritamente residenciais,
o que talvez dobre o valor das propriedades; a transformação de zonas estritamente residenciais de
grande qualidade ambiental em áreas de comércio e prédios e o mesmo em áreas protegidas de
mananciais de água, duplicando em alguns casos e quadruplicando em outros o seu valor, na maioria
dos casos produzindo simultaneamente anistia de usos irregulares para cidadãos de muito alto poder
aquisitivo, que provavelmente se consideram acima da lei (2003, p. 205, 206).
Luiz César de Queiroz Ribeiro, UFRJ/IPPUR, acredita as desigualdades sociais estão
marcadas pelo processo de globalização, e a inserção das cidades nele acontece por meio do
mercado. Este paradoxo fragmenta as políticas e o planejamento urbano de médio e longo
prazos. As metrópoles estão carentes de um sistema político-administrativo que articule
crescimento econômico, justiça social e sustentabilidade.
9.1 O caso da indústria de alimentos de Ponta Grossa
No território urbano da cidade de Ponta Grossa, foi definido pelo zoneamento uma
área industrial para a instalação de empresas do setor privado. Nesta determinada área, cujo
uso era estritamente industrial, terrenos vazios ao lado de indústrias existentes, foram sendo,
aos poucos, ocupados por residências. O caso selecionado para estudo foi a legalização de um
loteamento residencial, em zona industrial, localizado ao lado de uma indústria do ramo de
alimentos localizada na cidade de Ponta Grossa, no Estado do Paraná. As repercussões deste
desrespeito às leis urbanas trouxeram conflitos entre as esferas pública e privada, e prejuízos
para os moradores que ocupam atualmente a área e aqueles que ainda vão ali instalar-se com a
legalização do empreendimento, e para o meio ambiente urbano que fica agredido com todos
os tipos de poluição, ameaçado a reduzir a qualidade de vida para as populações.
A cidade de Ponta Grossa, com uma economia de base predominantemente agrícola,
conheceu a chamada industrialização tardia a partir da década de 70. Porém, foi apenas nos
anos 90, que a cidade adquiriu a infra-estrutura necessária para atrair indústrias importantes
para a região, não só por sua excelente localização em relação a capital paranaense, mas
também pela proximidade com o Porto de Paranaguá, com via férrea para escoamento da
produção e um complexo rodoviário interligando as principais regiões do sul do país. Aliado a
isto, a eficiência e a disponibilidade de sua mão-de-obra, por contar com uma universidade de
destaque no Estado e mais tarde sendo incrementada com a instalação do Centro Federal de
Educação Tecnológica (CEFET), está a oferta de profissionais especializados para as
indústrias.
Seguindo uma tendência mercadológica, dada a inexistência de um plano urbanístico e
legislação de parcelamento e uso do solo para a cidade, algumas indústrias instalaram-se em
áreas residenciais, onde havia oferta de infra-estrutura, como as seguintes: Cotonifício
Kurashiki do Brasil, Monofil, Café Lontrinha entre outras. A maioria destas indústrias de
pequeno porte instalou-se no início da década de 1970 em diversas áreas mais distantes do
centro principal. Atualmente, com a expansão urbana, estabelecimentos comerciais e prédios
residenciais desenham o perfil do tecido urbano do centro da cidade. Todavia, o destaque da
centralidade, sempre foi dado à Companhia Sulina de Bebidas Antarctica, que por se tratar de
um das primeiras fábricas, vinda nos anos 40, situada em uma área que oferecia boas
condições de produção. Ocupando praticamente um quarteirão, e usufruindo das redes de
água, luz e transporte, a fábrica funcionou por mais de 50 anos, sem causar conflitos de
localização. Tais condições configuraram um quadro de benefícios fiscais para a cidade,
inserindo-a também em um calendário nacional de eventos, com a promoção de festas, que
atraía um público de aproximadamente 100.000 visitantes em 10 dias de programação. Tais
eventos traduziam em valor as vantagens locacionais, priorizando a propaganda de um dos
produtos fabricado exclusivamente na cidade.
Enquanto o capital e as mercadorias circulavam, os proprietários ocuparam o espaço.
