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José Marinho
Luzes do Sertão, Luzes da Cidade
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José Marinho
Luzes do Sertão, Luzes da Cidade
Com a participação de José Carlos Monteiro,
Tunico Amâncio e Juliana Corrêa
São Paulo, 2010
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GOVERNO DO ESTADO
DE SÃO PAULO
Governador
Alberto Goldman
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
Diretor-presidente
Hubert Alquéres
Coleção Aplauso
Coordenador Geral
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Rubens Ewald Filho
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No Passado Está a História do Futuro
A Imprensa Oficial muito tem contribuído com
a sociedade no papel que lhe cabe: a democratização de conhecimento por meio da leitura.
A Coleção Aplauso, lançada em 2004, é um
exemplo bem-sucedido desse intento. Os temas
nela abordados, como biografias de atores, diretores e dramaturgos, são garantia de que um
fragmento da memória cultural do país será preservado. Por meio de conversas informais com
jornalistas, a história dos artistas é transcrita em
primeira pessoa, o que confere grande fluidez
ao texto, conquistando mais e mais leitores.
Assim, muitas dessas figuras que tiveram importância fundamental para as artes cênicas brasileiras têm sido resgatadas do esquecimento. Mesmo
o nome daqueles que já partiram são frequentemente evocados pela voz de seus companheiros
de palco ou de seus biógrafos. Ou seja, nessas
histórias que se cruzam, verdadeiros mitos são
redescobertos e imortalizados.
E não só o público tem reconhecido a importância e a qualidade da Aplauso. Em 2008, a
Coleção foi laureada com o mais importante
prêmio da área editorial do Brasil: o Jabuti.
Concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL),
a edição especial sobre Raul Cortez ganhou na
categoria biografia.
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Mas o que começou modestamente tomou vulto
e novos temas passaram a integrar a Coleção
ao longo desses anos. Hoje, a Aplauso inclui
inúmeros outros temas correlatos como a história das pioneiras TVs brasileiras, companhias
de dança, roteiros de filmes, peças de teatro e
uma parte dedicada à música, com biografias de
compositores, cantores, maestros, etc.
Para o final deste ano de 2010, está previsto o
lançamento de 80 títulos, que se juntarão aos
220 já lançados até aqui. Destes, a maioria foi
disponibilizada em acervo digital que pode
ser acessado pela internet gratuitamente. Sem
dúvida, essa ação constitui grande passo para
difusão da nossa cultura entre estudantes, pesquisadores e leitores simplesmente interessados
nas histórias.
Com tudo isso, a Coleção Aplauso passa a fazer
parte ela própria de uma história na qual personagens ficcionais se misturam à daqueles que os
criaram, e que por sua vez compõe algumas páginas de outra muito maior: a história do Brasil.
Boa leitura.
Alberto Goldman
Governador do Estado de São Paulo
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Coleção Aplauso
O que lembro, tenho.
Guimarães Rosa
A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa
Ofi cial, visa resgatar a memória da cultura
nacional, biografando atores, atrizes e diretores
que compõem a cena brasileira nas áreas de
cinema, teatro e televisão. Foram selecionados
escritores com largo currículo em jornalismo
cultural para esse trabalho em que a história cênica
e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída
de maneira singular. Em entrevistas e encontros
sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e
biografados. Arquivos de documentos e imagens
são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas
personalidades permite reconstruir sua trajetória.
A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral
dos relatos, tornando o texto coloquial, como
se o biografado falasse diretamente ao leitor.
Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também
caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica
do artista, contextualizada na história brasileira.
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São inúmeros os artistas a apontar o importante
papel que tiveram os livros e a leitura em sua
vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos
seculares que atrasaram e continuam atrasando
nosso país. Muitos mostraram a importância para
a sua formação terem atuado tanto no teatro
quanto no cinema e na televisão, adquirindo,
linguagens diferenciadas – analisando-as com
suas particularidades.
Muitos títulos exploram o universo íntimo e
psicológico do artista, revelando as circunstâncias
que o conduziram à arte, como se abrigasse
em si mesmo desde sempre, a complexidade
dos personagens.
São livros que, além de atrair o grande público,
interessarão igualmente aos estudiosos das artes
cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido
o processo de criação que concerne ao teatro,
ao cinema e à televisão. Foram abordadas a
construção dos personagens, a análise, a história,
a importância e a atualidade de alguns deles.
Também foram examinados o relacionamento dos
artistas com seus pares e diretores, os processos e
as possibilidades de correção de erros no exercício
do teatro e do cinema, a diferença entre esses
veículos e a expressão de suas linguagens.
Se algum fator específico conduziu ao sucesso
da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –,
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é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o
percurso cultural de seu país.
À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um
bom time de jornalistas, organizar com eficácia
a pesquisa documental e iconográfica e contar
com a disposição e o empenho dos artistas,
diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a
Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios
que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e
todos esses seres especiais – que neste universo
transitam, transmutam e vivem – também nos
tomaram e sensibilizaram.
É esse material cultural e de reflexão que pode
ser agora compartilhado com os leitores de
todo o Brasil.
Hubert Alquéres
Diretor-presidente
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
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Agradeço à Cinemateca Brasileira, no nome
de Adilson Inácio Mendes, e à Cinemateca
do MAM-RJ, no nome de Hernani Heffner,
por toda colaboração.
Agradeço especialmente ao amigo José Carlos
Monteiro, cuja dedicação foi fundamental
para a conclusão deste livro.
Agradeço aos amigos Antônio A. Serra
e Miguel Pereira
A Deise, José Paulo e Daniel.
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Parte I
O Menino: Descoberta do Mundo
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Capítulo I
A Casa, a Estrada, o Cinema
Minhas raízes estão no Nordeste. Acredito
que minha existência como artista e como
homem tem relação com essa origem, de que
me orgulho até hoje. Nasci no alto agreste de
Pernambuco, em Olho D’Água de Dentro, município de Canhotinho, em um sítio dos meus
avós maternos, os Bernardino de Melo e Sena.
Vim ao mundo em 12 de fevereiro de 1933, num
domingo ensolarado. Contaram-me que abri os
olhos para ver as luzes desse Nordeste em meio
a comemorações da família: era o primogênito homem. Não cheguei a conhecer meu pai,
Sebastião Laurentino de Melo, que morreu no
Hospital Centenário de Recife, em dezembro
de 1932, depois de uma cirurgia. Ele teria sido
vítima de uma infecção contraída no próprio
hospital. Minha mãe, Quitéria Bernardo de
Melo, moça bonita e decidida, cheia de atitudes,
como se dizia na época, não estava destinada
a ser uma jovem viúva. Ele viria a se casar com
Odilon Marinho de Oliveira, que adotou a mim
e a minha irmã, Maria. Meu nome foi trocado
de José Laurentino de Melo para José Marinho
de Oliveira.
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Casa da fazenda do pai de José Marinho, onde nasceu
Dona Quitéria e José Marinho em Niterói, dez/76
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Odilon Marinho (pai de José Marinho)
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Quando tinha quatro anos de idade, meu pai
e minha mãe resolveram todas as questões relacionadas a inventário, venderam metade da
propriedade e metade do gado, e fomos para um
sertão ainda mais remoto. Fomos morar em um
sítio chamado Espírito Santo, de propriedade dos
pais do meu pai Odilon – Severino e Petronila.
Depois de algum tempo, mudamos para Pernambuquinho, uma vila que fica na divisa dos Estados
da Paraíba e de Pernambuco. Foi nessa fronteira
no agreste que passei a infância: dos quatro até
os dez anos, no sítio em Espírito Santo, e dos 10
aos 16, na vila de Pernambuquinho.
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Nessa região, meu aprendizado seria marcado,
entre outras coisas, pela divisão geográfica e a
descoberta da capacidade de transformação do
sertanejo. O rio Moxotó dividia a propriedade do
meu pai e o Estado. Era uma divisão peculiar: a
água que corria para a esquerda era a Paraíba, a
água que corria para a direita era Pernambuco.
Do lado da Paraíba, estava o Cariri paraibano...
Monteiro, Sumé, que apontavam para Campina
Grande. Do lado de Pernambuco, ficava o Moxotó, que vai dali até Paulo Afonso. A pedido
do prefeito de Sertânia, Arcôncio Lins, meu pai
fez um pequeno açude onde ficaria um reservatório de água para abastecer a cidade. Esse
açude continua lá. Nessa localidade, com apoio
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Casa onde José Marinho morou de 1945 a 1949 - Povoado
de Pernambiquinho/PE
Casa onde viveu dos 10 aos 16 anos, Povoado de
Pernambuquinho, município de Sertânia/PE
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Escola Municipal de Sertânia. Homenagem da Prefeitura
ao pai de José Marinho, dez/07
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desse prefeito, meu pai construiu uma escola –
a Escola Municipal Odilon Marinho de Oliveira,
que ainda existe. Ele criou a escola para que os
filhos pudessem estudar. Até então, a cidade
não tinha escola nem professores.
Antes da criação dessa escola houve uma tentativa. Meu pai tinha a casa onde morávamos e
mais umas quatro ou cinco. Uma dessas casas ele
cedeu para o prefeito fazer a escola. O prefeito
contratava a professora, ela ia para lá, dava a
aula de manhã, almoçava lá em casa e depois ia
para Sertânia, onde morava. Ali estudei o primário. Tínhamos então uma escola. Mas aconteceu
um problema com o namorado da professora. Ela
namorava um rapaz, Fragaço, que se envolveu
numa briga com um empregado do meu pai, um
negro chamado José Batinga. Na briga, os dois
estavam bêbados. Depois de brigar com José
Batinga, Fragaço resolveu enfrentar um vizinho
nosso, José Severino, inimigo de seu padrasto, o
fazendeiro Miguel Leopoldo. Fragaço desafiou
José Severino uma vez, duas, e na terceira o
outro saiu de casa e partiu para o confronto.
Com uma peixeira, Severino matou o Fragaço. O
desafeto, atingido do lado esquerdo, debaixo do
coração, correu de um lado da rua para o outro,
bateu na parede de frente, caiu de costas com
o sangue espirrando do seu corpo em forma de
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arco, tamanha a pressão que jorrava para fora.
Nós, como os homens de lá, pegamos o corpo
do Fragaço, levamos para a casa onde funcionava a escola e o colocamos no chão. O sangue
continuava a jorrar no chão de tijolo e cerâmica.
Meu pai mandou alguém à cidade para trazer o
delegado, que era primo dele e meu padrinho.
O caso foi registrado e ele mandou limpar tudo.
Mas o sangue se infiltrou no chão de tal modo
que ninguém conseguia lavar ou remover. A
professora quando voltou a dar aulas e pisou
na escola, entrou em crise: chorando muito,
decidiu abandonar tudo. Então essa primeira
escola foi fechada. Esse episódio me impressionou profundamente. Décadas depois, quando
Roberto Santos me pediu para contar como foi
minha infância no sertão, lembrei-me da morte
do Fragaço. Foi minha evocação desse caso que
o convenceu a me convidar para A Hora e a vez
de Augusto Matraga, no qual estreei no cinema.
Meu pai fazia questão que estudássemos. Diante
da minha insistência em querer aprender, ele me
mandou para Sertânia, onde existia um colégio
estadual. Deveria ficar na casa do meu padrinho
Bastos. À noite, conheci o cinema. O primeiro
filme que vi foi um western. Não recordo o título, nem quem me levou, mas me lembro que
havia muitos cowboys correndo e muita poeira.
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Saí do cinema com sede, pois enquanto via toda
aquela poeira, via também os cowboys bebendo
água em seus cantis. Voltei para a casa do meu
padrinho e não consegui dormir. Não por causa
do filme, mas porque ele tinha muitos filhos e
filhas. As moças e os rapazes circulavam por uns
corredores compridos, era uma casa enorme. Havia tanta gente entrando e saindo dos quartos e
passando pelos corredores que fiquei acanhado.
Voltei para casa no dia seguinte e disse ao meu
pai que não queria ficar lá. O meu projeto de
educação formal foi adiado.
Na Estrada da Vida
Mas meu aprendizado continuaria, por outros
caminhos. Depois de um ou dois anos, meu pai
comprou um caminhão. Como ele não dirigia,
contratou um motorista, e começamos a viajar
para cima e para baixo. Foi assim que conheci
Recife, para onde ele levava muitas cargas. Viajando de caminhão, conheci todo o sertão de
Pernambuco. Foi um deslumbramento andar por
aqueles lugares, conhecer todas aquelas coisas e
pessoas e aprender a ver a vida com outro olhar.
Mas às vezes nesse aprendizado havia certa confusão espacial. Não se tratava mais das águas
divididas de um rio, metade para cada Estado,
mas da maneira como eu me situava no mundo.
Recordo, por exemplo, uma experiência que pas-
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sei aos 14 anos quando visitei Poço Verde. Essa
cidade fica no alto sertão de Pernambuco, depois
de Ouricuri, já perto do Piauí. Lá me desorientei
em todos os sentidos, perdi as referências de
espaço porque, quando o sol estava se pondo,
estava para o lado que era o contrário àquele de
onde eu morava. Então confundi tudo, onde era
norte, leste e sul, perdi a noção da direção. Meio
atordoado, pensei: Então, o mundo é assim? De
um lado da terra, o sol é diferente do outro...
Não estava entendendo nada.
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Nas viagens para Recife fiquei insistindo com
meu pai que eu queria continuar a estudar. Ele
resolveu então me levar para Recife e acertou
para que eu ficasse na casa de um amigo dele. A
viagem me pegou de surpresa. Num domingo à
tarde, vi minha mãe com uma malinha pequena
arrumando minha roupa depois do almoço. Perguntei: Mãe, o que é isso? Tá arrumando minha
roupa por quê? Ela respondeu: Você vai com seu
pai hoje pra Recife. Tomei um choque. Embora
soubesse que partiria a qualquer momento, não
sabia que seria naquele dia. Na hora de partir,
meu pai foi no fundo de um baú, pegou minha
certidão de nascimento original, como filho de
Sebastião Laurentino de Melo, me entregou
e disse: Você escolhe se quer continuar como
filho de Sebastião ou como meu filho. Já em
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Recife, resolvi assumir o nome de José Marinho
de Oliveira. Odilon era o pai que eu conhecera
e me criara como filho. Fui então ao cartório e
fiz uma nova certidão de nascimento, que tenho
até hoje.
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Capítulo II
Lembranças do Sertão
Antes de seguir para Recife pressenti que estava
deixando para trás um mundo singelo e muito
marcante. Nunca mais experimentaria as emoções da adolescência no sertão. Só nas telas do
cinema eu conseguiria reproduzir os sentimentos
dessa fase muito bonita, em que a vida pulsava
de outra maneira. Recordo-me com saudade não
apenas dos banhos no rio Jabitacá, mas também
das noites de lua, quando os fazendeiros contratavam repentistas e violeiros e convidavam amigos para assistir à cantoria madrugada adentro.
Meus pais me levaram pela primeira vez a uma
cantoria dessas. Era emocionante: as cantigas de
amor eram quase que uma coisa medieval. Eles
mudavam o ritmo da viola, cantavam em diversos
ritmos. Até hoje recordo com encantamento essa
experiência. Tenho um irmão que também gosta
muito e toda vez que vou a Recife ele tem uma
fitinha gravada para mim de uma cantoria dessas. O mais impressionante é que eles continuam
a cantar do mesmo jeito, com a viola e a voz.
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A religiosidade também me deixou marcas profundas, por vários motivos. O Nordeste é um
mundo de rituais, sociais e religiosos. Em Pernam-
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buquinho, as missas tinham essa dupla função.
Uma vez por mês um padre vinha de Sertânia
para celebrar a missa. Minha mãe, que era muito
católica, cuidava da igreja da cidade. Depois da
missa, o padre ia almoçar lá em casa. Nas missas,
o clima poderia ser reverencioso. Mas na igreja
não havia somente oração, pois lá os rapazes começavam a aventura do namoro e a descoberta
das meninas: era um lugar de olhar. Mais adiante
vou contar mais coisas dessas missas, das reuniões
em família e das relações entre as pessoas.
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Nas noites de lua nas vilas e cidadezinhas, os
moradores pegavam cadeiras, colocavam nas
calçadas e na rua e ficavam conversando. Nos
sítios, as famílias se visitavam à noite. Nas visitas a primos e primas, começavam às vezes os
namoricos. Eu gostava dessas noites de lua, pois
ficava na calçada, na esquina da rua onde todo
mundo se reunia. Deitado ao lado do meu irmão,
conversávamos com os homens mais velhos. As
meninas não apareciam muito, não. Os homens
contavam muita piada. Às 9 horas, meu pai
fechava a mercearia e dizia: Para casa! E todo
mundo tinha que dormir.
Primeira Namorada
Minha primeira namorada foi uma vizinha, em
Pernambuquinho. Nossas famílias tinham boa
convivência. Nossas mães diziam que a gente
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iria namorar, mas isso nunca acontecia. Até que
esses vizinhos foram morar em Sertânia e ela
namorou um colega meu, o Antônio. Um dia,
numa festa, Antônio me disse que tinha acabado de brigar com a menina e que eu podia me
aproximar se quisesse. Mas nessa noite não a
procurei. Depois do Natal, meu pai tinha viajado
para Recife com o caminhão e fui esperá-lo em
Sertânia. Em Sertânia, havia uma pensão onde
eu podia passar a noite, já que não queria ficar
na casa do meu padrinho.
Tudo aconteceu meio de repente, quando passei
em frente à casa dela e a vi na janela. Conversamos. A mãe dela me convidou para entrar. Enquanto estávamos na sala, a mãe dela nos serviu
bolo e café e colocou duas cadeiras na frente de
casa. Foi nesse dia o primeiro beijo da minha vida
– eu tinha uns 15 anos e ela, 14. O namoro não
durou muito. Nunca mais nos encontramos. Por
timidez e medo, eu não a procurava na cidade.
E ela não ia a Pernambuquinho. A última chance de um encontro seria durante as novenas de
maio, quando as famílias se reuniam em Pernambuquinho. Ela me mandou uma carta avisando
que iria ao encerramento das novenas, no domingo, dia 29. Mas foi justamente nesse dia que
meu pai me levou para Recife. Saí às quatro da
tarde, quando ela chegaria de Sertânia. Nunca
mais vi essa minha primeira namorada, Ivonete.
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Dez anos atrás, encontrei um irmão dela e soube
que morrera em São Paulo. Ela ainda morava em
Sertânia, mas fora visitar uma filha em São Paulo
e sofreu um enfarte.
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Outra recordação da vida no sertão também
está ligada à lua. Nas noites de lua, a gente se
sentava numa calçada em frente à casa da minha
avó para ouvir minhas tias contarem histórias. Ou
para ouvir meu tio Darcílio cantar e tocar violão.
Na verdade, ele não tocava para nós, mas para
uma namorada que tinha do outro lado do rio.
Os dois tinham uma paixão platônica, que não se
realizava. Quando ele tocava e cantava à noite
era para ver se ela o ouviria. Eu ficava encantado com esse romantismo sertanejo. Por isso até
hoje gosto do cancioneiro das décadas de 1930
e 1940, principalmente quando as canções são
cantadas por Nelson Gonçalves ou Orlando Silva.
Um acontecimento marcante foi o casamento
da minha tia Josefa, que ainda está viva, com 96
anos. Foi em 1941, no sítio da minha avó. Houve
festa de dois dias, com muita comida e cantoria.
Quando os convidados foram embora, me lembro que cantavam Quem parte leva saudades de
alguém/ Quem fica, fica chorando de dor... meu
grande amor. Também cantaram outra: Aos pés
da Santa Cruz, você jurou o nosso amor/ Jurou,
mas não cumpriu/ Fingiu e me enganou...
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A Música e a Luz
Guardo com muito carinho as memórias da música sertaneja, que é muito melódica, muito bonita. E guardo ainda mais as imagens do sertão, de
uma terra que parecia interminável. Com meus
seis anos, olhava para serras que ficam depois do
Jabitacá e do Pajeú. Essas serras pareciam que se
formavam umas atrás das outras, e, quanto mais
distantes estavam, mais azuis ficavam. Cheio
de curiosidade, perguntava às minhas tias: E ali
naquelas serras azuis, quando a serra encosta no
céu, o que é que tem? Elas respondiam: Dali para
lá é o fim do mundo. Assombrado, eu queria
saber mais: E depois?. Depois é o abismo. Nesse
abismo, diziam, é que caiu o Zepelim.
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Fim do mundo. Abismo. Zepelim. Foi meu tio Januário quem me levou pela região desconhecida,
misteriosa, das serras. Ele iria comprar garrotes
perto dessas serras e me convidou para acompanhá-lo. Viajamos muito e à tarde, na hora do
almoço, chegamos à casa aonde ele compraria
gado. Depois da negociação, voltamos. Já tínhamos atravessado uma serra e estávamos perto de
outra. E havia muito mais serras depois daquela.
Vi então que não era ali que o mundo acabava.
Que desilusão! Para mim, era um encantamento
ver que o mundo terminava naquela serra azul.
Mas veio outra desilusão: não era nada azul, mas
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verde ou acinzentado. O efeito ilusionista era
produzido pelos raios solares, que batiam nas
pedras e deixavam tudo... azulado.
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Em cinema, é difícil a reprodução dessa luz sertaneja. Mas Vladimir Carvalho conseguiu captar
um pouco dessa luminosidade e desse universo
em seu documentário O País de São Saruê. Na geografia nordestina tem rios que esvaziam numa
parte do ano, e no leito seco só fica uma areia
branca. Uma vez, já adulto, tentei fotografar na
fazenda de minha avó aquela areia branca e saía
tudo branco nas fotos. Algum tempo depois, me
queixei ao Nelson Pereira dos Santos: Pô, Nelson,
as fotografias [que tirei no sertão] não ficaram
legais... Nelson disse: Claro, Marinho, você tem
que aprender a fotografar a luz. Não a árvore,
ou o chão, mas a luz. Para mim, esse é o grande
mérito da fotografia de Vidas Secas. Não há
nada para fotografar além do mundo e da luz.
Então você tem que acertar seu diafragma para
a luz. O Nelson é uma personalidade e um artista surpreendentes. Só depois de muitos anos
trabalhando com ele na UFF é que notei isso:
ele diz coisas sérias, brincando. Sobre o Nelson
falarei mais adiante.
Até hoje, de três em três anos volto ao sertão. Há
dois anos juntei meus quatro irmãos que moram
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em Recife e fomos para Monteiro, cidade de
meu pai. Passamos a noite de São João vendo
os forrós e lembrando coisas da nossa infância
e juventude, revendo amigos e parentes. Nesse
reencontro, há uma espécie de renovação, você
se sente outra vez garoto, sente uma incrível
pulsação de vida. Você redescobre a juventude
ao reencontrar conterrâneos da mesma idade.
Na minha infância, diziam: Esse garoto gosta de
estudar, vai ser padre. Me colocaram num seminário. Não queria ser padre, mas fui obrigado a
estudar no Colégio Salesiano. Foi nesse colégio
que escrevi meu primeiro texto, uma crônica
sobre a torre da igreja estilo gótico do Colégio
Salesiano de Recife. Essa torre me impressionava, era alta, tinha 57 metros de altura. Essa
cronicazinha foi a primeira publicada no jornal
do colégio, chamado Dom Bosco. Da passagem
pelo colégio também me recordo com prazer da
Páscoa na escola por causa do lanche no domingo. Nessa ocasião, os padres colocavam perto do
altar uns balaios cheios de pão. A gente entrava
pela porta da frente da igreja, pegava o pão e
saía para o pátio interno do colégio. Tinha aluno
que repetia esse entra e sai até se fartar. Eu gostava do pão doce, maciço, saboroso. Na saída da
igreja, um padre servia ponche com frutas locais:
maracujá, pitanga, goiaba, manga.
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A passagem dos violeiros pela região era sempre
sinônimo de festa. Muitos, quando iam de uma
cidade para outra, paravam lá em Pernambuquinho e improvisavam uma cantoria. Meu pai
gostava de violeiros e de ouvi-los tocar. Acolhidos com festa, eles diziam ao meu pai: Seu
Odilon, vamos cantar hoje e dormir aqui. Meu
pai providenciava os lugares onde eles ficariam.
A vila enchia de gente. Depois de cantar e tocar,
eles passavam o chapéu para receber algum
dinheiro. Esses violeiros dormiam em redes em
uma casa ao lado da nossa, e no outro dia iam
embora de ônibus.
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Também havia festa no dia de missa, uma vez
por mês. Nessa ocasião, os moradores dos sítios
colocavam suas melhores roupas e iam para a
cidade. Em Vidas Secas há uma sequência que
tem muito desse clima em torno das missas. É
quando Fabiano vai até a igrejinha ou quando
reclama num armazém, numa bodega, que a
cachaça tem água e é detido pelo soldadinho.
São coisas típicas do sertão que o Nelson Pereira
dos Santos, a partir de Graciliano Ramos, evocou
com muita precisão.
Violência e Convivência
Antes das missas, aos domingos, aconteciam as
feiras. Essas feiras acabaram quando as pessoas
passaram a ter medo das brigas de quem bebia
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demais e provocava confusão. Meu pai, como
líder político, achou melhor acabar com as feiras,
por volta de 1945, quando eu tinha 12 anos. Para
viver no sertão, tem que saber viver, saber conviver. Porque, se você arrumar briga, morre cedo.
Nas festas de fim de semana às vezes ocorriam
excessos de bebida, brigas violentas, crimes de
morte – geralmente com peixeira ou punhal.
E todo mundo no sertão, na região de sítio e
fazendas, andava armado. Isso até hoje, principalmente no sertão do Baixo Pajeú, no Jabitacá, Alto do Cariri paraibano, onde as pessoas
costumam andar armadas. Lampião e outros
cangaceiros andaram por essa região, onde é
comum o costume de andar armado, como se
a qualquer momento você fosse encontrar um
inimigo à frente. Geralmente o sertanejo anda
muito à noite. Até dez horas da noite, ele anda
bastante, da cidade para sua casa, da casa de
parentes para a casa dele e, às vezes, quando
tinha festas, ou sambas como se chama lá, ele
saía para casa, em grupo ou até sozinho. Esse
era o lado perigoso das festas, uma causa de
preocupação dos pais, que pediam aos filhos
para não exagerar na bebida nem brigar.
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Tinha sempre alguém morrendo por causa de
briga. Depois que saí de Pernambuquinho, meu
compadre Antônio (aquele que namorou a meni-
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na antes de mim) matou um colega de infância,
Expedito, numa bebedeira. Desde os tempos de
escola, os dois brigavam. Na hora do recreio, a
gente fazia um risco do chão e dizia: Isso aqui
é a mãe de um, isso aqui é a mãe de outro. Aí
vinha um e pisava na mãe do outro, e a briga
rolava. Antonio e Expedito começaram a brigar
com nove anos de idade. E quando tinham 20
anos houve a tragédia: Antônio, armado com
uma peixeira, e Expedito com um pedaço de
pau, entraram na casa onde funcionava o posto
fiscal, se engalfinharam na sala, continuaram a
brigar numa segunda sala, chegaram na copa e
então Antônio passou a peixeira em Expedito,
cortando-o de um lado a outro. O golpe foi profundo: com o intestino na mão, Expedito saiu do
posto até a casa do pai dele. Na calçada, gritou
que fora ferido pelo Antônio. O pai o deitou,
usaram um pano com água morna para segurar
o intestino e foram chamar um carro em Sertânia, a 16 quilômetros de distância. Expedito foi
levado para Sertânia ainda vivo. No hospital, o
médico que o atendeu viu que o intestino estava
inflamado e não tinha salvação.
Soube dessa morte em Recife, onde já estava.
Esse desfecho abalou todo mundo, amigos e
parentes, embora no sertão seja muito comum
crime de morte. Meus irmãos costumavam ir a
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festas, mas não se envolviam em brigas, porque
de repente um mata o outro brincando. Você
vive e convive com essas coisas normalmente. O
sertão é uma coisa enigmática, misteriosa. Gente
que não é da terra pode ser recebida com cordialidade ou encarada com desconfiança. Se chegar
num lugar onde ninguém lhe conheça, você fica
numa situação desesperada. As pessoas o olham
com indiferença, o evitam. Perguntam: Você é
quem?. Fulano. Filho de quem? Sem identificação de família, esse estranho pode ser alguém
mal-intencionado. Pode ser, por exemplo, um
pistoleiro de fora que foi contratado por um
fazendeiro para matar algum desafeto.
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As pessoas não recebem bem um estranho.
Até hoje os filhos da terra andam armados, de
pistola, foice. À noite só se anda armado, como
se fosse no tempo de Lampião. Comprovei isso
quando fui lá na década de 1970 e me hospedei
na casa do meu tio Januário. Quando estava
escurecendo, fui até Pernambuquinho pegar o
ônibus para Sertânia. Andei por aqueles caminhos que conhecia desde a infância e não senti
medo. Mas a certa altura ouço vozes de gente,
de homens. A noite estava escura. Eles pressentiram que alguém estava na estrada. Pararam e
gritaram: Quem vem lá? Aí falei: José de Odylon
Marinho. Ah, Zé do seu Odylon! Pode vir, Zé.
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Tem que dizer quem é. Aí perguntei: Quem tá
aí? Ele disse: Pedro [filho] de Laurentina e Pedro [filho] de seu Timóteo. Seu Timóteo era um
ex-morador. Aí me aproximei. Como é que vai,
Zé, tá por aí? Aquela coisa, e tal. No meio do
caminho, encontrei outro conhecido e comecei
a conversar, deixando o tempo passar.
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Meu tio Januário cuidava para que eu não saísse
à noite. Nem dormisse na casa de ninguém, a não
ser na casa do irmão dele, tio Darcílio. Uma vez eu
estava em Pernambuquinho, na casa dele, e resolvi
dormir na casa do Meliano, amigo do meu pai, que
está lá vivo, aos 90 anos. Aí o Meliano: Fica por aí,
Zé, dorme aí hoje. Eu dormi e não fui para casa
de meu tio. Como ele não estava, avisei à mulher
dele que se ficasse tarde dormiria por lá. No dia
seguinte, pela manhã, quando voltei, meu tio
Januário disse: Faça mais isso, não. Quando você
vier aqui para casa, você dorme aqui em casa. Não
quero sobrinho meu pedindo favor a ninguém.
Sertanejo é muito cioso do nome da família. Não
admite depender de outros. Se você tem casa para
dormir, por que vai dormir na casa dos outros? E
isso é o que sertão cobra, até os dias de hoje.
O Dia do Padre
As meninas iam às missas vestidinhas, enfeitadas, ao lado das mães. Os rapazes também iam
alinhados. Naquele tempo, estava alinhado
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quem usava terno. Quando fazia 15 anos, o
adolescente tinha de colocar terno. Calça curta,
só até 10 anos de idade. Meu pai comprou um
terno para mim quando eu tinha uns 12 anos.
Era um terno de riscado, como chamam lá. Não
se usava gravata, só o terno. O tecido do terno
não tinha importância, desde que fosse aquela
roupinha completa. O tempo mudou por aquelas bandas. Ninguém anda mais a cavalo ou de
burro, só de motocicleta. Mesmo os vaqueiros,
só andam de moto. Cavalo só para procurar boi;
para ir à cidade, eles vão de moto. Ou de carro.
E esses carros servem para trazer os vizinhos e
depois cobrar a gasolina. No sertão já tem até
motoboy. Se à noite você quiser ir a um lugar e
perdeu o horário do ônibus, você tem a moto.
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Outra coisa que eu gostava no dia de missa era
o almoço especial que minha mãe fazia para o
padre. Era galinha ensopada, galinha na panela,
mas feita com muito capricho porque era o dia
do padre. Eu adorava o almoço do dia do padre! Nos outros domingos, meu pai costumava
comprar carne de boi na feira de Santana. Carne
de porco minha mãe nunca deixou entrar lá em
casa. Quando meu pai chegava em casa com a
carne do boi, jogava na mesa e, com o facão,
cortava tudo e salgava com sal grosso. Tirava as
mantas de carne maciça, que eram penduradas
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no quintal para virar carne de sol. Todo dia ele
cortava um pedaço e assava para fazer o almoço.
Da parte traseira da perna do boi, o corredor,
meu pai tirava todas as carnes maciças, colocava
numa panela. Minha mãe lavava aquilo tudo,
temperava, pegava a parte óssea e botava para
cozinhar em outra panela. Passava de molho de
sábado para domingo. Domingo, já tudo temperado, colocava para cozinhar aquelas carnes e
um prato separado para botar na mesa e acompanhar o corredor. E aquela parte da pata do
boi, meu pai pegava e, com um martelo, batia
no prato de cada filho. Daí saía um pedaço de
tutano no prato de cada um. E naquele prato já
tinha um pirão, que era feito do próprio caldo da
carne cozida. Então ficava um pirão escaldado:
farinha, carne cozida e o molho da carne cozida.
