INDIANISMO, NEOINDIANISMO, PÓS-INDIANISMO:
Figurações e fulgurações do indígena na historiografia literária brasileira
Roberto Mário Schramm Jr. (UFSC)
Havia já uma literatura brasileira, essa 'arvorezinha impaciente' como
escreveu Raul BOPP (1998, p. 163), antes mesmo de haver o Brasil? E quanto aos
povos que habitam esse naco de terra caída, essas florestas das terras baixas? E
quanto a esses povos ditos ameríndios? Esses povos ágrafos, que não tinham letras,
rios escondidos sem filiação. Eram eles literatos sem letras, no que narravam e
cantavam suas histórias nas fogueiras acesas, em incontáveis idiomas diferentes,
alguns dos quais subsistem, persistem, resistem. Essa constelação de nações, falas
idiomas e historias que se entrelaçavam, perambulando pelo Peabiru. Essas poéticas
selvagens, essa pré-história de textos, alguns dos quais preservados nas fogueiras
acesas durante os séculos; e que se vão desvelando, se disseminando nas línguas
europeias dos missionários, etnólogos, e aventureiros. Seus costumes selvagens,
entretanto, percebidos desde a perspectiva de quem tenha escapado por um triz de
seus caldeirões de canibais.
A fórmula antropofágica mesma – que tão produtiva se mostrara no manifesto
de Oswald de ANDRADE (1928:3) – a nos sugerir que já tínhamos 'tudo' afinal, (tudo =
surrealismo, comunismo), a nos sugerir que éramos modernos quando selvagens.
Cassiano Ricardo expressaria isso no que analisava o indianismo de Gonçalves Dias:
“Quem fala índio fala Rousseau, (…) quer dizer Revolução Francesa, quer dizer
igualdade, quer dizer Revolução Russa” (1964:13). Ignoremos a bagunça de
Cassiano, e limitemo-nos ao legado de Oswald e à essa agencia antropofágica que
ainda hoje nos assombra, esse modernismo que é um não-modernismo, uma falange
canibal que, devoradora das modernidades europeias, quer fazer com o próprio
modernismo aquilo que os Caetés fizeram com o bispo Sardinha, assimilando suas
possibilidades no ato antropofágico. Esse modernismo de tupis or not tupis, de
macunaimas e cobras noratos – não seria ele mesmo um índice, um sinal, uma
evidencia de que a literatura brasileira antecede os brasileiros, antecede a lusofonia,
precede e prescinde do Brasil, mas mesmo assim, condiciona, invade, assombra e se
interpõe sobre um conjunto significativo de obras constituintes do cânone literário que
a historiografia tradicionalmente nos apresenta.
Não poderei discutir essas obras aqui em grande detalhe. Tampouco poderia
apresentar uma lista extensiva das grandes obras dessa literatura brasileira lusófona
que se dedicaram, de alguma maneira, a aludir àquela outra sombria e oculta
literatura, não lusófona, que se apercebia do conquistador europeu, mas que era, para
ele, para esse invasor, inescrutável e imperceptível em sua 'selvageria'. Daquelas
culturas e povos, todavia, surgiu essa grande personagem decisiva e onipresente nas
épocas literárias a partir do romantismo. Refiro-me, claro, ao índio enquanto
personagem literária, e a razão pela qual eu dizia que não poderia aqui aventurar-me a
inventariar suas aparições nos últimos trezentos ou quatrocentos anos, se deve a
imensa quantidade de romances, peças, novelas poemas, e ensaios onde figuram,
inicialmente, o 'índio' enquanto personagem literária e, mais recentemente, o indígena
enquanto 'questão'. Tomo a liberdade, contudo, de referir, aqui e ali, certas obras que
eu considero mais significativas para o meu argumento. Existe um argumento, aqui, a
propósito. Ele diz respeito ao fato de que, se por um lado, as poéticas indígenas que
queremos enfocar, figuram e fulguram nas obras dos escritores lusófonos que a elas
se dedicaram; por outro lado, é também verdade que tais poéticas foram obliteradas,
caídas e subtraídas pelo grande projeto lusófono da literatura brasileira de expressão
portuguesa. Quero dizer que, a despeito dos Uirapurus, Ubirajaras, Peris,
Macunaimas, e Maíras; a despeito de nossas lusófonas bem ou mal intencionadas
tentativas de apreender as poéticas indígenas por meio de seu sujeito e de seu
fabulário; que, a despeito disso tudo, nossos melhores esforços fracassam, porque
eles próprios lusocêntricos, eles mesmos agentes da obliteração, do apagamento dos
idiomas e das nações que conceberam aquela literatura brasileira que precede à
literatura brasileira.
