12083517 J Marinho capa.indd 1 1/12/2010 21:47:53 José Marinho Luzes do Sertão, Luzes da Cidade 12083517 J Marinho miolo.indd 1 25/11/2010 16:09:03 12083517 J Marinho miolo.indd 2 25/11/2010 16:09:03 José Marinho Luzes do Sertão, Luzes da Cidade Com a participação de José Carlos Monteiro, Tunico Amâncio e Juliana Corrêa São Paulo, 2010 12083517 J Marinho miolo.indd 3 25/11/2010 16:09:03 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Governador Alberto Goldman Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Coordenador Geral 12083517 J Marinho miolo.indd 4 Rubens Ewald Filho 25/11/2010 16:09:03 No Passado Está a História do Futuro A Imprensa Oficial muito tem contribuído com a sociedade no papel que lhe cabe: a democratização de conhecimento por meio da leitura. A Coleção Aplauso, lançada em 2004, é um exemplo bem-sucedido desse intento. Os temas nela abordados, como biografias de atores, diretores e dramaturgos, são garantia de que um fragmento da memória cultural do país será preservado. Por meio de conversas informais com jornalistas, a história dos artistas é transcrita em primeira pessoa, o que confere grande fluidez ao texto, conquistando mais e mais leitores. Assim, muitas dessas figuras que tiveram importância fundamental para as artes cênicas brasileiras têm sido resgatadas do esquecimento. Mesmo o nome daqueles que já partiram são frequentemente evocados pela voz de seus companheiros de palco ou de seus biógrafos. Ou seja, nessas histórias que se cruzam, verdadeiros mitos são redescobertos e imortalizados. E não só o público tem reconhecido a importância e a qualidade da Aplauso. Em 2008, a Coleção foi laureada com o mais importante prêmio da área editorial do Brasil: o Jabuti. Concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), a edição especial sobre Raul Cortez ganhou na categoria biografia. 12083517 J Marinho miolo.indd 5 25/11/2010 16:09:03 Mas o que começou modestamente tomou vulto e novos temas passaram a integrar a Coleção ao longo desses anos. Hoje, a Aplauso inclui inúmeros outros temas correlatos como a história das pioneiras TVs brasileiras, companhias de dança, roteiros de filmes, peças de teatro e uma parte dedicada à música, com biografias de compositores, cantores, maestros, etc. Para o final deste ano de 2010, está previsto o lançamento de 80 títulos, que se juntarão aos 220 já lançados até aqui. Destes, a maioria foi disponibilizada em acervo digital que pode ser acessado pela internet gratuitamente. Sem dúvida, essa ação constitui grande passo para difusão da nossa cultura entre estudantes, pesquisadores e leitores simplesmente interessados nas histórias. Com tudo isso, a Coleção Aplauso passa a fazer parte ela própria de uma história na qual personagens ficcionais se misturam à daqueles que os criaram, e que por sua vez compõe algumas páginas de outra muito maior: a história do Brasil. Boa leitura. Alberto Goldman Governador do Estado de São Paulo 12083517 J Marinho miolo.indd 6 25/11/2010 16:09:03 Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Ofi cial, visa resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira. 12083517 J Marinho miolo.indd 7 25/11/2010 16:09:03 São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos exploram o universo íntimo e psicológico do artista, revelando as circunstâncias que o conduziram à arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente aos estudiosos das artes cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram abordadas a construção dos personagens, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns deles. Também foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, 12083517 J Marinho miolo.indd 8 25/11/2010 16:09:03 é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que neste universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 12083517 J Marinho miolo.indd 9 25/11/2010 16:09:03 12083517 J Marinho miolo.indd 10 25/11/2010 16:09:03 Agradeço à Cinemateca Brasileira, no nome de Adilson Inácio Mendes, e à Cinemateca do MAM-RJ, no nome de Hernani Heffner, por toda colaboração. Agradeço especialmente ao amigo José Carlos Monteiro, cuja dedicação foi fundamental para a conclusão deste livro. Agradeço aos amigos Antônio A. Serra e Miguel Pereira A Deise, José Paulo e Daniel. 12083517 J Marinho miolo.indd 11 25/11/2010 16:09:03 12083517 J Marinho miolo.indd 12 25/11/2010 16:09:03 Parte I O Menino: Descoberta do Mundo 12083517 J Marinho miolo.indd 13 25/11/2010 16:09:03 12083517 J Marinho miolo.indd 14 25/11/2010 16:09:03 Capítulo I A Casa, a Estrada, o Cinema Minhas raízes estão no Nordeste. Acredito que minha existência como artista e como homem tem relação com essa origem, de que me orgulho até hoje. Nasci no alto agreste de Pernambuco, em Olho D’Água de Dentro, município de Canhotinho, em um sítio dos meus avós maternos, os Bernardino de Melo e Sena. Vim ao mundo em 12 de fevereiro de 1933, num domingo ensolarado. Contaram-me que abri os olhos para ver as luzes desse Nordeste em meio a comemorações da família: era o primogênito homem. Não cheguei a conhecer meu pai, Sebastião Laurentino de Melo, que morreu no Hospital Centenário de Recife, em dezembro de 1932, depois de uma cirurgia. Ele teria sido vítima de uma infecção contraída no próprio hospital. Minha mãe, Quitéria Bernardo de Melo, moça bonita e decidida, cheia de atitudes, como se dizia na época, não estava destinada a ser uma jovem viúva. Ele viria a se casar com Odilon Marinho de Oliveira, que adotou a mim e a minha irmã, Maria. Meu nome foi trocado de José Laurentino de Melo para José Marinho de Oliveira. 12083517 J Marinho miolo.indd 15 15 25/11/2010 16:09:03 Casa da fazenda do pai de José Marinho, onde nasceu Dona Quitéria e José Marinho em Niterói, dez/76 12083517 J Marinho miolo.indd 16 25/11/2010 16:09:03 Odilon Marinho (pai de José Marinho) 12083517 J Marinho miolo.indd 17 25/11/2010 16:09:04 Quando tinha quatro anos de idade, meu pai e minha mãe resolveram todas as questões relacionadas a inventário, venderam metade da propriedade e metade do gado, e fomos para um sertão ainda mais remoto. Fomos morar em um sítio chamado Espírito Santo, de propriedade dos pais do meu pai Odilon – Severino e Petronila. Depois de algum tempo, mudamos para Pernambuquinho, uma vila que fica na divisa dos Estados da Paraíba e de Pernambuco. Foi nessa fronteira no agreste que passei a infância: dos quatro até os dez anos, no sítio em Espírito Santo, e dos 10 aos 16, na vila de Pernambuquinho. 18 Nessa região, meu aprendizado seria marcado, entre outras coisas, pela divisão geográfica e a descoberta da capacidade de transformação do sertanejo. O rio Moxotó dividia a propriedade do meu pai e o Estado. Era uma divisão peculiar: a água que corria para a esquerda era a Paraíba, a água que corria para a direita era Pernambuco. Do lado da Paraíba, estava o Cariri paraibano... Monteiro, Sumé, que apontavam para Campina Grande. Do lado de Pernambuco, ficava o Moxotó, que vai dali até Paulo Afonso. A pedido do prefeito de Sertânia, Arcôncio Lins, meu pai fez um pequeno açude onde ficaria um reservatório de água para abastecer a cidade. Esse açude continua lá. Nessa localidade, com apoio 12083517 J Marinho miolo.indd 18 25/11/2010 16:09:04 Casa onde José Marinho morou de 1945 a 1949 - Povoado de Pernambiquinho/PE Casa onde viveu dos 10 aos 16 anos, Povoado de Pernambuquinho, município de Sertânia/PE 12083517 J Marinho miolo.indd 19 25/11/2010 16:09:04 Escola Municipal de Sertânia. Homenagem da Prefeitura ao pai de José Marinho, dez/07 12083517 J Marinho miolo.indd 20 25/11/2010 16:09:04 desse prefeito, meu pai construiu uma escola – a Escola Municipal Odilon Marinho de Oliveira, que ainda existe. Ele criou a escola para que os filhos pudessem estudar. Até então, a cidade não tinha escola nem professores. Antes da criação dessa escola houve uma tentativa. Meu pai tinha a casa onde morávamos e mais umas quatro ou cinco. Uma dessas casas ele cedeu para o prefeito fazer a escola. O prefeito contratava a professora, ela ia para lá, dava a aula de manhã, almoçava lá em casa e depois ia para Sertânia, onde morava. Ali estudei o primário. Tínhamos então uma escola. Mas aconteceu um problema com o namorado da professora. Ela namorava um rapaz, Fragaço, que se envolveu numa briga com um empregado do meu pai, um negro chamado José Batinga. Na briga, os dois estavam bêbados. Depois de brigar com José Batinga, Fragaço resolveu enfrentar um vizinho nosso, José Severino, inimigo de seu padrasto, o fazendeiro Miguel Leopoldo. Fragaço desafiou José Severino uma vez, duas, e na terceira o outro saiu de casa e partiu para o confronto. Com uma peixeira, Severino matou o Fragaço. O desafeto, atingido do lado esquerdo, debaixo do coração, correu de um lado da rua para o outro, bateu na parede de frente, caiu de costas com o sangue espirrando do seu corpo em forma de 12083517 J Marinho miolo.indd 21 21 25/11/2010 16:09:04 22 arco, tamanha a pressão que jorrava para fora. Nós, como os homens de lá, pegamos o corpo do Fragaço, levamos para a casa onde funcionava a escola e o colocamos no chão. O sangue continuava a jorrar no chão de tijolo e cerâmica. Meu pai mandou alguém à cidade para trazer o delegado, que era primo dele e meu padrinho. O caso foi registrado e ele mandou limpar tudo. Mas o sangue se infiltrou no chão de tal modo que ninguém conseguia lavar ou remover. A professora quando voltou a dar aulas e pisou na escola, entrou em crise: chorando muito, decidiu abandonar tudo. Então essa primeira escola foi fechada. Esse episódio me impressionou profundamente. Décadas depois, quando Roberto Santos me pediu para contar como foi minha infância no sertão, lembrei-me da morte do Fragaço. Foi minha evocação desse caso que o convenceu a me convidar para A Hora e a vez de Augusto Matraga, no qual estreei no cinema. Meu pai fazia questão que estudássemos. Diante da minha insistência em querer aprender, ele me mandou para Sertânia, onde existia um colégio estadual. Deveria ficar na casa do meu padrinho Bastos. À noite, conheci o cinema. O primeiro filme que vi foi um western. Não recordo o título, nem quem me levou, mas me lembro que havia muitos cowboys correndo e muita poeira. 12083517 J Marinho miolo.indd 22 25/11/2010 16:09:04 Saí do cinema com sede, pois enquanto via toda aquela poeira, via também os cowboys bebendo água em seus cantis. Voltei para a casa do meu padrinho e não consegui dormir. Não por causa do filme, mas porque ele tinha muitos filhos e filhas. As moças e os rapazes circulavam por uns corredores compridos, era uma casa enorme. Havia tanta gente entrando e saindo dos quartos e passando pelos corredores que fiquei acanhado. Voltei para casa no dia seguinte e disse ao meu pai que não queria ficar lá. O meu projeto de educação formal foi adiado. Na Estrada da Vida Mas meu aprendizado continuaria, por outros caminhos. Depois de um ou dois anos, meu pai comprou um caminhão. Como ele não dirigia, contratou um motorista, e começamos a viajar para cima e para baixo. Foi assim que conheci Recife, para onde ele levava muitas cargas. Viajando de caminhão, conheci todo o sertão de Pernambuco. Foi um deslumbramento andar por aqueles lugares, conhecer todas aquelas coisas e pessoas e aprender a ver a vida com outro olhar. Mas às vezes nesse aprendizado havia certa confusão espacial. Não se tratava mais das águas divididas de um rio, metade para cada Estado, mas da maneira como eu me situava no mundo. Recordo, por exemplo, uma experiência que pas- 12083517 J Marinho miolo.indd 23 23 25/11/2010 16:09:04 sei aos 14 anos quando visitei Poço Verde. Essa cidade fica no alto sertão de Pernambuco, depois de Ouricuri, já perto do Piauí. Lá me desorientei em todos os sentidos, perdi as referências de espaço porque, quando o sol estava se pondo, estava para o lado que era o contrário àquele de onde eu morava. Então confundi tudo, onde era norte, leste e sul, perdi a noção da direção. Meio atordoado, pensei: Então, o mundo é assim? De um lado da terra, o sol é diferente do outro... Não estava entendendo nada. 24 Nas viagens para Recife fiquei insistindo com meu pai que eu queria continuar a estudar. Ele resolveu então me levar para Recife e acertou para que eu ficasse na casa de um amigo dele. A viagem me pegou de surpresa. Num domingo à tarde, vi minha mãe com uma malinha pequena arrumando minha roupa depois do almoço. Perguntei: Mãe, o que é isso? Tá arrumando minha roupa por quê? Ela respondeu: Você vai com seu pai hoje pra Recife. Tomei um choque. Embora soubesse que partiria a qualquer momento, não sabia que seria naquele dia. Na hora de partir, meu pai foi no fundo de um baú, pegou minha certidão de nascimento original, como filho de Sebastião Laurentino de Melo, me entregou e disse: Você escolhe se quer continuar como filho de Sebastião ou como meu filho. Já em 12083517 J Marinho miolo.indd 24 25/11/2010 16:09:04 Recife, resolvi assumir o nome de José Marinho de Oliveira. Odilon era o pai que eu conhecera e me criara como filho. Fui então ao cartório e fiz uma nova certidão de nascimento, que tenho até hoje. 25 12083517 J Marinho miolo.indd 25 25/11/2010 16:09:04 12083517 J Marinho miolo.indd 26 25/11/2010 16:09:04 Capítulo II Lembranças do Sertão Antes de seguir para Recife pressenti que estava deixando para trás um mundo singelo e muito marcante. Nunca mais experimentaria as emoções da adolescência no sertão. Só nas telas do cinema eu conseguiria reproduzir os sentimentos dessa fase muito bonita, em que a vida pulsava de outra maneira. Recordo-me com saudade não apenas dos banhos no rio Jabitacá, mas também das noites de lua, quando os fazendeiros contratavam repentistas e violeiros e convidavam amigos para assistir à cantoria madrugada adentro. Meus pais me levaram pela primeira vez a uma cantoria dessas. Era emocionante: as cantigas de amor eram quase que uma coisa medieval. Eles mudavam o ritmo da viola, cantavam em diversos ritmos. Até hoje recordo com encantamento essa experiência. Tenho um irmão que também gosta muito e toda vez que vou a Recife ele tem uma fitinha gravada para mim de uma cantoria dessas. O mais impressionante é que eles continuam a cantar do mesmo jeito, com a viola e a voz. 27 A religiosidade também me deixou marcas profundas, por vários motivos. O Nordeste é um mundo de rituais, sociais e religiosos. Em Pernam- 12083517 J Marinho miolo.indd 27 25/11/2010 16:09:04 buquinho, as missas tinham essa dupla função. Uma vez por mês um padre vinha de Sertânia para celebrar a missa. Minha mãe, que era muito católica, cuidava da igreja da cidade. Depois da missa, o padre ia almoçar lá em casa. Nas missas, o clima poderia ser reverencioso. Mas na igreja não havia somente oração, pois lá os rapazes começavam a aventura do namoro e a descoberta das meninas: era um lugar de olhar. Mais adiante vou contar mais coisas dessas missas, das reuniões em família e das relações entre as pessoas. 28 Nas noites de lua nas vilas e cidadezinhas, os moradores pegavam cadeiras, colocavam nas calçadas e na rua e ficavam conversando. Nos sítios, as famílias se visitavam à noite. Nas visitas a primos e primas, começavam às vezes os namoricos. Eu gostava dessas noites de lua, pois ficava na calçada, na esquina da rua onde todo mundo se reunia. Deitado ao lado do meu irmão, conversávamos com os homens mais velhos. As meninas não apareciam muito, não. Os homens contavam muita piada. Às 9 horas, meu pai fechava a mercearia e dizia: Para casa! E todo mundo tinha que dormir. Primeira Namorada Minha primeira namorada foi uma vizinha, em Pernambuquinho. Nossas famílias tinham boa convivência. Nossas mães diziam que a gente 12083517 J Marinho miolo.indd 28 25/11/2010 16:09:04 iria namorar, mas isso nunca acontecia. Até que esses vizinhos foram morar em Sertânia e ela namorou um colega meu, o Antônio. Um dia, numa festa, Antônio me disse que tinha acabado de brigar com a menina e que eu podia me aproximar se quisesse. Mas nessa noite não a procurei. Depois do Natal, meu pai tinha viajado para Recife com o caminhão e fui esperá-lo em Sertânia. Em Sertânia, havia uma pensão onde eu podia passar a noite, já que não queria ficar na casa do meu padrinho. Tudo aconteceu meio de repente, quando passei em frente à casa dela e a vi na janela. Conversamos. A mãe dela me convidou para entrar. Enquanto estávamos na sala, a mãe dela nos serviu bolo e café e colocou duas cadeiras na frente de casa. Foi nesse dia o primeiro beijo da minha vida – eu tinha uns 15 anos e ela, 14. O namoro não durou muito. Nunca mais nos encontramos. Por timidez e medo, eu não a procurava na cidade. E ela não ia a Pernambuquinho. A última chance de um encontro seria durante as novenas de maio, quando as famílias se reuniam em Pernambuquinho. Ela me mandou uma carta avisando que iria ao encerramento das novenas, no domingo, dia 29. Mas foi justamente nesse dia que meu pai me levou para Recife. Saí às quatro da tarde, quando ela chegaria de Sertânia. Nunca mais vi essa minha primeira namorada, Ivonete. 12083517 J Marinho miolo.indd 29 29 25/11/2010 16:09:04 Dez anos atrás, encontrei um irmão dela e soube que morrera em São Paulo. Ela ainda morava em Sertânia, mas fora visitar uma filha em São Paulo e sofreu um enfarte. 30 Outra recordação da vida no sertão também está ligada à lua. Nas noites de lua, a gente se sentava numa calçada em frente à casa da minha avó para ouvir minhas tias contarem histórias. Ou para ouvir meu tio Darcílio cantar e tocar violão. Na verdade, ele não tocava para nós, mas para uma namorada que tinha do outro lado do rio. Os dois tinham uma paixão platônica, que não se realizava. Quando ele tocava e cantava à noite era para ver se ela o ouviria. Eu ficava encantado com esse romantismo sertanejo. Por isso até hoje gosto do cancioneiro das décadas de 1930 e 1940, principalmente quando as canções são cantadas por Nelson Gonçalves ou Orlando Silva. Um acontecimento marcante foi o casamento da minha tia Josefa, que ainda está viva, com 96 anos. Foi em 1941, no sítio da minha avó. Houve festa de dois dias, com muita comida e cantoria. Quando os convidados foram embora, me lembro que cantavam Quem parte leva saudades de alguém/ Quem fica, fica chorando de dor... meu grande amor. Também cantaram outra: Aos pés da Santa Cruz, você jurou o nosso amor/ Jurou, mas não cumpriu/ Fingiu e me enganou... 