Com a gordura da carne em cima. Eu comia aquele pirão e dava uma suadeira. Depois do almoço
eu saía suando, porque aquilo era proteína pura.
Tinha que andar um pouco para pegar ar. Era
um almoço maravilhoso, chamava-se corredor.
Quase todo domingo, enfrentávamos a suadeira
do corredor. Mas quando o padre estava lá, o
cardápio mudava. Saía a carne de boi e entrava
a galinha, porque a nossa comida dominical
era pesada demais para o padre. E nas semanas
santas minha mãe fazia uma comida maravilhosa
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que eu adorava: bacalhau ou peixe cozido com
coco. Pegava o coco, ralava. Daí, na máquina de
moer o milho, moía e saía o leite do coco, aquele
leite do coco era natural. Jogava em cima do bacalhau ou do peixe. O peixe era de açude. Ficava
uma delícia! É também outra coisa inesquecível.
Pirão de Mulher Parida
E outra coisa inesquecível era o pirão de mulher
parida. Toda vez que minha mãe engravidava,
ela aumentava a criação de galinha. Chegava a
engordar quinze galinhas para comer durante o
período de resguardo. Do resguardo até quinze
dias depois, só comia a galinha. Como era preparada essa galinha? Essa galinha era cozida
sem muito tempero, levando apenas coentro,
cheiro verde, cebolinha e um pouquinho de sal.
A galinha era cozida com a pele. Da gordura da
pele cozida, se fazia o pirão. Minha mãe comia
aquele pirão com arroz branco e a galinha. Eu e
meu irmão mais próximo de mim ficávamos esperando que ela acabasse de comer o pirão para
raspar a panela do pirão – um pirão gostosíssimo
feito da gordura do caldo da galinha. Podia até
comer outra coisa, mas aquele pirão tinha que
ser raspado, tinha que comer até acabar. Eu não
sabia por que ela só comia galinha. Para mim,
parecia um luxo: mulher de resguardo tem que
comer galinha.
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Só anos depois é que vim a descobrir o motivo
do pirão de mulher parida. Estava em São Paulo,
fazendo mestrado na USP, quando vi no jornal
um restaurante em Pinheiros anunciando: galinha de mulher parida. Fiquei intrigado: seria
aquela? Pensei em conferir. Mas voltei para o Rio
e não fui. Foi um médico, meu amigo Zé Luís, de
Caruaru, quem revelou o segredo da galinha de
mulher parida. Ele me explicou que se tratava
de um costume medieval. A gordura da galinha
tem uma proteína que evita infecções. A mulher
come aquele pirão para evitar infecções pós-parto. É como se fosse um antibiótico. E eu pensava
que era um luxo! De onde vinha essa impressão?
É que minha mãe, única filha mulher de um
fazendeiro, era tratada com requinte. Meu pai,
do seu lado, tinha um legado, uma propriedade,
caminhão. Era, como se diz, um homem rico da
cidade. As outras mulheres comiam galinha dois,
três dias. Minha mãe comia uma semana, duas.
E eu achava que era por causa da nossa riqueza!
Embora não tivesse nenhuma vocação para padre, às vezes fui envolvido em tarefas da missa.
Isso acontecia quando o sacristão atrasava. Esse
sacristão era na verdade um pequeno fazendeiro, que morava no pé de uma serra distante.
Durante os preparativos da missa, enquanto o
sacristão não chegava, o padre me convocava:
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Me ajuda aqui, José. E lá ia eu ajudar na montagem do altar ou até na cerimônia da missa.
Mesmo quando o sacristão chegava, eu ficava
de lado, acompanhando tudo.
Não tinha aptidão para o sacerdócio, mas para
ler e escrever. No balcão do armazém do meu
pai, ficava sentado, à tarde, escrevendo em
papéis de embrulho. Eu pegava um lápis e começava a escrever, caprichando na letra, para
ficar bonita. Caía livro na minha mão, e eu lia.
Então, desde pequeno eu chamava atenção para
esse lado de ler, de estudar. Quando meu irmão
Josias chegou na 4ª série, meu pai comprou um
livro para ele e outro para mim. O livro que ele
ganhou, chamado Exame de Admissão, tinha
matérias de todo o curso primário. Josias não se
interessou: Esse livro é muito difícil, não quero,
não. Aí trocou, ficou com o mais fácil para ele
e eu fiquei com o Exame de Admissão. Quando
fui para Recife, levei este livro, que me ajudou
bastante no exame de admissão para o Colégio
Salesiano, onde era indicado para os candidatos.
E lá estava eu com aquele livro debaixo do braço
o tempo todo!
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Sertão de Rico e de Pobre
Os fazendeiros sertanejos queriam formar seus
filhos. As famílias ricas de Monteiro e Sertânia
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mandavam os rapazes e as moças estudar em
Recife. Eram três formações básicas – Direito,
Medicina ou Engenharia. Os filhos de fazendeiros se formavam e a maioria voltava para
o sertão, onde se tornavam advogados, engenheiros, promotores ou médicos de hospitais.
As famílias ricas chegavam até a criar hospitais
para os filhos trabalharem como médicos. Isso
era o desenvolvimento do sertão. Os homens iam
para cidade, viravam doutores. E as mulheres
iam para os internatos, os colégios de freiras
estrangeiras. Em Monteiro, tinha um colégio
de freiras francesas, onde minha tia Josefa estudou. As moças estudavam basicamente até o
2o grau, incluindo francês e um pouco de piano,
nas famílias tradicionais. No sertão, as casas não
tinham piano, mas em Recife estudar piano era
obrigatório para as moças, principalmente as da
alta classe média.
No sertão, havia uma aristocracia sertaneja, a dos
antigos coronéis, que se interessava pela educação dos filhos por uma questão de status. Mas o
meu pai tinha outra visão quando criou a escola
lá em Pernambuquinho, em combinação com o
prefeito. O que ele visava era educar as crianças
que não tinham condições de estudar na cidade
e que ao menos seriam alfabetizadas para poder
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cuidar de seus pequenos negócios. Os pais mais
simples, agricultores, tinham interesse que seus
filhos trabalhassem na roça, como eles trabalhavam. Nesse sentido, a contribuição do meu pai
naquela época foi tão importante que até hoje os
meninos escrevem no topo do caderno Sertânia,
Escola Municipal Odilon Marinho de Oliveira.
Alegria e Solidão
O sertanejo trabalha de segunda a sexta-feira e
no fim de semana gosta de se divertir um pouco.
Aos sábados ocorrem as feiras. O sertanejo vai à
feira mesmo que não tenha nada para comprar. A
feira era o local do encontro de amigos, das conversas, dos negócios – ou de ver as modas – como
se diz aqui no Sul. É o dia que ele toma banho, faz
a barba e corta o cabelo. Então é um dia alegre.
Depois vem o domingo. Geralmente entre sábado
e domingo acontece alguma festa. A festa é o
lado profano, onde se dança, se namora, se reúne
com parentes. Essas festas fazem parte da alma
do sertanejo, é quase uma necessidade. Nelas o
sertanejo esbanja um pouco de sua alegria, de sua
vaidade, de seu lado mais boêmio, espontâneo.
Alguns mais desinibidos se destacam nos bailes
como grandes dançarinos, mulheres como bailarinas maravilhosas e isso tudo dançando forró,
xaxado, a música mais comum do sertão.
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No lado religioso, os momentos mais aguardados eram as rezas em louvor das padroeiras das
cidades, geralmente comemoradas nos sítios. Na
fazenda da sua propriedade, no Espírito Santo,
minha avó paterna, vovó Petrolina, rezava o
terço em janeiro em homenagem a São José e
depois rezava as novenas do mês de maio, chamado Mês de Maria. No terreno da casa foram
erguidos um mastro e uma bandeira à Virgem
Maria. E se rezavam nove noites – daí o nome
novenas. Eram novenas animadas, com a participação do pessoal da redondeza e de um zabumba que minha avó contratava. O zabumba é
composto por um grupo de tocadores de pífaros,
a zabumba e uma caixa de som. O zabumba dá
o ritmo, a caixa acompanha e os pífaros fazem
o acompanhamento mais suave, melodioso. Eles
acompanhavam as rezas e, às vezes, tocavam músicas da tradição do zabumba, como o Cachorro
Atrás da Onça. Minha avó sempre convidava uma
família que tocava zabumba – Os Raimundos.
Eram cinco irmãos, que animavam as novenas até
de madrugada. Novena geralmente não ia até
de madrugada, ia até 11 horas da noite, por aí.
Na hora das orações e dos cantos finais, todo
mundo tinha que beijar o altar. Primeiro, as mulheres e, depois, os homens. Entre as mulheres,
a primeira a beijar era uma pessoa da casa da
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família, e o mesmo acontecia entre os homens.
Na casa da minha avó, as primeiras pessoas
a beijar o altar eram a minha tia Josefa, que
ainda está viva em Brasília com 96 anos, e era a
caçula; e entre os homens era meu tio Darcílio,
caçula entre os homens, e depois iam os demais
parentes convidados. Desse modo, as novenas
seguiam todos os anos, pois minha avó fazia
questão de comemorar. Uma mesa era coberta
para virar um altar, e em cima ficava um oratório,
uma peça tradicional, de madeira, muito bonita,
que está até hoje com a tia Josefa. Ela preservou
tanto esse oratório como um santo especial, que
eu achava muito bonito. Na verdade, não era
um santo, mas um pássaro branco de madeira,
datando mais ou menos do século XVIII e que
simboliza o Divino Espírito Santo.
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Já em Pernambuquinho, minha mãe era zeladora da igreja do padroeiro São José. Lá também
tinham as novenas e missas mensais. Esse lado
do sertanejo é, então, essencial para ele. O sertanejo tem uma relação muito dialética com o céu
e a terra, com Deus e com o diabo. No céu está
Deus, as divindades, e na terra está o que é mau,
o diabo a tentar os homens e as mulheres. Então
ele tem essa dialética e não é casual o título que
Glauber Rocha deu ao seu filme – Deus e o Diabo
na Terra do Sol. O sertão é terra do sol. O sertanejo
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não se confunde nesse sentido, quer dizer, nessa
dualidade. Há um lado físico e um metafísico; um
lado material e um lado espiritual. Ele vive nessa
dialética a vida inteira – é essa dialética que explica
sua permanência no mundo. Você encontrará isso
depois no Guimarães Rosa, no Glauber, no Graciliano Ramos, entre outros. Tudo isso me impressionava muito. Assistindo a festas e novenas e vendo
feiras e cantorias, fui acumulando sentimentos e
percepções de todos os tipos.
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Política no Sertão
Meu pai era o chefe político em Pernambuquinho
e se ligava a lideranças de Sertânia vinculadas ao
Partido Social Democrático (PSD). O partido era
chefiado pelo Dr. Ulisses Lins, pai de um político
muito famoso no Brasil da época, Etelvino Lins,
governador de Pernambuco, senador e uma
grande figura política no Estado. Moravam em
Sertânia dois tios de meu pai, irmãos de minha
avó Petronila. Eram o tio Francisquinho e o tio
Oliveirinha, comerciantes influentes na cidade
e ligados à liderança do PSD. Tio Francisquinho
era Francisco Bispo de Sales de Oliveira e tio
Oliveirinha era Josué Soares de Oliveira.
Tio Francisquinho foi o primeiro tabelião de Sertânia no início da República. Casou sua primeira
filha com Ingrácio Siqueira Campos, a quem ce-
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deu o cartório. Esse cartório era de certidão de
nascimento e de notas; em seguida foi desmembrado em dois e ele continuou com o de escrituras na mão dele. Quando casou a segunda filha,
meu tio deu o segundo cartório para o segundo
genro, Manuel Laet Cavalcanti. Esse cartório foi
vendido para outra pessoa, mas o primeiro cartório continua até hoje sob o controle da família
Oliveira Siqueira Campos. Meu pai organizava em
Pernambuquinho os moradores dos sítios e fazendas para ir votar em Sertânia. Os chefes políticos mandavam caminhão para Pernambuquinho,
meu pai coordenava os eleitores, levava-os para
Sertânia onde eles deveriam votar e almoçar. À
tarde, todos voltavam no mesmo caminhão para
o sítio e a eleição estava realizada. Era assim de
um modo geral que os chefes políticos comandavam as eleições no interior do Estado.
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O grupo adversário do PSD era a UDN, liderada
pelo Dr. Raul Torres Lafayette, médico muito
prestigiado na cidade e em quem minha mãe
votava sempre. Minha mãe levou essa fidelidade
eleitoral até o fim da vida. Mesmo no final da
década de 1990, quando já morava em Recife,
ela voltava a Sertânia para votar nos candidatos
indicados pelo filho do Dr. Raul. A UDN tinha
como grande líder nacional o Brigadeiro Eduardo
Gomes, que minha mãe admirava muito. E eu,
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ainda adolescente, simpatizei com a UDN e o Brigadeiro, o que me manteve ligado às lideranças
da UDN até meados dos anos 1950. Recordo que
em 1956, na eleição de Juscelino Kubitschek, votei no General Juarez Távora, que era do Partido
Socialista Brasileiro, uma linha mais udenista.
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Em 1950, quando já morava em Recife, assisti no
Parque 13 de Maio a comícios políticos tanto de
Getúlio Vargas como do Brigadeiro Eduardo Gomes. Achei muito simpático Getúlio, o seu jeitão,
seu discurso e seu sotaque gaúcho, mas meu voto
era do Brigadeiro. Quando fui para Recife estudar no Colégio Salesiano, achava que uma pessoa
católica deveria votar realmente na UDN, porque
o PTB, partido de Getúlio, já era acusado naquela
época de ser representante dos comunistas. E o
PSD representava os coronéis políticos do interior. A UDN era o partido da redemocratização
do País, após 1945, representando a juventude
estudantil, as novas lideranças democráticas.
Em Recife, eu tinha um colega do Grêmio Literário
Joaquim Nabuco, chamado Jarbas de Holanda,
que militava na esquerda. Discutíamos muito. Eu
defendia as posições do Carlos Lacerda, em relação à morte de Getúlio e ele tentava me mostrar
que o Lacerda estava errado e que Getúlio estava
certo. Levei muito tempo para me convencer e me
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tornar uma pessoa de esquerda. Isso só aconteceu
depois de 1960 quando, já na universidade e trabalhando no Movimento de Cultura Popular, convivi com a juventude estudantil ligada à esquerda
e aos poucos fui me conscientizando até me filiar
ao Partido Comunista Brasileiro em 1962. Militei
até 1968, quando o AI-5 foi instaurado no País e
o partido suspendeu as reuniões para evitar que
alguém fosse preso. A essa altura eu já estava no
Rio de Janeiro, fazendo teatro e cinema e convivendo com pessoas que se tornariam militantes e
se ligariam mais tarde à resistência armada.
Um parêntesis: no Rio, embora mantivesse uma
relação de amizade com o partido e suas lideranças, não voltei a me filiar. Fui militante comunista
sem deixar de ser católico e cristão. No início,
quando me filiei em Recife, tive muitas discussões
com minha mãe. Ela notou meu afastamento da
igreja e cobrava minha presença nas missas aos
domingos – e cobrava até que eu me confessasse.
Mesmo sem atender ao pedido dela, continuava
cristão. Estudei materialismo histórico, materialismo dialético, história do Partido Comunista no
mundo e muita coisa. Assisti a cursos de colegas
que estudaram na União Soviética e que, de volta
a Recife, nos reuniam para repassar o que aprenderam. Um comunista cristão: seria um paradoxo?
Há pessoas que têm dificuldade de acreditar em
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Deus, eu sou o contrário, tenho muita dificuldade
em não acreditar em Deus. Me casei na igreja,
meus filhos estudaram em colégios religiosos,
foram batizados, seguem os rituais católicos. Hoje
me considero um socialista cristão.
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Caminhão = Progresso
No sertão, àquela época, o caminhão simboliza o
desenvolvimento, o progresso, a chegada da tecnologia do século 20. Primeiro, tivemos o carro
de boi, o cavalo, o burro. Depois chegou o trem,
que era rápido, mas não tinha a mobilidade do
animal, pois corria em linha reta, não parava em
cidade fora da rota. Quando se precisava chegar
a cidades menores, tínhamos que ir de caminhão
ou automóvel. O trem fazia a linha de Recife a
Caruaru, e depois a Pesqueira, Arco Verde. Só
chegou a Sertânia em 1938. Demorou mais uns
quinze anos para ir até a Serra Talhada. Então
limitava o espaço, e o caminhão avançava, ia até
o alto sertão transportando cargas e cruzando
as cidades.
Meu pai, homem que vivia de negócios, preocupou-se em comprar um caminhão e usá-lo como
um instrumento de trabalho nas compras de uma
cidade a outra. Era o caminhão, um motorista,
eu e meu pai a viajarmos para cima e para baixo.
Quando jovem, ele transportava a mercadoria
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em tropas de burro. Ele estava sempre imaginando modos de progredir. E o caminhão era, ainda
é, um desbravador do sertão, que encurta a distância entre cidades. No território livre que era
o sertão no tempo dos cangaceiros, a locomoção
era muito difícil. Com o caminhão, essas cidades
ficaram muito mais próximas e os espaços para
cangaço também foram diminuindo. Ficou mais
fácil para a polícia procurar Lampião.
O caminhão aproximou as grandes cidades nordestinas. E meu pai estava nesse movimento.
Com ele conheci Recife, cidade grande, entrecortada por rios, uma cidade poética, bonita. Até
hoje me encanto com o rio Capibaribe, que cruza
a cidade em diversos lugares. Atravessada pelas
águas do rio, Recife passou a ser conhecida como
a Veneza Brasileira e fica ainda mais bonita nos
últimos tempos com a iluminação no Natal. Nela
surgiram poetas de expressão nacional, desde
Manuel Bandeira, Mauro Motta, Carlos Pena
Filho e tantos outros. E hoje são os músicos pernambucanos que estão aí, como Alceu Valença,
que cantam as belezas da cidade.
53
A Sedução do Frevo
A musicalidade de Pernambucano está muito
presente no frevo, que fascina brasileiros e estrangeiros durante o carnaval. Ritmo próprio da
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terra, o frevo tem sua raiz em Recife, está enraizado em Pernambuco, de onde realmente nunca
saiu. Pode ter apresentações em São Paulo e no
Rio, mas o frevo pertence a Recife. Este ritmo
nasceu no final do século XIX, nos carnavais de
Recife, e ainda hoje está lá, permanente, com
grandes orquestras à base de metais, num som
forte que esquenta. Frevo vem de fervendo. Ao
mesmo tempo tem uma leveza, uma coreografia
lindíssima. Você passa horas e horas assistindo
a uma bailarina de frevo. Além de acompanhar
os blocos, ela também fica ali em um lugar só
para dançar frevo e você fica assistindo a diversas
coreografias. Até crianças com 10 anos dançam
frevo maravilhosamente bem.
Quando cheguei a Recife fui me encantando com
essas coisas todas, vivendo tudo isso. Nos carnavais, havia o corso, que era o pessoal passando
nos automóveis e jogando talcos, serpentina e
confetes nas moças das calçadas. O corso acontecia na Rua Nova, que era uma rua principal.
Eu assistia a tudo aquilo, como um sertanejo
perdido, e ia me encantando com a musicalidade
e com as coisas todas que aconteciam. Me lembro
de músicas de carnaval na época: Tomara que
chova três dias sem parar. Foi um carnaval que
choveu muito. Lembro-me de músicas como Uma
cigana leu a minha mão/ e foi dizendo assim/
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tiveste uma grande paixão/ cigana mentirosa/
leva o meu dinheiro/ deixa de prosa/ eu jamais
amei. Eram versos de uma marcha de carnaval
fantástica. Nos frevos de rua, às vezes não havia
letra: eles só acompanhavam os blocos. Era tudo
muito rico, acontecendo todo ano, se repetindo
e isso fica em você.
Ao longo do rio Capibaribe, entre a Rua da Aurora e a Rua do Sol, tem uma espécie de banco
que fizeram ao longo da calçada, como uma
continuidade de uma pequena parede onde as
pessoas vão namorar, procurar namorados, onde
chamam de quem me quer. Você se vestia, se
perfumava e ia para o quem me quer arranjar
namorada. Esse quem me quer era uma piada
comum no meu tempo de adolescente.
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Recife foi me encantando com tudo isso, além
de acalentar o sonho de realizar meu projeto de
vida. De início, tive dificuldade, porque fiquei
cuidando do negócio que meu pai montou para
mim e para o meu irmão. Mas depois que me matriculei no Colégio Salesiano e comecei a estudar
sistematicamente e a trabalhar, visualizei meu
projeto e vi que dali para a frente realizaria o
que queria. O que realmente aconteceu: trabalhei, estudei, criei minhas condições de sobrevivência sem pedir dinheiro em casa. Eu estudei já
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com essa convicção. Tanto que no admissão até
o 3o clássico nunca fui reprovado nem fiquei em
segunda época. Eu estudava realmente: acordava às cinco, estudava até às sete, tomava café e
ia para o trabalho. Sempre tive muita facilidade
em estudar, em aprender as coisas. Não tive nenhum sacrifício para estudar, nenhum desespero.
Estudava com o maior prazer. À noite, ia para o
colégio com um colega meu da pensão, Prestes
Cavalcanti Macambira, que se tornou tabelião
e de quem fui muito amigo.
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Então, estudar não tinha nenhum mistério, foi
sempre algo que fiz de forma natural. A curiosidade da ciência, do saber. Sempre fui muito
interessado por literatura, história, geografia.
Tirava sempre boas notas. As coisas foram então
fluindo e fui trabalhando e me formando. Para
mim, a transferência do sertão para Recife no
meio da adolescência foi uma passagem natural, só me trouxe felicidade. Era uma vontade
que tinha desde pequeno. Uma vez, inclusive,
minha mãe chamou uma cigana e a mandou ler
a mão de todo mundo. Quando ela leu a minha,
disse que eu era uma pessoa com vocação para
viver distante da família, o que realmente terminou acontecendo. Eu ia, claro, passar todas
as férias no interior com a minha família. Mas
fui vivendo assim de 1949 até 1958. Quando
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meu pai faleceu, meus irmãos transferiram a
família de Pernambuquinho para Recife, onde
compramos uma casa. Foi nessa época que voltei a morar com a família, e fiquei com eles até
1964, quando vim para o Rio de Janeiro. Morei
com minha família durante quase todo o meu
tempo de universidade.
O Texas Bar e Maria Lúcia
Esse Texas Bar deve ter surgido em meados
da década de 1940. Nessa época, marinheiros
americanos circulavam pelo centro de Recife
em suas folgas na base naval que os Estados
Unidos instalaram graças a um acordo com o
Governo brasileiro. Os marinheiros, como é
conhecido no mundo inteiro, gostam de frequentar zonas onde têm mulheres. O Texas
Bar não era muito grande e tinha aquele tipo
de máquina de tocar música após você colocar
uma ficha. É o que se chamava juke box. Você
comprava as fichas, colocava e apertava o botão da música desejada.
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Nos anos 1950 e 1960, esse bar localizado no perímetro da zona do meretrício era frequentado
por profissionais liberais, jornalistas, intelectuais
e estudantes. Os boêmios iam lá para beber e
ouvir música. Durante muito tempo frequentei
o local. Foi no Texas Bar que conheci Maria Lú-
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cia. Menina do interior, ela fora expulsa de casa
pelo pai por ter sido desonrada pelo namorado.
Depois de morar na casa de um parente em São
Lourenço da Mata, cidade vizinha ao Recife, sem
maiores condições de sobrevivência, ela optou
pela prostituição. Com 19 anos, ainda com sua
beleza juvenil, esbelta, cabelos castanhos lisos
até um pouco abaixo do ombro, Maria Lúcia era
uma menina bonita.
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Depois que conheci Maria Lúcia, começamos a
ficar juntos, bebíamos cerveja, ouvíamos música
na radiola do Texas Bar e depois íamos para a
pensão onde ela recebia seus clientes. A dona
da pensão achava que eu era fuzileiro naval.
Era uma pensão muito frequentada por fuzileiros e marinheiros. Eu era um jovem forte, fazia
musculação, remava três vezes por semana no
rio Capibaribe. Deve ter sido por causa do meu
porte atlético que a dona da pensão me confundiu com um fuzileiro naval. Algumas vezes,
quando uma patrulha naval procurava fuzileiros
desgarrados, essa mulher me escondia junto com
os americanos, em diferentes quartos. Uma vez
eu lhe disse que não era fuzileiro. Não adiantou:
Tá brincando comigo, te esconde logo que a
patrulha já tá subindo a escada! A pensão ficava
num sobrado.
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Maria Lúcia vivia por ali, frequentava um outro
bar e eu, sempre que ia passear na zona, me
encontrava com ela. Quando não a encontrava,
procurava outra, mas pelo menos uma vez por
semana ia até a zona do Recife. Ia geralmente
por volta das 10 horas e pegava o ônibus de
meia-noite pra Imbiribeira onde eu morava
com minha mãe e meus irmãos. Geralmente eu
ia acompanhado de um amigo meu, o Aquiles,
um artista plástico. Lá encontrávamos amigos,
batíamos papo e tal. Ele também tinha uma
namorada na zona. Um dia resolvemos ir até a
zona e combinamos que não sairíamos com as
antigas namoradas, e que iríamos procurar novas
mulheres. Cheguei até a encontrar Maria Lúcia
andando pelas ruas, ao lado de um guarda noturno e um investigador de polícia, conhecidos
na zona. Evitei me aproximar e continuei andando com Aquiles em busca de novas mulheres. De
repente, entro num bar e lá está a Maria Lúcia
com os dois homens, bebendo e rindo. Eu tinha
entrado nesse bar atrás de uma outra garota.
Quando deparei Maria Lúcia, voltei rápido. Mal
saí da calçada, ela veio correndo do bar, se jogou nas minhas costas, me agarrou pelo pescoço
e gritou: Tá fugindo de mim, seu ingrato! Me
desculpei, falei que não a vira, que tinha que ir
para casa. Mesmo estando meio alta, ela não se
convenceu. Tentei acalmá-la, tirando do bolso
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uma nota que ela pegou e botou no sutiã. Ela
voltou para o bar, e eu parecia ter controlado a
situação. Mas me enganei.
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Quando estava saindo, ela reapareceu. Plantouse na minha frente e começou a discutir comigo,
já com palavras agressivas, se sentindo rejeitada. Eu tentava me desculpar, ela não ouvia. De
repente, ela rasgou a blusa e a jogou no chão,
ficando somente de sutiã. Depois pegou a saia
e fez a mesma coisa, rasgou e jogou no chão,
ficando de calcinha em plena rua. Fiquei desarvorado, sem saber o que fazer, quando surgiu
um grupo de marinheiros. Eles nos cercaram,
seguraram a Maria Lúcia, apanharam as peças
rasgadas e tentaram vesti-la novamente. Tentei
cair fora. Um marinheiro foi atrás de mim e disse: Volta companheiro, a mulher é sua, leve ela
para casa. Você não vai deixar ela na rua nessa
situação. Então, como um noivo carregando a
noiva, atravessei a rua, levando-a nos braços até
a pensão. Depois de subir as escadas, a coloquei
na cama e preveni a dona da pensão sobre o
investigador e o guarda que estavam bebendo
com ela. Eles poderiam aparecer por lá. A dona
da pensão prometeu ficar de olho. Assim que a
deitei, ela adormeceu rapidamente. Fiquei ao
lado dela até às 4 horas da madrugada (a confusão acontecera entre meia-noite e uma hora).
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Levantei-me, peguei os cruzeiros que eu dera a
ela na rua e que os marinheiros me devolveram.
Coloquei o dinheiro na mesa da cabeceira e escrevi um pequeno bilhete: Tenho que ir, tenho
compromissos. Voltarei em breve. Adeus.
Durante seis meses evitei ir à zona para não
encontrar Maria Lúcia. Mas a revi por acaso. Eu
andava por uma calçada, e ela por outra. Eu a
vi e ela me viu. Não atravessou a rua para falar
comigo. Não fui falar com ela. Nossa história
terminou aí...
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Parte 2
O Homem: Tempo da Formação
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Capítulo I
Educação no Estudo e na Vida
Na primeira vez em que morei em Recife, fiquei
na casa de um amigo do meu pai. Como cheguei
à capital em maio, perdi a época da matrícula
nas escolas. Comecei então a ajudar o amigo do
meu pai numa mercearia. No ano seguinte, ele
vendeu a mercearia para meu pai. O irmão mais
novo do meu pai foi tomar conta da mercearia
e de mim. Enquanto cuidávamos da mercearia,
esqueci de colégio e de meu projeto de educação. Depois de uns seis meses, a mercearia foi
à falência. Sem ter o que fazer, tentei ir para a
Aeronáutica, mas não passei no exame de saúde. Para não ficar desocupado, fui trabalhar no
comércio: me empreguei numa loja de miudezas
na Rua do Rangel, que é uma espécie de Saara
do Rio de Janeiro, cheia de libaneses. Trabalhei
cinco anos nessa loja. Larguei o emprego para
retomar os estudos. Foi uma época difícil, mas
definitiva, pois estava abrindo as portas para o
que mais desejava: estudar.
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Quando morava no interior, não consegui completar o curso primário. Tive que me matricular
no Colégio Salesiano para fazer o exame de
admissão. Estudava à noite, trabalhava de dia.
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No final do ano, entrei no ginásio. Daí pra frente
fui embora direto. Tudo começava a mudar e
eu descobria minha direção. O que ganhava no
comércio dava para pagar a pensão e o colégio
e ainda sobrava dinheiro. Comprei a prestação
meu primeiro terno – um terno de tropical,
azul-marinho, Aurora. E mergulhei fundo nos
estudos. Durante o dia, trabalhava no comércio,
e à noite ia para o colégio. Quando tinha deveres
para fazer em casa, acordava às cinco horas da
manhã, ia para um alpendre que tinha na pensão
e ali ficava estudando até as cinco horas. Às cinco
tomava café, andava a pé uns quinze minutos e
às oito estava na loja pra trabalhar. Fiz todo o
ginásio neste sistema.
Ao começar o segundo grau, no Colégio Carneiro
Leão, estava com 22 anos, já tinha saído da loja
e trabalhava para uma firma do Rio de Janeiro
como vendedor de perfumarias. Essa companhia, Dyrce Industrial S/A, me convidou para ser
caixeiro-viajante no Estado da Bahia. Eu topei e
tranquei o colégio. Vim para Salvador, de lá fui
para Ilhéus. Viajava por todo o interior da Bahia.
A essa altura, a companhia me chama para fazer
um estágio na matriz, no Rio de Janeiro. Comprei a passagem pela Real Aerovias, saindo de
Jequié. Era um sábado e no avião pegamos um
temporal na altura do Espírito Santo. O avião
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balançava muito. Na entrada da porta que dá
para a cabine do comandante uma placa dizia
que aquele avião tinha conduzido a imagem
de Nossa Senhora de Fátima quando esteve no
Brasil. Aí eu disse: Ah, não vai cair não!
Descoberta do Rio
Cheguei ao Aeroporto Santos Dumont, peguei
um táxi e fui para um hotel que ficava na Rua dos
Andradas, onde hoje é um motel de alta rotatividade. A firma ficava na mesma rua lá embaixo,
depois da Avenida Presidente Vargas. O estágio
na companhia deveria durar um mês. De vez em
quando vinha um diretor e falava algumas coisas de venda, que não me mobilizavam. Então
eu conheci o Rio, o Cristo Redentor, o Pão de
Açúcar, aproveitei para conhecer tudo, andei de
bonde para cima e para baixo. O ano era 1956.
Fui de bonde até Ipanema e voltei. Me lembro
que achei longa a Avenida Nossa Senhora de
Copacabana. Chegava na Cinelândia no sábado
à noite e parecia uma festa, era muita gente de
terno e gravata. A Cinelândia era tomada por
salas de exibição, uma atrás da outra – desde
a esquina onde fica o Odeon até o famoso bar
Amarelinho, na Rua Alcindo Guanabara. Além
de ver filmes e mais filmes, assisti a várias peças
de teatro ali. Achei fantástico tudo aquilo!