A nossa historiografia literária tradicional é hostil a qualquer manifestação que
desafie o seu lusocentrismo militante. Essa hostilidade talvez encontre eco na opinião
de Antônio Cândido, sobre não se poder aceitar a opinião de Capistrano de Abreu
acerca do indianismo, “(...) para quem ele (o indianismo dos românticos) possui raízes
populares, dando forma a certas tendências que, no seio do povo, opunham ao
português, o índio, em sentido nativista. A sua raiz” – sentenciava Antônio Cândido –
“é erudita” (2006:91). Por outro lado, essa erudição mesma, ao mesmo tempo, é
constituída por um conjunto de obras que não se limitam a personificar o sujeito
indígena, mas que também evocam esses outros falares dos troncos linguísticos
nativos, vide Anchieta, Durão, Alencar e Gonçalves Dias, mas vide também
Sousândrade, Raul Bopp e Darcy Ribeiro. Não seria problemática essa relação? Na
historiografia literária Brasileira, afinal, são abundantes os exemplos de apropriação de
diversos elementos (lexicais, inclusive) das culturas indígenas e, em contrapartida,
essa historiografia literária é incapaz de reconhecer (i) brasilidade nas produções
autóctones que não se tenham composto em português e (ii) literariedade ou
poeticidade próprias nas manifestações culturais desses povos no que se refere à sua
oralidade performática e visual, à escritura corporal, à gramatica de seus cocares e ao
ruido significante dos seus maracás.
O índio não fala sua língua na literatura brasileira. Fala o português ruim dos
índios do posto que recebem o padre Nando no terceiro capitulo do Quarup (1980), ou
o alto português do I Juca Pirama (1851), a extremada eloquência dos timbiras, ao
ritmo metralhado da célula rítmica anapéstica gonçalvina. Mas não fala bororo, não
fala guarani, não autora livros em seus próprios idiomas. Se o fizesse, como começa a
fazer, estaria automaticamente excluído dessa historia literária brasileira, com de fato
sempre esteve. As nações indígenas estão exiladas em seu próprio território,
alienadas em um espaço linguístico que ainda não lhes reconhece como agentes
poéticos ou atores literários.
Naturalmente, a emergência de escritores e escritos indígenas bilíngues a
partir do final do século XX demarca os limites desse modelo de historiografia literária
lusocêntrica. Se partilharmos dessa perspectiva, fica ainda a pergunta: o que faremos
desses textos emergentes? Textos de performances orais, transcritos nessas línguas
que não compreendemos, mas que foram (as línguas) não apenas impactantes nessa
língua que falamos e escrevemos no brasil, como também já eram faladas nas terras
baixas ameríndias muito antes de chegarem os portugueses e espanhóis, muito antes
de se estabelecerem as fronteiras e países do nosso continente. Ademais, quem é
esse 'nós', e o que é esse 'nosso'?. Nós quem, cara pálida? Ora, a literatura indígena
é qualquer coisa de muito antiga (para 'eles') e de muito nova (para 'nós'). É um
fenômeno novo do ponto de vista de seu registro bilíngue, efetuado por diversos
narradores que dominam igualmente o português e a língua de seus avós e bisavós.
Mas é antiga, na medida em que literalmente, canta a sua aldeia, dá voz ao idioma da
tribo, e narra os mitos e lendas cultivadas pelo seu povo. Essa literatura é também
indígena quando urbana e moderna, na medida em que escrita, em português mesmo,
por índios urbanos e literariamente inclinados como Daniel Munduruku e Kaká Jecupé.