12083517 J Marinho miolo.indd 30 25/11/2010 16:09:04 A Música e a Luz Guardo com muito carinho as memórias da música sertaneja, que é muito melódica, muito bonita. E guardo ainda mais as imagens do sertão, de uma terra que parecia interminável. Com meus seis anos, olhava para serras que ficam depois do Jabitacá e do Pajeú. Essas serras pareciam que se formavam umas atrás das outras, e, quanto mais distantes estavam, mais azuis ficavam. Cheio de curiosidade, perguntava às minhas tias: E ali naquelas serras azuis, quando a serra encosta no céu, o que é que tem? Elas respondiam: Dali para lá é o fim do mundo. Assombrado, eu queria saber mais: E depois?. Depois é o abismo. Nesse abismo, diziam, é que caiu o Zepelim. 31 Fim do mundo. Abismo. Zepelim. Foi meu tio Januário quem me levou pela região desconhecida, misteriosa, das serras. Ele iria comprar garrotes perto dessas serras e me convidou para acompanhá-lo. Viajamos muito e à tarde, na hora do almoço, chegamos à casa aonde ele compraria gado. Depois da negociação, voltamos. Já tínhamos atravessado uma serra e estávamos perto de outra. E havia muito mais serras depois daquela. Vi então que não era ali que o mundo acabava. Que desilusão! Para mim, era um encantamento ver que o mundo terminava naquela serra azul. Mas veio outra desilusão: não era nada azul, mas 12083517 J Marinho miolo.indd 31 25/11/2010 16:09:04 verde ou acinzentado. O efeito ilusionista era produzido pelos raios solares, que batiam nas pedras e deixavam tudo... azulado. 32 Em cinema, é difícil a reprodução dessa luz sertaneja. Mas Vladimir Carvalho conseguiu captar um pouco dessa luminosidade e desse universo em seu documentário O País de São Saruê. Na geografia nordestina tem rios que esvaziam numa parte do ano, e no leito seco só fica uma areia branca. Uma vez, já adulto, tentei fotografar na fazenda de minha avó aquela areia branca e saía tudo branco nas fotos. Algum tempo depois, me queixei ao Nelson Pereira dos Santos: Pô, Nelson, as fotografias [que tirei no sertão] não ficaram legais... Nelson disse: Claro, Marinho, você tem que aprender a fotografar a luz. Não a árvore, ou o chão, mas a luz. Para mim, esse é o grande mérito da fotografia de Vidas Secas. Não há nada para fotografar além do mundo e da luz. Então você tem que acertar seu diafragma para a luz. O Nelson é uma personalidade e um artista surpreendentes. Só depois de muitos anos trabalhando com ele na UFF é que notei isso: ele diz coisas sérias, brincando. Sobre o Nelson falarei mais adiante. Até hoje, de três em três anos volto ao sertão. Há dois anos juntei meus quatro irmãos que moram 12083517 J Marinho miolo.indd 32 25/11/2010 16:09:04 em Recife e fomos para Monteiro, cidade de meu pai. Passamos a noite de São João vendo os forrós e lembrando coisas da nossa infância e juventude, revendo amigos e parentes. Nesse reencontro, há uma espécie de renovação, você se sente outra vez garoto, sente uma incrível pulsação de vida. Você redescobre a juventude ao reencontrar conterrâneos da mesma idade. Na minha infância, diziam: Esse garoto gosta de estudar, vai ser padre. Me colocaram num seminário. Não queria ser padre, mas fui obrigado a estudar no Colégio Salesiano. Foi nesse colégio que escrevi meu primeiro texto, uma crônica sobre a torre da igreja estilo gótico do Colégio Salesiano de Recife. Essa torre me impressionava, era alta, tinha 57 metros de altura. Essa cronicazinha foi a primeira publicada no jornal do colégio, chamado Dom Bosco. Da passagem pelo colégio também me recordo com prazer da Páscoa na escola por causa do lanche no domingo. Nessa ocasião, os padres colocavam perto do altar uns balaios cheios de pão. A gente entrava pela porta da frente da igreja, pegava o pão e saía para o pátio interno do colégio. Tinha aluno que repetia esse entra e sai até se fartar. Eu gostava do pão doce, maciço, saboroso. Na saída da igreja, um padre servia ponche com frutas locais: maracujá, pitanga, goiaba, manga. 12083517 J Marinho miolo.indd 33 33 25/11/2010 16:09:04 A passagem dos violeiros pela região era sempre sinônimo de festa. Muitos, quando iam de uma cidade para outra, paravam lá em Pernambuquinho e improvisavam uma cantoria. Meu pai gostava de violeiros e de ouvi-los tocar. Acolhidos com festa, eles diziam ao meu pai: Seu Odilon, vamos cantar hoje e dormir aqui. Meu pai providenciava os lugares onde eles ficariam. A vila enchia de gente. Depois de cantar e tocar, eles passavam o chapéu para receber algum dinheiro. Esses violeiros dormiam em redes em uma casa ao lado da nossa, e no outro dia iam embora de ônibus. 34 Também havia festa no dia de missa, uma vez por mês. Nessa ocasião, os moradores dos sítios colocavam suas melhores roupas e iam para a cidade. Em Vidas Secas há uma sequência que tem muito desse clima em torno das missas. É quando Fabiano vai até a igrejinha ou quando reclama num armazém, numa bodega, que a cachaça tem água e é detido pelo soldadinho. São coisas típicas do sertão que o Nelson Pereira dos Santos, a partir de Graciliano Ramos, evocou com muita precisão. Violência e Convivência Antes das missas, aos domingos, aconteciam as feiras. Essas feiras acabaram quando as pessoas passaram a ter medo das brigas de quem bebia 12083517 J Marinho miolo.indd 34 25/11/2010 16:09:04 demais e provocava confusão. Meu pai, como líder político, achou melhor acabar com as feiras, por volta de 1945, quando eu tinha 12 anos. Para viver no sertão, tem que saber viver, saber conviver. Porque, se você arrumar briga, morre cedo. Nas festas de fim de semana às vezes ocorriam excessos de bebida, brigas violentas, crimes de morte – geralmente com peixeira ou punhal. E todo mundo no sertão, na região de sítio e fazendas, andava armado. Isso até hoje, principalmente no sertão do Baixo Pajeú, no Jabitacá, Alto do Cariri paraibano, onde as pessoas costumam andar armadas. Lampião e outros cangaceiros andaram por essa região, onde é comum o costume de andar armado, como se a qualquer momento você fosse encontrar um inimigo à frente. Geralmente o sertanejo anda muito à noite. Até dez horas da noite, ele anda bastante, da cidade para sua casa, da casa de parentes para a casa dele e, às vezes, quando tinha festas, ou sambas como se chama lá, ele saía para casa, em grupo ou até sozinho. Esse era o lado perigoso das festas, uma causa de preocupação dos pais, que pediam aos filhos para não exagerar na bebida nem brigar. 35 Tinha sempre alguém morrendo por causa de briga. Depois que saí de Pernambuquinho, meu compadre Antônio (aquele que namorou a meni- 12083517 J Marinho miolo.indd 35 25/11/2010 16:09:04 36 na antes de mim) matou um colega de infância, Expedito, numa bebedeira. Desde os tempos de escola, os dois brigavam. Na hora do recreio, a gente fazia um risco do chão e dizia: Isso aqui é a mãe de um, isso aqui é a mãe de outro. Aí vinha um e pisava na mãe do outro, e a briga rolava. Antonio e Expedito começaram a brigar com nove anos de idade. E quando tinham 20 anos houve a tragédia: Antônio, armado com uma peixeira, e Expedito com um pedaço de pau, entraram na casa onde funcionava o posto fiscal, se engalfinharam na sala, continuaram a brigar numa segunda sala, chegaram na copa e então Antônio passou a peixeira em Expedito, cortando-o de um lado a outro. O golpe foi profundo: com o intestino na mão, Expedito saiu do posto até a casa do pai dele. Na calçada, gritou que fora ferido pelo Antônio. O pai o deitou, usaram um pano com água morna para segurar o intestino e foram chamar um carro em Sertânia, a 16 quilômetros de distância. Expedito foi levado para Sertânia ainda vivo. No hospital, o médico que o atendeu viu que o intestino estava inflamado e não tinha salvação. Soube dessa morte em Recife, onde já estava. Esse desfecho abalou todo mundo, amigos e parentes, embora no sertão seja muito comum crime de morte. Meus irmãos costumavam ir a 12083517 J Marinho miolo.indd 36 25/11/2010 16:09:05 festas, mas não se envolviam em brigas, porque de repente um mata o outro brincando. Você vive e convive com essas coisas normalmente. O sertão é uma coisa enigmática, misteriosa. Gente que não é da terra pode ser recebida com cordialidade ou encarada com desconfiança. Se chegar num lugar onde ninguém lhe conheça, você fica numa situação desesperada. As pessoas o olham com indiferença, o evitam. Perguntam: Você é quem?. Fulano. Filho de quem? Sem identificação de família, esse estranho pode ser alguém mal-intencionado. Pode ser, por exemplo, um pistoleiro de fora que foi contratado por um fazendeiro para matar algum desafeto. 37 As pessoas não recebem bem um estranho. Até hoje os filhos da terra andam armados, de pistola, foice. À noite só se anda armado, como se fosse no tempo de Lampião. Comprovei isso quando fui lá na década de 1970 e me hospedei na casa do meu tio Januário. Quando estava escurecendo, fui até Pernambuquinho pegar o ônibus para Sertânia. Andei por aqueles caminhos que conhecia desde a infância e não senti medo. Mas a certa altura ouço vozes de gente, de homens. A noite estava escura. Eles pressentiram que alguém estava na estrada. Pararam e gritaram: Quem vem lá? Aí falei: José de Odylon Marinho. Ah, Zé do seu Odylon! Pode vir, Zé. 12083517 J Marinho miolo.indd 37 25/11/2010 16:09:05 Tem que dizer quem é. Aí perguntei: Quem tá aí? Ele disse: Pedro [filho] de Laurentina e Pedro [filho] de seu Timóteo. Seu Timóteo era um ex-morador. Aí me aproximei. Como é que vai, Zé, tá por aí? Aquela coisa, e tal. No meio do caminho, encontrei outro conhecido e comecei a conversar, deixando o tempo passar. 38 Meu tio Januário cuidava para que eu não saísse à noite. Nem dormisse na casa de ninguém, a não ser na casa do irmão dele, tio Darcílio. Uma vez eu estava em Pernambuquinho, na casa dele, e resolvi dormir na casa do Meliano, amigo do meu pai, que está lá vivo, aos 90 anos. Aí o Meliano: Fica por aí, Zé, dorme aí hoje. Eu dormi e não fui para casa de meu tio. Como ele não estava, avisei à mulher dele que se ficasse tarde dormiria por lá. No dia seguinte, pela manhã, quando voltei, meu tio Januário disse: Faça mais isso, não. Quando você vier aqui para casa, você dorme aqui em casa. Não quero sobrinho meu pedindo favor a ninguém. Sertanejo é muito cioso do nome da família. Não admite depender de outros. Se você tem casa para dormir, por que vai dormir na casa dos outros? E isso é o que sertão cobra, até os dias de hoje. O Dia do Padre As meninas iam às missas vestidinhas, enfeitadas, ao lado das mães. Os rapazes também iam alinhados. Naquele tempo, estava alinhado 12083517 J Marinho miolo.indd 38 25/11/2010 16:09:05 quem usava terno. Quando fazia 15 anos, o adolescente tinha de colocar terno. Calça curta, só até 10 anos de idade. Meu pai comprou um terno para mim quando eu tinha uns 12 anos. Era um terno de riscado, como chamam lá. Não se usava gravata, só o terno. O tecido do terno não tinha importância, desde que fosse aquela roupinha completa. O tempo mudou por aquelas bandas. Ninguém anda mais a cavalo ou de burro, só de motocicleta. Mesmo os vaqueiros, só andam de moto. Cavalo só para procurar boi; para ir à cidade, eles vão de moto. Ou de carro. E esses carros servem para trazer os vizinhos e depois cobrar a gasolina. No sertão já tem até motoboy. Se à noite você quiser ir a um lugar e perdeu o horário do ônibus, você tem a moto. 39 Outra coisa que eu gostava no dia de missa era o almoço especial que minha mãe fazia para o padre. Era galinha ensopada, galinha na panela, mas feita com muito capricho porque era o dia do padre. Eu adorava o almoço do dia do padre! Nos outros domingos, meu pai costumava comprar carne de boi na feira de Santana. Carne de porco minha mãe nunca deixou entrar lá em casa. Quando meu pai chegava em casa com a carne do boi, jogava na mesa e, com o facão, cortava tudo e salgava com sal grosso. Tirava as mantas de carne maciça, que eram penduradas 12083517 J Marinho miolo.indd 39 25/11/2010 16:09:05 40 no quintal para virar carne de sol. Todo dia ele cortava um pedaço e assava para fazer o almoço. Da parte traseira da perna do boi, o corredor, meu pai tirava todas as carnes maciças, colocava numa panela. Minha mãe lavava aquilo tudo, temperava, pegava a parte óssea e botava para cozinhar em outra panela. Passava de molho de sábado para domingo. Domingo, já tudo temperado, colocava para cozinhar aquelas carnes e um prato separado para botar na mesa e acompanhar o corredor. E aquela parte da pata do boi, meu pai pegava e, com um martelo, batia no prato de cada filho. Daí saía um pedaço de tutano no prato de cada um. E naquele prato já tinha um pirão, que era feito do próprio caldo da carne cozida. Então ficava um pirão escaldado: farinha, carne cozida e o molho da carne cozida. Com a gordura da carne em cima. Eu comia aquele pirão e dava uma suadeira. Depois do almoço eu saía suando, porque aquilo era proteína pura. Tinha que andar um pouco para pegar ar. Era um almoço maravilhoso, chamava-se corredor. Quase todo domingo, enfrentávamos a suadeira do corredor. Mas quando o padre estava lá, o cardápio mudava. Saía a carne de boi e entrava a galinha, porque a nossa comida dominical era pesada demais para o padre. E nas semanas santas minha mãe fazia uma comida maravilhosa 12083517 J Marinho miolo.indd 40 25/11/2010 16:09:05 que eu adorava: bacalhau ou peixe cozido com coco. Pegava o coco, ralava. Daí, na máquina de moer o milho, moía e saía o leite do coco, aquele leite do coco era natural. Jogava em cima do bacalhau ou do peixe. O peixe era de açude. Ficava uma delícia! É também outra coisa inesquecível. Pirão de Mulher Parida E outra coisa inesquecível era o pirão de mulher parida. Toda vez que minha mãe engravidava, ela aumentava a criação de galinha. Chegava a engordar quinze galinhas para comer durante o período de resguardo. Do resguardo até quinze dias depois, só comia a galinha. Como era preparada essa galinha? Essa galinha era cozida sem muito tempero, levando apenas coentro, cheiro verde, cebolinha e um pouquinho de sal. A galinha era cozida com a pele. Da gordura da pele cozida, se fazia o pirão. Minha mãe comia aquele pirão com arroz branco e a galinha. Eu e meu irmão mais próximo de mim ficávamos esperando que ela acabasse de comer o pirão para raspar a panela do pirão – um pirão gostosíssimo feito da gordura do caldo da galinha. Podia até comer outra coisa, mas aquele pirão tinha que ser raspado, tinha que comer até acabar. Eu não sabia por que ela só comia galinha. Para mim, parecia um luxo: mulher de resguardo tem que comer galinha. 12083517 J Marinho miolo.indd 41 41 25/11/2010 16:09:05 42 Só anos depois é que vim a descobrir o motivo do pirão de mulher parida. Estava em São Paulo, fazendo mestrado na USP, quando vi no jornal um restaurante em Pinheiros anunciando: galinha de mulher parida. Fiquei intrigado: seria aquela? Pensei em conferir. Mas voltei para o Rio e não fui. Foi um médico, meu amigo Zé Luís, de Caruaru, quem revelou o segredo da galinha de mulher parida. Ele me explicou que se tratava de um costume medieval. A gordura da galinha tem uma proteína que evita infecções. A mulher come aquele pirão para evitar infecções pós-parto. É como se fosse um antibiótico. E eu pensava que era um luxo! De onde vinha essa impressão? É que minha mãe, única filha mulher de um fazendeiro, era tratada com requinte. Meu pai, do seu lado, tinha um legado, uma propriedade, caminhão. Era, como se diz, um homem rico da cidade. As outras mulheres comiam galinha dois, três dias. Minha mãe comia uma semana, duas. E eu achava que era por causa da nossa riqueza! Embora não tivesse nenhuma vocação para padre, às vezes fui envolvido em tarefas da missa. Isso acontecia quando o sacristão atrasava. Esse sacristão era na verdade um pequeno fazendeiro, que morava no pé de uma serra distante. Durante os preparativos da missa, enquanto o sacristão não chegava, o padre me convocava: 12083517 J Marinho miolo.indd 42 25/11/2010 16:09:05 Me ajuda aqui, José. E lá ia eu ajudar na montagem do altar ou até na cerimônia da missa. Mesmo quando o sacristão chegava, eu ficava de lado, acompanhando tudo. Não tinha aptidão para o sacerdócio, mas para ler e escrever. No balcão do armazém do meu pai, ficava sentado, à tarde, escrevendo em papéis de embrulho. Eu pegava um lápis e começava a escrever, caprichando na letra, para ficar bonita. Caía livro na minha mão, e eu lia. Então, desde pequeno eu chamava atenção para esse lado de ler, de estudar. Quando meu irmão Josias chegou na 4ª série, meu pai comprou um livro para ele e outro para mim. O livro que ele ganhou, chamado Exame de Admissão, tinha matérias de todo o curso primário. Josias não se interessou: Esse livro é muito difícil, não quero, não. Aí trocou, ficou com o mais fácil para ele e eu fiquei com o Exame de Admissão. Quando fui para Recife, levei este livro, que me ajudou bastante no exame de admissão para o Colégio Salesiano, onde era indicado para os candidatos. E lá estava eu com aquele livro debaixo do braço o tempo todo! 43 Sertão de Rico e de Pobre Os fazendeiros sertanejos queriam formar seus filhos. As famílias ricas de Monteiro e Sertânia 12083517 J Marinho miolo.indd 43 25/11/2010 16:09:05 44 mandavam os rapazes e as moças estudar em Recife. Eram três formações básicas – Direito, Medicina ou Engenharia. Os filhos de fazendeiros se formavam e a maioria voltava para o sertão, onde se tornavam advogados, engenheiros, promotores ou médicos de hospitais. As famílias ricas chegavam até a criar hospitais para os filhos trabalharem como médicos. Isso era o desenvolvimento do sertão. Os homens iam para cidade, viravam doutores. E as mulheres iam para os internatos, os colégios de freiras estrangeiras. Em Monteiro, tinha um colégio de freiras francesas, onde minha tia Josefa estudou. As moças estudavam basicamente até o 2o grau, incluindo francês e um pouco de piano, nas famílias tradicionais. No sertão, as casas não tinham piano, mas em Recife estudar piano era obrigatório para as moças, principalmente as da alta classe média. No sertão, havia uma aristocracia sertaneja, a dos antigos coronéis, que se interessava pela educação dos filhos por uma questão de status. Mas o meu pai tinha outra visão quando criou a escola lá em Pernambuquinho, em combinação com o prefeito. O que ele visava era educar as crianças que não tinham condições de estudar na cidade e que ao menos seriam alfabetizadas para poder 12083517 J Marinho miolo.indd 44 25/11/2010 16:09:05 cuidar de seus pequenos negócios. Os pais mais simples, agricultores, tinham interesse que seus filhos trabalhassem na roça, como eles trabalhavam. Nesse sentido, a contribuição do meu pai naquela época foi tão importante que até hoje os meninos escrevem no topo do caderno Sertânia, Escola Municipal Odilon Marinho de Oliveira. Alegria e Solidão O sertanejo trabalha de segunda a sexta-feira e no fim de semana gosta de se divertir um pouco. Aos sábados ocorrem as feiras. O sertanejo vai à feira mesmo que não tenha nada para comprar. A feira era o local do encontro de amigos, das conversas, dos negócios – ou de ver as modas – como se diz aqui no Sul. É o dia que ele toma banho, faz a barba e corta o cabelo. Então é um dia alegre. Depois vem o domingo. Geralmente entre sábado e domingo acontece alguma festa. A festa é o lado profano, onde se dança, se namora, se reúne com parentes. Essas festas fazem parte da alma do sertanejo, é quase uma necessidade. Nelas o sertanejo esbanja um pouco de sua alegria, de sua vaidade, de seu lado mais boêmio, espontâneo. Alguns mais desinibidos se destacam nos bailes como grandes dançarinos, mulheres como bailarinas maravilhosas e isso tudo dançando forró, xaxado, a música mais comum do sertão. 