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Quando voltei para a Bahia mudaram meu território de vendas, e passei a viajar para Aracaju,
capital de Sergipe. Conheci Aracaju e depois
fui de cidade a cidade até Salvador, onde ficaria baseado. Com tantas viagens pelo interior,
não deu para estudar naquele ano. Mas no ano
seguinte me matriculei no Colégio Ipiranga de
Salvador, instalado numa casa que fora da família de Castro Alves – ainda tinha o quarto onde
o poeta morreu. O colégio ficava na Ladeira do
Sodré, na Cidade Alta. Foi lá que fiz o primeiro
ano do curso clássico. Em março, a firma me
dispensou. Tranquei a matrícula e voltei para
Recife. Para não perder o ano, me matriculei no
Colégio Padre Félix, em Recife. No segundo ano
clássico, voltei para o Carneiro Leão, onde tinha
começado. Enfim, fiz o segundo e o terceiro anos
no tradicional Colégio Estadual de Pernambuco.
Concluí o ensino secundário no Colégio Estadual
de Pernambuco em dezembro de 1959. Nesse
colégio, que se chamava então Ginásio Pernambucano, conheci professores muito interessantes.
Moacir de Albuquerque, o professor de Literatura Brasileira, me estimulou a ler e refletir sobre
os autores brasileiros. Com o historiador Amaro
Quintas passei a me interessar pela história do
Estado de Pernambuco. Em Física, o mestre era
Luiz Inácio, e em Matemática, Estelita Lins.
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Capítulo II
Arte e Política na Universidade
Fiz vestibular para Direito no início de 1960 e
fui reprovado porque não tinha estudado bastante. Durante o segundo semestre de 1960,
resolvi fazer o curso Torres, curso tradicional de
Recife preparatório para o vestibular de Direito,
onde fui colega de muitos estudantes que hoje
são advogados famosos em Recife. Tentei mais
uma vez o vestibular de Direito e fui reprovado
novamente. Mas ao mesmo tempo também fiz
vestibular para a Escola de Belas Artes, para a
área de artes dramáticas. Passei e resolvi seguir a
carreira de ator e diretor: dramaturgia. Como já
estava ligado ao teatro, através do Teatro Adolescente do Recife e do Teatro Popular de Cultura,
não voltei mais a tentar o vestibular de Direito.
Fiquei nessa área como professor de dramaturgia do curso de cinema da Universidade Federal
Fluminense e ator de teatro, cinema e televisão.
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Na universidade conheci pessoas que se tornaram meus amigos, como Lúcio Lombardi, hoje
diretor do espetáculo sacro de Nova Jerusalém,
que acontece todos os anos em Fazenda Nova,
no agreste pernambucano, e Dolores Maciel,
pianista e professora de música da Universidade
Federal de Pernambuco. Conheci também o hoje
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Turma do Curso Torres, preparatório do vestibular de
Direito - Recife/PE, 1960
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José Marinho, Dolores Portela, João Bosco de Moraes,
Susana Arcoverde, José Ary Mariz, Damianda Von Liebig:
foto tirada na posse do diretório acadêmico da Escola
de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco/
PE, 1962
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publicitário João Bosco de Moraes, com quem
compus uma chapa para o diretório acadêmico.
Fui eleito secretário e, posteriormente, com a
renúncia do Bosco, me tornei presidente do diretório durante um bom período do mandato.
Nessa militância acadêmica na universidade, me
aproximei de outras pessoas que participavam
do movimento estudantil em outras escolas. Uma
delas era Roberto Chabo, aluno de Medicina
que acabaria vindo para o Rio de Janeiro, onde
foi presidente do sindicato dos médicos. Chabo,
que militava no Partido Socialista, fez parte da
equipe de Santino Lyra, criador da Associação
Brasileira de Nefrologistas.
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Ainda no movimento estudantil, me aproximei
de outro militante que se tornou uma grande
liderança política, o atual senador Marco Maciel.
Ele começou sua militância ainda no colégio e
depois na faculdade de Direito, onde foi diretor
cultural do diretório. Promoveu diversos seminários sobre cultura, inclusive um com professores
da Sorbonne sobre literatura francesa, além de
outros sobre cultura brasileira. Depois foi eleito
presidente do diretório central dos estudantes.
Nós, os militantes de esquerda, fizemos uma
coligação com Marco, que era de centro, e trabalhamos junto com ele durante três anos na
política estudantil. Passávamos noites em claro
discutindo formações de chapas para cada dire-
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tório da universidade. Assim Marco exercia sua
militância na política estudantil, onde nunca
perdeu uma eleição.
O curso de artes dramáticas da Universidade
Federal de Pernambuco foi estruturado por
professores que vinham da área de Filosofia
e Letras, como Ariano Suassuna, Joel Pontes,
Hermilo Borba Filho e Gastão de Holanda. Estes
intelectuais trouxeram para o curso a parte mais
reflexiva da história da dramaturgia, da estética,
e enriqueceram a nossa educação com aulas sobre as literaturas grega, romana, medieval, moderna, portuguesa, brasileira e francesa. Na área
prática do curso, tínhamos disciplinas ligadas à
expressão corporal, técnica vocal, direção teatral,
interpretação, indumentária e maquiagem. Essa
estrutura levou o curso a ser reconhecido pelo
Ministério da Educação com o nível de bacharelado em artes dramáticas.
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A universidade ampliou o meu conhecimento
da história da cultura. Além da convivência com
esses mestres, havia também os professores e
alunos das outras áreas, como música, artes
plásticas, pintura, desenho, modelagem e arquitetura. Tudo isso compunha o universo estético
da escola. Na realidade, se tratava de um curso
dado por artistas para jovens artistas e criadores
de novas formas de linguagem.
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A Chegada ao Teatro
Em Recife, eu morava numa pensão na Rua da
Aurora, em cima da sorveteria Guemba. Tinha
muitos colegas e entre eles um que se tornou
meu amigo pelo resto da vida, o jovem ator e
futuro diretor Luiz Mendonça. Ele morava na
pensão, era funcionário da Secretaria da Fazenda e já trabalhava em teatro em Recife, às vezes,
até em grupos profissionais como jovem galã. Os
pais dele, seu Epaminondas Mendonça e dona
Sebastiana, tinham criado um espetáculo chamado A Paixão de Cristo, encenado anualmente no
povoado de Fazenda Nova, município de Brejo
da Madre Deus, no agreste pernambucano. Hoje
esse espetáculo, de reputação consolidada, é
encenado na Semana Santa num local específico
chamado Nova Jerusalém, criado pelo cunhado
do Luiz Mendonça, Plínio Pacheco. Tornou-se
com o tempo uma atração turística e hoje é feito
com participação especial de atores da TV Globo.
Quando conheci Mendonça, o espetáculo de
Nova Jerusalém era uma coisa embrionária. Era
realizado todos os anos, mas de forma precária e
o próprio povoado servia de cenário. O Mendonça me levou para assistir à encenação pela primeira vez em 1955. Eu me tornei o contrarregra
oficial, de 1955 até 1962. Nesse ano o espetáculo
foi suspenso para a construção da cidade de
Nova Jerusalém, por iniciativa de Plínio Pacheco,
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sargento da Aeronáutica e jornalista que se casou com a irmã do Luiz Mendonça, Diva, caçula
da família. Diva era uma jovem bonita, loira de
olhos azuis, uma holandesa no agreste pernambucano. Ela continua em Nova Jerusalém, com
seu filho Robson, hoje produzindo anualmente
o espetáculo com grande afluência de turistas,
não só de Pernambuco como do Brasil inteiro e,
às vezes, do exterior.
Esse meu vínculo com Mendonça foi me aproximando do teatro. Costumávamos assistir no
Teatro Santa Isabel a todas as apresentações de
companhias do Rio e de São Paulo que faziam
temporada em Recife. Assisti Cacilda Becker,
representando Pega-Fogo, e Paulo Autran interpretando Otelo num julgamento simulado
promovido pelo Pascoal Carlos Magno, com a
participação de dois juristas famosos como acusador e defensor: Evandro Luiz e Silva e Carlos
de Araújo Lima. Assisti também a concertos
de pianistas estrangeiros. Fui me educando na
música clássica, no teatro, e gostando cada vez
mais. Um dia, Luiz Mendonça me chamou para
assistir ao curso de Maria José Campos Lima, uma
jovem pernambucana que fazia curso de teatro
na Escola de Arte Dramática de São Paulo, dirigida pelo saudoso Alfredo Mesquita. Essa escola
marcou época na geração de atores paulistas e
hoje está incorporada à Escola de Comunicações
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e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, na
qual eu viria a estudar depois durante o meu
mestrado na USP. Fiz algumas disciplinas com
Clóvis Garcia e Bárbara Heliodora.
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Nesse curso, Maria José falava do sentido de teatro, da Escola de Arte Dramática de São Paulo
e da formação profissional. O rigor da disciplina
do ator, a postura, a voz, o ritmo. Ela nos dava
noções básicas do ensino da arte dramática. Isso
durou mais ou menos um mês, quando terminaram as férias e ela voltou pra São Paulo. Nas
férias seguintes, quem ocupou esse espaço, no
mesmo local, o Colégio Estadual de Pernambuco,
foi o dramaturgo Ariano Suassuna. Na época, ele
estava terminando de escrever o Auto da Compadecida, e em cada ensaio levava cenas da peça
para que ensaiássemos. Cheguei a ser escalado
para fazer o personagem Severino de Aracaju.
Isso foi em 1956. Desse curso nasceu um dos grupos mais expressivos do teatro pernambucano
na época. Ariano Suassuna e Luiz Mendonça
reuniram estudantes desse colégio e de outros
para formar o Teatro Adolescente do Recife, já
que todos eram muito jovens ainda. Ariano foi
eleito o presidente e Luiz Mendonça o diretor
artístico. Montaram o Auto da Compadecida sob
a direção de Clênio Vanderley e vieram para o
festival de teatro promovido pela Fundação Dul-
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cina de Moraes no Rio de Janeiro. Participaram
do festival e ganharam o primeiro lugar. A peça
foi muito aplaudida e os jornais e suplementos
dominicais não pouparam elogios a Ariano
Suassuna. Surgia no teatro brasileiro uma nova
linguagem teatral, popular, mas inspirada na
comédia clássica – a de Aristófanes na Grécia,
Plauto em Roma, Goldoni na Commedia dell´arte
e Molière na comédia francesa.
Eu estava afastado, na Bahia. Voltei para Recife
em 1957 e me filiei ao grupo automaticamente, mas comecei fazendo pequenos papéis, já
que era muito tímido e ligado às funções de
contrarregra e administração. Esse grupo se tornou o Teatro Popular de Cultura (TPC), quando
nos ligamos ao Movimento de Cultura Popular
(MCP), por volta de 1960. Aí trabalhamos até
1964, quando houve o golpe militar e fomos
acusados de subversivos. O grupo foi encerrado
e seus participantes tiveram que se virar. Uns
ficaram em Recife e continuaram estudando
nas suas faculdades, outros vieram para o Rio
ou São Paulo. Luiz Mendonça e Ilva Niño vieram
para o Rio de Janeiro, logo após o golpe. Tudo
foi feito depois de fecharmos o grupo e prestarmos contas à fundação do MCP. Para isso fomos
apoiados pelo escritor Ariano Suassuna, que nos
acompanhou na prestação de contas para evitar
que fôssemos presos. Luiz viajou em seguida para
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o Rio, com Ilva. Eu e José Wilker, depois de uma
temporada ainda em Recife, resolvemos ir para
o Rio, onde chegamos em setembro de 1964.
Aqui nos reunimos com Mendonça e fundamos
o grupo teatral Chegança, que Mendonça dirigiu
até morrer em 1995.
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Com Mendonça, trabalhei em diversos momentos. Primeiramente, na montagem de As Incelenças, de Luis Marinho Falcão, com direção de
Luiz Mendonça, e Morte e Vida Severina, de João
Cabral de Melo Neto, dirigida pelo Carlos Vereza.
Voltei a trabalhar com Mendonça em 1973, numa
remontagem das Incelenças e na encenação de
outra peça de Luis Marinho, A Afilhada de Nossa
Senhora da Conceição. Dessa montagem, saíram
atores como Tonico Pereira, Tânia Alves e Imara
Reis. Posteriormente, em 1974, a montagem
de Viva o Cordão Encarnado, também do Luiz
Marinho, revelaria Elba Ramalho, hoje grande
cantora da música popular brasileira.
Entre os muitos atores e atrizes que trabalharam
conosco não poderia deixar de citar Ilva Niño,
que continuou atuando na televisão e no teatro e comprou um espaço próprio na Rua Mem
de Sá, na Lapa, onde fundou o Centro Cultural
Niño de Arte Luiz Mendonça, em homenagem
ao marido Luiz Mendonça e ao filho Luis Carlos
Niño, ambos de saudosa memória.
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José Marinho na peça As Inselenças, Teatro de Arena da
Guanabara, Largo da Carioca/RJ 1973
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José Marinho na peça As Inselenças - Teatro de Arena da
Guanabara, Largo da Carioca/RJ, 1973
Peça As Inselenças: Teatro de Arena da Guanabara, Largo
da Carioca/RJ, 1973
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Movimento de Cultura Popular
Em 1958 houve uma virada política em Pernambuco. O advogado Cid Sampaio foi eleito
governador numa coligação da UDN com outros
partidos. Essa vitória foi festejada com muito entusiasmo, pois a UDN nunca havia conquistado o
governo estadual. Foi chamado o ano da virada,
título de um frevo de Nelson Ferreira, cantado
e dançado no carnaval de 1959. No grupo que
apoiava Cid Sampaio, estava o economista Miguel Arraes de Alencar, que se candidata em
1959 à Prefeitura de Recife. Foi eleito e já na organização do governo o professor Germano Coelho, da Universidade Católica de Pernambuco,
propôs a criação de uma fundação educacional
fora dos padrões tradicionais do ensino regular.
Germano estudara na França onde manteve
contato com um padre que trabalhava em um
projeto nessa direção. Germano propôs ao Prefeito Miguel Arraes a criação desse movimento,
contando com o apoio de professores como
Paulo Freire e Anita Paes Barreto, entre outros
educadores pernambucanos. O movimento foi
organizado e Luiz Mendonça foi convidado
para dirigir a Divisão de Teatro. O que fizemos
então? Incorporamos o Teatro Adolescente no
movimento com o nome de Teatro Popular de
Cultura (TPC). O Movimento de Cultura Popular
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abrangia diversas áreas, a principal era a educação, seguida por esporte, cultura popular, teatro
e, se não me engano, também tinha uma divisão
de saúde.
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Mendonça assumiu a Divisão de Teatro e formou
o grupo, convidando pessoas que já trabalhavam
no Teatro Adolescente ou não. Nesse grupo,
todos nós ganhávamos um salário mínimo e,
dependendo das funções, às vezes até um pouco mais. Era um dinheiro que dava para nos
mantermos e continuar fora do grupo estudando, pois muitos de nós fazíamos faculdade ou
ainda colegial. A Divisão de Teatro tinha como
orientação montar espetáculos ligados à cultura
popular e voltados para a problemática social
da época. Dentro deste tema, montamos pela
primeira vez As Incelenças e A Afilhada de Nossa Senhora da Conceição, de Luiz Marinho. Nós
participávamos dos festejos natalinos e juninos
do Recife através de apresentações de grupos
folclóricos da cultura regional. Assim, no Natal
eram convidados os grupos de pastoris, inclusive
o grupo dos irmãos Valença, um dos mais famosos e tradicionais de Recife. E participávamos de
todas as manifestações populares relacionadas
com as festas natalinas. Em média eram duas semanas de festas com espetáculos todas as noites
com portões abertos.
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A apresentação dos espetáculos era no sítio
Arraial do Bom Jesus, onde se travou uma das
grandes batalhas dos portugueses contra os holandeses. Nesse local foi montado um teatro em
forma de concha acústica, estilo teatro grego.
Então eram convidados violeiros do Nordeste,
sanfoneiros, inclusive Luiz Gonzaga, que cantou
lá diversas vezes. Tudo isso se repetia nas festas
de São João, em junho e em julho. Só que agora
com as manifestações populares ligadas às festas
juninas. Nas festas, além dos espetáculos, eram
montadas barracas de comidas típicas da época.
Era um entrosamento muito bonito entre o povo
e os artistas populares. Eu, Luiz Mendonça e
Aluísio Falcão éramos os locutores oficiais dessas
festividades. Era um trabalho que terminei fazendo nos desfiles de carnaval na Avenida Conde
da Boa Vista todos os anos. Era sempre convidado também para fazer a locução da Missa do
Galo na praça do Derby, realizada anualmente
pelo Arcebispo de Recife. Mais tarde José Wilker
também se tornou um destes locutores de pista.
83
Os estudantes convidados pela Divisão Educacional do MCP para a aplicação do método Paulo
Freire no interior do Estado tinham ou cursavam
o segundo grau ou até mesmo universidade. Nenhum professor de carreira do Estado podia participar do programa. O Governo se interessava
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em aproveitar jovens sem formação nos sistemas
de ensino tradicionais. O grupo de educadores ia
pelos engenhos da Zona da Mata alfabetizando
os camponeses nos intervalos entre o final do dia
de seu trabalho e a ida a casa para jantar. Às vezes até algumas turmas eram formadas à noite,
após o jantar dos camponeses. O nosso grupo de
teatro apresentava os espetáculos nesses locais.
Após a encenação, havia sempre um debate com
a plateia. Assim, o grupo se integrava ao sistema
educacional como um todo.
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Nesse momento o nosso grupo se dividiu em
dois. O pessoal que montava espetáculos para ir
ao interior ficou sob direção de Luiz Mendonça.
Eu fiquei com a direção do grupo que montava espetáculos para apresentações nos ciclos
operários nos bairros de Recife. Dentro deste
projeto, montei Formiguinho, peça de Arnaldo
Jabor, que na época pertencia ao CPC da UNE.
Essa peça foi um sucesso entre os operários e a
população pobre dos subúrbios de Recife. Nosso
núcleo era um bairro de operários, o Dois Unidos,
onde recrutei todo o elenco entre os filhos dos
moradores locais.
No governo de Agamenon Magalhães, foi implantado nos bairros da capital um programa
comunitário que tinha caráter social e artístico.
Em cada bairro, era montado um pequeno teatro
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com plateia e palco, que serviam para reuniões
das associações de moradores e eventos sociais
daquelas comunidades. Aproveitando esses espaços, fazíamos os nossos espetáculos. Alguns
atores que se destacavam nesses trabalhos eram
convidados a participar do nosso núcleo central.
Quando entrei no MCP, estava cursando a Escola de Belas Artes da Universidade Federal de
Pernambuco, hoje Instituto de Artes, e participando também da política estudantil universitária. Essa atuação junto à política estudantil e
ao MCP foi me conduzindo a uma convivência
com o pessoal de esquerda, de Ação Popular e
do Partido Comunista Brasileiro. Em 1962, me
filiei à juventude comunista e me liguei à base
política da Divisão de Teatro do MCP. Aí fui
sendo eleito em diferentes funções e cheguei a
secretário-geral da base, em 1964. No início de
1964, o partido promoveu em Recife um congresso de todas as bases do MCP. Fui eleito para
presidir o congresso, secretariado pela colega,
hoje professora universitária, Liana Aureliano.
Nesse congresso nós tiramos um documento
com as diretrizes do Movimento Cultural Popular
para os próximos anos. Nada disso aconteceu: o
golpe militar acabaria com tudo. Parece que foi
editado em Pernambuco um livro que conta a
história deste congresso.
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Arena e MCP. A partir de 1961, o Teatro de Arena
começou a fazer excursões pelo Nordeste levando
montagens feitas em São Paulo. Na época o Arena
era dirigido pelo Augusto Boal e tinha no elenco
Nélson Xavier, Lima Duarte, Juca de Oliveira, Gianfrancesco Guarnieri, Dina Sfat, Milton Gonçalves,
Joana Fomm e outros artistas igualmente importantes. O Arena ia quase anualmente ao Recife. O
Governo Arraes, dentro de uma política de apoio
ao teatro, oferecia hospedagens ao grupo. De
Recife, onde estava sediado, o Arena viajava nos
fins de semana para capitais como João Pessoa,
Maceió, Fortaleza, onde apresentava espetáculos.
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Além da temporada que no Teatro Santa Isabel e
na Concha Acústica do MCP, o Arena desenvolvia
outras atividades. Boal indicava atores como Nélson Xavier ou Mílton Gonçalves para dar cursos
de interpretação. E ele próprio se encarregava de
promover seminários de dramaturgia de textos.
Também falava das teorias de interpretação,
principalmente de Bertolt Brecht. Essa presença
do Arena deu ao nosso grupo um panorama mais
amplo da cultura teatral, indicando novas fontes
de informações sobre a história do teatro e a
sua prática. Quando Nelson Xavier demonstrou
interesse em ficar uma temporada conosco, tivemos que propor ao governador Miguel Arraes
uma contratação fora dos padrões tradicionais
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do MCP. Xavier ficou conosco mais ou menos
um ano, trabalhando com dramaturgia do ator.
Além de cursos internos, ele dirigiu a montagem
de Julgamento em Novo Sol, peça de Augusto
Boal, Hamilton Trevisan, Modesto Carone, Benedito Araújo e Nelson Xavier.
Do lado do MCP, houve a montagem de As Incelenças, sob a direção de Luiz Mendonça, e formamos juntamente com o Julgamento em Novo
Sol um repertório para viagens a Brasília e ao
Rio de Janeiro, o que fizemos durante o mês de
fevereiro de 1963. Viajei para Brasília no avião
que levou os deputados federais e senadores que
tinham ido a Recife assistir à posse de Arraes. Em
Brasília, fiquei preparando a vinda do grupo uma
semana depois. Consegui o teatro da Escola Parque de Brasília para apresentação dos espetáculos.
Divulguei nos jornais (o Correio Braziliense fez
uma cobertura muito boa, com matérias de página
inteira). As apresentações em Brasília foram um
sucesso. Além das Incelenças e do Julgamento de
Novo Sol, tínhamos no repertório a peça infantil
de Maria Clara Machado, A Volta do Camaleão
Alface, cujo papel-título era feito pelo José Wilker.
Esse espetáculo infantil foi apresentado inclusive
no Palácio da Alvorada para a família do Presidente Jango. Lembro que na plateia estavam a
primeira-dama, Dona Tereza Goulart, e seus filhos.
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Após a temporada de Brasília, viajamos para
o Rio de Janeiro. Apresentamos duas peças no
antigo Teatro Nacional de Comédia, na Avenida Rio Branco, onde está hoje o Teatro Glauce
Rocha. O sucesso aí foi absoluto. Jornais do Rio
recebiam com muito entusiasmo nosso espetáculo, destacavam uma juventude que apresentava uma nova forma de teatro, representativo
da realidade brasileira daquele momento sem
radicalismos políticos. Lembro que o jornal Para
Todos deu uma longa matéria de página inteira
analisando os dois espetáculos: As Incelenças e
Julgamento de Novo Sol.
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Voltamos para Recife cobertos de glórias e com
possibilidades de ser convidados pelo Itamaraty
para representar o Brasil no festival de Nancy,
na França, o que não aconteceu por problemas
políticos posteriores. Nossas viagens Recife –
Brasília – Rio – Recife foram feitas em aviões
da Força Aérea Brasileira. Nessa época, a FAB
transportava tanto estudantes para congressos
(como os da UNE) como grupos teatrais de estudantes como o nosso, ligado então ao governo
de Pernambuco.
Arraes e o MCP
Nosso grupo pensava que o futuro ia mais longe do que realmente foi. O planejamento era
de longo prazo. Mas o governador Arraes, que
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nos apoiava, ficou no poder apenas um ano e
pouco. Foi um impacto sua derrubada, já que
pretendíamos desenvolver o projeto por mais
quatro anos. Nosso pessoal só passou a se preocupar, de fato, com o golpe militar em abril de
1964, quando as coisas se complicaram no nível
federal, principalmente no Rio de Janeiro. Foi a
partir daí que as coisas começaram a refletir em
Pernambuco e chegar até nós.
O poeta Ferreira Gullar visitou Recife naquela
época para lançar seu livro Cultura Posta em
Questão, promovido pela editora do CPC da UNE.
Junto com Miguel Nilton Arraes, presidente do
MCP, fui incumbido de apresentar Gullar ao prefeito e ao governador. Depois, teria de apresentálo à direção do MCP. Fomos primeiro ao prefeito,
Pelópidas Silveira, e em seguida ao Palácio do
Governo. Quando chegamos ao palácio, Arraes
já tinha encerrado o expediente e se recolhido
aos seus aposentos. Mas o Miguel Nilton, que era
seu primo e amigo, pediu que o chamassem para
nos receber. Arraes desceu ao gabinete, conversou com Ferreira Gullar, perguntou pelo Nelson
Xavier, de quem gostava muito, apresentou-nos
um layout do cartaz de um ano de governo, e
enquanto conversávamos entrou o chefe de gabinete com uma correspondência urgente: era
um convite da Associação de Cabos e Marinheiros
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para uma reunião na semana seguinte. Arraes
determinou ao chefe do gabinete que mandasse
o capitão-chefe da guarda militar representá-lo
na tal reunião. E comentou conosco: Vejam em
que país estamos. Cabos e marinheiros fazendo
reuniões! Isso nos mostrou a preocupação de
Arraes com a política naquela conjuntura.
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Em outra ocasião, o pessoal encarregado de
trabalhar com educação no interior aplicando
o método Paulo Freire teve que interrompê-lo
por ordem da Secretária Estadual de Educação,
Anita Paes Barreto. Suspensos os trabalhos,
Arraes chamou a liderança do movimento para
discutir um problema ligado à relação da política
com a educação. Um colega nosso, Hugo, que
era um dos líderes do grupo do PCB, colocou
o problema: Dr. Arraes, nós estávamos trabalhando normalmente nos engenhos, junto aos
camponeses, quando a Dra. Anita mandou parar
nosso trabalho dizendo que nós, no lugar de
educarmos, estávamos agitando. Arraes o interrompeu: E não estavam mesmo? Mais uma vez
percebi a amplitude da preocupação de Arraes
com proselitismo político e o modo como isso
interferia na sua administração.
Quando estreamos com a peça O Julgamento de
Novo Sol no Teatro Santa Isabel, o governador
foi assistir. Ao final do espetáculo, aplaudiu e
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chorou. Ele perguntou: Qual é a intenção de vocês daqui para a frente? Em que lugares pretendem apresentar essa peça? E nós falamos: Junto
aos camponeses, nos engenhos. Ele observou,
preocupado: Não. Não quero que vocês provoquem agitação junto ao movimento camponês.
Essa peça pode ser apresentada nos bairros de
Recife junto aos operários sindicalizados e organizados pacificamente, nunca aos camponeses.
Arraes foi um político que nos deixou muitas
saudades. Nacionalista, socialista e com uma
visão histórica sempre adequada ao momento
político brasileiro.
Cabra Marcado para Morrer
A produção de Cabra Marcado para Morrer era
uma iniciativa do Centro Popular de Cultura
(CPC) da UNE com apoio do Movimento de Cultura Popular, em Pernambuco. Eduardo Coutinho e Marcos Farias estiveram lá para estudar
locações e fazer contatos com a direção do MCP
no sentido de apoiar a produção do filme. Coutinho voltou com Marcos para o Rio e nós, do
MCP, procuramos o Arraes durante um evento
esportivo para falar sobre o projeto do filme.
Arraes perguntou apenas por que o filme seria
só sobre Pedro Teixeira (líder camponês assassinado na zona canavieira da Paraíba). Arraes
ouviu e disse: Não gosto que façam distinção
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entre Pedro Teixeira e os outros camponeses. O
Pedro foi um líder, mas todos são trabalhadores
e estão na mesma luta. Não me agrada a criação
de heróis. Isso mostrava como Arraes evitava
destacar heróis entre o povo trabalhador ou
mesmo, no caso dos marinheiros, entre os militares subordinados. Ele não gostava de mitos.
Mesmo quando a grande imprensa do Sul e até
do Nordeste se referia a ele como mito do povo
pernambucano, Arraes recusava o título, dizia
que era apenas um joão-ninguém.
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Eduardo Coutinho voltou para filmar durante o
carnaval de 1964. Eu estava na pista do desfile
fazendo a locução, quando a equipe de produção chegou. Eles foram convidados para assistir
ao desfile no palanque da Prefeitura. Lembrome bem da presença de Sérgio Sanz, Cecil Thiré,
Fernando Duarte (fotógrafo), entre outros assistentes de produção e direção, incluindo Nelson
Xavier. Até hoje não sei bem por que ele estava
ali. Devia estar apenas de visita, porque não
demorou muito em Recife. Xavier, que é apaixonado pelo Nordeste e por sua música, ficou
atento à musicalidade da escola que estava passando na hora: o Clube das Pás Douradas. Tinha
um tocador de cuíca maravilhoso e o Xavier me
pediu, gritando do palanque, que aproximasse
o microfone ao máximo da cuíca para ele ouvir
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a musicalidade do instrumento. O músico parou
na frente dele e caprichou na cuíca. Eu coloquei
o microfone praticamente dentro da cuíca, por
baixo, e o Xavier no final aplaudiu.
Nesse carnaval trabalhei com alegria e prazer,
pois me realizava como locutor e como carnavalesco. De carnavais anteriores, só lembro que
trabalhava na Rua do Rangel e morava no bairro
de São José. Morava numa pensão na Rua do
Alecrim, paralela à Rua Augusta, famosa pelos
seus carnavais. São José sempre foi um bairro
carnavalesco: até hoje grandes blocos pernambucanos se localizam lá. O maestro Nelson Ferreira homenageia em um frevo o bairro de São
José, onde ele morava e criava os filhos. Rua das
Águas Verdes, Rua das Calçadas, Rua São João,
Voluntários da Pátria, Pátio de São Pedro, toda
essa área está lá intacta, menos as ruas Augusta
e Alecrim, derrubadas para a construção da Avenida Dantas Barreto. É o progresso destruindo a
memória e a beleza da cidade.
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A equipe do Cabra Marcado para Morrer desembarcou em Recife em pleno carnaval, e viajou
depois para o Engenho Galileia, no município
de Vitória de Santo Antão, onde começaram as
filmagens. No dia 1o de abril tiveram que sair
correndo de lá para não ser presos pelo Exército,
por ordem do Comando da 4ª Região Militar.
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O golpe militar acontecera. Isso causou um vexame muito grande, um impacto não só junto
ao pessoal do filme, como entre nós, do MCP.
Todos aqueles com alguma liderança (política,
administrativa, artística) tiveram que se esconder
para não ser presos. Eu, no MCP e como secretário da base da Juventude do Partido Comunista,
tive que ir à casa de diversos companheiros pedir
para eles se esconderem em qualquer lugar, menos na própria casa, evitando sempre endereços
conhecidos. A partir daí se instalou no País o
regime ditatorial que durou vinte anos. Quando retomou o projeto de Cabra Marcado para
Morrer, em 1983, Eduardo Coutinho resgatou
muitos desses momentos vividos pela militância
e os camponeses em Pernambuco.
Para Onde Fugir?
Durante a minha atividade no Movimento de
Cultura Popular, escrevi alguns artigos sobre
teatro popular nos suplementos dominicais do
jornal Última Hora de Recife. Um vizinho meu,
policial, um dia chegou à minha porta para comunicar que tinha visto meu nome nos jornais
como membro da Associação Brasil-Rússia e que
todas as pessoas que constavam naquela lista
deviam comparecer para prestar depoimentos.
Caso não se apresentassem, seriam presos. Saí
de casa e fui para casa de um irmão, onde fiquei
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alguns dias. De lá, fiz contatos por telefone com
Luiz Mendonça, que era o diretor da área de
teatro do MCP. Pouco antes do golpe ele tinha
recebido verbas para excursionar pelo interior
fazendo espetáculos nos engenhos junto com o
pessoal da educação que alfabetizava os camponeses com o método Paulo Freire. Os espetáculos
eram feitos numa área livre perto dos engenhos
no final da jornada de trabalho. Em seguida
entrava o pessoal da educação para dar aulas.
Luiz tinha recebido dinheiro para despesas de
viagem e precisava prestar contas na tesouraria
do MCP. Eu telefonei para o escritor Ariano
Suassuna e ele se ofereceu para ir comigo e Mendonça na sede, no Arraial do Bom Jesus, onde
prestaríamos conta sem ser molestados. Na direção do MCP já estava o novo diretor, o professor
Carlos Frederico Maciel, amigo e compadre do
Ariano. O antigo diretor, José Nilton Arraes de
Alencar, primo do Arraes, fugira com medo de
ser preso, e o novo governo, já sob a direção
de Paulo Guerra, tinha feito uma intervenção e
nomeado o novo diretor.