Mas esses casos também são complexos, e representam uma armadilha para essa
nascente figura do intelectual indígena, do escritor indígena. Lúcia SÁ (2004:278)
explica esse problema com um outro paradoxo, que eu adapto aqui, para nossos
propósitos, e da seguinte forma: Se um 'índio' se torna 'intelectual', ele perde a sua
'indigenidade' – ele é contaminado pela lição de escritura, ele perde algo de sua
autenticidade. Torna-se parte integrante daquela historiografia lusocêntrica. Se essa
literatura, por outro lado, – e agora eu divirjo de Lúcia Sá – é produzida e registrada no
idioma indígena e reconta os mitos tradicionais daquele povo, sua autenticidade tornase garantida e sua autoria se coletiviza ainda que claramente mediada por um
cantador, que é dono e autor desse canto. Ocorre todavia, que essa poética nos será
apresentada como literatura estrangeira, literatura que demanda tradução para o
português. A literatura do indígena, nesse sentido, não é ela mesma indígena em
relação ao seu território de enunciação – eis a expressão máxima da inadequação de
'nosso' lusocentrismo, na medida em que nos obriga a considerar como exógena e
estrangeira a manifestação cultural de um grupo de nações que os próprios textos
lusófonos da literatura brasileira nos ensinaram a consideram como originários, como
fundamentalmente autóctones e simbólicos dessa nação. Quero dizer: aquela idéia de
que, em sua mais entusiástica formulação, seriam os índios 'os verdadeiros
brasileiros', os 'brasileiros puros', os 'bons selvagens', a efígie desa grande nação
brasileira. Em suma: ou escrevem em português e deixam de ser índios, ou narram
seus mitos (a escrita é problemática e suspeita, afinal) em sua própria língua e são
excluídos da literatura brasileira. Será conveniente que se pergunte, quando, afinal,
instituirmos o estudo dos idiomas e das poéticas indígenas nas nossas universidades,
qual departamento lhes dará acolhida. O Bororo será, afinal, uma língua vernácula ou
uma língua estrangeira? Os futuros bacharéis em letras e culturas indígenas
precisarão se confrontar com o caráter fronteiriço e incômodo de sua disciplina, em
termos muito semelhantes aos que agora estamos discutindo.
Aventuramo-nos agora na história do futuro. Vamos imaginar que no século
XXII uma próspera e democrática nação brasileira tenha se resolvido a rever o seu
lusocentrismo institucional. Num choque de inclusão, esse estado brasileiro reconhece
o seu multilinguismo, aceita, por exemplo que os falares tradicionais dos povos
indígenas que habitam o seu território sejam reconhecidos nos instrumentos dos
dispositivos legais, de modo que, pelo menos, todas as publicações governamentais
pertinentes a esses povos devem ser traduzidos nas suas próprias línguas. Vamos
supor que, durante esse nosso século XXI, tenhamos tido algum sucesso em trazer
para nossas instituições de ensino superior o ensino e a pesquisa das centenas de
milhares de falares que encontramos em nosso território. Imaginemos que os poucos
recursos que tivermos a nossa disposição foram bem empregados no sentido de criar
uma demanda e gerar aquela rede de cursos de graduação que formasse os
bacheréis em letras indígenas, letrados em suas próprias letras. Naturalmente, a
disciplina seria orientada, mas não exclusiva, aos herdeiros desses falares: uma
primeira geração massiva de intelectuais indígenas, 'indígena' referindo muito mais
uma perspectiva, ou uma multiplicidade de perspectivas, do que um índice étnico.
Pois bem, podemos imaginar milhares de comos e porquês a partir desse exercício de
futurismo, esse cenário muito otimista, mas que eu imagino possível, e que pode estar
em curso (Pensemos na importância que a LIBRAS assume hoje em dia, e de como
pareceria impensável a ascensão do estudo e pesquisa da Língua de Sinais há
poucas décadas). Apenas um aspecto, entretanto, dessa nossa futurologia que me
interessará doravante. Porque eu fico imaginando como seria estudada a disciplina de
história da literatura brasileira na perspectiva do estudante de letras indígenas – o
olhar sobre o lusocentrismo desses textos canônicos pelas perspectivas multilíngues
desses novos leitores, e dessa nova instancia de leitura.