Contudo, à medida que os desgastes e custos associados aos fator da localização cresceram,
retiraram-se os investimentos. Os problemas referentes às estratégias empresariais
provocaram uma crise, desencadeada pela falta de condições de expansão, pois existiam
limites prediais e uma estrutura de produção antiga. Os altos custos para modernização, a
proximidade da fábrica de Ponta Grossa com a fábrica de Curitiba, pertencente ao mesmo
grupo de empresários, que já procurava estratégicas de mercado mais lucrativas, foram alguns
dos fatores que conduziram à desativação da unidade. Além disso, o fato de estar localizada
no centro da cidade, junto a residências e lojas comerciais, provocando os típicos problemas
como ruídos, mal cheiro e movimentação de caminhões acabaram incentivando a decisão. A
fábrica encerrou suas operações em 1991, com a demissão de seus mais de 100 empregados.
O prédio foi demolido, dando lugar a pequenas lojas comerciais, seguindo a tendência de um
zoneamento existente nas ruas adjacentes.
Este caso da cervejaria Antarctica ilustra as dificuldades provocadas pela falta de um
planejamento urbanístico, mas, por outro lado, mesmo que ele existisse, resta a dúvida se ele
seria realmente cumprido. Os poderes econômicos hegemônicos fazem ajustes a cada vez que
interesses antagônicos aparecem, e criam-se novos arranjos institucionais para organizar a
relação capital-trabalho.
Hoje a cidade de Ponta Grossa conta com um zoneamento que define uma área
industrial, denominada Distrito Industrial, situada no entorno de sua principal rodovia, a BR
376 que liga Curitiba ao norte do Estado do Paraná. Criada na gestão do prefeito Jocelito
Canto (1997-2000), a fragmentação territorial permitiu a instalação de indústrias de grande
porte como: Tetrapak, Continental, Bunge Fertilizantes e Bunge Alimentos, Masisa e entre
elas a indústria de alimentos que será analisada.
A indústria analisada instalou-se na zona industrial em 1996 com investimentos na
ordem de US$ 150 milhões gerando 170 empregos diretos e 350 indiretos. O terreno para
instalação da fábrica foi adquirido através de compra da Tocantins Administradora de Bens
Ltda. com sede na cidade de Curitiba. A fábrica está entre os maiores contribuintes do
município em ICMS, responsável por cerca de 50% do total da arrecadação, segundo os dados
de 2001. Desde sua inauguração até dezembro de 2001, a empresa recolheu aos cofres
estaduais R$190 milhões e este montante vem crescendo ano a ano, segundo informações da
imprensa. O técnico da Receita Estadual diz que as empresas comerciais aumentaram suas
vendas, mas que “ainda assim, o setor responsável pela maior arrecadação em Ponta Grossa é
a indústria” analisada (Jornal Diário dos Campos, 20 de fevereiro de 2002, p. 7A). A empresa
está entre as 20 maiores contribuintes do Estado do Paraná.
Em agosto de 1998, empreendedores imobiliários, no intento de aumentar seus lucros,
transformaram áreas definidas como de uso industrial, localizadas próximas à empresa
estudada nesta monografia, em áreas parceladas para uso residencial. Ao lado da indústria de
alimentos, existe uma área de 94,2 mil m2, de propriedade da loteadora Tocantins, que deveria
atender as necessidades de ampliação da produção da indústria analisada. Os conflitos
começaram quando a empreendedora entrou com um pedido de conversão do terreno vago,
destinado para fins industriais, para uso residencial. Este pedido foi aprovado pela Prefeitura
através da lei municipal nº 5.995 na gestão do prefeito Jocelito Canto. Segundo os jornais, o
decreto autorizando o loteamento não chegou a ser assinado. Ao assumir o prefeito Péricles de
Holleben Mello, o decreto foi assinado e a pedido do vereador João Luiz Kovaleski o terreno
voltou a condição de industrial.
A administradora do imóvel, com essa concessão legal, poderia estar vendendo a área
através de parcelamento em pequenos lotes residenciais. Esta prática, que pode ser
comparada, rusticamente, com a venda no varejo e no atacado, permite que o loteador
aumente seus ganhos, prejudicando o que se chama “as economias de urbanização”, ligadas à
problemática da concentração industrial. A empreendedora Tocantins promoveria a
valorização imobiliária ao elevar os preços fundiários, através de incentivos recebidos do
setor público. O quadro a seguir, tomando como base uma área de 100.000 m2 aponta como é
possível triplicar um valor imobiliário abolindo restrições regulatórias:
Quadro l – valores dos terrenos conforme seus usos
VALOR
TIPO DE ÁREA
R$ 65.000,00
Área rural
R$ 400.000,00
Área industrial - sem mercado
R$ 1.500.000,00
Área residencial – loteamento
FONTE: Jornais locais.