12083517 J Marinho miolo.indd 45 45 25/11/2010 16:09:05 46 No lado religioso, os momentos mais aguardados eram as rezas em louvor das padroeiras das cidades, geralmente comemoradas nos sítios. Na fazenda da sua propriedade, no Espírito Santo, minha avó paterna, vovó Petrolina, rezava o terço em janeiro em homenagem a São José e depois rezava as novenas do mês de maio, chamado Mês de Maria. No terreno da casa foram erguidos um mastro e uma bandeira à Virgem Maria. E se rezavam nove noites – daí o nome novenas. Eram novenas animadas, com a participação do pessoal da redondeza e de um zabumba que minha avó contratava. O zabumba é composto por um grupo de tocadores de pífaros, a zabumba e uma caixa de som. O zabumba dá o ritmo, a caixa acompanha e os pífaros fazem o acompanhamento mais suave, melodioso. Eles acompanhavam as rezas e, às vezes, tocavam músicas da tradição do zabumba, como o Cachorro Atrás da Onça. Minha avó sempre convidava uma família que tocava zabumba – Os Raimundos. Eram cinco irmãos, que animavam as novenas até de madrugada. Novena geralmente não ia até de madrugada, ia até 11 horas da noite, por aí. Na hora das orações e dos cantos finais, todo mundo tinha que beijar o altar. Primeiro, as mulheres e, depois, os homens. Entre as mulheres, a primeira a beijar era uma pessoa da casa da 12083517 J Marinho miolo.indd 46 25/11/2010 16:09:05 família, e o mesmo acontecia entre os homens. Na casa da minha avó, as primeiras pessoas a beijar o altar eram a minha tia Josefa, que ainda está viva em Brasília com 96 anos, e era a caçula; e entre os homens era meu tio Darcílio, caçula entre os homens, e depois iam os demais parentes convidados. Desse modo, as novenas seguiam todos os anos, pois minha avó fazia questão de comemorar. Uma mesa era coberta para virar um altar, e em cima ficava um oratório, uma peça tradicional, de madeira, muito bonita, que está até hoje com a tia Josefa. Ela preservou tanto esse oratório como um santo especial, que eu achava muito bonito. Na verdade, não era um santo, mas um pássaro branco de madeira, datando mais ou menos do século XVIII e que simboliza o Divino Espírito Santo. 47 Já em Pernambuquinho, minha mãe era zeladora da igreja do padroeiro São José. Lá também tinham as novenas e missas mensais. Esse lado do sertanejo é, então, essencial para ele. O sertanejo tem uma relação muito dialética com o céu e a terra, com Deus e com o diabo. No céu está Deus, as divindades, e na terra está o que é mau, o diabo a tentar os homens e as mulheres. Então ele tem essa dialética e não é casual o título que Glauber Rocha deu ao seu filme – Deus e o Diabo na Terra do Sol. O sertão é terra do sol. O sertanejo 12083517 J Marinho miolo.indd 47 25/11/2010 16:09:05 não se confunde nesse sentido, quer dizer, nessa dualidade. Há um lado físico e um metafísico; um lado material e um lado espiritual. Ele vive nessa dialética a vida inteira – é essa dialética que explica sua permanência no mundo. Você encontrará isso depois no Guimarães Rosa, no Glauber, no Graciliano Ramos, entre outros. Tudo isso me impressionava muito. Assistindo a festas e novenas e vendo feiras e cantorias, fui acumulando sentimentos e percepções de todos os tipos. 48 Política no Sertão Meu pai era o chefe político em Pernambuquinho e se ligava a lideranças de Sertânia vinculadas ao Partido Social Democrático (PSD). O partido era chefiado pelo Dr. Ulisses Lins, pai de um político muito famoso no Brasil da época, Etelvino Lins, governador de Pernambuco, senador e uma grande figura política no Estado. Moravam em Sertânia dois tios de meu pai, irmãos de minha avó Petronila. Eram o tio Francisquinho e o tio Oliveirinha, comerciantes influentes na cidade e ligados à liderança do PSD. Tio Francisquinho era Francisco Bispo de Sales de Oliveira e tio Oliveirinha era Josué Soares de Oliveira. Tio Francisquinho foi o primeiro tabelião de Sertânia no início da República. Casou sua primeira filha com Ingrácio Siqueira Campos, a quem ce- 12083517 J Marinho miolo.indd 48 25/11/2010 16:09:05 deu o cartório. Esse cartório era de certidão de nascimento e de notas; em seguida foi desmembrado em dois e ele continuou com o de escrituras na mão dele. Quando casou a segunda filha, meu tio deu o segundo cartório para o segundo genro, Manuel Laet Cavalcanti. Esse cartório foi vendido para outra pessoa, mas o primeiro cartório continua até hoje sob o controle da família Oliveira Siqueira Campos. Meu pai organizava em Pernambuquinho os moradores dos sítios e fazendas para ir votar em Sertânia. Os chefes políticos mandavam caminhão para Pernambuquinho, meu pai coordenava os eleitores, levava-os para Sertânia onde eles deveriam votar e almoçar. À tarde, todos voltavam no mesmo caminhão para o sítio e a eleição estava realizada. Era assim de um modo geral que os chefes políticos comandavam as eleições no interior do Estado. 49 O grupo adversário do PSD era a UDN, liderada pelo Dr. Raul Torres Lafayette, médico muito prestigiado na cidade e em quem minha mãe votava sempre. Minha mãe levou essa fidelidade eleitoral até o fim da vida. Mesmo no final da década de 1990, quando já morava em Recife, ela voltava a Sertânia para votar nos candidatos indicados pelo filho do Dr. Raul. A UDN tinha como grande líder nacional o Brigadeiro Eduardo Gomes, que minha mãe admirava muito. E eu, 12083517 J Marinho miolo.indd 49 25/11/2010 16:09:05 ainda adolescente, simpatizei com a UDN e o Brigadeiro, o que me manteve ligado às lideranças da UDN até meados dos anos 1950. Recordo que em 1956, na eleição de Juscelino Kubitschek, votei no General Juarez Távora, que era do Partido Socialista Brasileiro, uma linha mais udenista. 50 Em 1950, quando já morava em Recife, assisti no Parque 13 de Maio a comícios políticos tanto de Getúlio Vargas como do Brigadeiro Eduardo Gomes. Achei muito simpático Getúlio, o seu jeitão, seu discurso e seu sotaque gaúcho, mas meu voto era do Brigadeiro. Quando fui para Recife estudar no Colégio Salesiano, achava que uma pessoa católica deveria votar realmente na UDN, porque o PTB, partido de Getúlio, já era acusado naquela época de ser representante dos comunistas. E o PSD representava os coronéis políticos do interior. A UDN era o partido da redemocratização do País, após 1945, representando a juventude estudantil, as novas lideranças democráticas. Em Recife, eu tinha um colega do Grêmio Literário Joaquim Nabuco, chamado Jarbas de Holanda, que militava na esquerda. Discutíamos muito. Eu defendia as posições do Carlos Lacerda, em relação à morte de Getúlio e ele tentava me mostrar que o Lacerda estava errado e que Getúlio estava certo. Levei muito tempo para me convencer e me 12083517 J Marinho miolo.indd 50 25/11/2010 16:09:05 tornar uma pessoa de esquerda. Isso só aconteceu depois de 1960 quando, já na universidade e trabalhando no Movimento de Cultura Popular, convivi com a juventude estudantil ligada à esquerda e aos poucos fui me conscientizando até me filiar ao Partido Comunista Brasileiro em 1962. Militei até 1968, quando o AI-5 foi instaurado no País e o partido suspendeu as reuniões para evitar que alguém fosse preso. A essa altura eu já estava no Rio de Janeiro, fazendo teatro e cinema e convivendo com pessoas que se tornariam militantes e se ligariam mais tarde à resistência armada. Um parêntesis: no Rio, embora mantivesse uma relação de amizade com o partido e suas lideranças, não voltei a me filiar. Fui militante comunista sem deixar de ser católico e cristão. No início, quando me filiei em Recife, tive muitas discussões com minha mãe. Ela notou meu afastamento da igreja e cobrava minha presença nas missas aos domingos – e cobrava até que eu me confessasse. Mesmo sem atender ao pedido dela, continuava cristão. Estudei materialismo histórico, materialismo dialético, história do Partido Comunista no mundo e muita coisa. Assisti a cursos de colegas que estudaram na União Soviética e que, de volta a Recife, nos reuniam para repassar o que aprenderam. Um comunista cristão: seria um paradoxo? Há pessoas que têm dificuldade de acreditar em 12083517 J Marinho miolo.indd 51 51 25/11/2010 16:09:05 Deus, eu sou o contrário, tenho muita dificuldade em não acreditar em Deus. Me casei na igreja, meus filhos estudaram em colégios religiosos, foram batizados, seguem os rituais católicos. Hoje me considero um socialista cristão. 52 Caminhão = Progresso No sertão, àquela época, o caminhão simboliza o desenvolvimento, o progresso, a chegada da tecnologia do século 20. Primeiro, tivemos o carro de boi, o cavalo, o burro. Depois chegou o trem, que era rápido, mas não tinha a mobilidade do animal, pois corria em linha reta, não parava em cidade fora da rota. Quando se precisava chegar a cidades menores, tínhamos que ir de caminhão ou automóvel. O trem fazia a linha de Recife a Caruaru, e depois a Pesqueira, Arco Verde. Só chegou a Sertânia em 1938. Demorou mais uns quinze anos para ir até a Serra Talhada. Então limitava o espaço, e o caminhão avançava, ia até o alto sertão transportando cargas e cruzando as cidades. Meu pai, homem que vivia de negócios, preocupou-se em comprar um caminhão e usá-lo como um instrumento de trabalho nas compras de uma cidade a outra. Era o caminhão, um motorista, eu e meu pai a viajarmos para cima e para baixo. Quando jovem, ele transportava a mercadoria 12083517 J Marinho miolo.indd 52 25/11/2010 16:09:05 em tropas de burro. Ele estava sempre imaginando modos de progredir. E o caminhão era, ainda é, um desbravador do sertão, que encurta a distância entre cidades. No território livre que era o sertão no tempo dos cangaceiros, a locomoção era muito difícil. Com o caminhão, essas cidades ficaram muito mais próximas e os espaços para cangaço também foram diminuindo. Ficou mais fácil para a polícia procurar Lampião. O caminhão aproximou as grandes cidades nordestinas. E meu pai estava nesse movimento. Com ele conheci Recife, cidade grande, entrecortada por rios, uma cidade poética, bonita. Até hoje me encanto com o rio Capibaribe, que cruza a cidade em diversos lugares. Atravessada pelas águas do rio, Recife passou a ser conhecida como a Veneza Brasileira e fica ainda mais bonita nos últimos tempos com a iluminação no Natal. Nela surgiram poetas de expressão nacional, desde Manuel Bandeira, Mauro Motta, Carlos Pena Filho e tantos outros. E hoje são os músicos pernambucanos que estão aí, como Alceu Valença, que cantam as belezas da cidade. 53 A Sedução do Frevo A musicalidade de Pernambucano está muito presente no frevo, que fascina brasileiros e estrangeiros durante o carnaval. Ritmo próprio da 12083517 J Marinho miolo.indd 53 25/11/2010 16:09:05 54 terra, o frevo tem sua raiz em Recife, está enraizado em Pernambuco, de onde realmente nunca saiu. Pode ter apresentações em São Paulo e no Rio, mas o frevo pertence a Recife. Este ritmo nasceu no final do século XIX, nos carnavais de Recife, e ainda hoje está lá, permanente, com grandes orquestras à base de metais, num som forte que esquenta. Frevo vem de fervendo. Ao mesmo tempo tem uma leveza, uma coreografia lindíssima. Você passa horas e horas assistindo a uma bailarina de frevo. Além de acompanhar os blocos, ela também fica ali em um lugar só para dançar frevo e você fica assistindo a diversas coreografias. Até crianças com 10 anos dançam frevo maravilhosamente bem. Quando cheguei a Recife fui me encantando com essas coisas todas, vivendo tudo isso. Nos carnavais, havia o corso, que era o pessoal passando nos automóveis e jogando talcos, serpentina e confetes nas moças das calçadas. O corso acontecia na Rua Nova, que era uma rua principal. Eu assistia a tudo aquilo, como um sertanejo perdido, e ia me encantando com a musicalidade e com as coisas todas que aconteciam. Me lembro de músicas de carnaval na época: Tomara que chova três dias sem parar. Foi um carnaval que choveu muito. Lembro-me de músicas como Uma cigana leu a minha mão/ e foi dizendo assim/ 12083517 J Marinho miolo.indd 54 25/11/2010 16:09:05 tiveste uma grande paixão/ cigana mentirosa/ leva o meu dinheiro/ deixa de prosa/ eu jamais amei. Eram versos de uma marcha de carnaval fantástica. Nos frevos de rua, às vezes não havia letra: eles só acompanhavam os blocos. Era tudo muito rico, acontecendo todo ano, se repetindo e isso fica em você. Ao longo do rio Capibaribe, entre a Rua da Aurora e a Rua do Sol, tem uma espécie de banco que fizeram ao longo da calçada, como uma continuidade de uma pequena parede onde as pessoas vão namorar, procurar namorados, onde chamam de quem me quer. Você se vestia, se perfumava e ia para o quem me quer arranjar namorada. Esse quem me quer era uma piada comum no meu tempo de adolescente. 55 Recife foi me encantando com tudo isso, além de acalentar o sonho de realizar meu projeto de vida. De início, tive dificuldade, porque fiquei cuidando do negócio que meu pai montou para mim e para o meu irmão. Mas depois que me matriculei no Colégio Salesiano e comecei a estudar sistematicamente e a trabalhar, visualizei meu projeto e vi que dali para a frente realizaria o que queria. O que realmente aconteceu: trabalhei, estudei, criei minhas condições de sobrevivência sem pedir dinheiro em casa. Eu estudei já 12083517 J Marinho miolo.indd 55 25/11/2010 16:09:05 com essa convicção. Tanto que no admissão até o 3o clássico nunca fui reprovado nem fiquei em segunda época. Eu estudava realmente: acordava às cinco, estudava até às sete, tomava café e ia para o trabalho. Sempre tive muita facilidade em estudar, em aprender as coisas. Não tive nenhum sacrifício para estudar, nenhum desespero. Estudava com o maior prazer. À noite, ia para o colégio com um colega meu da pensão, Prestes Cavalcanti Macambira, que se tornou tabelião e de quem fui muito amigo. 56 Então, estudar não tinha nenhum mistério, foi sempre algo que fiz de forma natural. A curiosidade da ciência, do saber. Sempre fui muito interessado por literatura, história, geografia. Tirava sempre boas notas. As coisas foram então fluindo e fui trabalhando e me formando. Para mim, a transferência do sertão para Recife no meio da adolescência foi uma passagem natural, só me trouxe felicidade. Era uma vontade que tinha desde pequeno. Uma vez, inclusive, minha mãe chamou uma cigana e a mandou ler a mão de todo mundo. Quando ela leu a minha, disse que eu era uma pessoa com vocação para viver distante da família, o que realmente terminou acontecendo. Eu ia, claro, passar todas as férias no interior com a minha família. Mas fui vivendo assim de 1949 até 1958. Quando 12083517 J Marinho miolo.indd 56 25/11/2010 16:09:05 meu pai faleceu, meus irmãos transferiram a família de Pernambuquinho para Recife, onde compramos uma casa. Foi nessa época que voltei a morar com a família, e fiquei com eles até 1964, quando vim para o Rio de Janeiro. Morei com minha família durante quase todo o meu tempo de universidade. O Texas Bar e Maria Lúcia Esse Texas Bar deve ter surgido em meados da década de 1940. Nessa época, marinheiros americanos circulavam pelo centro de Recife em suas folgas na base naval que os Estados Unidos instalaram graças a um acordo com o Governo brasileiro. Os marinheiros, como é conhecido no mundo inteiro, gostam de frequentar zonas onde têm mulheres. O Texas Bar não era muito grande e tinha aquele tipo de máquina de tocar música após você colocar uma ficha. É o que se chamava juke box. Você comprava as fichas, colocava e apertava o botão da música desejada. 57 Nos anos 1950 e 1960, esse bar localizado no perímetro da zona do meretrício era frequentado por profissionais liberais, jornalistas, intelectuais e estudantes. Os boêmios iam lá para beber e ouvir música. Durante muito tempo frequentei o local. Foi no Texas Bar que conheci Maria Lú- 12083517 J Marinho miolo.indd 57 25/11/2010 16:09:05 cia. Menina do interior, ela fora expulsa de casa pelo pai por ter sido desonrada pelo namorado. Depois de morar na casa de um parente em São Lourenço da Mata, cidade vizinha ao Recife, sem maiores condições de sobrevivência, ela optou pela prostituição. Com 19 anos, ainda com sua beleza juvenil, esbelta, cabelos castanhos lisos até um pouco abaixo do ombro, Maria Lúcia era uma menina bonita. 58 Depois que conheci Maria Lúcia, começamos a ficar juntos, bebíamos cerveja, ouvíamos música na radiola do Texas Bar e depois íamos para a pensão onde ela recebia seus clientes. A dona da pensão achava que eu era fuzileiro naval. Era uma pensão muito frequentada por fuzileiros e marinheiros. Eu era um jovem forte, fazia musculação, remava três vezes por semana no rio Capibaribe. Deve ter sido por causa do meu porte atlético que a dona da pensão me confundiu com um fuzileiro naval. Algumas vezes, quando uma patrulha naval procurava fuzileiros desgarrados, essa mulher me escondia junto com os americanos, em diferentes quartos. Uma vez eu lhe disse que não era fuzileiro. Não adiantou: Tá brincando comigo, te esconde logo que a patrulha já tá subindo a escada! A pensão ficava num sobrado. 