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Esse diretor fora meu professor de filosofia no
curso clássico. Ele parecia uma pessoa amigável,
que não pretendia perseguir ninguém. Notei a
diferença quando chegamos lá. O tesoureiro
antigo era José Marques de Mello, na época
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estudante de comunicação na Universidade Católica de Pernambuco. Ele já não exercia mais a
função. O substituto recebeu nossa prestação
de contas e por aí encerramos a relação com o
Movimento de Cultura Popular. José Marques
de Mello veio depois para São Paulo, se tornou
professor de jornalismo na Universidade de São
Paulo (USP), onde chegou a diretor da Escola
de Comunicações e Artes. Reencontrei-o anos
depois na ECA, quando fui fazer o mestrado.
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Aproveitei a oportunidade e manifestei a Ariano preocupação com meu nome nos jornais.
Pedi conselho: o que devia fazer – comparecer
e prestar esclarecimentos ou fugir para não ser
preso? Ariano respondeu em tom de brincadeira:
Marinho, se você deve à polícia, alguma coisa
tem que esclarecer. Caso contrário, a obrigação
dela é te prender e a tua obrigação é se esconder. Como eu sei que você não deve nada, eu,
sendo você, me escondia. Foi exatamente o que
fiz. Fui para a cidade de Monteiro, no sertão
paraibano, e fiquei lá mais de um mês na casa
do meu tio Januário. Era o sítio da minha avó,
onde eu tinha morado quando era pequeno.
Passei lá uma temporada muito agradável. Todos
os dias ia à casa da minha avó. Ela me oferecia
melancia, uma melancia doce que só mel. Durante a estadia na casa do meu tio, eu ouvia um
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rádio de pilha grande, que captava estações das
cidades do Pajeú, principalmente de Afogados
das Ingazeiras. Através dessa estação ouvíamos
o noticiário sobre o que acontecia em Brasília.
Após um mês e pouco, me mudei para a casa
da minha irmã Tereza, em Sertânia. Passava as
tardes conversando na barbearia ou com o padre Monsenhor Urbano de Carvalho, o tabelião
Valdemar Cordeiro e o promotor público (meu
primo) Aristóteles Siqueira Campos. Eu dizia
que estava de férias. Logo depois recebi uma
carta de meu irmão Jalmacy me comunicando
que ninguém tinha me procurado e que tudo
parecia mais tranquilo. Voltei para Recife e
retomei minha vida. Consultei um amigo advogado e ele recomendou que eu fosse depor,
porque eles queriam apenas esclarecimentos.
No depoimento, expliquei que minha relação
com os soviéticos era apenas cultural, já que a
Sociedade Brasil-Rússia pretendia apresentar em
Recife o balé Bolshoi e a Orquestra Sinfônica de
Moscou, entre outras manifestações culturais.
Só uma pergunta me incomodou: o que acha
do movimento militar de 1o de abril? Respondi
pela tangente. Falei que não tinha militância
política e não estava acompanhando as mudanças. O delegado insistiu: Mas você não acha que
agora as coisas estão mais calmas do que antes?
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De novo, saí pela tangente: É, realmente estão
mais calmas. E encerrei meu depoimento.
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Afastada a ameaça militar, eu tinha outro problema a resolver, mas agora de caráter trabalhista.
Era funcionário do Serviço Social contra o Mocambo, um órgão criado no governo Agamenon
Magalhães para apoiar os moradores dos bairros
pobres em relação às suas moradias, saneamento,
etc. Hoje se tornou Secretaria do Serviço Social. Eu
trabalhava aí como diretor de teatro nos centros
educativos dos bairros operários. Tinha salário e
vínculo empregatício. Para sair dessa situação embaraçosa, resolvi me demitir. Quando formalizei
o pedido, descobri que fora tachado de ligação
com os comunistas. A acusação fora feita pelo
motorista que eu tinha à disposição para ir ensaiar
os grupos teatrais nos bairros. Então propus que o
motorista fosse convocado para esclarecer. Quem
fazia as perguntas era o novo diretor do serviço
social, um advogado famoso em Recife. O diretor
disse que, segundo a informação que tinha, quando voltava dos ensaios aos sábados pela manhã,
o motorista não me levava até minha residência,
porque eu pedia para ficar na cidade, numa rua
próxima à sede do Partido Comunista. Argumentei que ficava ali não era para ir à sede do partido,
mas para pegar um ônibus e ir almoçar na casa
do meu irmão, que morava e negociava no bairro
do Pina. O diretor mandou chamar o motorista,
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mas ele não apareceu: tinha saído para o almoço.
Então o diretor decidiu: Fica o dito pelo não dito.
A sua palavra contra a dele. Eu lhe convido para
continuar trabalhando conosco se lhe interessar.
Mas só que em outra função, porque o serviço
de teatro nós não vamos mais pôr em prática.
Agradeci, mas não pretendia continuar porque
nenhum trabalho burocrático me interessaria.
Meu projeto era trabalhar com teatro. Ele encerrou o depoimento, assinei o termo de demissão,
dei até logo e fui embora.
Na época eu estava com o grupo teatral montado no centro operário no bairro de Dois Unidos.
Nesse local tinha encontrado uma juventude
entusiasmada e foi com essa turma que montei
a peça O Formiguinho, do Arnaldo Jabor. Um
garoto de 14 anos que fez o personagem Formiguinho e que se tornara meu amigo era também
militante político, filho de um líder comunista
naquela localidade, Valdemar Araújo. O filho,
meu amigo, era Petrúcio Araújo. Não voltei a
encontrá-los nem retornei ao bairro com medo
de arranjar problemas. Em 1967, quando fui para
São Paulo trabalhar no lançamento do filme
Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de
Oliveira, casualmente encontrei o Petrúcio, de
terno e gravata. Ele era funcionário do Banco
Português do Brasil. Reatamos a amizade e terminei por trazê-lo de volta ao teatro tempos depois.
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Rumo ao Rio em 1964
Passadas as turbulências do golpe de 1964, resolvi vir para o Rio de Janeiro, pois o clima em
Recife ainda era pesado. Muitos colegas tinham
sido presos e soltos, mas outros continuavam na
cadeia ou estavam escondidos. Como militante
do PCB, eu receava ser preso a qualquer instante. Andava sempre desconfiado, apesar de
ter voltado às minhas atividades anteriores ao
MCP, na Livraria Médica Científica. Nessa editora
eu vendia livros para médicos e estudantes de
Medicina, numa estante instalada pela editora
dentro do Hospital Pedro II, que na época era
o hospital-escola da Universidade Federal de
Pernambuco. Este hospital pertence à rede de
hospitais da Santa Casa de Misericórdia. Ficava
lá pela manhã. À tarde, ia aos consultórios médicos não só oferecer livros de Medicina, como
também de literatura. Os de Medicina estavam
em catálogos para importação, na maioria de
editoras inglesas, americanas e francesas e os
preços vinham em dólar. Os médicos faziam o
pedido, a livraria importava e quando os livros
chegavam eu voltava aos consultórios pra entregar e fazia a conversão do preço em dólar para
dividir o pagamento em prestações.
A Livraria Médica Científica tinha a representação da Editora Aguilar, do Rio de Janeiro. Nessa
época, a Aguilar começou a fazer lançamento
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de escritores brasileiros e também de clássicos
da literatura universal, em papel bíblia. As obras
completas de Eça de Queiroz, Machado de Assis
ou José de Alencar, publicadas antes em 20, 30
volumes, saíam agora em três a quatro volumes
em média. Isso era um sucesso de vendas. Minha
vida voltava aos poucos ao normal. O Dr. Matos, proprietário da editora, me convidou para
ficar com ele na livraria e passar a trabalhar em
outros grupos de teatro para não cessar minha
atividade teatral. Parecia uma oferta tentadora.
Mas eu queria mais. Então resolvi vir para o Rio
de Janeiro.
Comecei a juntar dinheiro e procurei o José Wilker. Conversamos e combinamos viajar juntos.
Os nossos colegas Luiz Mendonça, Ilva Niño
e Leandro Filho já estavam no Rio. Na época,
as passagens aéreas eram muito caras. Então
resolvemos viajar de ônibus. Com o dinheiro
economizado, poderíamos pagar hospedagem
até encontrarmos trabalho e um lugar definitivo
para morar. Saímos de Recife num domingo à
tarde e só chegamos ao Rio na sexta-feira. Passamos uma semana viajando. As estradas eram
ruins, na sua maioria não eram asfaltadas e a buraqueira era o normal. À noite o ônibus parava
para dormida em algumas cidades. Quem tinha
dinheiro, ia para hotel, quem não tinha, dormia
no ônibus mesmo. Os hotéis, na sua maioria,
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eram péssimos. Com medo de adoecer comendo
naqueles restaurantes de beira de estrada, comprávamos nas paradas dos ônibus pão, queijo e
refrigerantes, e assim fazíamos nossas refeições.
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Quando chegamos ao Rio nossa primeira parada foi no Hotel Santa Teresa, na Rua Almirante
Alexandrino. Já conhecíamos esse hotel, pois
tínhamos nos hospedado nele no início de 1963,
quando estivemos na cidade com o nosso grupo teatral. De lá, mudamos para outro na Rua
Cândido Mendes, na Glória, onde ficamos mais
ou menos uma semana, quando o Wilker foi
morar com o Luiz Alberto Sanz, na Rua Senador
Vergueiro. Eu procurei meu antigo colega de
faculdade, João Bosco de Moraes, que residia em
Copacabana, e ele me convidou para morarmos
juntos. Hospedados em casa de amigos, partimos
em busca de trabalho.
Antes de sair de Recife, o proprietário da livraria
onde trabalhava escreveu uma carta de recomendação para o diretor da Editora Aguilar no
Rio. Me apresentei lá e uma semana depois estava trabalhando, vendendo livros de literatura.
No início, tinha poucos contatos, não conhecia
ninguém. Resolvi visitar um amigo de Recife que
há muito tempo morava no Rio, o artista plástico e intelectual Aluísio Magalhães. Expliquei a
situação e o Aluísio me disse: Marinho, vou te
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dar uma ajuda. Me passou uma agenda e falou:
Pega os endereços e telefones que você quiser
e procura essas pessoas em meu nome. Nessa
agenda havia uma enorme relação de arquitetos,
jornalistas e escritores, em sua maioria intelectuais e artistas. Com essa lista do Aluísio e os
telefones na mão, no segundo mês de trabalho
na Aguilar tirei primeiro lugar em vendas. Foi
uma surpresa geral na firma, que ficava na Rua
da Alfândega, onde hoje é Serviço de Proteção
ao Crédito. Impressionado, o gerente proprietário, Seu Sevigne, um espanhol muito simpático e
educado, me convidou para ser chefe de vendas.
A editora me pagaria um curso na Fundação Getúlio Vargas e eu assumiria a chefia de vendas.
No entanto, recusei: minha ideia fixa era fazer
teatro. Continuei apenas como vendedor, nem
quis que assinassem minha carteira. Tinha esperanças que a qualquer momento seria convidado
a trabalhar em alguma peça, em algum grupo
teatral. De fato, isso aconteceu logo em seguida,
quando fiz o contato com Jofre Soares e Nelson
Pereira dos Santos e fui convidado para A Hora e
a Vez de Augusto Matraga. Trabalhei na Aguilar
até fevereiro de 1965, quando viajei para Minas,
onde seria filmado A Hora e a Vez de Augusto
Matraga, que hoje figura entre os dez melhores
filmes nacionais do século XX, segundo a maioria
dos críticos brasileiros.
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José Marinho, Leonardo Villar e Jorge Karan em A Hora
e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos. Rio de
Janeiro - RJ (f: Acervo Cinemateca do MAM 1965)
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Aqui no Rio, com vida organizada, comecei a
fazer contatos na área teatral. Minha primeira
iniciativa foi procurar Ferreira Gullar. Já contei
mais atrás como conheci o poeta em Recife, antes do golpe de 1964. Fui um dos cicerones dele
junto ao mundo político e cultural pernambucano. Nessa ocasião, ele me dera seu endereço.
Fui procurá-lo num sábado à noite, em Ipanema.
Conversamos bastante, contei minha história em
Recife e tudo que tinha acontecido. Ele me disse:
Marinho, nós estamos organizando um novo
grupo teatral com o pessoal originário do CPC.
Eu, o Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) e alguns
outros. Estamos ensaiando um show musical com
Zé Kéti, João do Valle e Nara Leão. Os ensaios
estão sendo realizados no apartamento da Nara,
em Copacabana. Você poderia ir até lá encontrar
o pessoal e assistir aos ensaios.
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Na mesma noite fui à casa da Nara, na Avenida
Atlântica. Contei a ela que era um ator de Recife,
que estava no Rio e que fora recomendado pelo
Ferreira Gullar. Enquanto conversávamos, ela
me explicou que o ensaio fora transferido para
o Teatro Opinião, na Rua Siqueira Campos. Ela
me levaria até lá, mas pediu que esperasse um
pouco: Eu vou jantar. Você quer jantar? Agradeci, pois já tinha lanchado. Ela foi à cozinha,
preparou um prato, voltou para a sala e, sentada
numa poltrona, jantou enquanto retomava a
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conversa. Conversamos sobre teatro, música e
cinema. Na época, os filmes brasileiros que mais
a impressionaram foram Vidas Secas e Deus e o
Diabo na Terra do Sol, que ela tinha visto umas
quatro ou cinco vezes. Depois do jantar, ela
pegou seu Fusca branco e quando estávamos
saindo da garagem apareceu o pai dela. Nara
me apresentou e disse que estava indo ensaiar
no Teatro Opinião.
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Enquanto estava na casa da Nara, eu pensava:
Olha onde é que eu estou! Na casa de Nara Leão,
a musa da Bossa Nova. O que eu não sabia ainda
era que ali naquele apartamento em reuniões de
músicos tinha nascido o movimento Bossa Nova.
No teatro reencontrei Augusto Boal e Vianinha,
e conheci João do Vale, Zé Kéti e outros componentes do grupo: Paulo Pontes, Armando Costa,
Denoy de Oliveira, João das Neves e Pichin Plá.
Todos foram muito simpáticos. Vianinha fez as
honras de dono da casa: Pode ficar por aí o tempo que quiser. Volte sempre que aqui estamos à
sua disposição. Boal também me autorizou a assistir aos ensaios, sem nenhum problema. Passei
a ir lá quase todas as noites. Também ajudei nas
instalações de equipamentos e cadeiras. Às vezes
passava noites inteiras após o ensaio instalando
cadeiras. As primeiras cadeiras do Teatro Opinião
tinham vindo de São Paulo, de um cinema que
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fechara as portas. O proprietário da sala as doou
ao pai de Vianinha, um intelectual de prestígio,
o escritor e jornalista Oduvaldo Vianna.
Essas cadeiras foram montadas e desmontadas
noites seguidas, em um esquema de mutirão.
Não só com o pessoal do grupo, mas também
com outros convidados e amigos, como Nelson
Xavier, Joana Fomm, Jocelyn Barreto Brasil (coronel da Aeronáutica, comandante da Base Aérea
de Belém, afastado em 1964 pelo golpe militar)
e um colega dele, Comandante Mello (também
coronel e conhecido como Mello Maluco, e que
fora afastado da Aeronáutica por problemas
de saúde). Assim fomos construindo o espaço
Opinião, até a estreia do show, que foi sucesso
absoluto. O público lotava a sala todas as noites
e ainda sobrava gente, surpreendendo o grupo.
A intelectualidade carioca de esquerda estava
sempre presente. Me lembro que por ali passaram Millôr Fernandes, Sérgio Porto, entre outros.
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Durante os ensaios no Opinião, às vezes eles
pediam para a Nara, que tinha carro, comprar
sanduíches e ela me chamava para acompanhála. Terminava o ensaio, algumas vezes ela me
chamava para jantar e algumas outras me deixava em casa. Mas jantamos muito juntos. Um
dia estávamos jantando quando o Nelson Xavier
me disse que o Vianinha queria falar comigo. No
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dia seguinte, procurei o Vianinha para saber o
que estava acontecendo. Ele disse: O que está
acontecendo é o seguinte. Você está participando das nossas reuniões de direção, mas você não
faz parte da direção do teatro. Quem faz parte
desta direção é só o CPC. Você é do MCP, nós temos um grande respeito pelo trabalho que vocês
fizeram, mas você não faz parte da diretoria do
Opinião. Além disso você está criando aqui dentro do teatro um mito romântico. As mulheres
te abraçam, te beijam e isso não é comum aqui
no Rio de Janeiro.
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O Vianinha namorava todas as mulheres, e
ninguém podia se aproximar de uma se ele não
consentisse. Ele era muito bacana, muito querido
pelas mulheres. Mas a Nara não o chamava para
jantar, ou sei lá qual foi o problema. Eu sei que
ele me chamou a atenção e eu me chateei. O
espetáculo já tinha estreado e eu estava tomando conta do bar. Aí deixei o bar e me afastei.
Logo em seguida fiz o Matraga e me afastei do
teatro. Depois que voltei de Minas, voltei ao teatro como frequentador normal. Mas aí a Nara
já estava namorando Izaías Almada.
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Parte 3
O Ator: Realização do Sonho
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Capítulo I
A Tela Chega Antes do Palco
Minha formação de ator foi ampla, muito boa,
pois incluía teoria e prática. Como já contei,
fiz bacharelado em Artes Dramáticas na Universidade Federal de Pernambuco, num curso
novo de dramaturgia, onde tive como professores de teatro e literatura os escritores Ariano
Suassuna e Gastão de Holanda, Joel Pontes
e Milton Bacarelli, além de estudiosos como
Hermilo Borba Filho, que dava conhecimentos
históricos e noções práticas. Um diretor carioca
de teatro, Graça Mello, também dava aulas. O
curso de teatro me dava uma verdadeira formação artística, já que combinava dramaturgia
e literatura dramática. As disciplinas variavam
de história do teatro e história do espetáculo,
pegando desde o espetáculo grego até o espetáculo contemporâneo, passando pelo teatro
shakespeariano, elizabethano, e até formas de
palco. Tínhamos também literatura portuguesa
e brasileira. Nesse curso me tornei bacharel em
Arte Dramática e ao mesmo tempo entrei num
grupo teatral ligado ao Movimento da Cultura Popular, criado pelo governo Arraes. Esse
movimento trabalhava com as áreas da cultura
(cinema, teatro, artes plásticas) e dos esportes,
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e desenvolvia atividades de alfabetização. O
grupo de que participei durou cinco anos, de
1959 a 1964.
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Quando viemos para o Rio, eu e o Wilker, já
tínhamos no currículo experiência teatral. Ambos queríamos nos dedicar ao palco. Enquanto
Wilker se concentrava em fazer carreira no teatro, fiquei aguardando a minha hora e vez. Só
que ela não aconteceu no palco, mas na tela.
O começo dessa nova atividade foi o resultado
de meu reencontro com o Jofre Soares, que eu
conhecera no Nordeste. Na ocasião, o Jofre se
ofereceu para me apresentar ao Nelson Pereira
dos Santos. Depois assisti a um curso sobre cultura negra no Museu Nacional de Belas Artes,
com diversos conferencistas. O Nelson foi uma
noite falar sobre o negro no cinema. Depois da
conferência o procurei, e o Jofre, que estava lá,
fez as apresentações. O Nelson falou que estava
preparando uma produção que seria filmada
pelo Roberto Santos, A Hora e Vez de Augusto
Matraga, e se dispôs a me apresentar ao diretor, com quem fizera O Grande Momento, em
1958. Aí o Jofre disse: Aproveita, Marinho, e faz
umas fotos 18x24 e leva lá que a gente já faz
um arquivo de atores. Esse lá referido por Jofre
era a Difilm.
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A Difilm estava surgindo a partir de uma associação do produtor-fotógrafo Luiz Carlos Barreto,
do Nelson e, depois, do Roberto Santos. Preparei
as fotos e as levei uma tarde ao centro, onde
estava a Difilm. O Jofre estava lá e me avisou
que eu falaria com o Roberto, que naquele
momento conversava com o Roberto Farias.
Jofre entrou na sala onde estavam os dois e me
apresentou. O Roberto pediu para aguardar um
pouco. Dez minutos depois, ele me chamou e de
repente perguntou: Quer fazer um teste? Fiquei
meio desconcertado... Fazer teste é um negócio
chato. As fotos estavam na mão dele, ele estava
olhando... Para que teste? O Roberto abriu uma
gaveta, tirou um desenho do personagem, olhou
para mim e olhou para a foto. Aí falei: Topo.
Ele me mandou sentar. Pediu para descrever
minha vida toda, desde a infância e a juventude
no sertão até a atividade no teatro em Recife.
Eram oito horas da noite. Todo mundo já tinha
ido embora, o escritório ia fechar. Ele terminou
a entrevista com um convite: Vamos tomar uma
cachaça. Vou hoje para São Paulo. Já convidei
um ator para fazer esse personagem, mas acho
que ele não vai poder, porque tá fazendo uma
peça teatral que acabou de estrear. Tomamos a
cachaça e nos despedimos. Todo final de tarde –
ele disse – você volta aqui (na Difilm) e pergunta
ao velho Jofre se eu telefonei.
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Sempre que passava pelo centro no final da tarde, ia até a Difilm para saber da decisão do Roberto. Ele telefonou? Nada... Telefonou? Nada...
Eu estava desolado com a indefinição. Ainda
assim, tinha pela frente uma tarefa: participar
da reorganização, aqui no Rio, do nosso grupo
de Pernambuco, o Chegança. Primeiramente, eu,
Luis Mendonça, Ilva Niño e o Wilker, e depois
envolvemos mais um grupo de cariocas, entre os
quais Vereza, que era do CPC. Começamos então
a ensaiar peça As Incelenças, do Luiz Marinho, e
falei com Aloísio Magalhães sobre nosso desejo
de montar Morte e Vida Severina. Ele escreveu
para o João Cabral de Melo Neto, que morava na
Suíça. João Cabral autorizou, pegamos o poema
e dramatizamos. O Vereza dirigiu Morte e Vida
Severina, enquanto o Luiz Mendonça cuidava
das Incelenças.
Mas continuei a passar pela Difilm, na expectativa de uma resposta do Roberto. Numa tarde,
cheguei lá e o Jofre desconversou: É, não telefonou não, mas vamos descer, Marinho, não te
preocupa com isso não. Fomos a um bar na Rua
Santa Luzia. Chegando lá, ele pediu dois chopes.
Veio então a notícia: Roberto telefonou, o papel
em Matraga é seu. Foi por aí que cheguei ao
cinema. Antes de conquistar o palco.
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Participei de Matraga sem comunicar nada à
minha família. Eles sabiam que eu estava refundando nosso grupo teatral do Recife no Rio de
Janeiro, com o nome Chegança. Quando terminamos de montar Morte e Vida Severina, voltei
a procurar meu amigo Aluísio Magalhães, que
também era amigo de João Cabral. O Aluísio
escreveu para o João, que estava na Suíça, e ele
autorizou a montagem da peça. Nós escolhemos
o Carlos Vereza para dirigir. Quando estávamos
ensaiando, tive que me afastar para participar da
filmagem do Matraga e ao voltar a peça já tinha
estreado. Eu entrei no personagem já depois que
voltei da filmagem.
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Nessa ocasião, o Luís Carlos Barreto me chamou
para trabalhar na Difilm e lançar o Matraga em
Belo Horizonte. Quando voltei, ele me pediu
que ficasse fiscalizando os filmes, acompanhando as bilheterias. Foi quando houve um teste
para Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho
Come, e tinha que cantar Cidade Maravilhosa
e eu perdi. Eu e o Wilker não passamos. Depois
de um mês da estreia, um ator foi convidado
para fazer um show e deixou uma vaga. Acabei
ficando com o papel do prefeito até terminar
a temporada do Rio de Janeiro. Nisso o Flávio
Rangel me convidou e fui participar de uma
peça de Bertolt Brecht no Teatro Ginástico.
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Depois disso, voltei à Difilm. Sempre que não
tinha trabalho, eu voltava e o Luís Carlos Barreto bancava o pagamento do meu apartamento
para que fiscalizasse filmes.
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Militância e Teatro
Quando perguntam se minha entrada no meio
artístico se deve às conexões políticas, penso e
concluo que sim. Fui militante do Partido Comunista. Entrei no Partido, em 1962 em Recife,
quando estava na universidade. Quando houve o
golpe, era secretário da base e cuidei de mandar
todo mundo se ocultar, além de ter me escondido também no interior da Paraíba. Aqui no Rio
cheguei como militante político. Essa situação
fez com que o pessoal do CPC me aceitasse logo
no Teatro Opinião. E quando o Vianinha me
chamou atenção por esses problemas, o fez com
cautela, pedindo que eu não ficasse magoado.
E depois no Bicho ele acabou me chamando e
trabalhamos juntos, fomos amigos até o final
da vida dele.
Essa militância política estava realmente ativa
nessa época. Nós tínhamos as reuniões do Partido escondidos e às vezes alguém da base jornalística é quem ia dar assistência política. Na época,
inclusive a orientação da agremiação era evitar o
pessoal que estivesse entrando para a guerrilha:
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eles eram contrários e não autorizavam. Nós, do
Partido, éramos convidados constantemente por
colegas a entrar na guerrilha e muitos aceitaram.
Eu me desliguei da legenda e até hoje não voltei
a militar. No entanto sou amigo do pessoal do
Partido e quando tem um candidato que me
interesse, eu voto.
Quando fiz as fotos que o Jofre pediu para levar
ao escritório da Difilm, ele sugeriu que eu mandasse para outros lugares. Me mandou também
ao escritório do Herbert Richers na Tijuca, para
distribuir minhas fotos. Fui lá, deixei minha foto
com o Jece Valadão e com o Riva Faria, com o
telefone da casa de um amigo meu. Dois dias
depois, o Riva me convida para ser um detetive. Então, na realidade, meu primeiro papel
foi esse, filmado em 16mm e dirigido pelo José
Carlos Burle, para a TV Globo, que ia lançar uma
minissérie chamada Morte Branca, com Jardel
Filho no papel-título. A filmagem durou um dia.
Depois veio o Matraga.
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Vim para o Rio pensando em fazer teatro. Mas
o destino, através do Jofre Soares e do conhecimento do Nelson, me levou ao cinema. Daí
comecei a fazer muito mais cinema do que teatro. De 1965 a 1971 fiz uma média de quatro
filmes por ano.
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Capítulo II
Primeiros Êxitos no Cinema
Sobre essa estreia em Matraga me perguntam:
como é que foi trabalhar com Roberto Santos
e criar seu primeiro personagem no cinema?
Primeiramente, o que me impressionou foi a
seriedade, a concentração dele, sua dedicação ao
trabalho. Ao mesmo tempo, Roberto era muito
fino, gentil. Lembro-me que ele preparava todo
o set, olhava tudo e só depois começava a rodar.
Via os mínimos detalhes. Por isso a gente percebe como Matraga é muito bem cuidado, em
todos os setores. A direção é fantástica. Roberto
era cartesiano, sério e organizado. Fazia toda a
decupagem da cena antes de filmar. Depois que
a decupagem e a iluminação estavam prontas,
ele chamava os atores e mostrava todo o movimento da cena. Falava baixo, calmo, tranquilo,
quase sussurrando. Exemplo disso é a cena em
que o capiau (meu personagem) vai ferrar o
Matraga com ferro de marcar gado. O efeito foi
produzido com uma sola por baixo da camisa do
Leonardo Villar. Eu ia com o ferro de fogo e um
pouco de óleo, batia a fumaça, e o Léo gritava,
corria, se jogava do barranco e desaparecia. O
capiau o procurava, mas não o achava. Toda essa
sequência tinha ao fundo uma toada mineira
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Jofre Soares e José Marinho na filmagem de Viagem ao
Fim do Mundo, de Fernando Cony Campos, no hangar da
Cia. Aérea Sadia, Aeroporto de Congonhas/SP, 1967
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escolhida pelo Geraldo Vandré, que compôs a
música. A toada diz mais ou menos assim: Rosa,
Hortência, Margarida / Tudo tem nome de flor
/ Passou pela minha vida / Foi mulher, tem meu
amor. Essa cena foi gravada de primeira, pois
não se faz duas vezes uma cena dessas. Mas
perguntei ao Roberto: Então, o que é que você
achou? Ele respondeu: O que é que você quer,
Marinho? Um poema shakespeariano em cada
plano? Fantástico.
Esse capiau é que no final mata o Quim Recadeiro, com um tiro de misericórdia. O capiau é um
personagem meio perdido. Porque o capiau é um
trabalhador rural, pobre e que vive ali naquelas
fazendas, meio encostado. O capiau de Matraga
tem uma namoradinha, a Siriema. Na abertura
do filme, há uma festa na cidadezinha, uma
quermesse. E o capiau está por ali, com roupa
de saco, muito pobre, quando aparece Siriema,
sua namorada. A menina quer ir ao leilão e o
capiau tenta impedir. O Matraga também está lá,
sentado ao lado da igreja. Vê o capiau puxando
a menina para ir embora. O que é que você tá
fazendo aqui?! O capiau vai puxando a namoradinha quando intervém Matraga, fazendeiro,
rico e poderoso, que empurra o capiau e manda
seus capangas darem uma surra nele. O capiau é
surrado, se arrebenta todo e fica encostado na
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igreja. O Matraga arremata a menina no leilão,
e a arrasta enquanto o capiau fica lá sofrendo,
injuriado. É uma sequência forte, que desencadeia ressentimentos e ódios mortais.
122
O capiau volta nas sequências seguintes, quando
o Major Consilvo reúne capangas para enfrentar
o Matraga, que era seu adversário político. Na
casa do Major Consilvo é armada uma emboscada
para o Matraga. Esse Quim Recadeiro é que vai
preveni-lo: Olha, o Major Consilvo tá lhe esperando armado. Diz que vai mandar atacar sua
fazenda. O Matraga reage: Eu vou lá agora! Vai
até a casa do Major Consilvo para enfrentá-lo.
Mas é derrubado, surrado e arrastado até um
barranco, onde o capiau o ferra a fogo, na cena
que descrevi acima. O Quim Recadeiro, escondido, vê o que aconteceu e vai enlouquecido até à
casa do Major Consilvo para vingar o patrão. Os
capangas o surpreendem. Quim leva um tiro. O
capiau é que dispara o tiro de misericórdia, já na
cozinha, numa cena de violência incrível. Repeti
uma cena dessas na novela O Rei do Gado, da TV
Globo, dessa vez ao lado de Jackson Antunes, que
faz um matador de sem-terra, Regino. O Jackson
e eu corremos a cavalo atrás de um jipe conduzido por um menino de São Paulo, Beto Bellini.
Quando o enquadramos, na mira, eu faço algo
semelhante ao tiro de misericórdia de Matraga.
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Muita gente acha que Roberto Santos definia
o personagem e deixava o ator improvisar. Mas
não havia isso, não. Roberto dava o mote correto e era por ali. Não tinha muita improvisação,
não. Ele dava uma margem para o ator criar, é
claro, mas sem deixar que saísse do texto ou da
marcação. Mesmo quando improvisava, tinha um
limite. O ator conversava com ele antes. Eu tinha
certa liberdade, sob a orientação dele: Monta a
cavalo e vai por aí, vai por aí que eu tô filmando.
Nas coisas do ator, a marcação era marcação, não
se podia fugir dela. Mas o Roberto deixava o ator
realizar a cena no tempo necessário. Há uma
concentração gestual, como se o ator estivesse
segurando a emoção, a explosão. Foi na gravação da sequência na frente da igreja que aprendi
o método de direção dele. Toda a movimentação
fora planejada com precisão, com rigor. Roberto
orientava: Calmamente, Marinho, sem pressa,
olha bem as coisas, olha com precisão, não tem
decisão no olhar.
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Talvez tenha sido por isso que Joaquim Pedro
de Andrade comentou comigo, depois de ver A
Hora e Vez de Augusto Matraga: Marinho, esse
filme do Roberto é meio que um negócio japonês, meio samurai, essas lutas, brigas, guerras, a
construção dos personagens... Um troço muito
samurai. A crítica também falou disso, dessa
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introspecção que lembra realmente o clima de
interpretação em filmes japoneses. Antes de
Matraga, víamos muitos filmes japoneses no Rio
e principalmente em São Paulo. Eu me lembro
de ter assistindo a uma retrospectiva inteira do
Akira Kurosawa na Cinemateca do MAM. Não sei
se o Roberto gostava de cinema japonês, mas parecia que gostava, porque em certos momentos o
clima é realmente de uma aventura de samurai.
124
Nesse sentido recordo a luta final do Matraga.
Que coisa fantástica! Acho que os dois atores saíram imortalizados dali. Às vezes uma sequência
imortaliza um ator. Na sequência da igreja até
a morte, Jofre Soares dá um show de interpretação, da capacidade de criação de um ator em
vários níveis. Leonardo também está fantástico.
Mas embora não fosse propriamente um artista
de cinema, o Leonardo era um ator experimentado, um senhor ator de teatro. O Jofre, não:
era o segundo filme dele depois de Vidas Secas,
e o cara entra com uma força! Haja um John
Wayne na frente!