Partimos do adágio de Roy WAGNER (1981:33) – nós somos os xamãs dos
nossos significados. Sejamos ainda mais: sejamos agora os xamãs dos significados
alheios. Estou partindo da imaginação de uma perspectiva indígena, que avista a
literatura brasileira daquela maneira problemática, de inclusão e exclusão, de se estar
fora e dentro dessa literatura. Eu imagino que o primeiro elemento relevante aos meus
olhos emprestados de estudante ou professor dessa literatura brasileira – diante da
qual eu sou brasileiro e estrangeiro ao mesmo tempo – seria justamente as
reapresentações que as obras desse cânone literário brasileiro fizeram do 'meu' sujeito
indígena. Desse ponto de vista, o indianismo literário dos românticos acaba por se
tornar o centro dessa literatura brasileira. As representações do indianismo romântico,
portanto, representam a época decisiva e o principal foco das preocupações dessa
perspectiva de estudos que eu tento assumir. Para o estudante indígena de literatura
brasileira não existirá problemática mais interessante ou decisiva do que as
apropriações apassivadas, esquemáticas, redutoras, heroicizantes, que os escritores
românticos operaram na figura do índio brasileiro, aquela multiplicidade de nações que
é comprimida num conceito homogeneizante de índio e indígena.
Dai emerge a primeira tarefa de critica e pesquisa, que pode visar exatamente
a desconstrução desse sujeito indígena, dos bons e maus selvagens que se vão
sucedendo no seculo XIX. Tal tarefa não precisa esperar pelo século XXII. Ela é uma
tarefa para a nossa geração de pesquisadores, e ela consiste em ler a contrapelo essa
literatura indianista. Trata-se de partir dos textos fundadores, pré-românticos, mas
mesmo assim, indianistas; os épicos de José Basílio da Gama e de Santa Rita Durão.
De que maneira o indígena é introduzido na historiografia literária Brasileira, de que
modo o maquinário mitológico (ou sua ausência) nessas epopeias se relaciona aos
mitos dos povos contra os quais investiram o europeu e a versificação europeia. Quem
eram eles, esses povos ocultos pela oitava rima dessas epopeias, de que modo eram
obliterados de sua língua, qual a consistência do vocabulário que esses préromânticos empregavam? Mário FAUSTINO (2003), por exemplo, nos indica uma
direção que eu considero promissora, no que revisita os épicos cometidos por S. R.
Durão (Caramuru) e J. B. da Gama (Uruguai). Faustino destaca passagens
inadvertidamente cômicas quando o poeta tenta representar os costumes dos
indígenas, uma perfeita ilustração das formas de representação que nos interessam
em nossa revisão do indianismo. Durão escreveu no segundo canto do Caramuru:
“Outro ensopa; em visgo as longas ramas do palmito;/onde impróvido caía o Periquito.