12083517 J Marinho miolo.indd 58 25/11/2010 16:09:05 Maria Lúcia vivia por ali, frequentava um outro bar e eu, sempre que ia passear na zona, me encontrava com ela. Quando não a encontrava, procurava outra, mas pelo menos uma vez por semana ia até a zona do Recife. Ia geralmente por volta das 10 horas e pegava o ônibus de meia-noite pra Imbiribeira onde eu morava com minha mãe e meus irmãos. Geralmente eu ia acompanhado de um amigo meu, o Aquiles, um artista plástico. Lá encontrávamos amigos, batíamos papo e tal. Ele também tinha uma namorada na zona. Um dia resolvemos ir até a zona e combinamos que não sairíamos com as antigas namoradas, e que iríamos procurar novas mulheres. Cheguei até a encontrar Maria Lúcia andando pelas ruas, ao lado de um guarda noturno e um investigador de polícia, conhecidos na zona. Evitei me aproximar e continuei andando com Aquiles em busca de novas mulheres. De repente, entro num bar e lá está a Maria Lúcia com os dois homens, bebendo e rindo. Eu tinha entrado nesse bar atrás de uma outra garota. Quando deparei Maria Lúcia, voltei rápido. Mal saí da calçada, ela veio correndo do bar, se jogou nas minhas costas, me agarrou pelo pescoço e gritou: Tá fugindo de mim, seu ingrato! Me desculpei, falei que não a vira, que tinha que ir para casa. Mesmo estando meio alta, ela não se convenceu. Tentei acalmá-la, tirando do bolso 12083517 J Marinho miolo.indd 59 59 25/11/2010 16:09:05 uma nota que ela pegou e botou no sutiã. Ela voltou para o bar, e eu parecia ter controlado a situação. Mas me enganei. 60 Quando estava saindo, ela reapareceu. Plantouse na minha frente e começou a discutir comigo, já com palavras agressivas, se sentindo rejeitada. Eu tentava me desculpar, ela não ouvia. De repente, ela rasgou a blusa e a jogou no chão, ficando somente de sutiã. Depois pegou a saia e fez a mesma coisa, rasgou e jogou no chão, ficando de calcinha em plena rua. Fiquei desarvorado, sem saber o que fazer, quando surgiu um grupo de marinheiros. Eles nos cercaram, seguraram a Maria Lúcia, apanharam as peças rasgadas e tentaram vesti-la novamente. Tentei cair fora. Um marinheiro foi atrás de mim e disse: Volta companheiro, a mulher é sua, leve ela para casa. Você não vai deixar ela na rua nessa situação. Então, como um noivo carregando a noiva, atravessei a rua, levando-a nos braços até a pensão. Depois de subir as escadas, a coloquei na cama e preveni a dona da pensão sobre o investigador e o guarda que estavam bebendo com ela. Eles poderiam aparecer por lá. A dona da pensão prometeu ficar de olho. Assim que a deitei, ela adormeceu rapidamente. Fiquei ao lado dela até às 4 horas da madrugada (a confusão acontecera entre meia-noite e uma hora). 12083517 J Marinho miolo.indd 60 25/11/2010 16:09:05 Levantei-me, peguei os cruzeiros que eu dera a ela na rua e que os marinheiros me devolveram. Coloquei o dinheiro na mesa da cabeceira e escrevi um pequeno bilhete: Tenho que ir, tenho compromissos. Voltarei em breve. Adeus. Durante seis meses evitei ir à zona para não encontrar Maria Lúcia. Mas a revi por acaso. Eu andava por uma calçada, e ela por outra. Eu a vi e ela me viu. Não atravessou a rua para falar comigo. Não fui falar com ela. Nossa história terminou aí... 61 12083517 J Marinho miolo.indd 61 25/11/2010 16:09:05 12083517 J Marinho miolo.indd 62 25/11/2010 16:09:05 Parte 2 O Homem: Tempo da Formação 12083517 J Marinho miolo.indd 63 25/11/2010 16:09:05 12083517 J Marinho miolo.indd 64 25/11/2010 16:09:05 Capítulo I Educação no Estudo e na Vida Na primeira vez em que morei em Recife, fiquei na casa de um amigo do meu pai. Como cheguei à capital em maio, perdi a época da matrícula nas escolas. Comecei então a ajudar o amigo do meu pai numa mercearia. No ano seguinte, ele vendeu a mercearia para meu pai. O irmão mais novo do meu pai foi tomar conta da mercearia e de mim. Enquanto cuidávamos da mercearia, esqueci de colégio e de meu projeto de educação. Depois de uns seis meses, a mercearia foi à falência. Sem ter o que fazer, tentei ir para a Aeronáutica, mas não passei no exame de saúde. Para não ficar desocupado, fui trabalhar no comércio: me empreguei numa loja de miudezas na Rua do Rangel, que é uma espécie de Saara do Rio de Janeiro, cheia de libaneses. Trabalhei cinco anos nessa loja. Larguei o emprego para retomar os estudos. Foi uma época difícil, mas definitiva, pois estava abrindo as portas para o que mais desejava: estudar. 65 Quando morava no interior, não consegui completar o curso primário. Tive que me matricular no Colégio Salesiano para fazer o exame de admissão. Estudava à noite, trabalhava de dia. 12083517 J Marinho miolo.indd 65 25/11/2010 16:09:05 66 No final do ano, entrei no ginásio. Daí pra frente fui embora direto. Tudo começava a mudar e eu descobria minha direção. O que ganhava no comércio dava para pagar a pensão e o colégio e ainda sobrava dinheiro. Comprei a prestação meu primeiro terno – um terno de tropical, azul-marinho, Aurora. E mergulhei fundo nos estudos. Durante o dia, trabalhava no comércio, e à noite ia para o colégio. Quando tinha deveres para fazer em casa, acordava às cinco horas da manhã, ia para um alpendre que tinha na pensão e ali ficava estudando até as cinco horas. Às cinco tomava café, andava a pé uns quinze minutos e às oito estava na loja pra trabalhar. Fiz todo o ginásio neste sistema. Ao começar o segundo grau, no Colégio Carneiro Leão, estava com 22 anos, já tinha saído da loja e trabalhava para uma firma do Rio de Janeiro como vendedor de perfumarias. Essa companhia, Dyrce Industrial S/A, me convidou para ser caixeiro-viajante no Estado da Bahia. Eu topei e tranquei o colégio. Vim para Salvador, de lá fui para Ilhéus. Viajava por todo o interior da Bahia. A essa altura, a companhia me chama para fazer um estágio na matriz, no Rio de Janeiro. Comprei a passagem pela Real Aerovias, saindo de Jequié. Era um sábado e no avião pegamos um temporal na altura do Espírito Santo. O avião 12083517 J Marinho miolo.indd 66 25/11/2010 16:09:05 balançava muito. Na entrada da porta que dá para a cabine do comandante uma placa dizia que aquele avião tinha conduzido a imagem de Nossa Senhora de Fátima quando esteve no Brasil. Aí eu disse: Ah, não vai cair não! Descoberta do Rio Cheguei ao Aeroporto Santos Dumont, peguei um táxi e fui para um hotel que ficava na Rua dos Andradas, onde hoje é um motel de alta rotatividade. A firma ficava na mesma rua lá embaixo, depois da Avenida Presidente Vargas. O estágio na companhia deveria durar um mês. De vez em quando vinha um diretor e falava algumas coisas de venda, que não me mobilizavam. Então eu conheci o Rio, o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, aproveitei para conhecer tudo, andei de bonde para cima e para baixo. O ano era 1956. Fui de bonde até Ipanema e voltei. Me lembro que achei longa a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Chegava na Cinelândia no sábado à noite e parecia uma festa, era muita gente de terno e gravata. A Cinelândia era tomada por salas de exibição, uma atrás da outra – desde a esquina onde fica o Odeon até o famoso bar Amarelinho, na Rua Alcindo Guanabara. Além de ver filmes e mais filmes, assisti a várias peças de teatro ali. Achei fantástico tudo aquilo! 12083517 J Marinho miolo.indd 67 67 25/11/2010 16:09:05 68 Quando voltei para a Bahia mudaram meu território de vendas, e passei a viajar para Aracaju, capital de Sergipe. Conheci Aracaju e depois fui de cidade a cidade até Salvador, onde ficaria baseado. Com tantas viagens pelo interior, não deu para estudar naquele ano. Mas no ano seguinte me matriculei no Colégio Ipiranga de Salvador, instalado numa casa que fora da família de Castro Alves – ainda tinha o quarto onde o poeta morreu. O colégio ficava na Ladeira do Sodré, na Cidade Alta. Foi lá que fiz o primeiro ano do curso clássico. Em março, a firma me dispensou. Tranquei a matrícula e voltei para Recife. Para não perder o ano, me matriculei no Colégio Padre Félix, em Recife. No segundo ano clássico, voltei para o Carneiro Leão, onde tinha começado. Enfim, fiz o segundo e o terceiro anos no tradicional Colégio Estadual de Pernambuco. Concluí o ensino secundário no Colégio Estadual de Pernambuco em dezembro de 1959. Nesse colégio, que se chamava então Ginásio Pernambucano, conheci professores muito interessantes. Moacir de Albuquerque, o professor de Literatura Brasileira, me estimulou a ler e refletir sobre os autores brasileiros. Com o historiador Amaro Quintas passei a me interessar pela história do Estado de Pernambuco. Em Física, o mestre era Luiz Inácio, e em Matemática, Estelita Lins. 12083517 J Marinho miolo.indd 68 25/11/2010 16:09:05 Capítulo II Arte e Política na Universidade Fiz vestibular para Direito no início de 1960 e fui reprovado porque não tinha estudado bastante. Durante o segundo semestre de 1960, resolvi fazer o curso Torres, curso tradicional de Recife preparatório para o vestibular de Direito, onde fui colega de muitos estudantes que hoje são advogados famosos em Recife. Tentei mais uma vez o vestibular de Direito e fui reprovado novamente. Mas ao mesmo tempo também fiz vestibular para a Escola de Belas Artes, para a área de artes dramáticas. Passei e resolvi seguir a carreira de ator e diretor: dramaturgia. Como já estava ligado ao teatro, através do Teatro Adolescente do Recife e do Teatro Popular de Cultura, não voltei mais a tentar o vestibular de Direito. Fiquei nessa área como professor de dramaturgia do curso de cinema da Universidade Federal Fluminense e ator de teatro, cinema e televisão. 69 Na universidade conheci pessoas que se tornaram meus amigos, como Lúcio Lombardi, hoje diretor do espetáculo sacro de Nova Jerusalém, que acontece todos os anos em Fazenda Nova, no agreste pernambucano, e Dolores Maciel, pianista e professora de música da Universidade Federal de Pernambuco. Conheci também o hoje 12083517 J Marinho miolo.indd 69 25/11/2010 16:09:05 Turma do Curso Torres, preparatório do vestibular de Direito - Recife/PE, 1960 12083517 J Marinho miolo.indd 70 25/11/2010 16:09:05 José Marinho, Dolores Portela, João Bosco de Moraes, Susana Arcoverde, José Ary Mariz, Damianda Von Liebig: foto tirada na posse do diretório acadêmico da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco/ PE, 1962 12083517 J Marinho miolo.indd 71 25/11/2010 16:09:05 publicitário João Bosco de Moraes, com quem compus uma chapa para o diretório acadêmico. Fui eleito secretário e, posteriormente, com a renúncia do Bosco, me tornei presidente do diretório durante um bom período do mandato. Nessa militância acadêmica na universidade, me aproximei de outras pessoas que participavam do movimento estudantil em outras escolas. Uma delas era Roberto Chabo, aluno de Medicina que acabaria vindo para o Rio de Janeiro, onde foi presidente do sindicato dos médicos. Chabo, que militava no Partido Socialista, fez parte da equipe de Santino Lyra, criador da Associação Brasileira de Nefrologistas. 72 Ainda no movimento estudantil, me aproximei de outro militante que se tornou uma grande liderança política, o atual senador Marco Maciel. Ele começou sua militância ainda no colégio e depois na faculdade de Direito, onde foi diretor cultural do diretório. Promoveu diversos seminários sobre cultura, inclusive um com professores da Sorbonne sobre literatura francesa, além de outros sobre cultura brasileira. Depois foi eleito presidente do diretório central dos estudantes. Nós, os militantes de esquerda, fizemos uma coligação com Marco, que era de centro, e trabalhamos junto com ele durante três anos na política estudantil. Passávamos noites em claro discutindo formações de chapas para cada dire- 12083517 J Marinho miolo.indd 72 25/11/2010 16:09:05 tório da universidade. Assim Marco exercia sua militância na política estudantil, onde nunca perdeu uma eleição. O curso de artes dramáticas da Universidade Federal de Pernambuco foi estruturado por professores que vinham da área de Filosofia e Letras, como Ariano Suassuna, Joel Pontes, Hermilo Borba Filho e Gastão de Holanda. Estes intelectuais trouxeram para o curso a parte mais reflexiva da história da dramaturgia, da estética, e enriqueceram a nossa educação com aulas sobre as literaturas grega, romana, medieval, moderna, portuguesa, brasileira e francesa. Na área prática do curso, tínhamos disciplinas ligadas à expressão corporal, técnica vocal, direção teatral, interpretação, indumentária e maquiagem. Essa estrutura levou o curso a ser reconhecido pelo Ministério da Educação com o nível de bacharelado em artes dramáticas. 73 A universidade ampliou o meu conhecimento da história da cultura. Além da convivência com esses mestres, havia também os professores e alunos das outras áreas, como música, artes plásticas, pintura, desenho, modelagem e arquitetura. Tudo isso compunha o universo estético da escola. Na realidade, se tratava de um curso dado por artistas para jovens artistas e criadores de novas formas de linguagem. 12083517 J Marinho miolo.indd 73 25/11/2010 16:09:05 74 A Chegada ao Teatro Em Recife, eu morava numa pensão na Rua da Aurora, em cima da sorveteria Guemba. Tinha muitos colegas e entre eles um que se tornou meu amigo pelo resto da vida, o jovem ator e futuro diretor Luiz Mendonça. Ele morava na pensão, era funcionário da Secretaria da Fazenda e já trabalhava em teatro em Recife, às vezes, até em grupos profissionais como jovem galã. Os pais dele, seu Epaminondas Mendonça e dona Sebastiana, tinham criado um espetáculo chamado A Paixão de Cristo, encenado anualmente no povoado de Fazenda Nova, município de Brejo da Madre Deus, no agreste pernambucano. Hoje esse espetáculo, de reputação consolidada, é encenado na Semana Santa num local específico chamado Nova Jerusalém, criado pelo cunhado do Luiz Mendonça, Plínio Pacheco. Tornou-se com o tempo uma atração turística e hoje é feito com participação especial de atores da TV Globo. Quando conheci Mendonça, o espetáculo de Nova Jerusalém era uma coisa embrionária. Era realizado todos os anos, mas de forma precária e o próprio povoado servia de cenário. O Mendonça me levou para assistir à encenação pela primeira vez em 1955. Eu me tornei o contrarregra oficial, de 1955 até 1962. Nesse ano o espetáculo foi suspenso para a construção da cidade de Nova Jerusalém, por iniciativa de Plínio Pacheco, 12083517 J Marinho miolo.indd 74 25/11/2010 16:09:05 sargento da Aeronáutica e jornalista que se casou com a irmã do Luiz Mendonça, Diva, caçula da família. Diva era uma jovem bonita, loira de olhos azuis, uma holandesa no agreste pernambucano. Ela continua em Nova Jerusalém, com seu filho Robson, hoje produzindo anualmente o espetáculo com grande afluência de turistas, não só de Pernambuco como do Brasil inteiro e, às vezes, do exterior. Esse meu vínculo com Mendonça foi me aproximando do teatro. Costumávamos assistir no Teatro Santa Isabel a todas as apresentações de companhias do Rio e de São Paulo que faziam temporada em Recife. Assisti Cacilda Becker, representando Pega-Fogo, e Paulo Autran interpretando Otelo num julgamento simulado promovido pelo Pascoal Carlos Magno, com a participação de dois juristas famosos como acusador e defensor: Evandro Luiz e Silva e Carlos de Araújo Lima. Assisti também a concertos de pianistas estrangeiros. Fui me educando na música clássica, no teatro, e gostando cada vez mais. Um dia, Luiz Mendonça me chamou para assistir ao curso de Maria José Campos Lima, uma jovem pernambucana que fazia curso de teatro na Escola de Arte Dramática de São Paulo, dirigida pelo saudoso Alfredo Mesquita. Essa escola marcou época na geração de atores paulistas e hoje está incorporada à Escola de Comunicações 12083517 J Marinho miolo.indd 75 75 25/11/2010 16:09:05 e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, na qual eu viria a estudar depois durante o meu mestrado na USP. Fiz algumas disciplinas com Clóvis Garcia e Bárbara Heliodora. 76 Nesse curso, Maria José falava do sentido de teatro, da Escola de Arte Dramática de São Paulo e da formação profissional. O rigor da disciplina do ator, a postura, a voz, o ritmo. Ela nos dava noções básicas do ensino da arte dramática. Isso durou mais ou menos um mês, quando terminaram as férias e ela voltou pra São Paulo. Nas férias seguintes, quem ocupou esse espaço, no mesmo local, o Colégio Estadual de Pernambuco, foi o dramaturgo Ariano Suassuna. Na época, ele estava terminando de escrever o Auto da Compadecida, e em cada ensaio levava cenas da peça para que ensaiássemos. Cheguei a ser escalado para fazer o personagem Severino de Aracaju. Isso foi em 1956. Desse curso nasceu um dos grupos mais expressivos do teatro pernambucano na época. Ariano Suassuna e Luiz Mendonça reuniram estudantes desse colégio e de outros para formar o Teatro Adolescente do Recife, já que todos eram muito jovens ainda. Ariano foi eleito o presidente e Luiz Mendonça o diretor artístico. Montaram o Auto da Compadecida sob a direção de Clênio Vanderley e vieram para o festival de teatro promovido pela Fundação Dul- 12083517 J Marinho miolo.indd 76 25/11/2010 16:09:05 cina de Moraes no Rio de Janeiro. Participaram do festival e ganharam o primeiro lugar. A peça foi muito aplaudida e os jornais e suplementos dominicais não pouparam elogios a Ariano Suassuna. Surgia no teatro brasileiro uma nova linguagem teatral, popular, mas inspirada na comédia clássica – a de Aristófanes na Grécia, Plauto em Roma, Goldoni na Commedia dell´arte e Molière na comédia francesa. Eu estava afastado, na Bahia. Voltei para Recife em 1957 e me filiei ao grupo automaticamente, mas comecei fazendo pequenos papéis, já que era muito tímido e ligado às funções de contrarregra e administração. Esse grupo se tornou o Teatro Popular de Cultura (TPC), quando nos ligamos ao Movimento de Cultura Popular (MCP), por volta de 1960. Aí trabalhamos até 1964, quando houve o golpe militar e fomos acusados de subversivos. O grupo foi encerrado e seus participantes tiveram que se virar. Uns ficaram em Recife e continuaram estudando nas suas faculdades, outros vieram para o Rio ou São Paulo. Luiz Mendonça e Ilva Niño vieram para o Rio de Janeiro, logo após o golpe. Tudo foi feito depois de fecharmos o grupo e prestarmos contas à fundação do MCP. Para isso fomos apoiados pelo escritor Ariano Suassuna, que nos acompanhou na prestação de contas para evitar que fôssemos presos. Luiz viajou em seguida para 12083517 J Marinho miolo.indd 77 77 25/11/2010 16:09:05 o Rio, com Ilva. Eu e José Wilker, depois de uma temporada ainda em Recife, resolvemos ir para o Rio, onde chegamos em setembro de 1964. Aqui nos reunimos com Mendonça e fundamos o grupo teatral Chegança, que Mendonça dirigiu até morrer em 1995. 78 Com Mendonça, trabalhei em diversos momentos. Primeiramente, na montagem de As Incelenças, de Luis Marinho Falcão, com direção de Luiz Mendonça, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, dirigida pelo Carlos Vereza. Voltei a trabalhar com Mendonça em 1973, numa remontagem das Incelenças e na encenação de outra peça de Luis Marinho, A Afilhada de Nossa Senhora da Conceição. Dessa montagem, saíram atores como Tonico Pereira, Tânia Alves e Imara Reis. Posteriormente, em 1974, a montagem de Viva o Cordão Encarnado, também do Luiz Marinho, revelaria Elba Ramalho, hoje grande cantora da música popular brasileira. Entre os muitos atores e atrizes que trabalharam conosco não poderia deixar de citar Ilva Niño, que continuou atuando na televisão e no teatro e comprou um espaço próprio na Rua Mem de Sá, na Lapa, onde fundou o Centro Cultural Niño de Arte Luiz Mendonça, em homenagem ao marido Luiz Mendonça e ao filho Luis Carlos Niño, ambos de saudosa memória. 