No Universo do Glauber
Com Glauber, em Terra em Transe, meu processo
de composição do personagem foi diferente. O
Glauber é outro universo. Tudo no Glauber vivia
em torno de um espaço de criatividade intensa,
permanente. Com ele, as coisas eram intensas o
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José Marinho, Glauce Rocha, Jardel Filho e José Lewgoy
em Terra em Transe, de Glauber Rocha
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tempo todo, desde a conversa no botequim até
a hora de rodar um take. Tudo para Glauber
tinha uma coisa de criatividade exasperada, de
atmosfera de mistério, de fantasia, de simbologia. Tinha muito da cultura sertaneja, da cultura
barroca. Se você analisar bem, os filmes do Glauber são meio ritualistas. O Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro é um filme ritualista,
cheio de rituais o tempo todo. Abre com o ritual
de 7 de setembro, o colégio desfilando ali, as
meninas fardadas, a banda de música e tudo. Do
outro lado, num contraste ritual, está o cangaceiro, com seu fuzil ameaçador. Tudo transcorre no
mesmo nível, tudo é o sertão, tudo é o mundo.
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No Dragão, as lutas, as brigas são ritualísticas. Os
confrontos do Antônio das Mortes com os cangaceiros são, todos, meio ritualísticos. Glauber
brinca com tudo, brinca com o western. Uma
coisa totalmente livre. Ele cria a cada momento o
seu próprio estilo de ver as coisas, como naquele
negócio da santinha com a Rosa Maria Pena e do
personagem do Jofre, cego. Essa ritualização não
acontece apenas no modo como ele vê os personagens, os tipos, mas também na maneira como
ele trata a música de cordel fantástica. Aquela
cena final do negro que avança para matar o
coronel com aquela lança, é tudo coisa grega,
medieval. Ele vai na cultura universal. O grito de
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libertação do negro, por exemplo. Eu dublei essa
cena com o Milton Gonçalves. Glauber chamou
o Milton Gonçalves e disse: Você, que é negro,
vai fazer esse grito de liberdade do negro, da
vitória da etnia. Tudo ali tava pensado, ele não
deixou sair nada.
Eu dublei a maioria dos cangaceiros, desde a
cena inicial. O Dragão começa com um plano
fixo, entra um cangaceiro morrendo e Antônio
das Mortes atrás e o cara entra de um lado da
câmera e sai do outro. Aquele grito do cara morrendo, fui eu que fiz. Aí o Glauber me contou a
história daquele rapaz, uma história pitoresca. O
Glauber estava filmando e o rapaz chegou lá e
disse: Doutor Glaubi, eu vim de Feira de Santana
pra cá, eu vim descalço, pra aparecer no ecrã aqui
com o senhor, que eu sei que o senhor tá fazendo
um filme, eu queria aparecer no ecrã. Glauber
achou interessante o rapaz dizer no ecrã. Onde
ele teria descoberto a palavra ecrã? Aí disse: Tá
bom. Mandou o rapaz se vestir de cangaceiro
e fez aquela cena. Ele morreu logo de cara, na
cena, mas ficou feliz: tinha aparecido no ecrã.
Morreu, mas apareceu. Abriu o filme!
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Estilos Diferentes
Glauber reunia os atores antes das filmagens.
Roberto também. No Rio, ele fez duas reuniões
com todo o elenco, discutindo tudo com roteiro
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na mão. Mas o Glauber fazia essas reuniões sem
dar o roteiro inteiro para ninguém. Nós líamos
pedaços de roteiro: apenas as folhas em que
apareciam nossos personagens. Só ele sabia toda
a história, e contava tudo do modo dele. Você
acompanhava a discussão com um roteiro que
tinha somente seu personagem. E pensava: E os
outros, como é que são? Era aí, depois dessas
reuniões, que ele determinava: vamos filmar.
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Depois que ele viu o filme do Roberto Santos,
conversou comigo. E me disse: Marinho, gostei
de você no Matraga e vou fazer um seriado sobre Antônio das Mortes para a TV Globo. Se eu
fizer esse seriado, vou te convidar. O seriado não
saiu, nem saiu um outro que ele planejava com
produtores alemães. Em compensação, imaginou
uma continuação de Deus e o Diabo, que seria
Terra em Transe. Quando estavam montando a
produção, passei na Difilm, para conversar com
todo mundo, porque Matraga me colocara no
cinema. Glauber passava, me olhava, mas não
dizia nada. A essa altura eu estava fazendo uma
peça no teatro Opinião, Se Correr o Bicho Pega,
se Ficar o Bicho Come, do Oduvaldo Vianna
Filho e Ferreira Gullar. Ele foi assistir ao espetáculo para fechar o elenco de Terra em Transe.
Do elenco de Se Correr o Bicho, ele convidou
Thelma Reston, Emanuel Cavalcanti, Francisco
Milani e Ecchio Reis, que já faleceu, e eu. Ele
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foi embora sem falar nada com ninguém, mas
deixou um recado com a produção, a cargo do
Ivan de Souza. O Ivan, que tinha sido diretor de
produção de Matraga, reuniu a gente depois
do espetáculo e avisou: Amanhã à tarde vamos
ao escritório do Zelito Vianna. Com os contratos
assinados, fomos filmar.
Realizamos as filmagens iniciais em Duque de
Caxias: as passeatas do Governador Vieira, por
exemplo, foram feitas no subúrbio da cidade.
Glauber armou toda a cena e passou a nos orientar: Marinho, você fica aqui do lado do Lewgoy,
e vai sempre acompanhando o Lewgoy, o povo
se aproxima pedindo ajuda pra cá, pra lá, calçada
aqui, e o Lewgoy vai chamar você e você vai com
o caderninho anotando. Falei que estava tudo
bem. Ele se voltou para Lewgoy: O nome do
Marinho é Gerônimo, esse é o nome do personagem. Lewgoy: Tá bom, seu Glauber, tá bom...
Aí começa a rodar. Um figurante entra em cena:
Oh, governador... eu quero água pra minha rua...
Anota aí, Marinho, anota aí! Glauber cortou esse
primeiro plano: Pô, Lewgoy! Não é Marinho. O
personagem é Gerônimo! Desculpa, Glauber!
A cena recomeça e Lewgoy repete: Marinho,
anota aí, Marinho... O Glauber, conformado,
mandou: Deixa rodar... Rodou tudo desse jeito
e o personagem virou Marinho.
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Glauce Rocha, Paulo Cesar Pereio, José Marinho e Jardel
Filho, no filme Terra em Transe, de Glauber Rocha
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No roteiro publicado na revista francesa AvantScene du Cinéma, tá impresso: Marinho. Sobre
essa confusão, o falecido David Neves me contou
uma história curiosa. Glauber ia fazer um filme
financiado pelo Francis Ford Coppola. Seria com
o Marlon Brando, porque o roteiro fora pensado
para o ator americano. O David recordou que
estava ao lado do Glauber quando, em uma
entrevista na França, ao falar desse projeto com
Marlon Brando, um repórter lhe perguntou: Rocha, mas você vai dirigir Marlon Brando? Nem o
Chaplin se deu bem com ele! Glauber respondeu:
E daí, eu vou dirigir Marlon Brando. Mas como
você vai dirigir? Ah, assim como eu dirigi o Marinho. Aí o repórter não entendeu nada: Quem
é Marinho? Quem é esse cara?
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Improvisação Controlada
Enquanto Roberto Santos delimitava a margem da liberdade do ator, Glauber liberava a
improvisação. Mas essa improvisação deveria
atender às necessidades da personagem e da
orientação dele. Se você improvisasse por conta
própria, não se dava bem com ele, não. E coisa
falsa, com ele não passava. Em Terra em Transe
há uma cena forte em que Thelma Reston cai
chorando por cima de Cavalcanti quando ele
é assassinado. Glauber tentou umas quatro,
cinco, seis vezes filmar essa cena. A Thelma não
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conseguia chorar, ou não convencia ao chorar.
Tá falso, Thelma, tá falso... Aí foi rodando. Às
9 da manhã, o sol esquentando, ele pediu ao
Francisco Milani: Ensaia a Thelma aí que eu vou
fazer outras cenas. Fomos filmar as cenas das
caminhadas pelas ruas.
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A certa altura da filmagem, Glauber parou tudo,
foi numa casa e pediu: A senhora tem uma muringuinha com água? A mulher tinha, ele pediu
um copo. Levou a muringuinha com água para
os atores. Depois de servir a água, devolveu a
moringa à mulher e voltou ao set: Agora vamos
filmar a cena da Thelma. Chegou lá: Milani, a
Thelma tá pronta? Tá, Glauber, tá pronta, tá
boa, já chorou à vontade, até já cansei de pedir
a ela pra parar de chorar. E o Glauber: Tá bom,
vamos fazer a cena Thelma. Dib, câmera! Thelma
na frente dele, ele olhando para Telma. Ação!
Thelma se joga e ele diz: Tá falso, Thelma... Voltou e botou o Dib atrás dele: Quando eu disser
câmera baixinho, você vai. Dib se preparou e
ele disse: Câmera! Dib ligou a máquina e o
Glauber pegou no ombro da Thelma, balançou
e empurrou. Enquanto ela gritava, assustada,
Dib filmava e Glauber comemorava: Tá ótimo!
Chorou maravilhas! Muito obrigado, Thelma!
Ficou do jeito que ele queria.
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Foi uma improvisação, mas controlada. Aconteceu algo parecido com o Carvana. Essa não assisti, mas me contaram. É a sequência do suicídio
do personagem do Carvana. Paulo Gracindo vai
no jornal, fala com Jardel Filho, volta, tudo feito
com câmera na mão, uma caminhada belíssima.
O Carvana vai, volta e fica falando: Não aguento
mais, vou me suicidar. E o Glauber: Vamos filmar.
Carvana, você vai suicidar-se. Pega a arma, ela
vai aparecer na sua mão e depois você vai sair da
câmera e vamos ouvir só o tiro. Agora eu quero
que você faça uma cara de espanto, de medo da
morte, e da coragem do suicídio, da decisão do
suicídio. E o Carvana começa a fazer a tal cara
de medo e coragem, ele olha para a câmera e
não consegue chegar aonde o Glauber quer. Aí
me contaram que em certo momento Glauber se
aproximou do Carvana, passou a mão no ombro
dele enquanto o Dib aguardava e pá! O Glauber
deu um tapa no Carvana e gritou: Câmera! E o
Carvana fêz aquela cara...
133
Imagem Imortal
Minha experiência foi de outro tipo, naquela cena
do líder operário que fazia o comício. Glauber
preparou bem a cena, fez uma coisa genial... Metralhadoras, silêncio geral, discurso do Jardel... Aí
fazia-se um silêncio. Ele disse: Agora é com você,
Marinho. Falei para ele: Como é que você quer a
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cena? Ele me olhou e fulminou: Xi, Marinho, não
vem com pergunta brechtiana, stanislavskiana.
Aqui não. Isso aqui não é Teatro de Arena, não.
Você olha para a câmera como se tivesse dando
uma entrevista para uma câmera de tevê. Pronto.
Só. Esquece o resto das tuas teorias de teatro. Ainda não tínhamos começado a rodar a cena. Minha
pergunta foi feita durante o ensaio. Nessa cena,
filmada no Parque Lage, Glauber colocou um grupo de atores ao meu redor e eu tinha que olhar
para todos e terminar com o olhar fixo em Glauce
Rocha. Quando rodamos, foi tudo de primeira.
134
Glauber tinha um método muito pessoal. Ele
olhava para o ator, ficava imaginando alguma
coisa, e enquanto olhava fazia o enquadramento
com as mãos. Na hora de filmar, tinha um tipo
de exigência e – caso você não correspondesse – ele poderia te surpreender: falava alto, se
exaltava e às vezes tocava fisicamente no ator,
para estimulá-lo. Por outro lado, também tinha
momentos de carinho com o ator, era capaz de
pentear o seu cabelo, ajeitar seu paletó, sua
gravata. Era uma personalidade única, com sensibilidade poética para capturar o espaço todo.
Tudo que acontecia ali, no filme, estava sob o
domínio dele. A improvisação que ele mandava
fazer era sempre dentro de um limite capaz de
dar o resultado que queria.
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O veterano José Medeiros, que estava fazendo um making-off com a câmera naquele dia,
fazendo algumas fotos de cena, foi quem fez
aquela foto imortal. O Dib Lutfi estava lá. O
fotógrafo do filme era o Luiz Carlos Barreto. O
Medeiros fazia uma segunda unidade, e naquele
dia registrou aquela imagem que imortalizou
um momento do filme. Essa foto acabou sendo
usada no cartaz do filme em São Francisco, nos
Estados Unidos, e foi capa de revistas na França. E não lembrava que era do Zé Medeiros. Só
tempos depois é que ele me contou: Você sabe
de quem é aquela foto? Eu falei que não sabia,
mas julgava que seria de quem fazia still. No
caso, era o João Carlos Horta, fotógrafo que foi
casado com a Heloísa Buarque de Holanda e que
estava começando naquele tempo. Eu pensava
que tinha sido dele, mas o Medeiros afirmou:
Não, Marinho, essa foto é minha. Até hoje os
jornais e as revistas reproduzem a foto sem
atribuir a autoria ao velho Zé Medeiros, outro
grande fotógrafo de exterior.
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Um ator imortaliza um personagem, um diretor
imortaliza um ator. O Jardel Filho também está
imortalizado em Terra em Transe, com aquele
personagem fantástico, do poeta Paulo Martins.
Já o Paulo Autran era, de fato, um ator fantástico.
Mas o Glauber o virou pelo avesso, convidando-o
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Capa da revista l’Avant-Scène, número 77, janeiro de
1968. Foto do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha
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Capa do informativo do Cineclube Macunaíma, referência
à foto do filme Terra em Transe
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José Marinho e Paloma Roccha simulando a cena do
filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, na exibição da
cópia restaurada
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para o papel de um ditador ridículo. Paulo Autran
só entendeu isso depois que o filme estreou. Irritado, ele me disse uma vez que não tinha gostado
nada de Terra em Transe, que Glauber tinha feito
dele um personagem ridículo, que aquilo não era
dele. Mas na realidade tempos depois, quando
o encontrei na Taberna da Glória, no Rio, ele
admitia que mudara de opinião.
Sem dúvida nenhuma, posso dizer que meu
papel em Terra em Transe me projetou internacionalmente, até porque foi capa da revista
francesa l’Avant-Scène. Até hoje muitas pessoas me convidam para filmar devido ao meu
trabalho em Terra em Transe. Convivi muito
com o Glauber. Conversava muito com ele sobre política. Uma vez ele disse que tinha lido
no Le Monde, em Paris, um bilhete de Raul
Castro para Che Guevara, dizendo Te mando
un abracito de macho latino americano, tanto
cuanto puedo ser. Aí ele disse: Marinho, são dois
revolucionários. Pode ter homossexualismo no
meio. E eu disse: Isso é um absurdo, Glauber! Líder revolucionário ser homossexual? Ao que ele
respondeu: Deixe de bobagem, Marinho. Entre
quatro paredes ninguém sabe o que acontece.
Sexo é de cada um. Moralista babaca do Teatro
Opinião! Marxista babaca! Acaba com isso! Me
deu um esporro. Ainda disse: Você devia ir para
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o Nordeste, ocupar o lugar de Francisco Julião.
Você que é de classe média, vai lá liderar as ligas
camponesas e fazer a revolução em Pernambuco.
Agora vou pegar um táxi. E saiu para pegar um
táxi porque não andava de ônibus. Dizia – em
tom de brincadeira, acho – que dentro do ônibus
tinha povo, e ele não se misturava.
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Capítulo III
Outros Tipos Marcantes
Antes de participar de outro momento marcante
na minha carreira, O Bandido da Luz Vermelha,
choveu convites para vários filmes. Na mesma
época de Terra em Transe, apareci em El Justicero, do Nelson, Perpétuo Contra o Esquadrão da
Morte e Maria Bonita, Rainha do Cangaço, esses
dois dirigidos pelo Miguel Borges. Depois fiz com
Moisés Kendler um episódio de Os Marginais,
onde também está o Paulo Cesar Pereio. Em
seguida fui filmar em Brasília A Vida Provisória,
do Maurício Gomes Leite. Quando estive em
Brasília já tinha conversado com o Rogério Sganzerla em São Paulo, onde fui lançar, pela Difilm,
Todas as Mulheres do Mundo, do Domingos de
Oliveira. Acompanhando Zé Alberto, gerente da
Difilm, estive em São Paulo para o lançamento
de Roberto Carlos em Ritmo de Aventura. Nessa
ocasião encontrei o Fernando Conni Campos,
que me convidou para participar de Viagem ao
Fim do Mundo, filmado no hangar da antiga
companhia aérea Sadia, no Aeroporto de Congonhas. Também fiz um papel de guerrilheiro em
Desesperato, do Sérgio Bernardes Filho. Como se
pode ver, tive que me multiplicar para dar conta
dos compromissos, em meados dos anos 1960.
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Celi Ribeiro e José Marinho em Maria Bonita, A Rainha do
Cangaço, de Miguel Borges
Jair Frazão, Celi Ribeiro, José Marinho, e Ivan Candido em
Maria Bonita, A Rainha do Cangaço, de Miguel Borges
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Edson Santos (fotógrafo), Paulo José e José Marinho na
redação do Jornal Última Hora para as filmagens de Vida
Provisória, de Mauricio Gomes Leite, 1968
Paulo José e José Marinho em Vida Provisória, de
Mauricio Gomes Leite, na redação do jornal Última Hora,
Brasília/DF, 1968
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Quando fui convidado para El Justicero o Nelson já tinha formado o elenco. O roteiro foi
adaptado pelo próprio Nelson de uma peça
do João Bittencourt, dramaturgo de sucesso à
época. Ele convidou Arduíno Colasanti, que foi
escalado por ser surfista e estreou ali, e Adriana
Prieto, também estreante. Arduíno e Adriana
foram chamados porque o Nelson queria um
casal loiro de olhos azuis. Me lembro até de
uma crítica do Ely Azeredo que assinalava: Até
que enfim um casal loiro e bonito no cinema
brasileiro! O Emmanuel Cavalcanti também
tinha uma participação.
144
O Nelson dizia que El Justicero era o complemento de Rio 40 Graus e Rio Zona Norte: seria
o Rio da zona sul. E ele me chamou para fazer
o delegado. Era um papel que tinha toda uma
linha de interpretação bem carioca. Eu tinha
aparecido em uma encenação de Beijo no Asfalto
na Escola de Arte Dramática em Recife, com direção do Graça Mello, que me ensinou a fazer o
sotaque carioca. Peguei esse sotaque e chamei o
Emmanuel Cavalcanti, que me ensaiou. Encaixei
tudo no sotaque carioca e fiz bem, está lá até
hoje. Minha interpretação no Justicero foi muito comentada, inclusive no Festival de Brasília.
Em 1968, acabou proibido pela censura. Fiquei
bastante satisfeito com essa primeira experiên-
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cia com o Nelson, que também marcou minha
estreia no cinema urbano, depois do Matraga,
que era mais rural, e do Terra em Transe, que era
muito político. A amizade com o Nelson nasceu
na hora em que ele me apresentou ao Roberto
Santos e dura até hoje. É uma amizade que se
construiu ao longo da vida.
Em reconhecimento ao Roberto Santos, aceitei
fazer um pequeno personagem em O Homem
Nu. Faço o papel de um rapaz encarregado da
sauna onde Paulo José chega pelado para se
esconder, porque na sauna o nu não é estranho.
Ele fica por ali, mas acaba vendo que não dá
para ficar o tempo todo. Pula o muro e acaba
em um terreno baldio. Emmanuel Cavalcanti faz
um mendigo que está no terreno, e quando vê
aquele garoto jovem e nu, fica de olho grande
nele. E o Paulo sai correndo de novo.
145
Em 1966, em Um Homem e sua Jaula, a convite de Paulo Gil Soares, fiz o papel de um líder
estudantil da UNE que tentava conseguir um
passaporte para se exilar no exterior, por conta
de perseguição política. Então eu estava escondido em uma favela, Catacumba, e chegavam
lá o Hugo Carvana e o Joel Barcellos. Carvana
era um pintor que tinha um ateliê frequentado
pelo pessoal de esquerda. Ele resolve sair nas
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ruas para saber o que ficou depois da revolução
de 31 de março, 1o de abril. E foi reencontrando
as pessoas, ajudando as pessoas a fugir, etc. Joel
Barcellos era um amigo dele, também ligado ao
movimento de esquerda. Os dois iam encontrar
comigo e me davam um passaporte para eu fugir. A orientação era fugir para a Argélia. Essa
sequência foi dirigida pelo Paulo Gil Soares com
produção do Fernando Conni Campos. Uma sequência bonita. Eles depois ficavam parados e eu
saio andando em torno da Lagoa, procurando o
lugar da favela onde vou me esconder. E a trilha
sonora belíssima é Quarta-feira de Cinzas, do
Vinícius de Moraes, cantada pela Nara Leão, até
eu desaparecer no início da favela. Essa sequência foi feita por Paulo Gil. Quando o Fernando
Conni Campos brigou com o Paulo e assumiu a
direção, eu já não estava mais filmando.
Paulo Gil era meu amigo desde muito tempo. Na
Bahia ele foi colega do Glauber desde a infância. Era muito inteligente, um poeta, e a gente
sempre conversou muito sobre cinema. Ele foi
um dos assistentes do Glauber no Deus e o Diabo
na Terra do Sol. Ele ficou meu amigo e no bar da
Líder me convidou para fazer esse filme. E com o
Paulo Gil foi uma coisa muito tranquila, serena,
sem nenhuma agitação, nenhuma especulação
de interpretação, nem nada.
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Em seguida participei de Perpétuo contra o
Esquadrão da Morte, do Miguel Borges. Meu
papel é de um bandido chamado Ruivinho, um
olheiro, que fica observando o movimento policial para avisar aos bandidos. Foram só duas
sequências. Depois o Miguel me chamou para
fazer Maria Bonita, Rainha do Cangaço. Meu
papel é de um cangaceiro muito simpático,
que apanha muito por ajudar Lampião (Milton
Moraes) a roubar a Maria Bonita. O Ivan Cândido, que faz o delegado, amarra o rapaz no
xadrez e lhe dá uma surra de chicote. Botaram
uma lona nas minhas costas para amortecer as
chicotadas, mas a lona caiu e a câmera tava de
frente, não pegou a queda. Enquanto o Ivan
continuava a bater, eu olhava para o Miguel
pedindo socorro. Miguel nem aí, deixou rodar
e depois tive que ficar na água com sal. O pior
é que ainda tomo uma segunda surra. Quando saio da fazenda para entrar no grupo de
cangaço, um capataz (o Cláudio Portioli) me
dá uma surra porque estou fugindo. Lá fui eu
de novo para água com sal. O Cláudio Portioli,
excelente maquinista, famoso na Boca do Lixo,
era um tipo parrudo. Miguel era muito irônico,
gozador. Eu reclamava de dor e ele dizia: Ah,
isso é coisa da profissão. Mais tarde bota uma
água com sal que melhora.
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Até meu encontro decisivo com o Bandido,
participei de vários filmes às vezes em papéis
menores. Um deles foi Desesperato, do Sérgio
Bernardes Filho. Era um filme sobre guerrilha.
Filmamos em Guaratiba, dentro de um rio. Eu
faço um dos guerrilheiros. É um filme muito
interessante, uma metáfora da guerrilha. O
Raul Cortez interpreta um escultor, que lança
um livro no Rio de Janeiro, mas está decepcionado com tudo e resolve participar da resistência ao regime militar. Ele fala com um
amigo, o Nelson Xavier, que o leva para um
grupo guerrilheiro. Nisso há uma luta onde o
escultor é morto. Recordo que o Serginho disse:
Aqui morreu um guerrilheiro, mas vocês vão
querer se safar. Então esse guerrilheiro vai servir de barreira contra os inimigos. Raul Cortez
se recusou a fazer a cena porque alegou que
seu personagem não aceitaria isso. Não houve
jeito de convencê-lo. O filme termina com um
belo poema do padre Camilo Torres, lido pelo
Rogério Duarte. O texto fica meio solto no ar,
mas é muito bonito. Os quatro sobreviventes
da guerrilha que fogem pelas montanhas são:
eu, Waldir Onofre, Nelson Xavier e outro ator
que não me lembro. Desesperato foi proibido
em 1968 e só seria liberado quase vinte anos
depois, no Governo Sarney.
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Vida Provisória foi feito pelo Maurício Gomes
Leite, jornalista mineiro de Montes Claros. Ele
veio ao Rio trabalhar na revista Manchete, onde
era jornalista e crítico de cinema. Ele escreveu
para o Jornal do Brasil um artigo belíssimo sobre Terra em Transe. Nessa época eu morava no
famoso edifício Belair, na Praia de Botafogo,
com Guará Rodrigues. O apartamento era de
um primo do Emmanuel Cavalcanti. Lá moravam
um sargento da Aeronáutica e uma figura de
identidade misteriosa. Era um rapaz claro, bonito, de olhos azuis, de Vitória, Espírito Santo.
O nome dele: Lúcio Vilar Lírio. Ele voltou para
Vitória e dois anos depois chegam as notícias
sobre um famoso bandido Lúcio Flávio, que
virou até filme, com as mesmas características,
nome e sobrenome. Então não sei se era ele ou
parente. Falei com Carlos Uchoa uma vez sobre
isso e ele disse que não era o mesmo Lúcio. Mas
até hoje eu não sei.
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No seu apartamento do Belair, Guará recebia
amigos de Minas que vinham ao Rio para assistir
ou participar do Festival JB-Mesbla. Entre os visitantes, me lembro do Flávio Werneck, cineasta
mineiro; do crítico Ricardo Gomes Leite, que era
fotógrafo e de vez em quando passava por lá; e
recordo também do Neville Duarte D’Almeida,
recém-chegado dos Estados Unidos e sempre
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muito elegante. A gente comprava um garrafão
de vinho barato e ficava bebendo a tarde toda,
recebendo os amigos. Rogério Sganzerla passou
por lá algumas vezes, assim como Andrea Tonacci.
Nos juntávamos ali e caminhávamos até a Rua
Senador Vergueiro, no Flamengo, onde ficava o
badalado Cinema Paissandu, palco do Festival JB.
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Foi numa visita ao Belair, para conversar com seu
irmão Ricardo e rever a turma, que o Maurício
Gomes Leite me conheceu e elogiou meu trabalho em Terra em Transe. Os atores principais
de Vida Provisória eram Paulo José e Dina Sfat.
Entre os coadjuvantes estavam Paulo César Peréio, Hugo Carvana e eu – três que vinham de
Terra em Transe. Em homenagem ao Glauber,
Maurício pediu que mantivéssemos nossos próprios nomes, Marinho, Hugo e Paulo César. Nós
fomos filmar em Brasília. Meu personagem era
o chefe de reportagem de um jornal, que indicava o que as pessoas deviam fazer. O Maurício
colocou o Celso Japiassu para fazer uma entrada
ali, porque eram amigos e o Celso tinha sido
ator. Nessa cena, eu dizia ao Paulo José: Agora
você vai entrevistar o Senador Japiassu. E era
uma homenagem ao Celso, porque quando ele
aparecia não citavam o nome. O Wilker também
participava desse filme, novinho, magrinho com
óculos de fundo de garrafa. Inclusive acho que
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o primeiro papel do Wilker fui eu quem o indiquei, no El Justicero, em um grupo de playboys
da Zona Sul.
Nesse meio tempo, o Glauber estava me procurando para fazer o Dragão, mas como eu estava
filmando em São Paulo, ele colocou o Vinícius
Salvatori no meu lugar, no papel do pistoleiro,
Mata Vaca.
O Bandido da Luz Vermelha
Depois dessa maratona, compondo tipos diferentes e trabalhando com diretores de diversos
estilos, em produções ambiciosas ou modestas,
recebi um recado do Rogério Sganzerla, que se
preparava para filmar O Bandido da Luz Vermelha. Eu estava em Brasília fazendo A Vida
Provisória quando ele me pediu para viajar
imediatamente para gravar o Bandido. Desde
que me viu em Terra em Transe, ele queria que
trabalhasse num filme dele. Eu tinha visto o roteiro no bar da Líder, onde ele aparecia às vezes.
Depois, em São Paulo, quando fui lançar Todas
as Mulheres do Mundo, fiquei morando uns dias
com um amigo dele, José Alberto Reis, na Rua
General Jardim. Como o Rogério aparecia muito
nesse apartamento, à noite nós saíamos e ele
falava com entusiasmo do projeto do Bandido.
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José Marinho em O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério
Sganzerla, 1968
José Marinho e Luiz Linhares em O Bandido da Luz
Vermelha, de Rogério Sganzerla
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Arnaldo Weiss, José Marinho e Luiz Linhares em
O Bandido da Luz vermelha, de Rogério Sganzerla
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Quando fui para São Paulo ainda não sabia como
estava a produção. Peguei o ônibus da meianoite e viajei ao lado do cineasta Marcos Farias,
que tinha negócios em São Paulo. De manhã,
encontrei o Rogério. Fomos às lojas comprar
as roupas e adereços do personagem que iria
interpretar: chapéu de palhinha branca, cachecol. Terminamos de montar o guarda-roupa e às
cinco da tarde já estávamos na Avenida São João
para aquela sequência inicial do carro de polícia
e da moça que é jogada. Foi tudo improvisado
ali. Aquele diálogo todo ali foi improvisado. Eu
vou pendurado no carro da polícia, pulo, o Luiz
Linhares, que era o delegado Cabeção, estava
dentro do carro e eu olho para dentro do carro
da polícia onde estou pendurado e falo: A Flor
do Meu Bairro se mandou chefe. O Linhares:
Você a conhece? Conheço, a Cíntia, amante do
japonês voador. Ah, como se não bastasse o Luz!
E ainda por cima vem cair na minha área! Luz era
o Bandido que o delegado estava procurando.
Como foi feito esse diálogo com ares surrealistas? É que o Rogério tinha que dar um nome
qualquer para a prostituta. Aí disse: Não estou
gostando desse nome... Marinho e Linhares, me
ajudem, vocês são mais experientes. Me lembrei
de uma música do Adelino Moreira, cantada
pelo Nelson Gonçalves. Os versos eram marcantes, puro melodrama: A flor do meu bairro /
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Tinha o lirismo da lua/ Morava na minha rua/
Num chalé fronteiro ao meu/ Eu conheci/ O seu
primeiro amor/ O seu primeiro beijo/ O primeiro beijo seu... Hoje depois de alguns anos/ Eu
encontrei-me com ela/ Na rua dos desenganos/
Menos ingênua e mais bela. O Rogério gostou:
Ótimo, tá aí, é a prostituta. Tá certo. Virou a
Flor do Meu Bairro. Porque o cara conheceu a
prostituta quando ela, menininha, morava na
casa fronteira à sua, os dois namoraram e tal, e
mais tarde ele a reencontra na zona e tem que
pagar por um beijo. O Rogério achou ótimo.
Foi nesse clima de improvisação que construímos
essa sequência. E uma outra, aquela do cigarro,
lá na Boca do Lixo, num botequim na Duque de
Caxias. Na mesa, eu e Linhares bebíamos conhaque e olhávamos fotos do Bandido, e no meio
dessas fotos aparecem algumas de aniversário da
filha dele, aí mistura tudo. E eu digo: Oh, que
bonito. Ele diz: Ih, rapaz, isso aí não é bandido
não, é minha filha, Tarzan pô! E no diálogo do
cigarro há também nossa contribuição: Ô chefe,
tá fumando demais, fumo dá câncer. É, eu já
tentei parar, mas não consigo. Fumo americano,
que dá mais câncer ainda. Qualquer dia desses
ele diz Tarzan, de tanto fumar acho que vai
dar um treco no meu coração. Doutor, não tem
problema, tamos aqui. Porra, Tarzan, tu já quer
assumir meu lugar! Tudo isso foi improvisado.
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Diálogo Produtivo
Rogério dialogava conosco. Eu e o Linhares montávamos um diálogo e mostrávamos ao Rogério,
que dizia: Tá bom. Foi tudo assim. E num clima
muito bom, relaxado. Quando você trabalha
tenso com um diretor, não faz a coisa legal. Você
só está bem quando confia no diretor, um confia
no outro. Você está entregue a ele. É uma pessoa
entregue à outra. Porque no teatro você faz sozinho, o diretor já cuidou de você há muito tempo.