Analisando o quadro vê-se como seria lucrativa a conversão, visto que o potencial de
clientes para a área industrial, naquele momento, era pequeno, e o valor de mercado da área
vendida sem parcelamento, muito inferior ao loteado.
A indústria analisada ficou preocupada com as decisões da administração municipal.
Previam-se transtornos na área, tendo residências tão próximas à fábrica. Os empresários que
manifestaram-se contra a conversão, procuraram debater o problema com vários órgãos como
as Secretaria Municipais de Indústria e Comércio, Finanças, Planejamento, Instituto de
Planejamento Urbano, vereadores além da Federação das Indústrias do Estado do Paraná
(FIEP), Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e Sindicatos. Estiveram envolvidos também
Rotarys e Lions Clubes, Associação Comercial e Industrial de Ponta Grossa (ACIPG), jornais
e rádios locais.
A preocupação do governo municipal girava em torno do decreto assinado e dos
investimentos que poderiam aumentar as arrecadações da indústria analisada. A diretoria da
empresa descartaria futuros investimentos numa unidade comprometida por problemas
ambientais com a comunidade. Péricles, conforme as notícias jornalísticas, vetou o projeto do
vereador Kovaleski e com isso a indústria analisada desistiria da expansão e até poderia
fechar a unidade. Semelhante fato aconteceu em outras cidades do Estado de São Paulo
(Ribeirão Preto) e de Minas Gerais (Divinópolis), onde as insatisfações por parte dos
moradores foram inevitáveis. Por isso, a empresa disse que “se a área não for industrial, eles
não investem. O diretor teria explicado que em outras ocasiões a cervejaria já teve problemas
com unidades muito próximas a áreas urbanas” (Jornal Diário da Manhã, 2 de novembro de
2002, p. 9).
As justificativas da indústria de alimentos declaradas ao governo municipal foram: a
fábrica opera 24 horas por dia, causando ruídos provenientes de alarmes de caldeiras,
caminhões, odores decorrentes do próprio processo produtivo além de questões de segurança
como uma explosão de caldeira, fato já ocorrido em outras indústrias da região.
Além disso, a presença de moradias tão próximas à indústria poderia gerar
vandalismo, como já ocorre com a adutora e desarenadora – partes integrantes do processo de
captação de água e despejo de efluentes respectivamente, que se localizam fora dos limites da
fábrica.
Uma primeira solução seria a transformação do local em uma área de transição, com
uma faixa de cordão vegetal visando reduzir impactos ambientais. O terreno da Tocantins
seria utilizado como parque industrial para pequenas indústrias menos poluentes que
interfeririam menos nas habitações vizinhas. O núcleo habitacional Santa Bárbara, que fica
próximo, estaria também isolado da indústria escolhida para estudo nesta pesquisa.
Cogitou-se a desapropriação do terreno, mas o município não dispunha de verba para
tal. A questão levou alguns diretores da indústria a reunirem-se pessoalmente com o prefeito e
o secretário de Administração e Negócios Jurídicos para apresentarem as propostas de novos
investimentos para a fábrica que chegariam a R$ 10 milhões já no primeiro semestre de 2003
com a criação de uma nova linha de produção, dentro das próprias instalações da fábrica,
aumentando sua capacidade de produção, e possivelmente, gerando novos empregos para o
município.
Ao tomar conhecimento das intenções destes novos investimentos na fábrica, o
prefeito solicitou à Câmara Municipal que rejeitasse o seu próprio veto. Na seqüência, ele
apresentou novo projeto estabelecendo que 50% da área mais próxima a fábrica seria
destinada a indústrias de médio e pequeno porte, 25% para construção de uma cerca viva
servindo de barreira verde para redução de impactos ambientais e os 25% restantes para um
loteamento residencial. O acordo foi aceito pelos diretores da empresa em questão, que
apresentaram uma carta à prefeitura com intenções de continuar os investimentos na cidade.
Embora o caso tenha encerrado como um acordo de cavalheiros entre as partes
envolvidas, todo o processo durou cerca de 4 anos. Um período extremamente longo,
sobretudo se a análise for de encontro ao desrespeito às leis urbanísticas e ao zoneamento,
isentando a empresa imobiliária, e todos os agentes envolvidos no caso, de qualquer
responsabilidade pelos prejuízos causados à população e aos cofres públicos. O tempo perdido
com as discussões poderia ser recuperado com a aplicação de penalidades que intimidariam os
infratores, bem como impediria a ação de outros especuladores.