12083517 J Marinho miolo.indd 78 25/11/2010 16:09:05 José Marinho na peça As Inselenças, Teatro de Arena da Guanabara, Largo da Carioca/RJ 1973 12083517 J Marinho miolo.indd 79 25/11/2010 16:09:05 José Marinho na peça As Inselenças - Teatro de Arena da Guanabara, Largo da Carioca/RJ, 1973 Peça As Inselenças: Teatro de Arena da Guanabara, Largo da Carioca/RJ, 1973 12083517 J Marinho miolo.indd 80 25/11/2010 16:09:06 Movimento de Cultura Popular Em 1958 houve uma virada política em Pernambuco. O advogado Cid Sampaio foi eleito governador numa coligação da UDN com outros partidos. Essa vitória foi festejada com muito entusiasmo, pois a UDN nunca havia conquistado o governo estadual. Foi chamado o ano da virada, título de um frevo de Nelson Ferreira, cantado e dançado no carnaval de 1959. No grupo que apoiava Cid Sampaio, estava o economista Miguel Arraes de Alencar, que se candidata em 1959 à Prefeitura de Recife. Foi eleito e já na organização do governo o professor Germano Coelho, da Universidade Católica de Pernambuco, propôs a criação de uma fundação educacional fora dos padrões tradicionais do ensino regular. Germano estudara na França onde manteve contato com um padre que trabalhava em um projeto nessa direção. Germano propôs ao Prefeito Miguel Arraes a criação desse movimento, contando com o apoio de professores como Paulo Freire e Anita Paes Barreto, entre outros educadores pernambucanos. O movimento foi organizado e Luiz Mendonça foi convidado para dirigir a Divisão de Teatro. O que fizemos então? Incorporamos o Teatro Adolescente no movimento com o nome de Teatro Popular de Cultura (TPC). O Movimento de Cultura Popular 12083517 J Marinho miolo.indd 81 81 25/11/2010 16:09:06 abrangia diversas áreas, a principal era a educação, seguida por esporte, cultura popular, teatro e, se não me engano, também tinha uma divisão de saúde. 82 Mendonça assumiu a Divisão de Teatro e formou o grupo, convidando pessoas que já trabalhavam no Teatro Adolescente ou não. Nesse grupo, todos nós ganhávamos um salário mínimo e, dependendo das funções, às vezes até um pouco mais. Era um dinheiro que dava para nos mantermos e continuar fora do grupo estudando, pois muitos de nós fazíamos faculdade ou ainda colegial. A Divisão de Teatro tinha como orientação montar espetáculos ligados à cultura popular e voltados para a problemática social da época. Dentro deste tema, montamos pela primeira vez As Incelenças e A Afilhada de Nossa Senhora da Conceição, de Luiz Marinho. Nós participávamos dos festejos natalinos e juninos do Recife através de apresentações de grupos folclóricos da cultura regional. Assim, no Natal eram convidados os grupos de pastoris, inclusive o grupo dos irmãos Valença, um dos mais famosos e tradicionais de Recife. E participávamos de todas as manifestações populares relacionadas com as festas natalinas. Em média eram duas semanas de festas com espetáculos todas as noites com portões abertos. 12083517 J Marinho miolo.indd 82 25/11/2010 16:09:06 A apresentação dos espetáculos era no sítio Arraial do Bom Jesus, onde se travou uma das grandes batalhas dos portugueses contra os holandeses. Nesse local foi montado um teatro em forma de concha acústica, estilo teatro grego. Então eram convidados violeiros do Nordeste, sanfoneiros, inclusive Luiz Gonzaga, que cantou lá diversas vezes. Tudo isso se repetia nas festas de São João, em junho e em julho. Só que agora com as manifestações populares ligadas às festas juninas. Nas festas, além dos espetáculos, eram montadas barracas de comidas típicas da época. Era um entrosamento muito bonito entre o povo e os artistas populares. Eu, Luiz Mendonça e Aluísio Falcão éramos os locutores oficiais dessas festividades. Era um trabalho que terminei fazendo nos desfiles de carnaval na Avenida Conde da Boa Vista todos os anos. Era sempre convidado também para fazer a locução da Missa do Galo na praça do Derby, realizada anualmente pelo Arcebispo de Recife. Mais tarde José Wilker também se tornou um destes locutores de pista. 83 Os estudantes convidados pela Divisão Educacional do MCP para a aplicação do método Paulo Freire no interior do Estado tinham ou cursavam o segundo grau ou até mesmo universidade. Nenhum professor de carreira do Estado podia participar do programa. O Governo se interessava 12083517 J Marinho miolo.indd 83 25/11/2010 16:09:06 em aproveitar jovens sem formação nos sistemas de ensino tradicionais. O grupo de educadores ia pelos engenhos da Zona da Mata alfabetizando os camponeses nos intervalos entre o final do dia de seu trabalho e a ida a casa para jantar. Às vezes até algumas turmas eram formadas à noite, após o jantar dos camponeses. O nosso grupo de teatro apresentava os espetáculos nesses locais. Após a encenação, havia sempre um debate com a plateia. Assim, o grupo se integrava ao sistema educacional como um todo. 84 Nesse momento o nosso grupo se dividiu em dois. O pessoal que montava espetáculos para ir ao interior ficou sob direção de Luiz Mendonça. Eu fiquei com a direção do grupo que montava espetáculos para apresentações nos ciclos operários nos bairros de Recife. Dentro deste projeto, montei Formiguinho, peça de Arnaldo Jabor, que na época pertencia ao CPC da UNE. Essa peça foi um sucesso entre os operários e a população pobre dos subúrbios de Recife. Nosso núcleo era um bairro de operários, o Dois Unidos, onde recrutei todo o elenco entre os filhos dos moradores locais. No governo de Agamenon Magalhães, foi implantado nos bairros da capital um programa comunitário que tinha caráter social e artístico. Em cada bairro, era montado um pequeno teatro 12083517 J Marinho miolo.indd 84 25/11/2010 16:09:06 com plateia e palco, que serviam para reuniões das associações de moradores e eventos sociais daquelas comunidades. Aproveitando esses espaços, fazíamos os nossos espetáculos. Alguns atores que se destacavam nesses trabalhos eram convidados a participar do nosso núcleo central. Quando entrei no MCP, estava cursando a Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco, hoje Instituto de Artes, e participando também da política estudantil universitária. Essa atuação junto à política estudantil e ao MCP foi me conduzindo a uma convivência com o pessoal de esquerda, de Ação Popular e do Partido Comunista Brasileiro. Em 1962, me filiei à juventude comunista e me liguei à base política da Divisão de Teatro do MCP. Aí fui sendo eleito em diferentes funções e cheguei a secretário-geral da base, em 1964. No início de 1964, o partido promoveu em Recife um congresso de todas as bases do MCP. Fui eleito para presidir o congresso, secretariado pela colega, hoje professora universitária, Liana Aureliano. Nesse congresso nós tiramos um documento com as diretrizes do Movimento Cultural Popular para os próximos anos. Nada disso aconteceu: o golpe militar acabaria com tudo. Parece que foi editado em Pernambuco um livro que conta a história deste congresso. 12083517 J Marinho miolo.indd 85 85 25/11/2010 16:09:06 Arena e MCP. A partir de 1961, o Teatro de Arena começou a fazer excursões pelo Nordeste levando montagens feitas em São Paulo. Na época o Arena era dirigido pelo Augusto Boal e tinha no elenco Nélson Xavier, Lima Duarte, Juca de Oliveira, Gianfrancesco Guarnieri, Dina Sfat, Milton Gonçalves, Joana Fomm e outros artistas igualmente importantes. O Arena ia quase anualmente ao Recife. O Governo Arraes, dentro de uma política de apoio ao teatro, oferecia hospedagens ao grupo. De Recife, onde estava sediado, o Arena viajava nos fins de semana para capitais como João Pessoa, Maceió, Fortaleza, onde apresentava espetáculos. 86 Além da temporada que no Teatro Santa Isabel e na Concha Acústica do MCP, o Arena desenvolvia outras atividades. Boal indicava atores como Nélson Xavier ou Mílton Gonçalves para dar cursos de interpretação. E ele próprio se encarregava de promover seminários de dramaturgia de textos. Também falava das teorias de interpretação, principalmente de Bertolt Brecht. Essa presença do Arena deu ao nosso grupo um panorama mais amplo da cultura teatral, indicando novas fontes de informações sobre a história do teatro e a sua prática. Quando Nelson Xavier demonstrou interesse em ficar uma temporada conosco, tivemos que propor ao governador Miguel Arraes uma contratação fora dos padrões tradicionais 12083517 J Marinho miolo.indd 86 25/11/2010 16:09:06 do MCP. Xavier ficou conosco mais ou menos um ano, trabalhando com dramaturgia do ator. Além de cursos internos, ele dirigiu a montagem de Julgamento em Novo Sol, peça de Augusto Boal, Hamilton Trevisan, Modesto Carone, Benedito Araújo e Nelson Xavier. Do lado do MCP, houve a montagem de As Incelenças, sob a direção de Luiz Mendonça, e formamos juntamente com o Julgamento em Novo Sol um repertório para viagens a Brasília e ao Rio de Janeiro, o que fizemos durante o mês de fevereiro de 1963. Viajei para Brasília no avião que levou os deputados federais e senadores que tinham ido a Recife assistir à posse de Arraes. Em Brasília, fiquei preparando a vinda do grupo uma semana depois. Consegui o teatro da Escola Parque de Brasília para apresentação dos espetáculos. Divulguei nos jornais (o Correio Braziliense fez uma cobertura muito boa, com matérias de página inteira). As apresentações em Brasília foram um sucesso. Além das Incelenças e do Julgamento de Novo Sol, tínhamos no repertório a peça infantil de Maria Clara Machado, A Volta do Camaleão Alface, cujo papel-título era feito pelo José Wilker. Esse espetáculo infantil foi apresentado inclusive no Palácio da Alvorada para a família do Presidente Jango. Lembro que na plateia estavam a primeira-dama, Dona Tereza Goulart, e seus filhos. 12083517 J Marinho miolo.indd 87 87 25/11/2010 16:09:06 Após a temporada de Brasília, viajamos para o Rio de Janeiro. Apresentamos duas peças no antigo Teatro Nacional de Comédia, na Avenida Rio Branco, onde está hoje o Teatro Glauce Rocha. O sucesso aí foi absoluto. Jornais do Rio recebiam com muito entusiasmo nosso espetáculo, destacavam uma juventude que apresentava uma nova forma de teatro, representativo da realidade brasileira daquele momento sem radicalismos políticos. Lembro que o jornal Para Todos deu uma longa matéria de página inteira analisando os dois espetáculos: As Incelenças e Julgamento de Novo Sol. 88 Voltamos para Recife cobertos de glórias e com possibilidades de ser convidados pelo Itamaraty para representar o Brasil no festival de Nancy, na França, o que não aconteceu por problemas políticos posteriores. Nossas viagens Recife – Brasília – Rio – Recife foram feitas em aviões da Força Aérea Brasileira. Nessa época, a FAB transportava tanto estudantes para congressos (como os da UNE) como grupos teatrais de estudantes como o nosso, ligado então ao governo de Pernambuco. Arraes e o MCP Nosso grupo pensava que o futuro ia mais longe do que realmente foi. O planejamento era de longo prazo. Mas o governador Arraes, que 12083517 J Marinho miolo.indd 88 25/11/2010 16:09:06 nos apoiava, ficou no poder apenas um ano e pouco. Foi um impacto sua derrubada, já que pretendíamos desenvolver o projeto por mais quatro anos. Nosso pessoal só passou a se preocupar, de fato, com o golpe militar em abril de 1964, quando as coisas se complicaram no nível federal, principalmente no Rio de Janeiro. Foi a partir daí que as coisas começaram a refletir em Pernambuco e chegar até nós. O poeta Ferreira Gullar visitou Recife naquela época para lançar seu livro Cultura Posta em Questão, promovido pela editora do CPC da UNE. Junto com Miguel Nilton Arraes, presidente do MCP, fui incumbido de apresentar Gullar ao prefeito e ao governador. Depois, teria de apresentálo à direção do MCP. Fomos primeiro ao prefeito, Pelópidas Silveira, e em seguida ao Palácio do Governo. Quando chegamos ao palácio, Arraes já tinha encerrado o expediente e se recolhido aos seus aposentos. Mas o Miguel Nilton, que era seu primo e amigo, pediu que o chamassem para nos receber. Arraes desceu ao gabinete, conversou com Ferreira Gullar, perguntou pelo Nelson Xavier, de quem gostava muito, apresentou-nos um layout do cartaz de um ano de governo, e enquanto conversávamos entrou o chefe de gabinete com uma correspondência urgente: era um convite da Associação de Cabos e Marinheiros 12083517 J Marinho miolo.indd 89 89 25/11/2010 16:09:06 para uma reunião na semana seguinte. Arraes determinou ao chefe do gabinete que mandasse o capitão-chefe da guarda militar representá-lo na tal reunião. E comentou conosco: Vejam em que país estamos. Cabos e marinheiros fazendo reuniões! Isso nos mostrou a preocupação de Arraes com a política naquela conjuntura. 90 Em outra ocasião, o pessoal encarregado de trabalhar com educação no interior aplicando o método Paulo Freire teve que interrompê-lo por ordem da Secretária Estadual de Educação, Anita Paes Barreto. Suspensos os trabalhos, Arraes chamou a liderança do movimento para discutir um problema ligado à relação da política com a educação. Um colega nosso, Hugo, que era um dos líderes do grupo do PCB, colocou o problema: Dr. Arraes, nós estávamos trabalhando normalmente nos engenhos, junto aos camponeses, quando a Dra. Anita mandou parar nosso trabalho dizendo que nós, no lugar de educarmos, estávamos agitando. Arraes o interrompeu: E não estavam mesmo? Mais uma vez percebi a amplitude da preocupação de Arraes com proselitismo político e o modo como isso interferia na sua administração. Quando estreamos com a peça O Julgamento de Novo Sol no Teatro Santa Isabel, o governador foi assistir. Ao final do espetáculo, aplaudiu e 12083517 J Marinho miolo.indd 90 25/11/2010 16:09:06 chorou. Ele perguntou: Qual é a intenção de vocês daqui para a frente? Em que lugares pretendem apresentar essa peça? E nós falamos: Junto aos camponeses, nos engenhos. Ele observou, preocupado: Não. Não quero que vocês provoquem agitação junto ao movimento camponês. Essa peça pode ser apresentada nos bairros de Recife junto aos operários sindicalizados e organizados pacificamente, nunca aos camponeses. Arraes foi um político que nos deixou muitas saudades. Nacionalista, socialista e com uma visão histórica sempre adequada ao momento político brasileiro. Cabra Marcado para Morrer A produção de Cabra Marcado para Morrer era uma iniciativa do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE com apoio do Movimento de Cultura Popular, em Pernambuco. Eduardo Coutinho e Marcos Farias estiveram lá para estudar locações e fazer contatos com a direção do MCP no sentido de apoiar a produção do filme. Coutinho voltou com Marcos para o Rio e nós, do MCP, procuramos o Arraes durante um evento esportivo para falar sobre o projeto do filme. Arraes perguntou apenas por que o filme seria só sobre Pedro Teixeira (líder camponês assassinado na zona canavieira da Paraíba). Arraes ouviu e disse: Não gosto que façam distinção 12083517 J Marinho miolo.indd 91 91 25/11/2010 16:09:06 entre Pedro Teixeira e os outros camponeses. O Pedro foi um líder, mas todos são trabalhadores e estão na mesma luta. Não me agrada a criação de heróis. Isso mostrava como Arraes evitava destacar heróis entre o povo trabalhador ou mesmo, no caso dos marinheiros, entre os militares subordinados. Ele não gostava de mitos. Mesmo quando a grande imprensa do Sul e até do Nordeste se referia a ele como mito do povo pernambucano, Arraes recusava o título, dizia que era apenas um joão-ninguém. 92 Eduardo Coutinho voltou para filmar durante o carnaval de 1964. Eu estava na pista do desfile fazendo a locução, quando a equipe de produção chegou. Eles foram convidados para assistir ao desfile no palanque da Prefeitura. Lembrome bem da presença de Sérgio Sanz, Cecil Thiré, Fernando Duarte (fotógrafo), entre outros assistentes de produção e direção, incluindo Nelson Xavier. Até hoje não sei bem por que ele estava ali. Devia estar apenas de visita, porque não demorou muito em Recife. Xavier, que é apaixonado pelo Nordeste e por sua música, ficou atento à musicalidade da escola que estava passando na hora: o Clube das Pás Douradas. Tinha um tocador de cuíca maravilhoso e o Xavier me pediu, gritando do palanque, que aproximasse o microfone ao máximo da cuíca para ele ouvir 12083517 J Marinho miolo.indd 92 25/11/2010 16:09:06 a musicalidade do instrumento. O músico parou na frente dele e caprichou na cuíca. Eu coloquei o microfone praticamente dentro da cuíca, por baixo, e o Xavier no final aplaudiu. Nesse carnaval trabalhei com alegria e prazer, pois me realizava como locutor e como carnavalesco. De carnavais anteriores, só lembro que trabalhava na Rua do Rangel e morava no bairro de São José. Morava numa pensão na Rua do Alecrim, paralela à Rua Augusta, famosa pelos seus carnavais. São José sempre foi um bairro carnavalesco: até hoje grandes blocos pernambucanos se localizam lá. O maestro Nelson Ferreira homenageia em um frevo o bairro de São José, onde ele morava e criava os filhos. Rua das Águas Verdes, Rua das Calçadas, Rua São João, Voluntários da Pátria, Pátio de São Pedro, toda essa área está lá intacta, menos as ruas Augusta e Alecrim, derrubadas para a construção da Avenida Dantas Barreto. É o progresso destruindo a memória e a beleza da cidade. 93 A equipe do Cabra Marcado para Morrer desembarcou em Recife em pleno carnaval, e viajou depois para o Engenho Galileia, no município de Vitória de Santo Antão, onde começaram as filmagens. No dia 1o de abril tiveram que sair correndo de lá para não ser presos pelo Exército, por ordem do Comando da 4ª Região Militar. 