Em cena, é você, o palco e a plateia. No cinema
não, o diretor tá toda hora de olho. O teu olhar
falseou, qualquer coisa, ele já está vendo. Então
ele tem que confiar em você. Fazer um take de
dois, três minutos, para um ator é tempo para
caramba ensinando. A câmera é a coisa mais verdadeira que existe. É a coisa que mais disciplina
o diretor e o ator. O limite da câmera. Porque
você só tem direito ao seu enquadramento. O
Glauber fazia o enquadramento com os dedos,
sem aparelho nenhum. E dava ao ator o limite
pra ele atuar e improvisar ali.
O Rogério já tinha a escola do Glauber com ele,
gostava de Terra em Transe, que me botou em
muitos outros filmes, inclusive declaradamente
no Bandido da Luz Vermelha. E ele era muito
jovem. Rogério completou 21 ou 22 anos durante
as filmagens. Muito novo. Ele dizia: Eu não tenho
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experiência com prostituição, malandragem. Eu
disse para ele uma coisa. Ele tava procurando o
personagem do Bandido. Já tinha andado por
São Paulo procurando o Cabeção. Primeiro,
queria o Lima Duarte. O Lima não aceitou, estava fazendo uma peça e ficou meio indeciso,
o diretor era um garoto novo. Aí fomos assistir
a Fernanda Montenegro fazendo A Volta ao
Lar, de Harold Pinter, e lá estava o Linhares. O
Rogério disse: Pronto, é o Linhares. Fechamos
com o Linhares.
Fomos procurar depois o Bandido. Ele queria um
tipo másculo, com cara de bandido, mas meio
galã, que tivesse um certo charme de galã. Isso
dificultava a escolha do ator. Nessa procura para
lá e para cá, conseguimos fechar mais ou menos
o elenco. Quando voltei para o Rio, ele já pensava no Paulo Villaça. E acabaram fechando. Foi
um alívio, porque era exatamente o tipo que ele
queria: Villaça tinha algo que lembrava o Bandido da Luz Vermelha verdadeiro. Bastava ver
as fotos publicadas no jornal. O Rogério queria
retratar essa semelhança. O Villaça tinha um
certo troço de cabelo, de olhar. E saiu genial.
Está imortalizado naquele personagem.
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O Rogério tinha um jeito de garotão do sul de
Santa Catarina, era muito tímido, tinha relação
difícil com determinadas pessoas. Mas sabia o
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que queria. Durante dois anos, ficou levantando recursos para a produção do filme. O maior
investimento, a maior força econômica foi do
Deca, da Uranus Filmes. O irmão do Rogério,
que era fazendeiro em Santa Catarina, também
ajudou no financiamento. Rogério pagou todo
mundo dentro da tabela sindical. Sem criar problema com ninguém foi montando aquele filme
que virou uma marca na cinematografia brasileira. Nesse tempo em que estive lá, Zé Alberto
Reis foi morar com o Carlos Ebert, fotógrafo que
fez câmera no Bandido. Ficamos então morando
juntos. Filmamos em março, abril e maio. Voltando ao Rio, depois da filmagem, participei das
passeatas de 1968. Com Rogério mantive uma
amizade pelo resto da vida, apesar de alguns
tropeços. Uma vez o encontrei em Brasília e ele
me propôs um café da reconciliação, porque
estávamos meio brigados. Foi por causa da UFF,
inclusive. Ele ficou chateado com um aluno que
foi lá procurá-lo em meu nome, e o rapaz teria
tratado mal a Helena Ignez. Por isso o Rogério
ficou zangado comigo.
Quando lancei meu livro sobre documentário
paraibano, Rogério elogiou e achou o título
maravilhoso, Dos Homens e das Pedras. Mas
detestou o subtítulo, Ciclo do Documentário na
Paraíba: Tira isso, Marinho! Cinema é universal.
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Amizade com Nelson
Com Nelson, fiz três filmes – El Justicero, Amuleto de Ogum e A Estrada da Vida – e mantive
uma relação de amizade que se prolongou pela
Universidade Federal Fluminense. Costumo dizer que Nelson é meu padrinho, nessa área de
cinema brasileiro. Foi por mérito do Jofre Soares
e do Nelson que cheguei ao Roberto Santos e
ao Matraga. Trabalhei em São Paulo até 1970
fazendo cinema na Boca do Lixo. Foi em São
Paulo que fiz Viagem ao Fim do Mundo, Bandido
da Luz Vermelha e Uma Nega Chamada Tereza.
Depois voltei ao Rio no início de 1971 para dirigir
uma peça. Antes da estreia, o banco desistiu de
emprestar o dinheiro, e a peça foi suspensa. Eu
estava pensando em voltar para São Paulo quando encontrei um amigo pintor e ele me levou
para um ateliê de restauração de quadros. Um
dos donos do ateliê, Fernando Barreto, professor
da UFF, me disse: Marinho, você lá em Recife
dava aula em um curso pré-vestibular para Belas
Artes. Não quer dar aula em cinema, não? Curioso, respondi na hora: Posso dar. Esse professor
me contou que na Fluminense estavam criando
um curso de comunicação social que teria um
setor de cinema coordenado pelo Nelson. Ele
me pediu um currículo para ser encaminhado
ao departamento e se comprometeu a falar com
o Nelson. Fiz o currículo e entreguei. Mas, e o
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Nelson? Estava na França. Esperei um mês até
que uma noite encontrei o Nelson numa festa
em Niterói. Ele ficou feliz com meu interesse em
dar aula. Falei que tinha entregue o currículo
ao Fernando Barreto. Um mês depois encontro
o Nelson num bar na Rua Álvaro Ramos. Ele pediu um chope para nós e brindamos: Toca aqui,
somos colegas! Intrigado, eu disse: Claro, você
é diretor e eu ator. Ele explicou: Não, ambos
somos professores. E bateu o chope, quer dizer,
o mesmo chope que o Jofre bateu lá atrás pra
eu fazer Matraga, ele bateu de novo.
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Depois, já na universidade, fizemos juntos O
Amuleto de Ogum e o Nelson dizia: Marinho,
quero dar aula, mas não posso abandonar meu
trabalho de diretor do cinema brasileiro. Tenho
responsabilidade com isso. Não posso me isolar
só pra dar aula. Ele acabou se licenciando, sem
remuneração. Mais tarde, voltou a dar aulas e a
articular projetos para o curso e tudo. Todos os
projetos que o curso desenvolveu na década de
1970 para curta-metragens foram resultado da
ação do Nelson junto à Embrafilme, ao INCE e a
outras instituições que respeitavam seu prestígio
de cineasta.
Um Método Peculiar
O Nelson é um universo totalmente diferente
do Rogério, do Roberto Santos e do Glauber.
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O Nelson tem um método de instigar por fora.
Nós ficamos hospedados em Caxias, num colégio onde tinha cozinheira que preparava nosso
jantar. Numa noite cheguei para filmar e estava
com o cabelo grande – eu tinha feito uma peça
de teatro. O Nelson me mandou cortar o cabelo.
Fui a uma barbearia do outro lado da praça, cortei o cabelo e voltei. O Jofre Soares comentou:
Esse cabelo ainda tá grande. O Nelson não quer
cabelo desse tipo, não. No outro dia de manhã
fomos para filmagem. O Nelson chegou lá e disse
É, Marinho, esse cabelo tem que cortar mais um
pouco. Aí o Francisco Santos, que escreveu o argumento do Amuleto de Ogum, se ofereceu: Eu
sei cortar com gilete, baixinho, francês. O Nelson
pediu então para ele cortar meu cabelo. O Jofre
me chamou depois e disse assim para mim: É,
Marinho, você tava com cabelo de galã e o galã
aqui não é você não, é o Nei, o filho do Nelson.
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Fiquei intrigado com a observação do Jofre
sobre o negócio do cabelo. Na hora do jantar,
até o Carnera, que não se intrometia na vida
dos outros, começou a implicar com o cabelo. E
o Nelson nem tava aí. Fiquei indignado com as
reclamações. Quinze dias depois, o Nelson me
chama para conversar e diz: Marinho, lembra
a confusão daquela noite, do Carnera e do Jofre enchendo teu saco? Fui eu quem mandou.
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Antonio Carnera, José Marinho e Washington Fernandes em
Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, 1973/74
José Marinho em filmagem de Amuleto de Ogum, de
Nelson Pereira dos Santos, no campo de futebol do Clube
América/RJ, 1973
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José Marinho e figurante Russo, nas filmagens de
Amuleto de Ogum em Duque de Caxias/RJ, 1973
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Você estava fora do personagem. Você estava
tratando o Jofre como se fosse numa relação de
igual para igual, e não deveria ser assim – ele é o
coronel, você é o pistoleiro. Então eu tinha que
fazer o Jofre te provocar, para você ficar com
raiva dele, mas respeitando. Agora nem me preocupo mais com você, você já tá no personagem.
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É assim que funciona o método do Nelson. Cada
diretor tem um caminho próprio para conseguir
o resultado, e o do Nelson era mandar os outros
me provocarem para me enquadrar no personagem. O Nelson pode estar louco para discordar
de você, mas ele se contém. Para ele, estourar é
difícil. Ele vai de outro jeito. Primeiro, na piada,
na brincadeira. Se você não entender pela piada, pelo humor, ele vai duro. Mas ele tenta que
você entenda pelo humor. Tem vezes que você
pensa que é apenas uma piadinha, mas não é,
ele tá dando um aviso. E isso é outro negócio
que ele faz muito.
Em São Paulo, filmando José Rico e Milionário
– Estrada da Vida, eu fazia o papel de um feitor
da construção civil. José Rico e Milionário eram
operários que a certa altura pediam licença para
fazer alguma coisa, e na verdade estavam indo
numa gravadora. Numa cena, o técnico de som
Juarez Dagoberto marcou o lugar onde eu estava
sentado e de onde deveria chamar alguém para
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Figurante Manuel Cavalcante e José Marinho em Amuleto
de Ogum, 1973/74
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Antonio Carnera, Emanuel Cavalcanti, Chico Santos, José
Marinho e Ney Sant’ana em Amuleto de Ogum
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ver onde estavam os caras (Zé Rico e Milionário).
O Juarez instalou o Nagra na minha frente.
Então, num movimento acompanhado pela câmera, eu gritava Sebastião!, virava para outra
câmera e gritava de novo. O Juarez deslocava
o microfone de um lado para outro. Quando
começava a gravar, eu inverti tudo e o Juarez
ficou sozinho: Marinho, que derrubada você
me deu. Olha lá a cara do Nelson. E o Nelson lá
parado olhando com aquela ironia, som direto,
queimou película, perdeu rolo de filme. E o
Nelson: Marinho, você tem noção de direta e
esquerda? Ele faz umas piadinhas assim de leve
pra não estourar. Esses erros que a gente faz às
vezes é uma confusão. Mas o Nelson vai assim,
com essas ironias. Para ele, estourar é difícil,
quando ele estoura o negócio é sério.
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Capítulo IV
Tipologia do Homem Nordestino
Na galeria de personagens que fiz nos filmes
que citei há algumas características físicas bem
determinantes, quase uma tipologia. Foi preciso
ter muito talento para sair desse enquadramento, desse ciclo vicioso. Esse ciclo vicioso vem de
uma formação de uma estética cartesiana, apolínea, da coisa bonita, do galã, do grego com
herói bonito, forte, um deus. Desde as estátuas
gregas e esses mitos todos. E depois isso foi se
disseminando pelo mundo. O teatro, que também começou na Grécia, já tinha esse tipo de
preocupação, porque, na definição do diretor
russo Meyerhold, para fazer um herói épico, o
ator deveria ser alto, espadaúdo, atleta e ter
voz potente; para fazer um galã, um Dom Juan,
precisava ter o rosto pálido, delicado, até um
pouco feminino.
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Essa concepção estética da arte e da tipologia,
que data da época grega, chegou ao século XX.
Chegou ao cinema americano com esse tipo
do John Wayne de fazer o herói do western, o
durão. Aos delicados cabia a composição dos
heróis românticos. O Dom Juan espanhol gostava de aventuras amorosas à sombra, sempre
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nos lugares escondidos, porque senão perde o
mistério do amor. E isso vem passando e você
tem essa estética no cinema contemporâneo,
principalmente no cinema americano e no francês também. Veja o caso do James Dean: era um
tipo com feições delicadas, com cara de menino,
vulnerável. Quando acontece isso com James
Dean, que era um genial ator, essa coisa encaixa
e vira mito, ninguém tira mesmo. Encaixa no
inconsciente coletivo e vai além das coisas que
se imaginou para aquele personagem, você o
transporta para além do que está pensado. Porque o ator muitas vezes pega um personagem
que está escrito de uma forma e leva para muito
mais longe com ele. O ator que consegue melhor
resultado é o que rompe as barreiras, o talento é
tão grande que ele rompe com tudo isso e deixa
o diretor pasmo. Em relação a James Dean, Elia
Kazan dizia: Tem dia que eu não consigo fazer
uma cena com ele, ele apaga e acabou. Agora
tem dia que ele tá perto de Deus, luminoso. Aí
rodo 10 planos, 15, ele faz tudo maravilhoso.
Preconceito Cultural
Com o ator de origem nordestina acontece o
seguinte. Eu ia falar do Texas, do cowboy que
é sempre alto, forte e o ator tem que ter essa
relação. Até o sotaque lá tem. Aqui no Brasil
tem isso. O teatro brasileiro sustentou isso por
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muito e muito tempo. No teatro brasileiro até a
década de 1940 toda pronúncia, toda fonética
era portuguesa. Porque a escola do ator brasileiro era moldada por Portugal, desde a época da
companhia de Eugênia Câmera e tantas outras. O
ator brasileiro de teatro foi formado nessa escola.
Essa escola ensinava um diapasão de fonética, de
inflexões, de sonoridades da língua... Você vê que
os atores antigos tinham um domínio da língua de
brincadeira. Me lembro que o velho Manuel Pera,
pai da Marília Pera, falava com uma precisão de
português erudito, com toda inflexão portuguesa, mas com uma precisão da língua fantástica.
E na rua falando com você não tinha a mesma
linguagem. Quem quebrou isso no Brasil?
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A contestação desse esquema pode ser atribuída a muita gente. Mas na verdade, a principal
ficou por conta do Arena de São Paulo. Com o
Boal tentando encontrar uma linguagem para
o ator brasileiro, adequada ao ator brasileiro,
ao ator carioca, nordestino, gaúcho, mas brasileiro, com traço de brasilidade. Essa foi uma
das grandes contribuições do Boal no Arena.
Todo mundo que conviveu com Boal sabe disso.
E dá confiança a você. Eu logo que cheguei no
Rio, fiz Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho
Come. Mas só consegui fazer porque era uma
peça do CPC da UNE, com um pessoal arrojado
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como Vianinha, Ferreira Gullar, Armando Fontes,
Paulo Pontes, que já tinha quebrado esse tabu
de teatro esnobe, de pronúncia portuguesa, de
francesismo. Para ser Hamlet é obrigatório ser
loiro de olhos azuis e feições delicadas? Eles
quebraram com tudo isso. Hamlet é o ator que
eu botar para fazer.
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Essa subversão deu muita força para a gente que
veio do Nordeste poder entrar nesse universo.
Tanto que eu entrei primeiramente muito mais
no cinema do que no teatro carioca. Eu fiz O Bicho no teatro e quando voltei ao palco com Amir
Haddad, Paulo Affonso Grisoli não tinha mais
esse preconceito. Era o que eu pensava. Quando, por exemplo, o Antonio Abujamra montou
uma peça francesa no Rio fui procurá-lo, porque precisava trabalhar. Ele me desapontou ao
dizer: Marinho, como é que você quer fazer um
personagem francês? Não vai dar, meu filho...
Depois que entrei na Globo, na primeira versão
da novela Roque Santeiro, o negócio começou
a melhorar e o preconceito a desaparecer. Fiz
42 capítulos, mas a novela acabou proibida, não
foi ao ar. Mas o Daniel Filho, que tinha visto a
novela, me chamou e acabei fazendo Pecado Capital – de ponta a ponta. Depois disso vieram as
séries Carga Pesada, Plantão de Polícia e outras.
Dali em diante, ao menos na Globo, o pessoal foi
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esquecendo meu sotaque, e eu fazia qualquer
coisa: drama, comédia. Quando você ganha certo
status, esquecem seu sotaque. Passei a fazer Viva
o Gordo, Chico Anísio Show... Ninguém mais
perguntava se Marinho era nordestino. Isso é
incrível. Mas tem muita gente que sofre com isso,
com ser rejeitado pela origem. O José Dumont
deu a volta por cima pela genialidade dele, mas
mesmo assim estão procurando enquadrá-lo.
Para escapar dessa armadilha do tipo nordestino
é preciso mais do que força de vontade individual, é preciso vencer uma resistência cultural, que
está disseminada no meio artístico. A formação
teatral brasileira está ligada à escola europeia,
francesa. Por incrível que pareça, quem tentou
quebrar essa fôrma foi um europeu. Em matéria
de encenação, foi Ziembinski, um polonês, que
em 1944, na primeira montagem de Vestido de
Noiva, pegou toda a gíria carioca do Nelson Rodrigues e jogou no palco. A estrutura linguística
da peça era desconhecida no teatro praticado então. Para verificar, basta ler a crítica da época, os
críticos de suplementos dominicais, que ficaram
assustados com a ousadia da encenação. Ziembinsky serviu-se do Nelson para quebrar a fôrma.
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No cinema há o perigo do exotismo, do típico.
Sei que existe esse perigo. Por isso às vezes evito
fazer determinados personagens. A não ser que
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seja uma coisa que me interesse muito. Porque se
só é pra botar physique du rôle lá, eu não vou.
Se precisa de nordestino, podem pegar alguém
por aí... Mas se o personagem me interessa, eu
vou. No Bandido o personagem Tarzan era um
investigador de polícia, paulista a vida inteira.
Até hoje ninguém discutiu alguma coisa do
gênero: Marinho fez um nordestino lá em São
Paulo. Todo mundo aceitou. É só vestir, limpar o
sotaque e seguir adiante. Veja o caso do Bandido, de Terra em transe. Já no Amuleto de Ogum,
estou caracterizado como nordestino, mas por
uma exigência do papel. O personagem é um
pistoleiro que vai de ponta a ponta da narrativa. Agora, se for para fazer uma participação
especial de um dia de filmagem, interpretando
um nordestino, não dá. Folclore não.
Não entro nesse esquema do folclore. Nunca
fiz pornochanchada. Não devido a preconceito,
mas por causa de uma visão política e cultural.
Eu vivia muito no mundo do Cinema Novo, de
um cinema que pensava no Brasil, refletia o
Brasil, preocupava-se com o processo político
brasileiro. Então achava que não tinha nada a
ver um cinema para ganhar dinheiro. E nunca
pensei em ganhar dinheiro, isso também era
um negócio da minha cabeça. É uma questão de
formação. Desde menino, meu irmão Josias, que
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hoje é comerciante aposentado, tinha sempre
uma atitude quando alguém chegava para ele
e propunha: Josias, quer trocar esse cinto aí teu
por esse aqui meu? Eu te volto tanto... Ele dizia:
Vamos! Tirava o cinto e dava para o outro.
Comigo sempre foi diferente. Eu nunca trocava
nem um pão pelo outro. Nunca fui de negócio,
nunca pensei em ganhar dinheiro. Então fazia
as coisas, e faço até hoje, por amor às causas.
Por isso fiz o cinema brasileiro mais ligado à esquerda. Também fiz o teatro ligado a isso, desde
Recife. Depois me envolvi com a universidade,
virei professor, fiz mestrado e fui me afastando
do teatro. Porque o teatro é realmente uma
religião, você tem que se dedicar 24 horas por
dia. Se não, você não faz teatro legal. Ainda fiz
algumas montagens lá dentro da universidade
mesmo. Mas como ator, nunca mais. Cheguei a
fazer muito teatro aqui e em São Paulo. Trabalhei em peças maravilhosas, como Tom Payne,
com direção do Ademar Guerra; fiz Grande
Sertão: Veredas. Mas nunca me encantei com
esse lado de ganhar dinheiro e também nunca
fui galã, nem no teatro, nem no cinema. Esse
physique du rôle não pega comigo. Mas fiz
muita coisa que gostei de ter feito, sem ter que
ser galã nem ter que fazer também essas coisas
enclausuradas num retrato só.
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José Marinho, Elias Gleizer e Antonio Petrin na peça Tom
Payne no Teatro Veredas/SP
José Marinho durante a temporada de Tom Payne no
Teatro Veredas - São Paulo/SP 1969
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Capítulo V
Reflexão sobre o Ator
Sobre a espontaneidade interpretativa desenvolvida com o Cinema Novo, seria preciso dizer
que ela é uma consequência da evolução do ator
no cinema moderno brasileiro. Em comparação
com outras épocas, essa mudança é visível. Por
exemplo, em todo o período da Vera Cruz, que
é época do cinema sério, dentro dos moldes
clássicos, os atores ainda estão muito presos.
Revendo esses filmes, você percebe como os
atores são formais. Já no Rio, a chanchada solta
os atores. Oscarito, Grande Otelo, Ankito, esses
puxadores das gags, da comédia popular, são
descontraídos e descontraem o elenco. Por isso
os elencos das chanchadas parecem muito mais
espontâneos com relação aos atores dos dramas
ou comédias da Vera Cruz.
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Quando estive no México, há uns 10 anos, notei
que o ator mexicano das novelas, com seus cabelos engomados e sua voz empostada, era muito
preso, tradicionalista, na postura e no físico. Até
hoje ele mantém aquele traço do melodrama
mexicano de lá, da época do Arturo de Cordova
e outros tantos. Comentei esse aspecto com um
professor da Universidade do México e ele observou que a dramaturgia da novela brasileira
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é muito melhor, mais bem resolvida do que a
deles, tanto do ponto de vista de elenco como
no das narrativas. Esse professor também é até
roteirista de cinema. E disse que lá no México
ele até lutava para romper com esse padrão,
mas não tinha sucesso, porque a mentalidade é
muito tradicionalista e segue rigidamente modelos clássicos de dramaturgia e de interpretação.
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Antes do Cinema Novo, Nelson já tentava algo
diferente em Rio Zona Norte, Rio 40 Graus... Mas
Grande Otelo com o sambinha e Ângela Maria,
por exemplo, ainda obedecem às marcações. Ismail Xavier observou que Rio Zona Norte ainda
está muito preso aos padrões tradicionais do
cinema. Só aos poucos o Nelson vai se soltando.
No começo, ele ainda está influenciado pelas
chanchadas e os dramas da Vera Cruz, na qual
foi assistente de direção ou coisa parecida. Já
quando fez Boca de Ouro, percebemos que ele
se soltou, que lidou muito bem com a malandragem carioca. Aliás, ninguém adaptou Nelson
Rodrigues tão bem quando o Nelson. Arnaldo
Jabor foi maravilhoso também. Mas a concepção
do malandro do Jece Valadão em Boca de Ouro
é única.
O método muda em Vidas Secas. Nelson teve
que ser mais rigoroso, porque o Átila Iório era
um ator de teatro, aquele de tipo tradicional.
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Foto de José Marinho feita na casa de praia de Nelson
Pereira dos Santos em Itaipuaçu - RJ 1999
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O Nelson o obrigou a andar descalço, por cima
das pedras. Átila dizia que não aguentava, que
tinha espinho por ali e o Nelson dizia que não
tinha nada. Então tirava os sapatos e andava
por cima das pedras, que estavam cheias de
espinho embaixo. E depois dizia: Agora anda
você. Câmera! Foi Nelson quem me contou isso.
Ele mesmo ficou descalço para convencer o ator.
Desse modo, sai da bitola, do tipo Peraí, o ator
não aguenta então vamos solucionar de outra
forma. Ele tem essas saídas.
180
No Amuleto de Ogum, por exemplo, a gente
estava filmando dentro de uma sala pequena, na
casa do Tenório Cavalcanti, lá em Caxias, onde
o coronel interpretado pelo Jofre recebia os
pistoleiros e lá do interior da casa vinha a Anecy,
amante dele. O Nelson fez toda a decupagem e
quando foi filmou viu que o Carnera estava fora
da cena. Qual foi a saída? Ele criou um primeiro
plano em que o Jofre manda o Carnera ir buscar
gelo, e este sai e fecha a porta. Só que, no plano
seguinte, entrava a Anecy vindo do interior da
casa dizendo: Olha o gelo! Olha o gelo! Para
justificar a sequência, então, o Nelson cria outro
plano final do Carnera voltando e dizendo ao
Jofre: Ô, patrão, eu não consegui encontrar o
gelo. Ah, não precisa de gelo porra nenhuma!
Vai embora! Funcionou.
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Com o Nelson, a espontaneidade controlada
virou um estilo. No Cinema Novo, essa espontaneidade se consolida com outros diretores. As
improvisações do Glauber no Deus e o Diabo na
Terra do Sol, com aquela câmera na mão, aquelas
ladeiras, aqueles atores, só conversando com o
Othon... Eu gostaria de saber como ele conseguiu
aquele resultado. Eu acho que houve uma combinação de sol ardente, daquele sol do sertão, de
força de vontade dos atores (e muita persuasão
do Glauber) para os atores aguentarem... Yoná
Magalhães e Geraldo D´El Rey, atores da cidade
colocados no meio daquele tabuleiro ali, não é
fácil não! E todo mundo interpretando, vivendo
como se fossem gente dali mesmo, adaptados ao
ambiente, ao clima, ao calor.
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Já em Macunaíma a gente vê que o estilo do
Joaquim Pedro é diferente daquele de O Padre
e a Moça, que está mais solto, mais espontâneo.
Todo o clima de literatura com a liberdade dos
atores e a espontaneidade vai aparecendo naturalmente. Como no Bandido, como eu lhe falei
aparece muita espontaneidade dos atores e improvisação do diretor ali na hora. Há planos que
não estavam na história, mas de repente uma
coisa acontece ali e é aproveitada. O Rogério, por
exemplo, tem um rapaz que é preso na Boca do
Lixo e o pessoal amarra ele num poste e começa
a bater nele. Ele é ladrão e tá drogado babando.
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Nós íamos sair para filmar com a equipe, estava
tudo no carro. Aí o Rogério mandou filmar o
cara no poste amarrado enquanto a polícia ia
chegar para prender o cara. Depois ele botou
aquilo dentro do filme. Não estava no roteiro,
nem nada, mas na Boca do Lixo cabe tudo, então
cabe essa também. Como coube o do ecrã no
Dragão da Maldade.
182
Quando o Ismail Xavier deu um curso sobre o
Glauber e a desconstrução narrativa no Cinema
Novo, conversamos muito sobre essa questão,
que acompanhei de perto, trabalhando com
diretores que tinham métodos diferentes de
narrar. Comentei com o Ismail que essa desconstrução do Cinema Novo deixou de existir. O cinema brasileiro atual não é nem Vera Cruz, nem
Cinema Novo, nem é chanchada da Atlântida – é
um outro cinema brasileiro. O bom cinema é diferente, ainda estou tentando encontrá-lo, mas
não sei como vou chegar nele. Vejo um filme,
peço outro na locadora, procurando encontrar
esse cinema atual. Sei que tem um filão lá atrás
do Cinema Novo, mas não é uma coisa direta,
não tem o empenho ideológico do Cinema Novo,
não tem uma postura intelectual. Mas percebo
que os novos cineastas querem trabalhar uma
linguagem brasileira bonita, simples, descontraída, descarregada. Por isso não há desconstrução
narrativa, mas simplicidade no modo de contar,
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simplicidade nos enquadramentos, sem muito
rebuscamento. Existem alguns mais rebuscados,
como o Cláudio Assis do Amarelo Manga e do
Baixio das Bestas. Mas o cinema que vejo não me
parece ser aquele cinema que está lá atrás, com
o Cinema Novo. Lembra Iracema? A historinha
é que interessa. Esse negócio amadureceu e deu
em outro cinema.
Outras Vertentes
Acompanhando a mudança no cinema brasileiro,
como ator e professor, percebo que não houve
um desenvolvimento na linha do Cinema Novo.
Tempos atrás, em outra discussão com o Ismail
Xavier e com gente de cinema em Brasília, eu
disse que ainda tinha muita coisa no esquema
do Cinema Novo. Os filmes da Tata Amaral, por
exemplo, são de um cinema dela, absolutamente pessoal. Ainda assim acho que tem alguma
coisa de Cinema Novo. Acho que os filmes do
Cláudio Assis, que mencionei acima, têm uma
certa violência daquela época, mas não têm uma
violência da favela. Por outro lado, tem filmes
que não têm violência e são maravilhosos. Sei
que a violência faz parte do cinema de hoje, que
é um elemento da atualidade. Mas é cansativa,
exagerada. É coisa do cinema americano. Na década de 1930, o cinema americano era o musical
e o policial, não tinha mais saída. Final de 1930
já começou O Vento Levou, romances e tudo o
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mais. Depois vem o filme de guerra, o cinema
noir – a década de 1940 foi quase toda de noir.
E depois vem a juventude rebelde, anos 1950,
rock‘n’roll, James Dean, Elvis Presley, Marlon
Brando, Juventude Transviada.
184
No Brasil, também o cinema de hoje reflete
essa realidade, essa violência. Mas reflete outro
tipo de sentimento, outro tipo de preocupação.
Ainda estou meio perdido para ter uma visão
precisa disso. Preciso juntar um bocado de filme
para refletir direito sobre este cinema contemporâneo. Porque até uns cinco, seis anos atrás
eu ainda tinha um referencial, mas depois perdi
esse referencial. Mas sei que tem alguma coisa
diferente, que tem um outro cinema que já está
aí e é muito bom. E também tem mudança nos
atores. Você encontra um ator mais solto, não é
mais aquele ator preso da década de 1950. Ele
está dentro de um espaço que não é a televisão.
O Selton Mello, por exemplo, é de televisão, mas
quando está no cinema muda de postura. Fiz
com o Selton Guerra de Canudos e vi como ele
entra no cinema.
O ator antigamente, quando fazia muito teatro,
tinha medo de fazer cinema, de se perder no
cinema. Às vezes já era ator famoso no teatro e
achava que o cinema ia rebaixá-lo. Os atores de
hoje não têm mais esse preconceito, eles até vol-
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tam a fazer teatro. Os diretores de hoje não têm
muito trabalho com os atores. Os atores são mais
maduros, a própria história do cinema brasileiro
amadureceu isso. As coisas têm que ter memória,
você não pode partir do nada. Você como ator
tem que ver muito o trabalho de outros atores,
como cineasta, ver muito o trabalho de outros
cineastas. É uma linguagem. O talento já está
desde o início. Nos seus primeiros trabalhos o
ator já evidencia seu talento. Mas a técnica, a
linguagem, isso só vem com o tempo. Hoje me
sinto muito mais solto para fazer os personagens. Fiz uma participação especial na Record:
um padre no meio do calor, num cemitério e um
batalhão de polícia, uma banda de música. Há
muito tempo não fazia um set profissional. Mas
aí foi um padre que fez um discurso, um salmo
inteiro, e eu me senti no início assim pesado. E
pensei Peraí, Marinho, sai dessa, é a apresentação da novela. E aí peguei o texto já assim e
o cara não fez nenhuma observação. Repetiu
umas dez vezes para mudar o enquadramento
mas nunca fez observação sobre o texto, nada.
E os colegas acharam perfeito.
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A gente amadurece com o tempo. Tem ator que
chega muito mais rápido à maturidade. Há atores
que com cinco anos de carreira estão perfeitos
para qualquer personagem, quer dizer, dentro
das limitações que o homem tem. O Wilker con-
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tou isso outro dia como piada. Tem uma história
do Marlon Brando, num making off que fizeram
do Marlon Brando num filme do Coppola, e
perguntaram como ele fazia o personagem. Ele
disse: Eu, quando vou fazer um personagem, sento, estendo a mão e espero. Perguntaram o que
ele esperava. E ele: A máscara. O Wilker, quando
lhe perguntaram como buscava o personagem,
ele respondeu: Eu não busco nada, ele, se quiser,
que venha pra mim. Não sei se ele tava contando
dele mesmo ou de outro ator.
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Prêmio Especial
Durante minha vida de professor sempre me
neguei a trabalhar com os alunos como ator. Eu
ficava na organização da produção, apoio e tal.