” (s/d.:33) Em outra passagem, outro exemplo de inadvertida comicidade destacada
por Faustino no quarto canto do Caramuru: “Quais torravam o Aipi, quem mandioca,
/outros na cinza as cândidas pipocas” (s/d.:73). Finalmente, para encerrarmos em alta
nota essa micro antologia, lembremos em momento quase Oswaldino, um Basílio da
Gama antropofágico no quarto canto do Uruguay: “E em morrendo qualquer mulher ou
homem /choram muito e depois assam-no e comem. ” (1845:201)
A literatura indianista propriamente dita tampouco será prodiga em tais
fragmentos onde serão flagradas as aporias desses instrumentos poéticos
relativamente obsoletos, e aqui eu me refiro às estrofes e metros enquanto mídias
poéticas, mas também aos esforços romanescos, em prosa. Eu agora me refiro a
Gonçalves Dias e a José de Alencar, e penso que esses dois autores se revelem
como os mais relevantes para essa nossa revisão que partirá de uma possível
perspectiva indígena do indianismo romântico. Em Dias e Alencar, por outro lado, está,
como nos referimos antes, estabelecido o herói romântico e a ele, a historiografia
critica do século XX tem dedicado numerosas e preciosas paginas. Pois é justamente
essa critica que tende a esconder uma certa continuidade do indianismo romântico
para com as obras de autores modernistas e seus principais herdeiros. Creio que essa
será a minha proposição mais polêmica, que se revela apenas quando procuramos
essa perspectiva do selvagem letrado que revisita a historia da literatura brasileira, e
que se depara com uma critica do indianismo e da questão indígena que ainda não
emerge do próprio índio. Eu quero dizer, que mesmo as obras literárias extremamente
críticas do século XX, onde são enfocados o índio e a questão do índio, grandes
romances como o Quarup de Antônio Callado, ou Maíra de Darcy Ribeiro, não deixam
de representar uma continuidade do indianismo, uma atualização crítica e
antropologicamente informada desses motivos.
Eu acredito que essa continuidade ocorre porque o índio (ou melhor os índios,
os povos indígenas) não foram os agentes dessa revisão crítica. Trata-se, nessa
perspectiva, – da perspectiva que nos interessa – de uma revisão ao invés de uma
ruptura. As poéticas indígenas não emanam de seus povos, os textos do indianismo
critico do seculo XX não são escritos nas línguas dos índios, não emergem dos cantos
que eles contam, são coadjuvantes, permanecem engessados no lusocentrismo dos
modernos. Nessa perspectiva, se não pudermos falar em indianismo do século XX e
se quisermos evitar a categorização dúbia de 'indianismo critico', teremos que admitir,
por exemplo, que um grupo de obras tão díspares – como as citadas de Callado e
Ribeiro; Cobra Norato de Raul Bopp; A Grande Fala do índio Guarani de A. R. de
Santanna; entre outras
–
só podem caber mesmo em um neoindianismo
multifacetado. São obras que tem causa comum apenas na sua hesitação em
proporcionar a presença das línguas, das poéticas, e dos autores indígenas que,
entretanto, procuram representar. Trata-se de uma continuidade do ciclo de oblívio, de
esquecimento e apagamento das culturas e falares indígenas por meio, justamente, da
apropriação de todos esses elementos, que são demiurgicamente manipulados pelo
intelectual lusocêntrico (nós mesmos?), construindo produtos literários onde o
indígena é sempre assunto, sempre consumido, sempre representado e significado, e
jamais agente, jamais narrador, jamais produtor, jamais dono de seu canto, jamais
expresso em sua língua.
E o que viria depois nessa trajetória que parte do indianismo do seculo XIX e
chega, afinal, no neoindianismo do seculo XX. Se acreditamos em tal continuidade,
podemos por outro lado, postular também, nesse começo de seculo XXI, algum
movimento oblíquo, alguma guinada que nos permita uma possibilidade de pensar a
ruptura para com essa continuidade? Mas de que modo se faria tal ruptura, ela
romperia, efetivamente, com o que? A partir de qual cisão, qual quiasma permite-nos
pensar esse pós-indianismo? Qual dissenso sera esse que, retornando ao cruzamento
de perspectivas que houvemos tentado provocar, justificará a emergência do
selvagem letrado, do intelectual indígena que queremos encontrar? Através de quais
olhos eu procuro enxergar? Ora, o ponto de ruptura tem que ser o da ruptura para com
o lusocentrismo. O pós-indianismo do seculo XXI será a eclosão do índio como ator
literário. O pós-indianismo, portanto, será, para nós, muito provavelmente, o começo
efetivo da literatura dos índios, da leitura por tais povos de si mesmos, da proposição
de suas várias representações, do registro escrito dos seus xamanismos significantes.
No pós-indianismo a ruptura não precisa ser radical ao ponto de ignorar a lusofonia –
de que maneira poderíamos fazê-lo? Trata-se de romper com o lusocentrismo, e não
com a lusofonia.