12083517 J Marinho miolo.indd 93 25/11/2010 16:09:06 94 O golpe militar acontecera. Isso causou um vexame muito grande, um impacto não só junto ao pessoal do filme, como entre nós, do MCP. Todos aqueles com alguma liderança (política, administrativa, artística) tiveram que se esconder para não ser presos. Eu, no MCP e como secretário da base da Juventude do Partido Comunista, tive que ir à casa de diversos companheiros pedir para eles se esconderem em qualquer lugar, menos na própria casa, evitando sempre endereços conhecidos. A partir daí se instalou no País o regime ditatorial que durou vinte anos. Quando retomou o projeto de Cabra Marcado para Morrer, em 1983, Eduardo Coutinho resgatou muitos desses momentos vividos pela militância e os camponeses em Pernambuco. Para Onde Fugir? Durante a minha atividade no Movimento de Cultura Popular, escrevi alguns artigos sobre teatro popular nos suplementos dominicais do jornal Última Hora de Recife. Um vizinho meu, policial, um dia chegou à minha porta para comunicar que tinha visto meu nome nos jornais como membro da Associação Brasil-Rússia e que todas as pessoas que constavam naquela lista deviam comparecer para prestar depoimentos. Caso não se apresentassem, seriam presos. Saí de casa e fui para casa de um irmão, onde fiquei 12083517 J Marinho miolo.indd 94 25/11/2010 16:09:06 alguns dias. De lá, fiz contatos por telefone com Luiz Mendonça, que era o diretor da área de teatro do MCP. Pouco antes do golpe ele tinha recebido verbas para excursionar pelo interior fazendo espetáculos nos engenhos junto com o pessoal da educação que alfabetizava os camponeses com o método Paulo Freire. Os espetáculos eram feitos numa área livre perto dos engenhos no final da jornada de trabalho. Em seguida entrava o pessoal da educação para dar aulas. Luiz tinha recebido dinheiro para despesas de viagem e precisava prestar contas na tesouraria do MCP. Eu telefonei para o escritor Ariano Suassuna e ele se ofereceu para ir comigo e Mendonça na sede, no Arraial do Bom Jesus, onde prestaríamos conta sem ser molestados. Na direção do MCP já estava o novo diretor, o professor Carlos Frederico Maciel, amigo e compadre do Ariano. O antigo diretor, José Nilton Arraes de Alencar, primo do Arraes, fugira com medo de ser preso, e o novo governo, já sob a direção de Paulo Guerra, tinha feito uma intervenção e nomeado o novo diretor. 95 Esse diretor fora meu professor de filosofia no curso clássico. Ele parecia uma pessoa amigável, que não pretendia perseguir ninguém. Notei a diferença quando chegamos lá. O tesoureiro antigo era José Marques de Mello, na época 12083517 J Marinho miolo.indd 95 25/11/2010 16:09:06 estudante de comunicação na Universidade Católica de Pernambuco. Ele já não exercia mais a função. O substituto recebeu nossa prestação de contas e por aí encerramos a relação com o Movimento de Cultura Popular. José Marques de Mello veio depois para São Paulo, se tornou professor de jornalismo na Universidade de São Paulo (USP), onde chegou a diretor da Escola de Comunicações e Artes. Reencontrei-o anos depois na ECA, quando fui fazer o mestrado. 96 Aproveitei a oportunidade e manifestei a Ariano preocupação com meu nome nos jornais. Pedi conselho: o que devia fazer – comparecer e prestar esclarecimentos ou fugir para não ser preso? Ariano respondeu em tom de brincadeira: Marinho, se você deve à polícia, alguma coisa tem que esclarecer. Caso contrário, a obrigação dela é te prender e a tua obrigação é se esconder. Como eu sei que você não deve nada, eu, sendo você, me escondia. Foi exatamente o que fiz. Fui para a cidade de Monteiro, no sertão paraibano, e fiquei lá mais de um mês na casa do meu tio Januário. Era o sítio da minha avó, onde eu tinha morado quando era pequeno. Passei lá uma temporada muito agradável. Todos os dias ia à casa da minha avó. Ela me oferecia melancia, uma melancia doce que só mel. Durante a estadia na casa do meu tio, eu ouvia um 12083517 J Marinho miolo.indd 96 25/11/2010 16:09:06 rádio de pilha grande, que captava estações das cidades do Pajeú, principalmente de Afogados das Ingazeiras. Através dessa estação ouvíamos o noticiário sobre o que acontecia em Brasília. Após um mês e pouco, me mudei para a casa da minha irmã Tereza, em Sertânia. Passava as tardes conversando na barbearia ou com o padre Monsenhor Urbano de Carvalho, o tabelião Valdemar Cordeiro e o promotor público (meu primo) Aristóteles Siqueira Campos. Eu dizia que estava de férias. Logo depois recebi uma carta de meu irmão Jalmacy me comunicando que ninguém tinha me procurado e que tudo parecia mais tranquilo. Voltei para Recife e retomei minha vida. Consultei um amigo advogado e ele recomendou que eu fosse depor, porque eles queriam apenas esclarecimentos. No depoimento, expliquei que minha relação com os soviéticos era apenas cultural, já que a Sociedade Brasil-Rússia pretendia apresentar em Recife o balé Bolshoi e a Orquestra Sinfônica de Moscou, entre outras manifestações culturais. Só uma pergunta me incomodou: o que acha do movimento militar de 1o de abril? Respondi pela tangente. Falei que não tinha militância política e não estava acompanhando as mudanças. O delegado insistiu: Mas você não acha que agora as coisas estão mais calmas do que antes? 12083517 J Marinho miolo.indd 97 97 25/11/2010 16:09:06 De novo, saí pela tangente: É, realmente estão mais calmas. E encerrei meu depoimento. 98 Afastada a ameaça militar, eu tinha outro problema a resolver, mas agora de caráter trabalhista. Era funcionário do Serviço Social contra o Mocambo, um órgão criado no governo Agamenon Magalhães para apoiar os moradores dos bairros pobres em relação às suas moradias, saneamento, etc. Hoje se tornou Secretaria do Serviço Social. Eu trabalhava aí como diretor de teatro nos centros educativos dos bairros operários. Tinha salário e vínculo empregatício. Para sair dessa situação embaraçosa, resolvi me demitir. Quando formalizei o pedido, descobri que fora tachado de ligação com os comunistas. A acusação fora feita pelo motorista que eu tinha à disposição para ir ensaiar os grupos teatrais nos bairros. Então propus que o motorista fosse convocado para esclarecer. Quem fazia as perguntas era o novo diretor do serviço social, um advogado famoso em Recife. O diretor disse que, segundo a informação que tinha, quando voltava dos ensaios aos sábados pela manhã, o motorista não me levava até minha residência, porque eu pedia para ficar na cidade, numa rua próxima à sede do Partido Comunista. Argumentei que ficava ali não era para ir à sede do partido, mas para pegar um ônibus e ir almoçar na casa do meu irmão, que morava e negociava no bairro do Pina. O diretor mandou chamar o motorista, 12083517 J Marinho miolo.indd 98 25/11/2010 16:09:06 mas ele não apareceu: tinha saído para o almoço. Então o diretor decidiu: Fica o dito pelo não dito. A sua palavra contra a dele. Eu lhe convido para continuar trabalhando conosco se lhe interessar. Mas só que em outra função, porque o serviço de teatro nós não vamos mais pôr em prática. Agradeci, mas não pretendia continuar porque nenhum trabalho burocrático me interessaria. Meu projeto era trabalhar com teatro. Ele encerrou o depoimento, assinei o termo de demissão, dei até logo e fui embora. Na época eu estava com o grupo teatral montado no centro operário no bairro de Dois Unidos. Nesse local tinha encontrado uma juventude entusiasmada e foi com essa turma que montei a peça O Formiguinho, do Arnaldo Jabor. Um garoto de 14 anos que fez o personagem Formiguinho e que se tornara meu amigo era também militante político, filho de um líder comunista naquela localidade, Valdemar Araújo. O filho, meu amigo, era Petrúcio Araújo. Não voltei a encontrá-los nem retornei ao bairro com medo de arranjar problemas. Em 1967, quando fui para São Paulo trabalhar no lançamento do filme Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira, casualmente encontrei o Petrúcio, de terno e gravata. Ele era funcionário do Banco Português do Brasil. Reatamos a amizade e terminei por trazê-lo de volta ao teatro tempos depois. 12083517 J Marinho miolo.indd 99 99 25/11/2010 16:09:06 100 Rumo ao Rio em 1964 Passadas as turbulências do golpe de 1964, resolvi vir para o Rio de Janeiro, pois o clima em Recife ainda era pesado. Muitos colegas tinham sido presos e soltos, mas outros continuavam na cadeia ou estavam escondidos. Como militante do PCB, eu receava ser preso a qualquer instante. Andava sempre desconfiado, apesar de ter voltado às minhas atividades anteriores ao MCP, na Livraria Médica Científica. Nessa editora eu vendia livros para médicos e estudantes de Medicina, numa estante instalada pela editora dentro do Hospital Pedro II, que na época era o hospital-escola da Universidade Federal de Pernambuco. Este hospital pertence à rede de hospitais da Santa Casa de Misericórdia. Ficava lá pela manhã. À tarde, ia aos consultórios médicos não só oferecer livros de Medicina, como também de literatura. Os de Medicina estavam em catálogos para importação, na maioria de editoras inglesas, americanas e francesas e os preços vinham em dólar. Os médicos faziam o pedido, a livraria importava e quando os livros chegavam eu voltava aos consultórios pra entregar e fazia a conversão do preço em dólar para dividir o pagamento em prestações. A Livraria Médica Científica tinha a representação da Editora Aguilar, do Rio de Janeiro. Nessa época, a Aguilar começou a fazer lançamento 12083517 J Marinho miolo.indd 100 25/11/2010 16:09:06 de escritores brasileiros e também de clássicos da literatura universal, em papel bíblia. As obras completas de Eça de Queiroz, Machado de Assis ou José de Alencar, publicadas antes em 20, 30 volumes, saíam agora em três a quatro volumes em média. Isso era um sucesso de vendas. Minha vida voltava aos poucos ao normal. O Dr. Matos, proprietário da editora, me convidou para ficar com ele na livraria e passar a trabalhar em outros grupos de teatro para não cessar minha atividade teatral. Parecia uma oferta tentadora. Mas eu queria mais. Então resolvi vir para o Rio de Janeiro. Comecei a juntar dinheiro e procurei o José Wilker. Conversamos e combinamos viajar juntos. Os nossos colegas Luiz Mendonça, Ilva Niño e Leandro Filho já estavam no Rio. Na época, as passagens aéreas eram muito caras. Então resolvemos viajar de ônibus. Com o dinheiro economizado, poderíamos pagar hospedagem até encontrarmos trabalho e um lugar definitivo para morar. Saímos de Recife num domingo à tarde e só chegamos ao Rio na sexta-feira. Passamos uma semana viajando. As estradas eram ruins, na sua maioria não eram asfaltadas e a buraqueira era o normal. À noite o ônibus parava para dormida em algumas cidades. Quem tinha dinheiro, ia para hotel, quem não tinha, dormia no ônibus mesmo. Os hotéis, na sua maioria, 12083517 J Marinho miolo.indd 101 101 25/11/2010 16:09:06 eram péssimos. Com medo de adoecer comendo naqueles restaurantes de beira de estrada, comprávamos nas paradas dos ônibus pão, queijo e refrigerantes, e assim fazíamos nossas refeições. 102 Quando chegamos ao Rio nossa primeira parada foi no Hotel Santa Teresa, na Rua Almirante Alexandrino. Já conhecíamos esse hotel, pois tínhamos nos hospedado nele no início de 1963, quando estivemos na cidade com o nosso grupo teatral. De lá, mudamos para outro na Rua Cândido Mendes, na Glória, onde ficamos mais ou menos uma semana, quando o Wilker foi morar com o Luiz Alberto Sanz, na Rua Senador Vergueiro. Eu procurei meu antigo colega de faculdade, João Bosco de Moraes, que residia em Copacabana, e ele me convidou para morarmos juntos. Hospedados em casa de amigos, partimos em busca de trabalho. Antes de sair de Recife, o proprietário da livraria onde trabalhava escreveu uma carta de recomendação para o diretor da Editora Aguilar no Rio. Me apresentei lá e uma semana depois estava trabalhando, vendendo livros de literatura. No início, tinha poucos contatos, não conhecia ninguém. Resolvi visitar um amigo de Recife que há muito tempo morava no Rio, o artista plástico e intelectual Aluísio Magalhães. Expliquei a situação e o Aluísio me disse: Marinho, vou te 12083517 J Marinho miolo.indd 102 25/11/2010 16:09:06 dar uma ajuda. Me passou uma agenda e falou: Pega os endereços e telefones que você quiser e procura essas pessoas em meu nome. Nessa agenda havia uma enorme relação de arquitetos, jornalistas e escritores, em sua maioria intelectuais e artistas. Com essa lista do Aluísio e os telefones na mão, no segundo mês de trabalho na Aguilar tirei primeiro lugar em vendas. Foi uma surpresa geral na firma, que ficava na Rua da Alfândega, onde hoje é Serviço de Proteção ao Crédito. Impressionado, o gerente proprietário, Seu Sevigne, um espanhol muito simpático e educado, me convidou para ser chefe de vendas. A editora me pagaria um curso na Fundação Getúlio Vargas e eu assumiria a chefia de vendas. No entanto, recusei: minha ideia fixa era fazer teatro. Continuei apenas como vendedor, nem quis que assinassem minha carteira. Tinha esperanças que a qualquer momento seria convidado a trabalhar em alguma peça, em algum grupo teatral. De fato, isso aconteceu logo em seguida, quando fiz o contato com Jofre Soares e Nelson Pereira dos Santos e fui convidado para A Hora e a Vez de Augusto Matraga. Trabalhei na Aguilar até fevereiro de 1965, quando viajei para Minas, onde seria filmado A Hora e a Vez de Augusto Matraga, que hoje figura entre os dez melhores filmes nacionais do século XX, segundo a maioria dos críticos brasileiros. 12083517 J Marinho miolo.indd 103 103 25/11/2010 16:09:06 José Marinho, Leonardo Villar e Jorge Karan em A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos. Rio de Janeiro - RJ (f: Acervo Cinemateca do MAM 1965) 12083517 J Marinho miolo.indd 104 25/11/2010 16:09:06 Aqui no Rio, com vida organizada, comecei a fazer contatos na área teatral. Minha primeira iniciativa foi procurar Ferreira Gullar. Já contei mais atrás como conheci o poeta em Recife, antes do golpe de 1964. Fui um dos cicerones dele junto ao mundo político e cultural pernambucano. Nessa ocasião, ele me dera seu endereço. Fui procurá-lo num sábado à noite, em Ipanema. Conversamos bastante, contei minha história em Recife e tudo que tinha acontecido. Ele me disse: Marinho, nós estamos organizando um novo grupo teatral com o pessoal originário do CPC. Eu, o Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) e alguns outros. Estamos ensaiando um show musical com Zé Kéti, João do Valle e Nara Leão. Os ensaios estão sendo realizados no apartamento da Nara, em Copacabana. Você poderia ir até lá encontrar o pessoal e assistir aos ensaios. 105 Na mesma noite fui à casa da Nara, na Avenida Atlântica. Contei a ela que era um ator de Recife, que estava no Rio e que fora recomendado pelo Ferreira Gullar. Enquanto conversávamos, ela me explicou que o ensaio fora transferido para o Teatro Opinião, na Rua Siqueira Campos. Ela me levaria até lá, mas pediu que esperasse um pouco: Eu vou jantar. Você quer jantar? Agradeci, pois já tinha lanchado. Ela foi à cozinha, preparou um prato, voltou para a sala e, sentada numa poltrona, jantou enquanto retomava a 12083517 J Marinho miolo.indd 105 25/11/2010 16:09:06 conversa. Conversamos sobre teatro, música e cinema. Na época, os filmes brasileiros que mais a impressionaram foram Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol, que ela tinha visto umas quatro ou cinco vezes. Depois do jantar, ela pegou seu Fusca branco e quando estávamos saindo da garagem apareceu o pai dela. Nara me apresentou e disse que estava indo ensaiar no Teatro Opinião. 106 Enquanto estava na casa da Nara, eu pensava: Olha onde é que eu estou! Na casa de Nara Leão, a musa da Bossa Nova. O que eu não sabia ainda era que ali naquele apartamento em reuniões de músicos tinha nascido o movimento Bossa Nova. No teatro reencontrei Augusto Boal e Vianinha, e conheci João do Vale, Zé Kéti e outros componentes do grupo: Paulo Pontes, Armando Costa, Denoy de Oliveira, João das Neves e Pichin Plá. Todos foram muito simpáticos. Vianinha fez as honras de dono da casa: Pode ficar por aí o tempo que quiser. Volte sempre que aqui estamos à sua disposição. Boal também me autorizou a assistir aos ensaios, sem nenhum problema. Passei a ir lá quase todas as noites. Também ajudei nas instalações de equipamentos e cadeiras. Às vezes passava noites inteiras após o ensaio instalando cadeiras. As primeiras cadeiras do Teatro Opinião tinham vindo de São Paulo, de um cinema que 12083517 J Marinho miolo.indd 106 25/11/2010 16:09:06 fechara as portas. O proprietário da sala as doou ao pai de Vianinha, um intelectual de prestígio, o escritor e jornalista Oduvaldo Vianna. Essas cadeiras foram montadas e desmontadas noites seguidas, em um esquema de mutirão. Não só com o pessoal do grupo, mas também com outros convidados e amigos, como Nelson Xavier, Joana Fomm, Jocelyn Barreto Brasil (coronel da Aeronáutica, comandante da Base Aérea de Belém, afastado em 1964 pelo golpe militar) e um colega dele, Comandante Mello (também coronel e conhecido como Mello Maluco, e que fora afastado da Aeronáutica por problemas de saúde). Assim fomos construindo o espaço Opinião, até a estreia do show, que foi sucesso absoluto. O público lotava a sala todas as noites e ainda sobrava gente, surpreendendo o grupo. A intelectualidade carioca de esquerda estava sempre presente. Me lembro que por ali passaram Millôr Fernandes, Sérgio Porto, entre outros. 107 Durante os ensaios no Opinião, às vezes eles pediam para a Nara, que tinha carro, comprar sanduíches e ela me chamava para acompanhála. Terminava o ensaio, algumas vezes ela me chamava para jantar e algumas outras me deixava em casa. Mas jantamos muito juntos. Um dia estávamos jantando quando o Nelson Xavier me disse que o Vianinha queria falar comigo. No 12083517 J Marinho miolo.indd 107 25/11/2010 16:09:06 dia seguinte, procurei o Vianinha para saber o que estava acontecendo. Ele disse: O que está acontecendo é o seguinte. Você está participando das nossas reuniões de direção, mas você não faz parte da direção do teatro. Quem faz parte desta direção é só o CPC. Você é do MCP, nós temos um grande respeito pelo trabalho que vocês fizeram, mas você não faz parte da diretoria do Opinião. Além disso você está criando aqui dentro do teatro um mito romântico. As mulheres te abraçam, te beijam e isso não é comum aqui no Rio de Janeiro. 108 O Vianinha namorava todas as mulheres, e ninguém podia se aproximar de uma se ele não consentisse. Ele era muito bacana, muito querido pelas mulheres. Mas a Nara não o chamava para jantar, ou sei lá qual foi o problema. Eu sei que ele me chamou a atenção e eu me chateei. O espetáculo já tinha estreado e eu estava tomando conta do bar. Aí deixei o bar e me afastei. Logo em seguida fiz o Matraga e me afastei do teatro. Depois que voltei de Minas, voltei ao teatro como frequentador normal. Mas aí a Nara já estava namorando Izaías Almada. 