Mas de uns anos para cá comecei a interpretar
em filmes da escola. Numa dessas participações,
para um filme de um aluno chamado Thiago
Morena, terminei ganhando um prêmio especial
do júri no Festival de Brasília do ano 2000. Faço
um produtor de um filme pornô que contrata
um ator e o ator não atinge o que ele quer, não
consegue fazer a coisa legal, é muito afeminado, é muito cheio de frescura. É uma crítica a
essas coisas todas. Aí ele demite o cara, tem um
enfarte e corrige o diretor e tal. Sou eu e um
ator que começou lá no curso de cinema da UFF
também, o Thales Coutinho. Somos nós dois e
outros personagens menores. E lá no festival de
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Tiago Moreno, Juan Carlos Gonzales e José Marinho nas
filmagens de Arábia, de Tiago Moreno
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José Marinho no filme Arábia, de Tiago Moreno
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Após receber o prêmio especial do Júri de Melhor Ator no
33º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, por Arábia,
ao lado da roteirista Patricia Freitas, 2000
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Após receber o prêmio especial do Júri de Melhor Ator no
33º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, por Arábia,
ao lado do diretor do filme, Tiago Moreno 2000
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Brasília, depois de uma sessão do filme, chegou
um menino da USP e me perguntou: Você é o
Zelito Viana? Fiquei surpreso com a pergunta,
mas falei: Não, por quê? É porque você fez aquele
produtor com tanta naturalidade que pensei que
fosse o Zelito Viana.
Criou-se então no festival uma febre em torno
dessa atuação. Uma menina, professora da UNB,
me encontrou e elogiou: Marinho, que coisa
fantástica esse personagem. Mas parou de falar
porque, alegou, ela era do júri! E um amigo meu
virou para mim e disse: Marinho, acho que você
vai ganhar esse prêmio. Já vi umas outras pessoas
do júri comentando o mesmo que essa menina
aí. Esse seu personagem está dando o que falar.
Resolvi então ficar até o final do Festival e saiu
esse prêmio especial do júri, porque não havia
prêmio para 16 mm. O filho do Sérgio Mamberti
ganhou o prêmio de ator de melhor filme em
35mm; e eu ganhei o de melhor em 16 mm.
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É claro que fiquei muito feliz com esse prêmio
especial porque estreei no Festival de Brasília em
1966. O primeiro foi promovido por Paulo Emílio
Salles Gomes e ainda nem era Festival Brasileiro
do Cinema, tinha outro nome. Matraga foi o filme premiado naquele ano. Outros filmes que fiz
também foram premiados em Brasília, inclusive
O Bandido da Luz Vermelha. O Ismail uma vez
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fez uma conta e disse Marinho, acho que você
é o que mais tem filme premiado. Matraga foi
premiado em Brasília, Bandido, Viagem ao Fim
do Mundo, acho que foi também, Desesperato
em Belo Horizonte. E o Ismail fez lá uma conta.
E viu que eu estava sempre em um.
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O Bogart da Boca
No Festival de Brasília, O Bandido ganhou todos os prêmios, não foi proibido e teve muito
sucesso em São Paulo. Com o passar do tempo,
virou um cult movie, mas na época era um filme
comercial, um filme de cinema. Foi nessa ocasião
que a namorada do Carlos Ebert, a Sandra, me
deu o romance Grande Sertão: Veredas com uma
dedicatória: Ao Marinho, o Humphrey Bogart
da Boca. O filme tinha o clima de filme policial,
uma admiração do Rogério pelo gênero. Foi por
isso que numa entrevista famosa ele qualificou
O Bandido de bangue-bangue da Boca do Lixo.
Aliás, foi essa entrevista que detonou o rompimento dele com o Cinema Novo. A relação dele
com o Instituto Nacional do Cinema e, mais
tarde, a Embrafilme, nunca foi boa. Mas foi a
partir de seu rompimento com a turma cinemanovista que Rogério enfrentou dificuldades com
os poderes instituídos. Os projetos dele eram
vetados, até que Roberto Parreira, que dirigia
a Embrafilme, o convidou para conversar. Com
medo de ir sozinho, ele passou na minha casa,
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tomamos um litro de uísque e me convidou para
acompanhá-lo. Um ano depois a Embrafilme
aprovou o projeto de Nem Tudo É Verdade.
Depois ele teve outro projeto aprovado, uma
biografia do Noel Rosa, que não chegou a filmar.
Joel Barcellos foi convidado para o papel. Quando eles começaram a filmar em Santa Tereza,
Rogério e Joel brigaram e o filme não saiu. Esse
episódio está registrado em uma conversa que
tive com Rogério e que entreguei para a Helena
Ignez publicar depois de mais de vinte anos.
Escandalosas e Lampião
Minha atuação em Bandido me abriu as portas
para muitos filmes. Meus dois trabalhos seguintes
foram no Rio de Janeiro, em As Escandalosas,
do Miguel Borges, e Meu Nome é Lampião, do
Mozael Silveira, produzido pelo Roberto Farias.
Eu já estava morando em São Paulo quando o Miguel me chamou para interpretar esse delegado.
Uma tarde eu e Miguel fomos ver na Cinelândia
A Noite do Dia Seguinte, um filme com o Marlon
Brando, em que ele participa do sequestro de uma
garota. O Marlon se revezava com outro comparsa, tomando conta da garota. A certa altura, o
Marlon Brando, que estava simpatizando com a
garota, se queixa ao chefe que o outro sequestrador está paquerando ela. O chefe não dá muita
bola. Marlon Brando volta enfurecido, ergue
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Ivan Candido e Marinho em As Escandalosas, de
Miguel Borgues
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as mãos, gesticulando com raiva – e interpreta
tudo com as mãos. O Miguel comentou nessa
hora: Marinho, isso é genial! Essa cena pagou
o filme! Ele expressa tudo com as mãos! Miguel
tinha sido crítico e conhecia muito cinema. Ele
gostava de citar cenas e diretores que apreciava.
Na semana seguinte, quando voltamos a filmar,
Miguel trabalhava uma cena em que uma garota
morria em um bordel e um delegado ia lá investigar. O delegado vê a garota morta em cima de
uma mesa. Miguel fez um travelling que ia da
mulher até a porta e saía. O meu personagem,
o delegado, ia e olhava a mulher morta. A atriz
fora Miss Guanabara e tinha uns peitos grandes.
Miguel mandou a moça tirar a blusa e ficar nua,
mas coberta com um lençol. A cena começa com
uma lente fechada em cima dos peitos da mulher,
tomando a tela toda. A lente vai abrindo, eu vou
chegando e entro no quadro. Nisso, um puxa-saco
vem falar comigo e o carrinho vai saindo. Enquanto ele está saindo eu fico falando, gesticulando
com as mãos para o alto, igual à cena do Marlon
Brando. Rindo, Miguel disse: Pronto, Marinho,
homenageamos o Marlon Brando. O Miguel era
um diretor exigente que não filmava enquanto
as coisas não estivessem como ele queria. Havia
uma cena em que um puxa-saco ia acender o
cigarro do delegado e tinha que ser um isqueiro
zippo, mas não conseguiram o zippo. Miguel não
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quis filmar sem o zippo. Tiveram que ir ao Centro
achar o isqueiro. Ele queria citar algum cineasta
nessa cena que eu não sei.
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Depois de As Escandalosas fiz Meu Nome é
Lampião. A produção foi montada pelo Roberto
Farias e a direção ficou com o Mozael Silveira,
um ator característico, que trabalhou em muitos
filmes no Rio e até na Vera Cruz. O Mozael dirigia, mas o Roberto estava lá de olho o tempo
todo. Meu personagem era um cangaceiro, que
seria interpretado pelo compositor João do Vale,
porque tocava sanfona e cantava. Mas o João
do Vale, que já estava famoso, não aceitou. Foi
então que o Roberto me chamou. Ele me mandou cortar o cabelo para não ficar com cara de
galã, já que o personagem era um cangaceiro
feio, que currava mulheres.
No filme há duas cenas de sexo. A primeira é com
a Dilma Lóes, que faz a filha de uma baronesa.
Os cangaceiros invadem a casa e a moça está vestida de noiva para casar. Eu a pego com vestido
e tudo, jogo no chão e transo com ela enquanto
os cangaceiros dão cobertura. A polícia chega e
eu saio correndo com a braguilha aberta. O Roberto Farias riu bastante dessa cena: Pô, Marinho,
que realismo fantástico! A outra cena de sexo se
passa em outra cidade. Quando o bando invade
a cidade, o Milton Ribeiro, que faz o Lampião,
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dá as instruções para todo mundo e me manda
fazer a barba. Como na barbearia tinha um espelho, falei com o Mozael de uma cena clássica
do western My Darling Clementine (Paixão dos
Fortes), do John Ford, onde o Henry Fonda aparece sentado na cadeira do barbeiro. O Mozael
gostou: Vamos homenagear o Henry Fonda e o
Ford. Quando estou na barbearia, passa um galo
na calçada. Tem dois cangaceiros de guarda, um
em cada ponta. Eu mando um cangaceiro se afastar, faço a mira pelo espelho e atiro, matando o
galo. Depois pego o galo e dou para uma filha do
barbeiro cozinhar e vou transar com outra filha
no quarto, na marra. Quando termino e saio para
a calçada, alegre, chega Lampião. O barbeiro se
queixa que eu currei uma filha dele e Lampião
diz: Não tem perdão. Puxa a pistola 45 e me mata.
Minha participação morre ali.
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Meu Nome é Lampião foi feito no Município
de Macaé, no Estado do Rio, no final de 1969.
Depois da filmagem, voltei para o Rio e resolvi
ir de novo para São Paulo, onde fiquei durante
todo o ano de 1970 fazendo teatro. Mas além
de trabalhar nas peças Grande Sertão: Veredas
e Tom Payne, participei de Uma Nega Chamada
Tereza, do Fernando Coni Campos.
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Capítulo VI
Novos Tempos e Desafios
Enquanto já lecionava como professor, participei
de vários filmes, trabalhei em teatro e televisão.
Foi um período animado, intenso, com diversificação de tipos, personagens e métodos de
interpretação. Voltei a filmar com Nelson (duas
vezes), trabalhei com Paulo Thiago (duas vezes
também), reencontrei o Rogério, estive em filmes de ex-alunos da UFF (Augusto Ribeiro, Tizuka Yamasaki e Nuno César de Abreu), conheci
o jovem Fábio Barreto e retornei ao sertão com
Roberto Farias.
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Amuleto de Ogum
Eu estava fazendo uma peça, chamada As Incelenças, onde era codiretor e ator, quando o
Nelson organizava a produção de Amuleto de
Ogum. Seis meses antes da filmagem, ele disse
que me queria no filme. Comecei então a aparecer na Regina Filmes, produtora do Nelson,
que ficava em Botafogo. Ia sempre lá nos finais
de tarde conversar com ele e com o pessoal da
Regina. Na época ele estava dando retoques
no roteiro, pedindo sugestões, escolhendo o
nome dos personagens. Chamou os atores e
cada um escolheu o nome do personagem do
outro. Nisso, Emmanuel Cavalcanti ficou Dr.
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Baraúna, que é uma árvore com uma casca
preta que por dentro é vermelha e dura. Como
ele iria vestir um terno preto e era um homem
duro de opiniões, ficou esse nome. O Carnera,
que tinha aparência de índio, ganhou o nome
de Zé Índio, acho que por sugestão do Jofre. O
Chico Santos ficou Chico mesmo. Para o Jofre,
o Nelson inicialmente queria Severiano, numa
alusão irônica ao Severiano Ribeiro, poderoso
distribuidor e exibidor de cinema. Outro nome
sugerido era Corleano, em uma referência ao
Don Corleone encarnado pelo Marlon Brando
em O Poderoso Chefão. Meu personagem, um
pistoleirozinho abusado, ficou Quati, que é
um bichinho vermelhinho e abusado. O Nelson
incorporou esses nomes ao roteiro. Como era
época de férias, a produção conseguiu um colégio em Caxias, onde nos hospedamos. Foram
colocadas camas e contratada uma cozinheira
para fazer o jantar. O almoço geralmente era
um sanduíche na hora da filmagem. Então
tomávamos café lá, íamos filmar, no almoço
parávamos para comer sanduíches e à noite
havia um farto jantar. O Nelson fotografou
inicialmente com um assistente. O assistente
de direção foi o Luiz Carlos Lacerda, o Bigode.
Um dos atores foi o Jards Macalé, que também
fez a trilha sonora.
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Na filmagem aconteceu uma confusão, porque
na peça Incelenças eu usava o cabelo grande
e o Nelson me pediu para cortar. Fui a uma
barbearia e mandei cortar curtinho e baixo.
Quando voltei ao colégio, o Jofre começou a me
instigar: Este cabelo tá grande demais! Você tá
com cara de galã e você não é o galã do filme.
E começaram a me cutucar tanto que eu perdi a
calma e saí da mesa. No outro dia, na filmagem,
o Nelson falou com o Chico Santos que disse
que sabia cortar cabelo com navalha e o Chico
deixou meu cabelo ainda mais baixo. E então
começamos a filmar. Filmávamos o dia todo e
à noite íamos para um bar que tinha perto do
colégio. Era época de verão, então todo mundo
diariamente tomava uma cachaça e chupava um
caju, como tira-gosto. Depois de 15 dias rodando,
o Nelson deu uma folga e me chamou para falar
em particular. Ele disse: Marinho, aquela briga
que você teve com o Jofre, fui eu que provoquei.
Eu precisava que você respeitasse mais o Jofre Soares. Você, enquanto pistoleiro, estava tratando
ele, que é o coronel, de igual para igual e não
estava conferindo o respeito que o personagem
exige. E aquela bronca que o Jofre te deu foi
justamente para causar isso, você ter o respeito
por ele. E agora você já conseguiu encontrar o
personagem e eu já nem me preocupo com você.
No resto do filme fiquei mais à vontade.
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Na história, Anecy viaja para São Paulo, onde
morariam os pais dela. Nelson me perguntou
se conhecia alguém no subúrbio de São Paulo.
Lembrei-me de um amigo, o Araújo, militante
do Partido Comunista, que trabalhou no governo Arraes. Ele era pai do meu amigo Petrucio,
que já mencionei. Lembrei-me que eles tinham
construído uma casa no bairro Jardim Brasil.
Falei com o Nelson e ele me mandou falar com
o Araújo e acertar a locação. Toda a equipe iria
na sexta-feira, porque o Ney Santanna casaria lá
no sábado e no domingo seria a filmagem. O Ney
namorava uma menina em São Paulo. Ele tinha
ido morar lá para se preparar para o vestibular
de Medicina. No domingo, foi marcada uma
feijoada na casa do Araújo e aproveitamos para
fazer tudo de uma vez: a filmagem e o casamento do Ney. A família do Araújo acabou fazendo
o papel de família da Anecy na filmagem. Na
esquina da casa tinha um sanfoneiro e o Nelson
mandou contratá-lo para tocar no almoço. Eu
e Araújo fomos lá e contratamos o sanfoneiro.
Em cima da casa deles havia um terraço. E tudo
isso formou aquela famosa cena do terraço com
a música do Macalé tocada pelo sanfoneiro e a
panorâmica do Jardim Brasil. Na crítica do José
Carlos Avellar no Jornal do Brasil, se não me
engano, ele começa falando daquela sequência,
como se ela definisse o filme. E o Nelson brin-
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cava: Esse pessoal tem mania de fazer análise
estrutural. Mas foi muito boa a crítica do Avellar.
Quando retornamos ao Rio, paramos em Caçapava, onde estavam os túmulos do avô e do pai
do Nelson. Ele quis filmar os túmulos porque
sua intenção era incluir essas imagens no filme,
mas na montagem ele acabou não o fazendo.
O Amuleto tem o Tenório Cavalcanti como uma
figura emblemática. O Tenório residia em outra
casa e dispôs a casa de Caxias para nós, onde a
irmã dele ainda morava. A família do Tenório é
a mesma família do Emmanuel Cavalcanti. Quem
criou o Tenório foi o avô do Emmanuel. Isso está
no filme do Sérgio Rezende depois. Então havia
esse parentesco. Um dia a irmã do Tenório chama
o Emmanuel, que está com um terno preto, um
guarda-chuva e diz: Você está lembrando o nosso
bisavô, Barão de Buíque. Foi essa coisa familiar
que permitiu que entrássemos na casa toda para
filmar os quartos e tudo lá dentro. Na sequência
final, filmamos no quarto do Tenório mesmo,
onde Anecy fica com Emmanuel depois que o
Jofre morre. Ele canta aí uma música que foi até
sugestão minha Ingrata, porque me foges/ Por
que me fazes sofrer?/ É inútil me fugires/ Hei-de
amar-te hei-de amar-te até morrer! Ele canta isso
olhando lá para baixo, o Jofre morto, o tiroteio
acabou e está aquele silêncio. O Nelson guardou
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essa música para o final e o Cavaca, que é cantor,
a interpreta muito bem.
Depois o Amuleto ficou pronto e o Nelson fez
uma sessão no cinema principal de Caxias. Convidou muita gente do Rio para assistir e lá estava
o Tenório. Ele assistiu ao filme e quando terminou a sessão, ficou na frente do cinema, juntou
a multidão e fez um belo discurso elogiando o
filme. Foi uma sessão maravilhosa. O filme foi
lançado, foi bem-sucedido e fiquei muito feliz
de ter participado.
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Sagarana, o Duelo
Paulo Thiago era músico, tinha um conjunto
musical e estudava Sociologia na PUC. Ele passou a aparecer na Difilm e comecei a conhecêlo. E tinha outro amigo nosso, que era o Ivan
Cavalcanti Proença, e o Paulo Thiago o chamou
para adaptar os contos do Guimarães Rosa. Me
chamou também para dar umas espiadas no roteiro, dar umas opiniões e tal. O Ivan fez, então,
a adaptação dos contos e o Paulo Thiago me
incorporou no filme fazendo um personagem
que era chofer de caminhão, um camarada meio
malandro, esperto, que já tinha morado fora de
Minas e encontra com o Turíbio, que é o Joel
Barcellos. O Turíbio tinha ficado acampado em
uma tenda cigana, dormido com uma cigana que
rouba a roupa dele e vai embora. Ele acorda no
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dia seguinte sozinho e nu. Eu paro o caminhão
no posto de gasolina, quando ele aparece nu e
eu o ajudo, dou roupas e o levo no caminhão
para fugir. A música que toca é uma do Caetano,
que ele fez em Londres.
Além de misturar muitos contos do Guimarães,
Sagarana tinha um elenco muito complexo. O
Paulo Thiago costumava brincar: Esse meu elenco é a seleção brasileira. Era, de fato, um grupo
bastante diversificado e importante, quase uma
homenagem ao cinema brasileiro moderno:
estavam lá Átila Iório; Emmanuel Cavalcanti;
Paulo Villaça; Joel Barcellos; Milton Moraes;
Ítala Nandi, entre vários outros que ele foi escolhendo. Também tinha o Paulo César Pereio,
que era um beato que andava louco, fazendo
sermões. O Paulo Thiago soube usar bem aquele
temperamento explosivo e forte dele. Gosto de
Sagarana, que sai um pouco do eixo do Cinema
Novo, embora retome a questão do filme baseado na literatura nacional. O que aconteceu
com A Bagaceira, do José Américo de Almeida,
que também fiz sob as ordens do Paulo Thiago.
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Soledade, a Bagaceira
Foi filmado na Paraíba, nos engenhos da família
do José Lins do Rego. Nós fomos para lá e ficamos
hospedados na casa-grande da família dona da
propriedade. Ali perto tinha o engenho que fora
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do pai do José Lins e passou a ser do primo dele.
Filmamos uma sequência lá do engenho moendo
a cana. Interessante foi que uma noite fomos à
casa do Zé Lins, falar com ele que filmaríamos
no dia seguinte, e havia uma cerca na frente do
portão. Quando chegamos ao portão, tinha um
homem armado de rifle. Ele liberou a gente depois que mandou outro ir lá dentro e perguntar
ao Zé Lins se podíamos entrar. Isso lá em 1975.
O sertão é assim desde lá e até hoje, o homem
armado na frente da propriedade.
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Na Paraíba, filmamos todos os engenhos, inclusive o da família Albuquerque Mello e o que
pertenceu ao pai do poeta Augusto dos Anjos.
Nesse engenho houve um incidente desagradável quando Paulo Thiago, para resolver um
problema de enquadramento, pediu para cortar
uma árvore. Ele não sabia que essa árvore era
mencionada num poema do Augusto dos Anjos.
Os jornais locais criticaram muito isso. O Lins, que
era músico de vanguarda aqui do Rio de Janeiro, durante anos mandava um telegrama para
o Paulo Thiago lamentando o corte da árvore.
E comentava que continuaria a fazer isso para
lembrar ao Paulo o absurdo que ele fez.
No elenco tinha o Nelson Xavier, como ator principal, além da Rejane Medeiros, Ney, eu, Maurício do Valle, Emmanuel Cavalcanti e outros. Fiz o
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José Marinho em A Bagaceira de Paulo Thiago. Agreste
Paraibano - município de Pombal / PB, 1975
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papel do vaqueiro Quincão. Na primeira sequência, estou no curral quando chega Emmanuel
e canta uma música que eu tinha recolhido no
sertão de vaquejada. Na cantiga ele me avisava
que eu desonrara uma filha de um amigo dele.
Amenizo a situação e saio fora. Numa outra sequência, estou procurando uma vaca, e subo em
uma pedra para ver se a encontro. Quando chega
o personagem do Emmanuel e diz: Quincão, eu
não te avisei! E aí eu tento me escamotear e ele
parte para cima de mim com um facão. Eu puxo
um facão também e começamos uma luta em
cima da pedra até que eu caio em um poço e ele
me fere. Nisso aparece só o sangue indicando
que eu morri e ele se safa.
Para essa luta, montei uma encenação com o
Emmanuel. Combinamos uns gestos, umas quedas
para lá e para cá e umas posições. E com cuidado
fomos fazendo a cena. Muito perigoso, aliás, hoje
eu não faço mais, naquele tempo eu era atleta.
Ninguém podia ferir o outro pra valer, então
tinha que ter cuidado porque facão escorrega
e corta mesmo. Mas fizemos a luta e está lá no
filme. Gosto muito desse personagem, que é uma
vítima dessa coisa que acontece muito no sertão.
As mulheres costumam se apaixonar facilmente
pelos vaqueiros, que são um mito para as garotas,
montam bem a cavalo, são meio galãs, heróis para
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a juventude sertaneja. Todo rapaz sertanejo foi
vaqueiro ao menos por um dia. Mesmo o cara que
vai para a capital estudar, quando vai ao sertão
monta a cavalo, vaqueja e depois volta a estudar
sua medicina. Então é um personagem muito
bonito. Eu monto muito bem, porque fui criado
em fazenda. Isso me beneficiou depois no cinema.
Da experiência rural, há uma volta à selva urbana, com Gordos e Magros, de Mário Carneiro.
O Mário tinha esse roteiro já há algum tempo e
resolveu filmar. Tem um personagem principal
interpretado pelo Wilson Grey, que é o magro
e vai carregar uma cruz, mas não pode passar
em frente a um boteco que tem que parar para
tomar uma cachaça. O gordo era o Carlão, Carlos
Kroeber. Os outros são pessoas amigas do Mário
e eu fui um desses convidados. Ele filmou isso
em um domingo ali no Saara. Depois filmamos
também lá em um cinema na Voluntários da
Pátria, em Botafogo. Era uma poeira que só
passava filme pornô e acabou fechado. Filmamos
lá uma sequência interessante, com uns objetos
estranhos. Gordos e Magros não foi um filme
comercial, mas uma experiência autoral, de
baixo custo. Mas que tem seu valor e até precisa
ser revisto, porque o Mário era muito talentoso,
dirigiu e fotografou o filme também. Na época,
achei o filme interessante.
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Boi de Prata
Eu me casei em setembro de 1978. Foi nessa
ocasião que participei desse filme do Augusto
Ribeiro Jr., no papel de um vaqueiro. Ele preparou a produção na Regina Filmes, onde eu
às vezes o encontrava. O Júnior era um menino
brilhante, muito antenado e com uma forte
presença de espírito. Tinha sido aluno da UFF,
do grupo que veio de Brasília. Muito inquieto,
ele queria dirigir e começou a fazer o roteiro
do Boi de Prata, que mostrava para o Nelson. A
Regina Filmes acabou montando uma produção
com a Embrafilme e o Júnior resolveu filmar no
Rio Grande do Norte, terra de sua família. Quem
faria o papel do vaqueiro seria o Jofre Soares,
que não aceitou porque estava comprometido
com outro filme em São Paulo. O produtor Iberê
Cavalcanti me convidou de última hora. Topei e
tive que viajar para o Rio Grande do Norte. Ele
providenciou passagens para mim e para Deise,
que já estava grávida do Daniel. Faltavam dois
meses para ele nascer.
Viajamos para o sertão do Rio Grande do Norte, em
Caicó. O vaqueiro era morador de uma fazenda há
muitos anos. Quando o filho do fazendeiro volta
para a cidade, quis recuperar a terra do vaqueiro,
que não queria entregar. O filho do fazendeiro
era o Álvaro Guimarães, um ator fantástico. No
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José Marinho como Vaqueiro Antonio no filme Boi de
Prata, de Augusto Ribeiro Jr, Caicó/RN 1979
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meio disso entra um poeta, que começa a contar
a história em cordel. O poeta era um ator do Rio
Grande do Norte, Lenício Queiroga, O filme se
desenvolve em torno disso. Ficamos hospedados
em um hotel. Filmamos algumas sequências na
fazenda da família Dantas, onde tem um açude
maravilhoso, e outras sequências na fazenda
do avô do Júnior. Houve um problema em uma
fazenda, porque a produção deveria pagar por
uma pequena casa que a gente iria incendiar
depois. Mesmo sem ter chegado o dinheiro do
Rio de Janeiro para indenizar o dono da casa, o
diretor de produção, Sanin Cherques, marcou as
filmagens. Fomos para a fazenda e quando chegamos com o equipamento, um dos empregados
avisou que não poderíamos tacar fogo em nada
sem autorização do patrão. O patrão era um comerciante da cidade. Avisado pelo empregado,
esse patrão foi até lá, mandou parar tudo, deu
uma volta na fazenda e voltou com três capangas armados: Vocês não pagaram o combinado,
então não vai ter filmagem. Dez minutos para
sair da minha fazenda! Encostou no carro e ficou
olhando. Arrumamos tudo rapidamente e saímos
para a fazenda da família do Lamartine Dantas,
que nos deixou filmar à vontade. Era uma fazenda que tinha umas quatro ou cinco porteiras até
chegar na casa-grande. Ele dizia: Aqui na minha
fazenda, a gente guardava até Lampião.
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José Marinho como Vaqueiro Antonio, no filme Boi de
Prata, de Augusto Ribeiro Jr, Caicó/RN, 1979
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Boi de Prata não teve lançamento oficial, porque
depois de finalizado houve um desentendimento
entre o Júnior, o Iberê e a Embrafilme. Nunca foi
lançado. Teve uma sessão especial na Associação
Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, com
bastante gente. Depois o Júnior foi para Brasília,
levou o filme com ele e nunca o lançou por lá.
Algum tempo depois, ele decidiu fazer outro
filme no Ceará, baseado em um romance da
Rachel de Queiroz. Quando estava no meio das
filmagens, faltou dinheiro. O Júnior teve que
voltar a Brasília para reorganizar a produção.
Nesse meio tempo, e com pressão de todos os
lados, ele teve um enfarte e morreu jovem, com
quarenta e cinco anos. Durante um tempo, a
viúva guardou o filme debaixo da cama. Soube
que mais tarde ele foi liberado e exibido e está
no acervo da Ancine. Não revi Boi de Prata e
tenho a maior curiosidade, porque faço um dos
protagonistas, um personagem que vai de ponta
a ponta e no final é assassinado. O Walter Carvalho foi fotógrafo.
Estrada da Vida
Eu estava fazendo mestrado na USP. Enquanto
estava lá, eu saía para ir à Boca do Lixo e encontrava o Nelson por lá. Muitas sequências foram
filmadas lá, inclusive porque a dupla José Rico
e Milionário surgiu ali. Um perguntou para o
outro: Quem é você?, e o outro respondeu: Eu
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sou José Rico. E o primeiro concluiu: Então eu
sou o Milionário!
O Nelson filmou tudo isso no mesmo hotelzinho
barato ali da Rua do Triunfo, onde eles tinham
se encontrado. O Nelson disse que tinha um
personagem para mim. Até o Rogério andava
por lá também e uma vez disse: Nelson, bota
o Marinho nesse filme. E o Nelson respondeu:
Pode deixar, o Marinho já tá nesse filme, não
se preocupe. Eu achei interessante o Rogério
dar aquela força. E o Nelson de repente disse:
Marinho, é semana que vem a filmagem. Fui
para São Paulo, assisti às aulas e fiz o filme no
final de semana. Meu personagem era o mestre
de obras, chefe do José Rico e Milionário, que
trabalhavam como pedreiros. De repente, eles
não aparecem um dia no serviço e em outra
hora pedem para dar uma saída e na realidade
já estão indo a uma gravadora. E o mestre de
obras não estava sabendo de nada.
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Acho o filme maravilhoso. Chico Botelho era o
fotógrafo e Zé Roberto Eliezer era assistente.
Grande parte foi filmada no interior de São Paulo. O roteiro era do Chico de Assis, dramaturgo
paulista e ex-ator do CPC. O roteiro se baseia na
vida da dupla sertaneja e foi financiado por uma
produtora de programas de rádio muito ouvidos
por caminhoneiros que cobria o eixo São Paulo
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– Mato Grosso do Sul – Amazonas. Nelson foi
contratado apenas para dirigir. Acho que foi o
único filme que ele só dirigiu, sem interferir na
produção nem no roteiro. O filme tem muitos
efeitos especiais bolados pelo Nelson. Ele tinha
imaginado esses efeitos para o filme que faria
sobre Castro Alves, onde reconstituiria a São Paulo da época em que o poeta estudou lá. Então
ele utilizou algumas dessas coisas. Inclusive tem
uma sequência, que eles fazem um negócio de
cobrir metade da lente, escurecem o negativo e
filmam só de um lado e depois filmam do outro
lado. Isso aparece até no prédio da construção,
que depois eles começam a cantar e a canção vai
levando para a floresta, a mata verde.
Parahyba, Mulher Macho
Parahyba, Mulher Macho, de 1983, foi dirigido
por outra ex-aluna da UFF, Tizuka Yamasaki. Ela
foi fazer esse filme na Paraíba. Era a vida de João
Dantas, que matou João Pessoa. Ela formou o
elenco todo e viajou. Eram o Walmor Chagas,
Cláudio Marzo, Tânia Alves, entre outros. O roteiro era do José Joffily, que naquele tempo dava
aula na UFF. Uma vez eu estava conversando
com ele, que disse que o filme teria personagens
para mim. Ele falou com a Tizuka e me mandou
procurá-la. Eu estava indo a Recife de férias. E de
Recife segui para João Pessoa, onde encontrei a
produção e acertamos o personagem, que seria
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um chefe do cangaço que combatia a polícia.
Esse personagem vence a guerra no final e é
parabenizado pelo Zé Pereira, interpretado pelo
Oswaldo Loureiro.
O Rei do Rio
O Rei do Rio foi o segundo filme do Fábio Barreto, que tinha estreado com Índia, a Filha do
Sol. Conheci o Fábio menino, na época do Matraga. Nessa época eu ia muito ao escritório do
Luís Carlos Barreto. Estava lá quando o Fábio
apareceu e me chamou para fazer o papel de
um bicheiro. Tinha um núcleo central, com o
Nuno Leal Maia, o Nelson Xavier e outros, e um
núcleo de apoio, comigo e o Antonio Pitanga.
E Andrea Beltrão, jovem, começando a carreira.
Filmamos em Caxias, dentro da casa do Tenório
Cavalcanti, no mesmo cenário de O Amuleto de
Ogum. Muitas sequências foram feitas em torno
da piscina do Tenório. Outra parte foi filmada
na penitenciária Frei Caneca, demolida há pouco
tempo. Alguns presos foram figurantes.
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Fábio adaptou o filme de um texto do Dias Gomes. O Rei do Rio tem um espírito carioca muito
zona norte, com os bicheiros, as encrencas. É um
filme bem resolvido pelo Fábio, que tem um faro
de cinema muito bom. Têm umas sequências em
que ele dá um banho. Ele cheira o bom cinema.
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É um menino maravilhoso, que hoje está semiacordado, em coma. Isso causa grande sofrimento
a todos. Lamento demais, porque sempre gostei
muito do Fábio, nossos encontros sempre foram
muito amigáveis.
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Nem Tudo É Verdade
Rogério foi uma amizade que mantive por longos
anos. Ele tinha uma ideia de fazer algo com o
material de sobra que havia no Brasil do Orson
Welles, das filmagens que ele realizara na década de 1940. O Rogério roteirizou a partir dessa
história e fez um filme documentário e ficção.