10. Considerações Finais
Até quando será possível contornar as questões de crescimento econômico, social, e
demográfico da sociedade capitalista dentro de padrões que levem em consideração o
desenvolvimento e a sustentabilidade? Parece que as possíveis respostas para os problemas
ainda estão sendo discutidas, em ritmo lento, entre governos nacionais e internacionais, mas
ainda sem muita participação dos representantes das comunidades. As cidades continuam
inchando de maneira tal que já não é mais possível conciliar, a curto prazo, os contrastes entre
os diferentes grupos sociais que convivem com situações de inclusão e exclusão nas grandes
metrópoles. Entretanto, alguns atores da área pública têm debatido e defendido medidas mais
imediatas para contornar as questões de desigualdade através de propostas elaboradas com
base em alterações na legislação brasileira. Estes fatos tendem a repercutir na organização
espacial das cidades, regida por leis de uso e parcelamento do solo, e interferem na ocupação
desordenada do território.
O caso das indústrias e residências em espaços físicos comuns são exemplos de
relações desarmônicas quanto ao uso do solo, pois o odor exalado de muitos insumos no
processo de fabricação, o ruído gerado pelas máquinas e caldeiras, a movimentação e a
poluição produzida pelos caminhões e são motivos de queixas constantes por parte de
moradores dos arredores das áreas onde as indústrias estão instaladas. Em tais proximidades
articulam-se relações conflitantes entre os moradores, por se valerem dos direitos de paz e
tranqüilidade que lhes são cabidos por lei, e as empresas, por alegarem estar promovendo o
bem-estar social como geradora de empregos, impostos além da própria produção de bens e
serviços.
Muitas empresas se encontram ameaçadas por estarem dividindo espaços com
residências no meio ambiente urbano. Os conflitos aumentam na medida em que as
populações crescem e ocupam áreas de risco, obrigando, por vezes, que ela convivam com
situações que denigrem a qualidade de vida, quando não ocorre, em determinados casos, o
fechamento de indústrias poluidoras.
Os gestores da empresa temem que os loteamentos e as construções de conjuntos
residenciais próximos às fábricas interferiram nos investimentos provenientes de seus
acionistas, e haja a incursão de processos judiciais decorrentes de reclamações de moradores.
Por isso, é importante que hajam leis, e que elas sejam sempre discutidas e revistas pelos
poderes públicos e pelos representantes das comunidades, para que permaneça para os
moradores o direito a viver com qualidade e segurança, e para as indústrias a tranqüilidade de
produzir e circular suas mercadorias. .
Tais questões que envolvem o uso e o parcelamento do solo merecem estudos e
pesquisas que possam colaborar para melhorar a compreensão das relações que se travam
entre empresas e comunidades. Torna-se, cada vez mais relevante estudar e divulgar os
projetos que tramitam nas Câmaras Municipais, a fim de equilibrar os benefícios, os prejuízos
e os impactos decorrentes da instalação e operação de empresas em determinadas regiões,
mobilizando diversos segmentos sociais em defesa do direito à cidade. Não é possível admitir
que as decisões fiquem restritas ao poder municipal, sem sequer passar por uma consulta
democrática aos representantes da população sobre o direcionamento das políticas urbanas.
As Prefeituras dispõem de diversos recursos para estabelecer um sistema de
agravações fiscais, capaz de punir os proprietários de terrenos não edificados, de controlar o
parcelamento de áreas, e de negociar com os representantes das instituições envolvidas com a
cidade. A oferta de terrenos urbanizados e destinado a construção imediata, quando
disponíveis para venda, tende a amenizar os conflitos de parcelamento em áreas mais
periféricas já definidas para indústrias, viablizando para os futuros compradores adquirir
terrenos longe de fábricas.
A produção no mercado capitalista atravessa transformações estruturais, e no cenário
nacional, muitos parques produtivos estão deixando os locais onde houve crescimento dos
custos, e estão se remodelando e se dirigindo para regiões com oferta de benefícios associados
ao fator da aglomeração. No caso da indústria de alimentos analisada nesta pesquisa, nota-se o
interesse dela continuar instalada na região de Ponta Grossa, pois ela administra sua produção
dentre de economias de escala, favorecida pela urbanização, e faz uso da infra-estrutura viária
que permite a circulação dos produtos. Todavia, as relações de produção e as forças
produtivas também são definidas em suas relações com o desenvolvimento sustentável. A
qualidade ambiental é responsabilidade de todos, e depende de práticas que legitimem e
legalizem as ações para a sustentabilidade: produzir com a preocupação de respeitar políticas
ambientalmente sustentáveis.
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