12083517 J Marinho miolo.indd 108 25/11/2010 16:09:06 Parte 3 O Ator: Realização do Sonho 12083517 J Marinho miolo.indd 109 25/11/2010 16:09:06 12083517 J Marinho miolo.indd 110 25/11/2010 16:09:06 Capítulo I A Tela Chega Antes do Palco Minha formação de ator foi ampla, muito boa, pois incluía teoria e prática. Como já contei, fiz bacharelado em Artes Dramáticas na Universidade Federal de Pernambuco, num curso novo de dramaturgia, onde tive como professores de teatro e literatura os escritores Ariano Suassuna e Gastão de Holanda, Joel Pontes e Milton Bacarelli, além de estudiosos como Hermilo Borba Filho, que dava conhecimentos históricos e noções práticas. Um diretor carioca de teatro, Graça Mello, também dava aulas. O curso de teatro me dava uma verdadeira formação artística, já que combinava dramaturgia e literatura dramática. As disciplinas variavam de história do teatro e história do espetáculo, pegando desde o espetáculo grego até o espetáculo contemporâneo, passando pelo teatro shakespeariano, elizabethano, e até formas de palco. Tínhamos também literatura portuguesa e brasileira. Nesse curso me tornei bacharel em Arte Dramática e ao mesmo tempo entrei num grupo teatral ligado ao Movimento da Cultura Popular, criado pelo governo Arraes. Esse movimento trabalhava com as áreas da cultura (cinema, teatro, artes plásticas) e dos esportes, 12083517 J Marinho miolo.indd 111 111 25/11/2010 16:09:06 e desenvolvia atividades de alfabetização. O grupo de que participei durou cinco anos, de 1959 a 1964. 112 Quando viemos para o Rio, eu e o Wilker, já tínhamos no currículo experiência teatral. Ambos queríamos nos dedicar ao palco. Enquanto Wilker se concentrava em fazer carreira no teatro, fiquei aguardando a minha hora e vez. Só que ela não aconteceu no palco, mas na tela. O começo dessa nova atividade foi o resultado de meu reencontro com o Jofre Soares, que eu conhecera no Nordeste. Na ocasião, o Jofre se ofereceu para me apresentar ao Nelson Pereira dos Santos. Depois assisti a um curso sobre cultura negra no Museu Nacional de Belas Artes, com diversos conferencistas. O Nelson foi uma noite falar sobre o negro no cinema. Depois da conferência o procurei, e o Jofre, que estava lá, fez as apresentações. O Nelson falou que estava preparando uma produção que seria filmada pelo Roberto Santos, A Hora e Vez de Augusto Matraga, e se dispôs a me apresentar ao diretor, com quem fizera O Grande Momento, em 1958. Aí o Jofre disse: Aproveita, Marinho, e faz umas fotos 18x24 e leva lá que a gente já faz um arquivo de atores. Esse lá referido por Jofre era a Difilm. 12083517 J Marinho miolo.indd 112 25/11/2010 16:09:06 A Difilm estava surgindo a partir de uma associação do produtor-fotógrafo Luiz Carlos Barreto, do Nelson e, depois, do Roberto Santos. Preparei as fotos e as levei uma tarde ao centro, onde estava a Difilm. O Jofre estava lá e me avisou que eu falaria com o Roberto, que naquele momento conversava com o Roberto Farias. Jofre entrou na sala onde estavam os dois e me apresentou. O Roberto pediu para aguardar um pouco. Dez minutos depois, ele me chamou e de repente perguntou: Quer fazer um teste? Fiquei meio desconcertado... Fazer teste é um negócio chato. As fotos estavam na mão dele, ele estava olhando... Para que teste? O Roberto abriu uma gaveta, tirou um desenho do personagem, olhou para mim e olhou para a foto. Aí falei: Topo. Ele me mandou sentar. Pediu para descrever minha vida toda, desde a infância e a juventude no sertão até a atividade no teatro em Recife. Eram oito horas da noite. Todo mundo já tinha ido embora, o escritório ia fechar. Ele terminou a entrevista com um convite: Vamos tomar uma cachaça. Vou hoje para São Paulo. Já convidei um ator para fazer esse personagem, mas acho que ele não vai poder, porque tá fazendo uma peça teatral que acabou de estrear. Tomamos a cachaça e nos despedimos. Todo final de tarde – ele disse – você volta aqui (na Difilm) e pergunta ao velho Jofre se eu telefonei. 12083517 J Marinho miolo.indd 113 113 25/11/2010 16:09:06 114 Sempre que passava pelo centro no final da tarde, ia até a Difilm para saber da decisão do Roberto. Ele telefonou? Nada... Telefonou? Nada... Eu estava desolado com a indefinição. Ainda assim, tinha pela frente uma tarefa: participar da reorganização, aqui no Rio, do nosso grupo de Pernambuco, o Chegança. Primeiramente, eu, Luis Mendonça, Ilva Niño e o Wilker, e depois envolvemos mais um grupo de cariocas, entre os quais Vereza, que era do CPC. Começamos então a ensaiar peça As Incelenças, do Luiz Marinho, e falei com Aloísio Magalhães sobre nosso desejo de montar Morte e Vida Severina. Ele escreveu para o João Cabral de Melo Neto, que morava na Suíça. João Cabral autorizou, pegamos o poema e dramatizamos. O Vereza dirigiu Morte e Vida Severina, enquanto o Luiz Mendonça cuidava das Incelenças. Mas continuei a passar pela Difilm, na expectativa de uma resposta do Roberto. Numa tarde, cheguei lá e o Jofre desconversou: É, não telefonou não, mas vamos descer, Marinho, não te preocupa com isso não. Fomos a um bar na Rua Santa Luzia. Chegando lá, ele pediu dois chopes. Veio então a notícia: Roberto telefonou, o papel em Matraga é seu. Foi por aí que cheguei ao cinema. Antes de conquistar o palco. 12083517 J Marinho miolo.indd 114 25/11/2010 16:09:06 Participei de Matraga sem comunicar nada à minha família. Eles sabiam que eu estava refundando nosso grupo teatral do Recife no Rio de Janeiro, com o nome Chegança. Quando terminamos de montar Morte e Vida Severina, voltei a procurar meu amigo Aluísio Magalhães, que também era amigo de João Cabral. O Aluísio escreveu para o João, que estava na Suíça, e ele autorizou a montagem da peça. Nós escolhemos o Carlos Vereza para dirigir. Quando estávamos ensaiando, tive que me afastar para participar da filmagem do Matraga e ao voltar a peça já tinha estreado. Eu entrei no personagem já depois que voltei da filmagem. 115 Nessa ocasião, o Luís Carlos Barreto me chamou para trabalhar na Difilm e lançar o Matraga em Belo Horizonte. Quando voltei, ele me pediu que ficasse fiscalizando os filmes, acompanhando as bilheterias. Foi quando houve um teste para Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come, e tinha que cantar Cidade Maravilhosa e eu perdi. Eu e o Wilker não passamos. Depois de um mês da estreia, um ator foi convidado para fazer um show e deixou uma vaga. Acabei ficando com o papel do prefeito até terminar a temporada do Rio de Janeiro. Nisso o Flávio Rangel me convidou e fui participar de uma peça de Bertolt Brecht no Teatro Ginástico. 12083517 J Marinho miolo.indd 115 25/11/2010 16:09:06 Depois disso, voltei à Difilm. Sempre que não tinha trabalho, eu voltava e o Luís Carlos Barreto bancava o pagamento do meu apartamento para que fiscalizasse filmes. 116 Militância e Teatro Quando perguntam se minha entrada no meio artístico se deve às conexões políticas, penso e concluo que sim. Fui militante do Partido Comunista. Entrei no Partido, em 1962 em Recife, quando estava na universidade. Quando houve o golpe, era secretário da base e cuidei de mandar todo mundo se ocultar, além de ter me escondido também no interior da Paraíba. Aqui no Rio cheguei como militante político. Essa situação fez com que o pessoal do CPC me aceitasse logo no Teatro Opinião. E quando o Vianinha me chamou atenção por esses problemas, o fez com cautela, pedindo que eu não ficasse magoado. E depois no Bicho ele acabou me chamando e trabalhamos juntos, fomos amigos até o final da vida dele. Essa militância política estava realmente ativa nessa época. Nós tínhamos as reuniões do Partido escondidos e às vezes alguém da base jornalística é quem ia dar assistência política. Na época, inclusive a orientação da agremiação era evitar o pessoal que estivesse entrando para a guerrilha: 12083517 J Marinho miolo.indd 116 25/11/2010 16:09:06 eles eram contrários e não autorizavam. Nós, do Partido, éramos convidados constantemente por colegas a entrar na guerrilha e muitos aceitaram. Eu me desliguei da legenda e até hoje não voltei a militar. No entanto sou amigo do pessoal do Partido e quando tem um candidato que me interesse, eu voto. Quando fiz as fotos que o Jofre pediu para levar ao escritório da Difilm, ele sugeriu que eu mandasse para outros lugares. Me mandou também ao escritório do Herbert Richers na Tijuca, para distribuir minhas fotos. Fui lá, deixei minha foto com o Jece Valadão e com o Riva Faria, com o telefone da casa de um amigo meu. Dois dias depois, o Riva me convida para ser um detetive. Então, na realidade, meu primeiro papel foi esse, filmado em 16mm e dirigido pelo José Carlos Burle, para a TV Globo, que ia lançar uma minissérie chamada Morte Branca, com Jardel Filho no papel-título. A filmagem durou um dia. Depois veio o Matraga. 117 Vim para o Rio pensando em fazer teatro. Mas o destino, através do Jofre Soares e do conhecimento do Nelson, me levou ao cinema. Daí comecei a fazer muito mais cinema do que teatro. De 1965 a 1971 fiz uma média de quatro filmes por ano. 12083517 J Marinho miolo.indd 117 25/11/2010 16:09:06 12083517 J Marinho miolo.indd 118 25/11/2010 16:09:06 Capítulo II Primeiros Êxitos no Cinema Sobre essa estreia em Matraga me perguntam: como é que foi trabalhar com Roberto Santos e criar seu primeiro personagem no cinema? Primeiramente, o que me impressionou foi a seriedade, a concentração dele, sua dedicação ao trabalho. Ao mesmo tempo, Roberto era muito fino, gentil. Lembro-me que ele preparava todo o set, olhava tudo e só depois começava a rodar. Via os mínimos detalhes. Por isso a gente percebe como Matraga é muito bem cuidado, em todos os setores. A direção é fantástica. Roberto era cartesiano, sério e organizado. Fazia toda a decupagem da cena antes de filmar. Depois que a decupagem e a iluminação estavam prontas, ele chamava os atores e mostrava todo o movimento da cena. Falava baixo, calmo, tranquilo, quase sussurrando. Exemplo disso é a cena em que o capiau (meu personagem) vai ferrar o Matraga com ferro de marcar gado. O efeito foi produzido com uma sola por baixo da camisa do Leonardo Villar. Eu ia com o ferro de fogo e um pouco de óleo, batia a fumaça, e o Léo gritava, corria, se jogava do barranco e desaparecia. O capiau o procurava, mas não o achava. Toda essa sequência tinha ao fundo uma toada mineira 12083517 J Marinho miolo.indd 119 119 25/11/2010 16:09:06 Jofre Soares e José Marinho na filmagem de Viagem ao Fim do Mundo, de Fernando Cony Campos, no hangar da Cia. Aérea Sadia, Aeroporto de Congonhas/SP, 1967 12083517 J Marinho miolo.indd 120 25/11/2010 16:09:06 escolhida pelo Geraldo Vandré, que compôs a música. A toada diz mais ou menos assim: Rosa, Hortência, Margarida / Tudo tem nome de flor / Passou pela minha vida / Foi mulher, tem meu amor. Essa cena foi gravada de primeira, pois não se faz duas vezes uma cena dessas. Mas perguntei ao Roberto: Então, o que é que você achou? Ele respondeu: O que é que você quer, Marinho? Um poema shakespeariano em cada plano? Fantástico. Esse capiau é que no final mata o Quim Recadeiro, com um tiro de misericórdia. O capiau é um personagem meio perdido. Porque o capiau é um trabalhador rural, pobre e que vive ali naquelas fazendas, meio encostado. O capiau de Matraga tem uma namoradinha, a Siriema. Na abertura do filme, há uma festa na cidadezinha, uma quermesse. E o capiau está por ali, com roupa de saco, muito pobre, quando aparece Siriema, sua namorada. A menina quer ir ao leilão e o capiau tenta impedir. O Matraga também está lá, sentado ao lado da igreja. Vê o capiau puxando a menina para ir embora. O que é que você tá fazendo aqui?! O capiau vai puxando a namoradinha quando intervém Matraga, fazendeiro, rico e poderoso, que empurra o capiau e manda seus capangas darem uma surra nele. O capiau é surrado, se arrebenta todo e fica encostado na 12083517 J Marinho miolo.indd 121 121 25/11/2010 16:09:07 igreja. O Matraga arremata a menina no leilão, e a arrasta enquanto o capiau fica lá sofrendo, injuriado. É uma sequência forte, que desencadeia ressentimentos e ódios mortais. 122 O capiau volta nas sequências seguintes, quando o Major Consilvo reúne capangas para enfrentar o Matraga, que era seu adversário político. Na casa do Major Consilvo é armada uma emboscada para o Matraga. Esse Quim Recadeiro é que vai preveni-lo: Olha, o Major Consilvo tá lhe esperando armado. Diz que vai mandar atacar sua fazenda. O Matraga reage: Eu vou lá agora! Vai até a casa do Major Consilvo para enfrentá-lo. Mas é derrubado, surrado e arrastado até um barranco, onde o capiau o ferra a fogo, na cena que descrevi acima. O Quim Recadeiro, escondido, vê o que aconteceu e vai enlouquecido até à casa do Major Consilvo para vingar o patrão. Os capangas o surpreendem. Quim leva um tiro. O capiau é que dispara o tiro de misericórdia, já na cozinha, numa cena de violência incrível. Repeti uma cena dessas na novela O Rei do Gado, da TV Globo, dessa vez ao lado de Jackson Antunes, que faz um matador de sem-terra, Regino. O Jackson e eu corremos a cavalo atrás de um jipe conduzido por um menino de São Paulo, Beto Bellini. Quando o enquadramos, na mira, eu faço algo semelhante ao tiro de misericórdia de Matraga. 12083517 J Marinho miolo.indd 122 25/11/2010 16:09:07 Muita gente acha que Roberto Santos definia o personagem e deixava o ator improvisar. Mas não havia isso, não. Roberto dava o mote correto e era por ali. Não tinha muita improvisação, não. Ele dava uma margem para o ator criar, é claro, mas sem deixar que saísse do texto ou da marcação. Mesmo quando improvisava, tinha um limite. O ator conversava com ele antes. Eu tinha certa liberdade, sob a orientação dele: Monta a cavalo e vai por aí, vai por aí que eu tô filmando. Nas coisas do ator, a marcação era marcação, não se podia fugir dela. Mas o Roberto deixava o ator realizar a cena no tempo necessário. Há uma concentração gestual, como se o ator estivesse segurando a emoção, a explosão. Foi na gravação da sequência na frente da igreja que aprendi o método de direção dele. Toda a movimentação fora planejada com precisão, com rigor. Roberto orientava: Calmamente, Marinho, sem pressa, olha bem as coisas, olha com precisão, não tem decisão no olhar. 123 Talvez tenha sido por isso que Joaquim Pedro de Andrade comentou comigo, depois de ver A Hora e Vez de Augusto Matraga: Marinho, esse filme do Roberto é meio que um negócio japonês, meio samurai, essas lutas, brigas, guerras, a construção dos personagens... Um troço muito samurai. A crítica também falou disso, dessa 12083517 J Marinho miolo.indd 123 25/11/2010 16:09:07 introspecção que lembra realmente o clima de interpretação em filmes japoneses. Antes de Matraga, víamos muitos filmes japoneses no Rio e principalmente em São Paulo. Eu me lembro de ter assistindo a uma retrospectiva inteira do Akira Kurosawa na Cinemateca do MAM. Não sei se o Roberto gostava de cinema japonês, mas parecia que gostava, porque em certos momentos o clima é realmente de uma aventura de samurai. 124 Nesse sentido recordo a luta final do Matraga. Que coisa fantástica! Acho que os dois atores saíram imortalizados dali. Às vezes uma sequência imortaliza um ator. Na sequência da igreja até a morte, Jofre Soares dá um show de interpretação, da capacidade de criação de um ator em vários níveis. Leonardo também está fantástico. Mas embora não fosse propriamente um artista de cinema, o Leonardo era um ator experimentado, um senhor ator de teatro. O Jofre, não: era o segundo filme dele depois de Vidas Secas, e o cara entra com uma força! Haja um John Wayne na frente! No Universo do Glauber Com Glauber, em Terra em Transe, meu processo de composição do personagem foi diferente. O Glauber é outro universo. Tudo no Glauber vivia em torno de um espaço de criatividade intensa, permanente. Com ele, as coisas eram intensas o 12083517 J Marinho miolo.indd 124 25/11/2010 16:09:07 José Marinho, Glauce Rocha, Jardel Filho e José Lewgoy em Terra em Transe, de Glauber Rocha 12083517 J Marinho miolo.indd 125 25/11/2010 16:09:07 tempo todo, desde a conversa no botequim até a hora de rodar um take. Tudo para Glauber tinha uma coisa de criatividade exasperada, de atmosfera de mistério, de fantasia, de simbologia. Tinha muito da cultura sertaneja, da cultura barroca. Se você analisar bem, os filmes do Glauber são meio ritualistas. O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro é um filme ritualista, cheio de rituais o tempo todo. Abre com o ritual de 7 de setembro, o colégio desfilando ali, as meninas fardadas, a banda de música e tudo. Do outro lado, num contraste ritual, está o cangaceiro, com seu fuzil ameaçador. Tudo transcorre no mesmo nível, tudo é o sertão, tudo é o mundo. 126 No Dragão, as lutas, as brigas são ritualísticas. Os confrontos do Antônio das Mortes com os cangaceiros são, todos, meio ritualísticos. Glauber brinca com tudo, brinca com o western. Uma coisa totalmente livre. Ele cria a cada momento o seu próprio estilo de ver as coisas, como naquele negócio da santinha com a Rosa Maria Pena e do personagem do Jofre, cego. Essa ritualização não acontece apenas no modo como ele vê os personagens, os tipos, mas também na maneira como ele trata a música de cordel fantástica. Aquela cena final do negro que avança para matar o coronel com aquela lança, é tudo coisa grega, medieval. Ele vai na cultura universal. O grito de 12083517 J Marinho miolo.indd 126 25/11/2010 16:09:07 libertação do negro, por exemplo. Eu dublei essa cena com o Milton Gonçalves. Glauber chamou o Milton Gonçalves e disse: Você, que é negro, vai fazer esse grito de liberdade do negro, da vitória da etnia. Tudo ali tava pensado, ele não deixou sair nada. Eu dublei a maioria dos cangaceiros, desde a cena inicial. O Dragão começa com um plano fixo, entra um cangaceiro morrendo e Antônio das Mortes atrás e o cara entra de um lado da câmera e sai do outro. Aquele grito do cara morrendo, fui eu que fiz. Aí o Glauber me contou a história daquele rapaz, uma história pitoresca. O Glauber estava filmando e o rapaz chegou lá e disse: Doutor Glaubi, eu vim de Feira de Santana pra cá, eu vim descalço, pra aparecer no ecrã aqui com o senhor, que eu sei que o senhor tá fazendo um filme, eu queria aparecer no ecrã. Glauber achou interessante o rapaz dizer no ecrã. Onde ele teria descoberto a palavra ecrã? Aí disse: Tá bom. Mandou o rapaz se vestir de cangaceiro e fez aquela cena. Ele morreu logo de cara, na cena, mas ficou feliz: tinha aparecido no ecrã. Morreu, mas apareceu. Abriu o filme! 127 Estilos Diferentes Glauber reunia os atores antes das filmagens. Roberto também. No Rio, ele fez duas reuniões com todo o elenco, discutindo tudo com roteiro 12083517 J Marinho miolo.indd 127 25/11/2010 16:09:07 na mão. Mas o Glauber fazia essas reuniões sem dar o roteiro inteiro para ninguém. Nós líamos pedaços de roteiro: apenas as folhas em que apareciam nossos personagens. Só ele sabia toda a história, e contava tudo do modo dele. Você acompanhava a discussão com um roteiro que tinha somente seu personagem. E pensava: E os outros, como é que são? Era aí, depois dessas reuniões, que ele determinava: vamos filmar. 