Atuei como um policial que pegaria as sobras de
negativo do Orson Welles, queimaria uma parte
e a outra jogaria no Rio Maracanã. Houve uma
notícia que o governo Getúlio não era simpático
a esse filme do Orson Welles e criou dificuldades
através do DIP. Por conta disso, o Orson Welles
teria ficado desestimulado a continuar as filmagens. O Rogério, aproveitando este tema, resolveu fazer o filme. Eu e o Elyseu Visconti somos
esses dois personagens que botam fogo na sobra
de negativos. Estamos ali perto dos Arcos da Lapa
e fazemos uma fogueira, onde um joga o filme
para o outro, que joga na fogueira. O bondinho
passando em cima, uma sequência muito bonita.
E a outra sequência é feita lá na Tijuca, no Rio
Maracanã, onde jogamos mais negativos. As duas
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sequências são belíssimas e eu gostei muito de
ter feito esse filme. É um filme que passa pouco,
deveria ser mais visto, porque um filme do Rogério sempre é um filme do Rogério.
O Auto dos Trapalhões
Com Roberto Farias, participei de Os Trapalhões
no Auto da Compadecida, estrelado pelo Renato
Aragão. O Roberto me convidou e ao José Dumont para fazermos a dupla de cangaceiros. O Zé
Dumont é o Severino de Aracaju e eu sou o amigo.
Foi uma situação interessante fazer o Auto da
Compadecida, porque eu conheci o Ariano quando ele estava escrevendo esta peça e eu algumas
vezes ensaiei com ele. Foi ali que comecei a fazer
teatro. Nos ensaios eu estava sendo o Severino
de Aracaju, mas depois me mudei para Salvador
quando a peça foi montada. O Roberto Farias,
com consentimento do Ariano, fez a adaptação
para esse filme com Os Trapalhões. Foi um filme
que eu gostei muito. Roberto é um diretor de
estilo tradicional, mas ele tem um cuidado muito grande com a mise-en-scène. Ele chega antes
de todo mundo com o assistente de direção e
vai marcando posição por posição de câmera. O
assistente vai anotando e desenhando tudo isso.
Depois disso a luz é montada em função dessas
posições todas e em seguida chama o elenco para
rodar. E assim a filmagem sai rapidamente.
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Sandro Solviatti, José Marinho, José Dumont, Renato
Aragão, Claudia Jimenez, Renato Consorte, Zacarias
e Emanuel Cavalcanti em Os Trapalhões no Auto da
Compadecida, de Roberto Farias
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Tem um sítio do Roberto Farias que fica lá perto
do Riocentro. Lá foi feita a cidade cenográfica
de Taperoá. Ali rodamos o filme com os quatro
Trapalhões. São pessoas maravilhosas, bons
profissionais e a convivência com eles foi muito
boa, muito descontraída. Eu e Zé Dumont trabalhamos juntos pela primeira vez ali e foi uma
excelente experiência. Zé é um cara ótimo, muito
delicado, fino e muito cioso do seu trabalho. O
elenco em si era muito bom: Raul Cortez, Renato
Consorte, Emmanuel Cavalcanti, os quatro Trapalhões e mais uns anõezinhos muito simpáticos.
Há uma série de efeitos especiais no final, quando os cangaceiros estão indo para o céu. Foi uma
temporada boa. Almoçávamos peixe naquela
área ali, que tem restaurantes de pescadores
com peixes fresquinhos.
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O filme teve um lançamento muito bom, estava
dando boa renda quando foi retirado de cartaz
pelo exibidor. Roberto não gostou, porque estava indo bem e sendo aceito pelo público. Era um
filme com a qualidade da direção do Roberto,
profissional com uma linha de produção rigorosa, que sempre cuidou bem dos seus filmes. Ele
aprendeu bem na Atlântida, que era uma escola
de diretores, atores e fotógrafos, assim como
foi a Vera Cruz. Essas empresas foram escolas
de cinema, porque naquele tempo as pessoas
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aprendiam na prática, tinha produção para isso.
Os atores vinham do teatro, mas o resto da equipe fazia a sua formação ali na prática, dentro
do filme. Isso eram escolas de cinema. A Vera
Cruz mais rigorosa, pela formação europeia. A
Atlântida mais solta, por ser carioca, mas também tinha seu rigor para fazer as chanchadas,
algumas delas consideradas hoje obras-primas.
Eu louvo muito esse trabalho de formação profissional do pessoal que trabalhou nessa época
e hoje são expressões do cinema brasileiro.
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Corpo em Delito
No fim dessa fase de produção aquecida, acabei
trabalhando em mais um filme de ex-aluno, Corpo em Delito. O roteiro foi do Sérgio Villela, o
Serginho, de saudosa memória. Uma vez fomos
jantar em Copacabana e ele me falou o roteiro
que estava terminando de escrever. Ele disse
que teria um personagem para mim. No final
do roteiro Serginho se encontrou com o Nuno
César de Abreu, com quem já tinha trabalhado,
e o convidou para dirigir o filme. O Nuno precisava de uma produtora e entrou em contato
com Miguel Freire, que tinha acabado de montar
uma produtora e faria a produção do filme com
baixo custo. Serginho e Nuno foram compondo
o elenco e me chamaram para fazer um policial
que não podia ser muito identificado, porque
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ele vinha do tempo da repressão. Ninguém
sabe direito da vida dele, mas em determinadas
situações ele aparece espiando alguém, seguindo alguém. O Lima Duarte fez o papel-título,
que é um homem que reflete sobre a sua vida
e tem uma mulher ao seu lado, que é a Regina
Dourado, uma atriz baiana. O fotógrafo era um
menino que morava em Londres e veio para cá,
Carlos Egberto Silveira. O filme foi feito aqui no
Rio de Janeiro. O Nuno dirigiu muito bem, ele é
uma pessoa muito decidida.
O meu personagem contracena com o Lima
Duarte. Ele fica espiando uma moça, que é a
Dira Paes, prendendo-a. Depois ele tem umas
andadas em um carro preto sozinho, espionando
o que está acontecendo com o legista ou com
outras pessoas. É um personagem misterioso.
Não tem uma participação grande, mas possui
uma presença importante na narrativa, porque
está ligado às questões que decidem o filme. O
Lima Duarte é uma excelente pessoa, contador
de causos, canta músicas antigas. Inclusive uma
canção chamada Aço Frio de um Punhal, que é
do pai do Cassiano Ricardo. Pouquíssimas pessoas que conheci na vida sabiam essa canção:
uma era o Lima e outra o Luiz Mendonça. Uma
canção que não tem nenhuma rima e vive só do
seu ritmo, belíssima. Então nos intervalos das
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filmagens sempre tinha essa coisa de cantar músicas antigas, tomar umas cachacinhas mineiras,
que o Lima gostava também.
E foi tudo certo nas filmagens. O Miguel Freire
meio angustiado de fazer as coisas, como ele sempre foi, mas conduziu bem a produção e o filme
foi até o final. Tem uma sequência elogiadíssima,
que são uns pássaros presos em um quarto. Um
plano muito original, que foi muito exaltado.
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O filme é bom, tem um bom ritmo, mas sem um
bom andamento comercial. E hoje é um filme
que pouco se vê, o Nuno também não divulga
muito, não faz sessões especiais. Nunca mais revi
esse filme, não tenho cópia nem nada.
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Parte 4
O Professor: Época da Pedagogia
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Capítulo I
Na UFF, um Novo Aprendizado
Entrei na universidade por acaso. Em Recife,
onde eu fazia dramaturgia, na Escola de Belas
Artes de Pernambuco, conheci Fernando Barreto, que era do Rio mas passou ensinando por
lá um tempo. Ficamos amigos. Nessa época eu
dava aula de literatura brasileira e portuguesa
no curso pré-vestibular da Escola de Belas Artes. Então uma vez, indo ao Rio, encontrei um
amigo artista plástico, Benjamin Silva, em um
salão de artes que era realizado de dois em dois
anos. Quando saímos da exposição, Benjamin
me contou que estava indo visitar o restaurador
Fernando Barreto. Perguntei se era o que dava
aula em Recife. Benjamin confirmou e disse que
ele estava morando no Rio, com um ateliê na
Rua da Lapa. Fomos juntos até lá. Fernando ficou
feliz em me rever: Marinho, você em Recife dava
aula em um pré-vestibular e nós estamos criando
agora um curso de cinema na Universidade Federal Fluminense. Quem está organizando o setor
de cinema é o Nelson Pereira dos Santos. Como
você gosta de dar aula e também está metido
com cinema, você não daria aula lá? Achei uma
boa ideia.
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Na despedida, o Fernando me pediu currículo.
Fui para casa, em Santa Tereza, preparei o currículo e no dia seguinte entreguei a ele, que
ficou de levar ao Nelson no IACS, que funcionava
então no prédio da Matemática. Na época eu
estava para voltar a morar em São Paulo, onde
já tinha estado por dois anos, porque no Rio não
conseguia trabalho. Fernando me pediu para
aguardar o resultado. Voltei depois ao ateliê
para saber a resposta. Ele contou que já tinha
levado o currículo ao departamento, mas o Nelson estava em Paris. Fiquei aguardando a volta
dele. Um dia, numa festa em Niterói, encontrei o
Nelson. Contei a história do currículo e ele disse
que já tinha convidado outra pessoa, mas parecia que ela não estava disposta a aceitar. Então
aguardei. Quinze dias depois, quando estava no
Bar da Líder, em Botafogo, o Nelson apareceu
com o Babáu. Ele me chamou para tomar um
chope. Quando sentamos, ele propôs um brinde:
Bate aqui, agora somos colegas! Eu disse: Claro,
somos colegas de profissão, você diretor e eu
ator. Ele sorriu e revelou: Não, somos colegas
professores. No sábado seguinte fui à UFF, para
assistir a uma reunião do departamento. Fui
apresentado como novo professor.
Figuras no Departamento
Foi em um ritual de passagem. Fernando Barreto estava deixando a direção do IACS e sendo
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Foto feita em sala de aula no IACS/UFF - RJ, 1977
Posse de José Marinho como Vice Diretor do Instituto de
Artes e Comunicação Social (I.A.C.S), na UFF, abr/87
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substituído pelo Álvaro Sobral Barcellos. Breno
Kuperman chefiava o departamento e Antônio
Sérgio se candidatara para o lugar. Lembro-me
que o Muniz Sodré fazia parte do departamento
e me fez uma saudação legal: Que bom terem
trazido você! Depois outros professores fizeram
umas perguntas gerais, respondi e preenchi
um formulário. Depois me encaminhei para a
reitoria. Levei a documentação toda, fiz exame
de saúde e fui contratado no dia 1o de agosto
de 1971. Foi meu primeiro contrato, de forma
provisória, por seis meses apenas. Me deram a
disciplina Análise de Filmes. Foi então que conheci Tunico Amâncio, como aluno.
230
Nessa época, Breno Kuperman era de comunicação e estava querendo ir para cinema. Rogério
Luz, que dava roteiro, pediu transferência para
a UFRJ e o Breno entrou no lugar dele, se não
me engano. Tínhamos então eu, Breno e Nelson,
que dava aula nesse tempo. E fotografia era o
Dave o Babáu, que não quis aceitar de início,
mas eu e Nelson insistimos com ele. Então conseguimos criar uma Coordenação de Cinema.
O pessoal de cinema passou a se reunir, decidir
o que fazer e encaminhar ao departamento. O
primeiro coordenador foi o Babáu. O Nelson
viu que estávamos precisando de mais gente.
Surgiram os nomes de Mário Carneiro e Gustavo
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Dahl para ser convidados. Além do Avellar, que
veio logo no início para dar algumas aulas. Eu
assistia às suas aulas para aprender. O Avellar
era altamente didático. Aqueles dois meses foram para mim um curso de cinema total. Depois
pensei que estava ótimo para dar aula. Como o
Avellar trabalhava no Jornal do Brasil e ficava
até tarde na redação, acabou desistindo. Então
assumi o lugar dele.
O curso de cinema era ministrado em dois espaços: uma parte na Matemática e outra na
Reitoria. Naquela época, o primeiro andar do
prédio da Reitoria era ocupado por salas de aula.
Havia uma grande integração, porque a Reitoria
tinha o cinema, onde a gente passava filmes e
também dava aulas. Como não dispúnhamos de
filmoteca ou acervo, o Luís Carlos Barreto tinha
lá na Difilm uns dez filmes brasileiros de longametragem sem censura e ofereceu ao Nelson
para a gente exibir nas aulas. Com estes filmes,
dei aula muito tempo. Semanalmente, passava
filmes maravilhosos. Dava um curso de Cinema
Novo, que eu conhecia já, e Análise de Filmes.
231
A repressão naquela época era muito forte, com
os generais, então era necessário muito cuidado
em sala de aula para não haver assuntos políticos, polêmicos. E eu às vezes tocava no assunto
um pouco, porque vivi muito a política dessa
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época toda, participei de muitos filmes políticos
do Cinema Novo, do Glauber, do Nelson, do
Sganzerla. Mas o Nelson disse: Olha, Marinho,
tem cuidado para não sair da tela. Cola na imagem que está na tela. Não levante polêmicas
para não causar problemas.
232
Segui a recomendação do Nelson e procurei
concentrar as aulas na interpretação do ator,
na fotografia, na montagem. Comecei então a
comprar livros de cinema e fazer minha bibliografia, e fui ficando à vontade. No ano seguinte,
1972, o contrato já foi de um ano, mas ainda
como professor provisório. Era praticamente um
boia-fria. Depois, em 1975, houve um concurso
interno para regularizar os professores todos
e passá-los para Auxiliar de Ensino I. Participei
e fui aprovado. No ano seguinte, foi realizado
outro concurso para Assistente, para quem tinha
mais de quatro anos de faculdade. Eu e Babáu
passamos e fomos os dois primeiros Professores
Assistentes do curso de Cinema. De vinte horas,
passei para quarenta horas.
Daí para a frente começamos a pensar em como
fazer filmes no curso de Cinema. O primeiro
foi Jornalismo e Independência, a história do
Hipólito da Costa, do Correio Braziliense. Foi
feito com a turma de Brasília, Tunico Amancio,
o Alberto Cavalcanti, Nuno César de Abreu, José
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Antonio Serra e José Marinho no Departamento de
Cinema e Vídeo do IACS – UFF/RJ
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Alberto Porto (o famoso Zeca), Miguel Freire,
Carlos Augusto Ribeiro Jr., Sérgio Vilela e mais
umas moças.
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Cinema Versus Repressão
Ao mesmo tempo, um grupo fez um filme sob a
orientação do Nelson, eu não participei. Depois
veio o outro filme, que o Nelson conseguiu uma
verba através do INC para fazer um filme sobre a
Biblioteca Nacional, de encomenda. Este o Zeca
dirigiu, em 1973. E depois veio o 15 Anos UFF. Eu
coordenei toda a produção. Para isso convidei o
Santeiro. Ele foi para a UFF dar aula e fazer este
filme. Como a repressão era muito grande, os
alunos não falaram nada que pudesse prejudicar
o filme. Então o que o Santeiro bolou? Quem
dá depoimento, não aparece a imagem e quem
aparece a imagem, não dá depoimento. Criamos
então uma equipe só para fazer as entrevistas
e outra para as filmagens. Então entraram os
alunos Zé Sérgio, Dante, que hoje é professor de
fotografia da UFF, Edmundo e Ângela Cavalcanti.
Então esse filme foi feito. Deu alguns problemas
com a polícia. Eu tinha uma carta do reitor com
o nome de todos para mostrar à polícia, porque
estávamos filmando na rua. Sempre que dava
problemas a gente apresentava a carta e a polícia
ligava para a Reitoria confirmando as intenções
da filmagem.
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Quando o filme ficou pronto, levei para o reitor
assistir e tinha um assessor do reitor que era da
polícia. Ele ficava na universidade para conferir se estava acontecendo alguma coisa que ia
contra o governo. Então, no filme, havia um
depoimento de um menino que falava sobre a
falta de liberdade na faculdade e isso era montado em cima de um travelling na biblioteca que
passava entre uma estante e outra fazendo um
claro-escuro. O assessor do reitor disse: Olha,
Marinho, você tem que tirar o depoimento desse aluno. Eu fui falar isso para o Santeiro, que
disse: Eu não tiro! Eu fui falar com o Carlo De
La Riva, diretor de som, e ele falou: Isso aqui na
Espanha, no tempo do Franco, a gente fazia o
seguinte: você pega nanquim e passa por cima
da trilha sonora, apagando o som. Resolvemos
fazer isso, mas o Santeiro só vivia na Cinemateca
o tempo todo, então ele poderia descobrir. De
La Riva marcou, portanto, para a madrugada.
Depois da meia-noite, junto com um aluno,
Carlos Alberto, levei o filme para o De La Riva.
Pegamos essa cópia e mostramos ao reitor, mas
deixamos a original depositada na Cinemateca
do MAM, como documento. O filme acabou
sendo liberado pela Reitoria e pôde ser exibido.
Só que naquele tempo a gente não entrava em
festivais, eles não queriam exibir os nossos filmes.
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Falavam que eram muito quadrados, pareciam
institucionais, feitos para empresas. Mas serviam
para a gente.
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Em 1976, o Alberto Cavalcanti fez uma pesquisa
na região de Campos e extraiu o argumento de
um filme sobre a memória Goitacá. Como ele
acabou indo para Brasília, fiquei com esse argumento e fui roteirizar com os alunos. Deu a maior
confusão, porque eram muitos alunos e todos
tinham sua ideia de como escrever o roteiro. Para
resolver o problema, sentei com Carlos Alberto
em um restaurante e fizemos o roteiro. No dia
seguinte, levei à sala de aula, todos aprovaram
e o roteiro foi rodado. Fui coordenador do projeto e supervisor de direção. O aluno não tinha
autonomia para decidir onde colocaria a câmera.
Filmamos canaviais, o jongo e uma Folia de Reis.
O fotógrafo foi Walter Carvalho, um gênio, mas
que naquele tempo estava começando e dava
aula como convidado. Quando saiu o Mário
Carneiro, ele passou um tempo como substituto. Depois, foi o Edgar Moura. Então fizemos o
filme, um dos primeiros da UFF a participar do
Festival JB. Não ganhou prêmio, mas ao menos
nos representou. Foi o quarto filme do curso.
Depois disso não me envolvi mais nos projetos
de cinema.
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Nesse meio tempo, a gente tinha o projeto do
NAV, na universidade, de equipamento para
Cinema. Edgar Moura é quem dava aula de fotografia nesse período. Então me lembro que na
primeira reunião para escolha de equipamentos,
as pessoas de cinema que participaram lá na
Matemática ainda fomos eu, o Edgar Moura e
o Davi da Conceição, que era um estudante do
Diretório Acadêmico. Depois teve uma reunião
da Jussara com o ministro Ney Braga no MEC
do Rio de Janeiro e ele prometeu uma verba
para comprar uma câmera, uma moviola e um
gravador Nagra. Esse projeto ainda rodou três
anos sem conseguir importar isso através da
Embrafilme, porque tinha uma dificuldade muito grande de importação. O Nelson entrou em
uma comissão do governo para a reformulação
da Embrafilme e ia semanalmente a Brasília
participar de reuniões com diversos ministros,
inclusive o João Paulo dos Reis Velloso, que era
Ministro do Planejamento. O Nelson então falou
com ele, que conseguiu interceder junto ao Banco do Brasil, para conseguir importar isso. Mas
como o dinheiro que o Ney Braga tinha cedido
já estava desvalorizado com a inflação, não deu
para comprar a moviola. Adquirimos a câmera
e o gravador. E chegaram exatamente quando
eu estava em São Paulo, já fazendo o mestrado.
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Depois que eu voltei em 1982, um aluno daqui,
Celso Kaufman, foi fazer estágio na Embratel
e descobriu que lá tinham importado um equipamento de cinema que decidiram não usar,
porque preferiram trabalhar só com vídeo, e
estavam querendo leiloar aquilo. O Celso nos
trouxe a notícia e o Serginho, diretor do NAV,
falou com o reitor que disse que tentaria conseguir isso e que conhecia o diretor da Embratel.
Pediu para o Serginho fazer uma carta que ele
assinaria e encaminharia. Essa carta foi enviada
para a Embratel e depois eu fui lá ver o equipamento – uma moviola, um gravador Stellavox e
uma câmera 16 mm Bolex. Então isso completaria
o nosso equipamento. E Embratel fez uma doação por cinco anos que depois ficaria definitiva
se ela não tivesse necessidade de pedir de volta.
E eu voltei do mestrado e retomei minhas aulas,
ficando até me aposentar em 2001. Dei aula
ainda até 2005.
Na década de 1970, me tornei coordenador de
Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB). Até
por uma estratégia minha, porque EPB era uma
matéria oficial do governo e você ficando com
aquela matéria tinha certo critério de ser uma
pessoa nacionalista e tal, não havia confusão
com os militares. E eu fazia o seguinte, convidava para cada aula um conferencista, só que
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eles faltavam e a aula não acontecia. E eu fiquei
meio sem jeito, porque coordenava toda a EPB
da escola, para biblioteconomia e comunicação.
Então apliquei o sistema de seminários. Pegava
os alunos e os incumbi de um trabalho sobre
petróleo e eles faziam a pesquisa e apresentavam. E assim começou a crescer EPB e ficar
uma disciplina até interessante. Uma vez pedi a
eles uma pesquisa sobre a criação dos partidos
políticos no Brasil. Foi um estudo belíssimo, começou pelo século XIX, quando era ótimo – o
cara criava um partido na cidade dele para se
eleger ao Senado, e uma vez conquistado a vaga
acabava a legenda. Havia muitos partidos assim,
só para um senador, sem consistência política. E
então fui fazendo essas propostas de pesquisa e
o pessoal começou a curtir a disciplina, ninguém
mais reclamava. Quando fui para o mestrado
alguém teve que assumir a disciplina e quando
eu voltei já tinha acabado.
239
Meus bons momentos foram sempre regados a
chope. E com o Nelson sempre por perto disso
tudo. Eu também fiz dois filmes, com o Olney São
Paulo, Teatro Brasileiro 1 e 2, pela Regina Filmes,
firma do Nelson. Eu tenho muita ligação com o
Nelson. Sem contar os quatro filmes dele que
eu participei. O primeiro longa-metragem que
fiz quando já dava aulas na UFF foi Sagarana, o
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Duelo, do Paulo Thiago, com fotografia do Mário
Carneiro. Depois atuei em O Amuleto de Ogum,
do Nelson. Mas foi diminuindo o meu trabalho
de ator, porque o tempo na Universidade foi me
tomando. Já no início dos anos 1980, comecei a
fazer participações na Globo também.
240
Professor e Ator
No curso de cinema, passei a ser uma espécie de
referência natural devido à minha experiência
de ator, da época do Cinema Novo, do teatro e
tudo o mais. Por isso acabei ficando na UFF mais
por causa dos alunos, que me conheciam e respeitavam. Fui me apegando muito a eles. O Antônio Serra evitava brigar comigo porque sabia
que eu tinha muito prestígio com os estudantes.
Eu participava de debates no DCE e de todas as
confusões. Eu e o Carlos Henrique Escobar. Isso
impedia que o Antônio Serra me atingisse, como
atacava muita gente. Então fui ficando, fui ficando até que, na década de 1980, o Serra voltou
ao IACS por concurso público. Resolvemos nos
juntar e mudar a situação. O primeiro passo foi
compor uma chapa para o Serra ser candidato
à chefia do departamento. Houve dificuldades
dentro e fora do IACS. Dentro: o bloco do Antônio Serra rejeitava categoricamente essa possibilidade. Fora: na Reitoria, o nome do Serra era
visto com suspeita, pois ele era militante do PT e
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tinha sido preso. Então havia muito dificuldade
de aprovação do nome dele.
No espaço do IACS, o obstáculo foi contornado
quando o grupo do Serra convidou o professor e
jornalista José Carlos Monteiro para vice da sua
chapa. Monteiro tinha trânsito nas diferentes
áreas de oposição. Na Reitoria, a situação foi
superada quando Hildiberto Ramos Cavalcanti
de Albuquerque, que seria reitor em seguida,
chamou a mim e ao David da Conceição e disse
Em vocês dois eu confio. Vocês vão se responsabilizar perante mim sobre a candidatura do Serra
como chefe de departamento. E nós assumimos
a responsabilidade de que o Serra não arranjaria problemas para a universidade. De fato não
criou, só engrandeceu. O Serra foi eleito com o
Monteiro como vice. Mas o Monteiro tinha sido
eleito ao mesmo tempo presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, e explicou
que não teria condições de comparecer muito
às reuniões. Eu acabei virando uma espécie de
vice-chefe de departamento, de 1983 a 1985. Até
que tive que fechar e defender tese do mestrado.
Eu então me licenciei e fui terminar o mestrado.
241
Quando voltei, em 1986, o Serra estava sendo
cotado para dirigir o IACS e me convidou para
companheiro de chapa, como vice. Fomos à luta
e acabamos eleitos com 86% dos votos. Fomos
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nomeados para a gestão de 1986 a 1991. Foi
uma época boa. O País já estava sob o governo
de transição do José Sarney, e se podia falar,
discutir política na universidade. Depois de acabado nosso mandato, criamos o Departamento
de Cinema, em 1992. O Breno foi encarregado
de estruturá-lo, com a ajuda do Antônio Carlos, que colaborou muito. O reitor me nomeou
diretor pro tempore e o João Luiz ficou como
vice, até 1994. Nossa intenção era organizar o
departamento, criar uma estrutura sólida, mas
não havia gratificação de chefia ou coisa alguma.
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Nesse meio tempo um problema quase comprometeu nossa administração: foi o desaparecimento de um gravador. Tínhamos emprestado
a alunos um Nagra para que fizessem uma filmagem no Rio, e o equipamento acabou sendo
roubado nas idas e vindas da equipe. Esse fato
causou um transtorno interminável na universidade. Deu inquérito. Todo mundo que autorizou o empréstimo respondeu processo e quase
fomos enquadrados seriamente. Tivemos que
contratar advogados e suportar uma série de
aborrecimentos. Pagamos caro para nos livrarmos de tudo isso – muito mais do que o Nagra
roubado. E o preço tinha a ver com o modo de
produção, sobre o que fazer num sistema público
(sem recursos, sem infraestrutura), e a política
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de realização de filmes com pretensão artística
e compromisso público.
Na Embrafilme, Tunico e Breno conseguiram
um financiamento para dez curtas-metragens.
Quando voltei de São Paulo, em 1982, fui encarregado de coordenar a produção destes filmes,
pois alguns ainda não tinham sido terminados.
Essas produções deram um impulso inicial no
curso na década de 1980, já com equipamentos.
Acontece que nessa época o Calil criou na Embrafilme um conselho cultural, com a participação
de representantes de escolas de cinema, cinematecas, sindicatos, confederação de cineclubes e
pesquisadores. Esse conselho cultural se reunia
uma vez por mês para discutir a modificação da
estrutura, já que deveria ser criado um organismo para cuidar do curta-metragem. O estatuto
desse organismo foi discutido ali. Representando
as escolas de cinema, revezávamos eu, o Ismail
Xavier e um da FAAP. Isso durou uns dois anos.
Depois de uma conversa com Ismail sobre produção de filmes na universidade, manifestei ao Calil
meu ponto de vista. A resposta dele foi categórica: Olha, vocês estão presos a um esquema de
filme institucional. Filme que a gente não sabe
para quem é feito. Não tem cara o filme da UFF,
vocês precisam dar cara a esse cinema. Precisam
ter uma marca autoral.
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José Marinho, Tunico Amancio e Antonio Amaral Serra,
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Decidi levar esse recado à UFF. Tínhamos que
discutir o problema da chamada cara autoral e a
resposta do curso ao desafio. Fizemos um seminário de uma semana com professores e alunos.
Nesse seminário o pau quebrou e mudamos o
esquema de produção. Antes, os professores
coordenavam o roteiro, e se não aprovássemos
não seria filmado, definíamos todos os cabeças
de equipe e supervisionávamos a direção. Depois
da discussão ficou definido que não interferíamos nos filmes. A única coisa que passaria pela
coordenação da escola era se o roteiro tinha
condições de financiamento. Se o cara quer fazer
um filme em Manaus, não dá, não tem dinheiro
para passagens. Mas em Niterói dá. E o critério
de definição do roteiro, quem fazia eram os
alunos. Eles discutiam entre si qual era o roteiro melhor e apresentavam na coordenação um
roteiro definido. A partir daí, o filme da escola
começou a ter cara. Logo participou de todos os
festivais no Brasil e no exterior e a ser premiado.
Passamos a ter filmes realmente de autor. Começou a ser um cinema criativo e experimental. O
curso deu um pulo e houve o crescimento e isso
sustenta esse curso até hoje. Nesse mesmo ano,
em 1983, conseguimos reconhecer o curso. Eu
fui para Brasília decidir o currículo do curso. No
planejamento inicial, o filme da escola de cinema
seria em 35mm. Mas nós só tínhamos câmera
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16mm. Então o Alberto Cavalcanti, que tinha
sido aluno e professor da UFF, estava morando
em Brasília, participara da ABD – Brasília como
um dos coordenadores do projeto do currículo
de cinema. Eu o convidei para reunião do conselho para ele convencer Dom Serafim Fernandes,
hoje bispo de Belo Horizonte, a alterar esse item
e passar a ser tanto 35 mm como 16 mm, desde
que a bitola atendesse aos requisitos de som direto, etc. O pedido foi aceito e o curso de cinema
pôde ser reconhecido. Quem não era graduado,
teve que voltar para a universidade para pegar
o diploma. Então algumas coisas nós resolvemos
nessa época.
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Participei de vários Encontros Nacionais das Escolas de Cinema, para definir perfis e currículos das
escolas. De alguma forma, as iniciativas sempre
partiam da USP. Ela se tornou a matriz durante
muito tempo das escolas de cinema do Brasil. Lá
começaram a ocorrer reuniões dos cursos, para
decidir currículo, pensar em como se libertar
do curso de cinema, entre outras pautas. Nessa
época, quem geralmente representava a USP
era o Jean-Claude Bernadet ou o Ismail Xavier.
Fizemos uma reunião em Diamantina, em São
João del Rey, onde acontecia o Festival de Inverno de Minas. Nessa caminhada de reuniões
em reuniões, chegamos à de São Paulo, na USP,
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que durou uma semana e definiu o currículo
básico com elasticidade. O aluno poderia estar
estudando na UFF e fazer uma cadeira de edição
e vídeo em outra instituição e trazer os créditos.
Isso hoje é reconhecido oficialmente como Mobilidade Acadêmica.
Até então essa mobilidade só era permitida em
mestrado e doutorado. Nós introduzimos essa
modalidade na graduação. Tudo isso resultou
dessa reunião em São Paulo, coordenada pela
Marília Franco e a Dora Mourão. Também foi de
lá que saiu o currículo. Nós encaminhamos esse
projeto ao escritor e jornalista Arnaldo Niskier,
que era um dos diretores da revista Manchete e
é hoje imortal na Academia Brasileira de Letras.
Niskier foi o primeiro relator deste programa.
Lá em Brasília eles o examinaram e nos fizeram
uma sugestão experimental e dela fomos discutindo até chegar ao currículo atual, saindo de
comunicação e ficando só cinema.
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Autonomia do Curso
Meu envolvimento com o curso caminha paralelo
ao processo de afirmação das escolas de cinema
como instituições autônomas em relação a jornalismo. A luta pela autonomia durou uns quinze
anos, vinha desde os anos 1980 e se tornava
necessária para deixamos de ser subordinados
ao Curso de Comunicação. Houve um momento
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que ficávamos na seguinte dúvida: separando
de comunicação, vamos para onde? Chegamos a
pensar em ir para artes. Tem até um colega que
fez uma piada quando falei sobre nossa ideia de
incorporação ao Departamento de Arte: Gozado,
os filmes da UFF não têm nada a ver com arte,
ironizou.
248
Hoje já contamos com mais de cento e cinquenta filmes. E mais da metade premiados. Até no
Festival de Cannes, ganhamos um prêmio, com
o curta de Eduardo Valente Um Sol Alaranjado:
foi o troféu concedido pela Cine Fundation
no primeiro concurso de filmes produzidos
em escolas de cinema. E foi a UFF que levou,
saindo na frente de outros centros avançados
e da América Latina. No júri que premiou esse
filme estavam o americano Martin Scorsese e
o iraniano Abbas Kiarostami.
Muita gente tinha curiosidade em saber como
conciliei minha função no magistério com a
atividade artística. Já no final dos anos 1990
para cá, vários alunos às vezes me solicitavam
para aparecer em seus filmes. Até então eu me
recusava a fazer dos filmes da escola como ator.
Fazia teatro profissional, televisão, cinema, mas
não produções da UFF. Recusei a muitos convites
e pedidos até que, já em 1998, um dos primeiros
filmes que participei na escola oficial
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