O momento do Pós-indianismo, e da selvageria letrada, quando houver,
deverá surgir, também, a partir das escolas bilíngues das aldeias. Eu diria que nós
muito possivelmente estamos vendo o começo desse processo. A ruptura com
lusocentrismo já começa a ser operada mesmo que de dentro da lusofonia. Eu cito
como exemplo disso a trajetória de Kaká Werá Jecupe (1998; 2001; 2002), que inicia
uma literatura de testemunho em português, o índio que conta e desvela a historia de
sua aculturação, a trajetória de índio aculturado e que, finalmente, se transforma em
uma trajetória de auto tradução, de retorno a um idioma ancestral, o que se concretiza
com sua versão de um mito criacional obtido nos Avyu Rapita. Jecupe aprende o
guarani com a tradução hispânica de Leon Cardogan para o texto em guarani que
fixou. A partir desse aprendizado, que se assoma aos ensinamentos de pé de ouvido
nas fogueiras quase urbanas das aldeias guaranis que cercam a periferia de São
Paulo, Kaká Jecupe personifica a ruptura lusocêntrica do pós-indianismo: na sua
trajetória de combate à aculturação que lhe foi imposta pela via da reaquisição de um
idioma ancestral e, concomitantemente, com a tradução lusófona de um texto guarani.
Eu creio também poder identificar a ruptura pós-indianista nas edições
bilíngues que estão surgindo das novas gerações de etnólogos, que, sensíveis para as
poéticas indígenas, estão registrando os cantos dos povos isolados, enfatizando-se o
valor propriamente poético desses textos. O grande destaque terá que ser dado ao
Mai vana enemativo - Quando a terra deixou de falar, antologia bilíngue de cantos
Marubo organizada e traduzida por Pedro CESARINO (2013) partir dos cantos
executados por Paulino Joaquim Marubo e Armando Mariano Marubo entre outros.
Destaque entre (ainda raros) exemplos similares, Cesarino coloca lado a lado ou
mesmo privilegia a língua Marubo em relação ao texto lusófono. O volume de Cesarino
parece partilhar ou acolher os trabalhos xamânicos expressos nos saiti (cantos) por
ele traduzidos. Partindo de uma concepção de tradução sensível às especificidades
dessas performances orais, a colaboração entre nós (os intelectuais ocidentais,
literatos e antropólogos) e eles (os falantes de Jê e Tupi, pensadores selvagens que
aprendem a ressignificar suas lições de escritura) parece-me o solo fértil do pósindianismo. Partindo daí poderá estar começando, de fato, a literatura brasileira, a
verdadeira literatura brasileira: aquela de muitos idiomas e falares; a literatura
brasileira que se funda num conceito de pessoa múltipla; que se rende à ontologia
variável de um cosmos em formação, tal como ensinam as poéticas ameríndias.
REFERÊNCIAS
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CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CESARINO, Pedro de Niemeyer. Quando a Terra deixou de falar: cantos da mitologia
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biblioteca
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Departamento
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livro.
S/d.
Fundação
Disponível
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<http://international.loc.gov/intldl/brhtml/pdf/caramuru.pdf> Acesso em 10/01/2014.
FAUSTINO, Mário. De Anchieta aos Concretos: poesia brasileira no jornal. São Paulo:
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GAMA, José Basílio da. O Uraguay. Lisboa: Imprensa Nacional, 1845.
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segundo a Tradição Guarani. São Paulo: Peirópolis, 2001.
__________. Oré Awé Roiru’a Ma: todas as vezes que dissemos adeus. São Paulo:
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__________. A Terra dos Mil Povos: História Indígena Brasileira contada por um Índio.
São Paulo: Peirópolis, 1998.
RICARDO, Cassiano. O indianismo de Gonçalves Dias. São Paulo: Conselho Estadual
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SÁ, Lúcia. Rain Forest Literatures. Amazonian Texts and Latin American Culture.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2004.
WAGNER, Roy. The Invention of Culture. Chicago: The University of Chicago Press,
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