128 Depois que ele viu o filme do Roberto Santos, conversou comigo. E me disse: Marinho, gostei de você no Matraga e vou fazer um seriado sobre Antônio das Mortes para a TV Globo. Se eu fizer esse seriado, vou te convidar. O seriado não saiu, nem saiu um outro que ele planejava com produtores alemães. Em compensação, imaginou uma continuação de Deus e o Diabo, que seria Terra em Transe. Quando estavam montando a produção, passei na Difilm, para conversar com todo mundo, porque Matraga me colocara no cinema. Glauber passava, me olhava, mas não dizia nada. A essa altura eu estava fazendo uma peça no teatro Opinião, Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come, do Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar. Ele foi assistir ao espetáculo para fechar o elenco de Terra em Transe. Do elenco de Se Correr o Bicho, ele convidou Thelma Reston, Emanuel Cavalcanti, Francisco Milani e Ecchio Reis, que já faleceu, e eu. Ele 12083517 J Marinho miolo.indd 128 25/11/2010 16:09:07 foi embora sem falar nada com ninguém, mas deixou um recado com a produção, a cargo do Ivan de Souza. O Ivan, que tinha sido diretor de produção de Matraga, reuniu a gente depois do espetáculo e avisou: Amanhã à tarde vamos ao escritório do Zelito Vianna. Com os contratos assinados, fomos filmar. Realizamos as filmagens iniciais em Duque de Caxias: as passeatas do Governador Vieira, por exemplo, foram feitas no subúrbio da cidade. Glauber armou toda a cena e passou a nos orientar: Marinho, você fica aqui do lado do Lewgoy, e vai sempre acompanhando o Lewgoy, o povo se aproxima pedindo ajuda pra cá, pra lá, calçada aqui, e o Lewgoy vai chamar você e você vai com o caderninho anotando. Falei que estava tudo bem. Ele se voltou para Lewgoy: O nome do Marinho é Gerônimo, esse é o nome do personagem. Lewgoy: Tá bom, seu Glauber, tá bom... Aí começa a rodar. Um figurante entra em cena: Oh, governador... eu quero água pra minha rua... Anota aí, Marinho, anota aí! Glauber cortou esse primeiro plano: Pô, Lewgoy! Não é Marinho. O personagem é Gerônimo! Desculpa, Glauber! A cena recomeça e Lewgoy repete: Marinho, anota aí, Marinho... O Glauber, conformado, mandou: Deixa rodar... Rodou tudo desse jeito e o personagem virou Marinho. 12083517 J Marinho miolo.indd 129 129 25/11/2010 16:09:07 Glauce Rocha, Paulo Cesar Pereio, José Marinho e Jardel Filho, no filme Terra em Transe, de Glauber Rocha 12083517 J Marinho miolo.indd 130 25/11/2010 16:09:07 No roteiro publicado na revista francesa AvantScene du Cinéma, tá impresso: Marinho. Sobre essa confusão, o falecido David Neves me contou uma história curiosa. Glauber ia fazer um filme financiado pelo Francis Ford Coppola. Seria com o Marlon Brando, porque o roteiro fora pensado para o ator americano. O David recordou que estava ao lado do Glauber quando, em uma entrevista na França, ao falar desse projeto com Marlon Brando, um repórter lhe perguntou: Rocha, mas você vai dirigir Marlon Brando? Nem o Chaplin se deu bem com ele! Glauber respondeu: E daí, eu vou dirigir Marlon Brando. Mas como você vai dirigir? Ah, assim como eu dirigi o Marinho. Aí o repórter não entendeu nada: Quem é Marinho? Quem é esse cara? 131 Improvisação Controlada Enquanto Roberto Santos delimitava a margem da liberdade do ator, Glauber liberava a improvisação. Mas essa improvisação deveria atender às necessidades da personagem e da orientação dele. Se você improvisasse por conta própria, não se dava bem com ele, não. E coisa falsa, com ele não passava. Em Terra em Transe há uma cena forte em que Thelma Reston cai chorando por cima de Cavalcanti quando ele é assassinado. Glauber tentou umas quatro, cinco, seis vezes filmar essa cena. A Thelma não 12083517 J Marinho miolo.indd 131 25/11/2010 16:09:07 conseguia chorar, ou não convencia ao chorar. Tá falso, Thelma, tá falso... Aí foi rodando. Às 9 da manhã, o sol esquentando, ele pediu ao Francisco Milani: Ensaia a Thelma aí que eu vou fazer outras cenas. Fomos filmar as cenas das caminhadas pelas ruas. 132 A certa altura da filmagem, Glauber parou tudo, foi numa casa e pediu: A senhora tem uma muringuinha com água? A mulher tinha, ele pediu um copo. Levou a muringuinha com água para os atores. Depois de servir a água, devolveu a moringa à mulher e voltou ao set: Agora vamos filmar a cena da Thelma. Chegou lá: Milani, a Thelma tá pronta? Tá, Glauber, tá pronta, tá boa, já chorou à vontade, até já cansei de pedir a ela pra parar de chorar. E o Glauber: Tá bom, vamos fazer a cena Thelma. Dib, câmera! Thelma na frente dele, ele olhando para Telma. Ação! Thelma se joga e ele diz: Tá falso, Thelma... Voltou e botou o Dib atrás dele: Quando eu disser câmera baixinho, você vai. Dib se preparou e ele disse: Câmera! Dib ligou a máquina e o Glauber pegou no ombro da Thelma, balançou e empurrou. Enquanto ela gritava, assustada, Dib filmava e Glauber comemorava: Tá ótimo! Chorou maravilhas! Muito obrigado, Thelma! Ficou do jeito que ele queria. 12083517 J Marinho miolo.indd 132 25/11/2010 16:09:07 Foi uma improvisação, mas controlada. Aconteceu algo parecido com o Carvana. Essa não assisti, mas me contaram. É a sequência do suicídio do personagem do Carvana. Paulo Gracindo vai no jornal, fala com Jardel Filho, volta, tudo feito com câmera na mão, uma caminhada belíssima. O Carvana vai, volta e fica falando: Não aguento mais, vou me suicidar. E o Glauber: Vamos filmar. Carvana, você vai suicidar-se. Pega a arma, ela vai aparecer na sua mão e depois você vai sair da câmera e vamos ouvir só o tiro. Agora eu quero que você faça uma cara de espanto, de medo da morte, e da coragem do suicídio, da decisão do suicídio. E o Carvana começa a fazer a tal cara de medo e coragem, ele olha para a câmera e não consegue chegar aonde o Glauber quer. Aí me contaram que em certo momento Glauber se aproximou do Carvana, passou a mão no ombro dele enquanto o Dib aguardava e pá! O Glauber deu um tapa no Carvana e gritou: Câmera! E o Carvana fêz aquela cara... 133 Imagem Imortal Minha experiência foi de outro tipo, naquela cena do líder operário que fazia o comício. Glauber preparou bem a cena, fez uma coisa genial... Metralhadoras, silêncio geral, discurso do Jardel... Aí fazia-se um silêncio. Ele disse: Agora é com você, Marinho. Falei para ele: Como é que você quer a 12083517 J Marinho miolo.indd 133 25/11/2010 16:09:07 cena? Ele me olhou e fulminou: Xi, Marinho, não vem com pergunta brechtiana, stanislavskiana. Aqui não. Isso aqui não é Teatro de Arena, não. Você olha para a câmera como se tivesse dando uma entrevista para uma câmera de tevê. Pronto. Só. Esquece o resto das tuas teorias de teatro. Ainda não tínhamos começado a rodar a cena. Minha pergunta foi feita durante o ensaio. Nessa cena, filmada no Parque Lage, Glauber colocou um grupo de atores ao meu redor e eu tinha que olhar para todos e terminar com o olhar fixo em Glauce Rocha. Quando rodamos, foi tudo de primeira. 134 Glauber tinha um método muito pessoal. Ele olhava para o ator, ficava imaginando alguma coisa, e enquanto olhava fazia o enquadramento com as mãos. Na hora de filmar, tinha um tipo de exigência e – caso você não correspondesse – ele poderia te surpreender: falava alto, se exaltava e às vezes tocava fisicamente no ator, para estimulá-lo. Por outro lado, também tinha momentos de carinho com o ator, era capaz de pentear o seu cabelo, ajeitar seu paletó, sua gravata. Era uma personalidade única, com sensibilidade poética para capturar o espaço todo. Tudo que acontecia ali, no filme, estava sob o domínio dele. A improvisação que ele mandava fazer era sempre dentro de um limite capaz de dar o resultado que queria. 12083517 J Marinho miolo.indd 134 25/11/2010 16:09:07 O veterano José Medeiros, que estava fazendo um making-off com a câmera naquele dia, fazendo algumas fotos de cena, foi quem fez aquela foto imortal. O Dib Lutfi estava lá. O fotógrafo do filme era o Luiz Carlos Barreto. O Medeiros fazia uma segunda unidade, e naquele dia registrou aquela imagem que imortalizou um momento do filme. Essa foto acabou sendo usada no cartaz do filme em São Francisco, nos Estados Unidos, e foi capa de revistas na França. E não lembrava que era do Zé Medeiros. Só tempos depois é que ele me contou: Você sabe de quem é aquela foto? Eu falei que não sabia, mas julgava que seria de quem fazia still. No caso, era o João Carlos Horta, fotógrafo que foi casado com a Heloísa Buarque de Holanda e que estava começando naquele tempo. Eu pensava que tinha sido dele, mas o Medeiros afirmou: Não, Marinho, essa foto é minha. Até hoje os jornais e as revistas reproduzem a foto sem atribuir a autoria ao velho Zé Medeiros, outro grande fotógrafo de exterior. 135 Um ator imortaliza um personagem, um diretor imortaliza um ator. O Jardel Filho também está imortalizado em Terra em Transe, com aquele personagem fantástico, do poeta Paulo Martins. Já o Paulo Autran era, de fato, um ator fantástico. Mas o Glauber o virou pelo avesso, convidando-o 12083517 J Marinho miolo.indd 135 25/11/2010 16:09:07 Capa da revista l’Avant-Scène, número 77, janeiro de 1968. Foto do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha 12083517 J Marinho miolo.indd 136 25/11/2010 16:09:07 Capa do informativo do Cineclube Macunaíma, referência à foto do filme Terra em Transe 12083517 J Marinho miolo.indd 137 25/11/2010 16:09:07 José Marinho e Paloma Roccha simulando a cena do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, na exibição da cópia restaurada 12083517 J Marinho miolo.indd 138 25/11/2010 16:09:08 para o papel de um ditador ridículo. Paulo Autran só entendeu isso depois que o filme estreou. Irritado, ele me disse uma vez que não tinha gostado nada de Terra em Transe, que Glauber tinha feito dele um personagem ridículo, que aquilo não era dele. Mas na realidade tempos depois, quando o encontrei na Taberna da Glória, no Rio, ele admitia que mudara de opinião. Sem dúvida nenhuma, posso dizer que meu papel em Terra em Transe me projetou internacionalmente, até porque foi capa da revista francesa l’Avant-Scène. Até hoje muitas pessoas me convidam para filmar devido ao meu trabalho em Terra em Transe. Convivi muito com o Glauber. Conversava muito com ele sobre política. Uma vez ele disse que tinha lido no Le Monde, em Paris, um bilhete de Raul Castro para Che Guevara, dizendo Te mando un abracito de macho latino americano, tanto cuanto puedo ser. Aí ele disse: Marinho, são dois revolucionários. Pode ter homossexualismo no meio. E eu disse: Isso é um absurdo, Glauber! Líder revolucionário ser homossexual? Ao que ele respondeu: Deixe de bobagem, Marinho. Entre quatro paredes ninguém sabe o que acontece. Sexo é de cada um. Moralista babaca do Teatro Opinião! Marxista babaca! Acaba com isso! Me deu um esporro. Ainda disse: Você devia ir para 12083517 J Marinho miolo.indd 139 139 25/11/2010 16:09:08 o Nordeste, ocupar o lugar de Francisco Julião. Você que é de classe média, vai lá liderar as ligas camponesas e fazer a revolução em Pernambuco. Agora vou pegar um táxi. E saiu para pegar um táxi porque não andava de ônibus. Dizia – em tom de brincadeira, acho – que dentro do ônibus tinha povo, e ele não se misturava. 140 12083517 J Marinho miolo.indd 140 25/11/2010 16:09:08 Capítulo III Outros Tipos Marcantes Antes de participar de outro momento marcante na minha carreira, O Bandido da Luz Vermelha, choveu convites para vários filmes. Na mesma época de Terra em Transe, apareci em El Justicero, do Nelson, Perpétuo Contra o Esquadrão da Morte e Maria Bonita, Rainha do Cangaço, esses dois dirigidos pelo Miguel Borges. Depois fiz com Moisés Kendler um episódio de Os Marginais, onde também está o Paulo Cesar Pereio. Em seguida fui filmar em Brasília A Vida Provisória, do Maurício Gomes Leite. Quando estive em Brasília já tinha conversado com o Rogério Sganzerla em São Paulo, onde fui lançar, pela Difilm, Todas as Mulheres do Mundo, do Domingos de Oliveira. Acompanhando Zé Alberto, gerente da Difilm, estive em São Paulo para o lançamento de Roberto Carlos em Ritmo de Aventura. Nessa ocasião encontrei o Fernando Conni Campos, que me convidou para participar de Viagem ao Fim do Mundo, filmado no hangar da antiga companhia aérea Sadia, no Aeroporto de Congonhas. Também fiz um papel de guerrilheiro em Desesperato, do Sérgio Bernardes Filho. Como se pode ver, tive que me multiplicar para dar conta dos compromissos, em meados dos anos 1960. 12083517 J Marinho miolo.indd 141 141 25/11/2010 16:09:08 Celi Ribeiro e José Marinho em Maria Bonita, A Rainha do Cangaço, de Miguel Borges Jair Frazão, Celi Ribeiro, José Marinho, e Ivan Candido em Maria Bonita, A Rainha do Cangaço, de Miguel Borges 12083517 J Marinho miolo.indd 142 25/11/2010 16:09:08 Edson Santos (fotógrafo), Paulo José e José Marinho na redação do Jornal Última Hora para as filmagens de Vida Provisória, de Mauricio Gomes Leite, 1968 Paulo José e José Marinho em Vida Provisória, de Mauricio Gomes Leite, na redação do jornal Última Hora, Brasília/DF, 1968 12083517 J Marinho miolo.indd 143 25/11/2010 16:09:08 Quando fui convidado para El Justicero o Nelson já tinha formado o elenco. O roteiro foi adaptado pelo próprio Nelson de uma peça do João Bittencourt, dramaturgo de sucesso à época. Ele convidou Arduíno Colasanti, que foi escalado por ser surfista e estreou ali, e Adriana Prieto, também estreante. Arduíno e Adriana foram chamados porque o Nelson queria um casal loiro de olhos azuis. Me lembro até de uma crítica do Ely Azeredo que assinalava: Até que enfim um casal loiro e bonito no cinema brasileiro! O Emmanuel Cavalcanti também tinha uma participação. 144 O Nelson dizia que El Justicero era o complemento de Rio 40 Graus e Rio Zona Norte: seria o Rio da zona sul. E ele me chamou para fazer o delegado. Era um papel que tinha toda uma linha de interpretação bem carioca. Eu tinha aparecido em uma encenação de Beijo no Asfalto na Escola de Arte Dramática em Recife, com direção do Graça Mello, que me ensinou a fazer o sotaque carioca. Peguei esse sotaque e chamei o Emmanuel Cavalcanti, que me ensaiou. Encaixei tudo no sotaque carioca e fiz bem, está lá até hoje. Minha interpretação no Justicero foi muito comentada, inclusive no Festival de Brasília. Em 1968, acabou proibido pela censura. Fiquei bastante satisfeito com essa primeira experiên- 12083517 J Marinho miolo.indd 144 25/11/2010 16:09:08 cia com o Nelson, que também marcou minha estreia no cinema urbano, depois do Matraga, que era mais rural, e do Terra em Transe, que era muito político. A amizade com o Nelson nasceu na hora em que ele me apresentou ao Roberto Santos e dura até hoje. É uma amizade que se construiu ao longo da vida. Em reconhecimento ao Roberto Santos, aceitei fazer um pequeno personagem em O Homem Nu. Faço o papel de um rapaz encarregado da sauna onde Paulo José chega pelado para se esconder, porque na sauna o nu não é estranho. Ele fica por ali, mas acaba vendo que não dá para ficar o tempo todo. Pula o muro e acaba em um terreno baldio. Emmanuel Cavalcanti faz um mendigo que está no terreno, e quando vê aquele garoto jovem e nu, fica de olho grande nele. E o Paulo sai correndo de novo. 145 Em 1966, em Um Homem e sua Jaula, a convite de Paulo Gil Soares, fiz o papel de um líder estudantil da UNE que tentava conseguir um passaporte para se exilar no exterior, por conta de perseguição política. Então eu estava escondido em uma favela, Catacumba, e chegavam lá o Hugo Carvana e o Joel Barcellos. Carvana era um pintor que tinha um ateliê frequentado pelo pessoal de esquerda. Ele resolve sair nas 12083517 J Marinho miolo.indd 145 25/11/2010 16:09:08 146 ruas para saber o que ficou depois da revolução de 31 de março, 1o de abril. E foi reencontrando as pessoas, ajudando as pessoas a fugir, etc. Joel Barcellos era um amigo dele, também ligado ao movimento de esquerda. Os dois iam encontrar comigo e me davam um passaporte para eu fugir. A orientação era fugir para a Argélia. Essa sequência foi dirigida pelo Paulo Gil Soares com produção do Fernando Conni Campos. Uma sequência bonita. Eles depois ficavam parados e eu saio andando em torno da Lagoa, procurando o lugar da favela onde vou me esconder. E a trilha sonora belíssima é Quarta-feira de Cinzas, do Vinícius de Moraes, cantada pela Nara Leão, até eu desaparecer no início da favela. Essa sequência foi feita por Paulo Gil. Quando o Fernando Conni Campos brigou com o Paulo e assumiu a direção, eu já não estava mais filmando. Paulo Gil era meu amigo desde muito tempo. Na Bahia ele foi colega do Glauber desde a infância. Era muito inteligente, um poeta, e a gente sempre conversou muito sobre cinema. Ele foi um dos assistentes do Glauber no Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ele ficou meu amigo e no bar da Líder me convidou para fazer esse filme. E com o Paulo Gil foi uma coisa muito tranquila, serena, sem nenhuma agitação, nenhuma especulação de interpretação, nem nada. 12083517 J Marinho miolo.indd 146 25/11/2010 16:09:08 Em seguida participei de Perpétuo contra o Esquadrão da Morte, do Miguel Borges. Meu papel é de um bandido chamado Ruivinho, um olheiro, que fica observando o movimento policial para avisar aos bandidos. Foram só duas sequências. Depois o Miguel me chamou para fazer Maria Bonita, Rainha do Cangaço. Meu papel é de um cangaceiro muito simpático, que apanha muito por ajudar Lampião (Milton Moraes) a roubar a Maria Bonita. O Ivan Cândido, que faz o delegado, amarra o rapaz no xadrez e lhe dá uma surra de chicote. Botaram uma lona nas minhas costas para amortecer as chicotadas, mas a lona caiu e a câmera tava de frente, não pegou a queda. Enquanto o Ivan continuava a bater, eu olhava para o Miguel pedindo socorro. Miguel nem aí, deixou rodar e depois tive que ficar na água com sal. O pior é que ainda tomo uma segunda surra. Quando saio da fazenda para entrar no grupo de cangaço, um capataz (o Cláudio Portioli) me dá uma surra porque estou fugindo. Lá fui eu de novo para água com sal. O Cláudio Portioli, excelente maquinista, famoso na Boca do Lixo, era um tipo parrudo. Miguel era muito irônico, gozador. Eu reclamava de dor e ele dizia: Ah, isso é coisa da profissão. Mais tarde bota uma água com sal que melhora. 12083517 J Marinho miolo.indd 147 147 25/11/2010 16:09:08 148 Até meu encontro decisivo com o Bandido, participei de vários filmes às vezes em papéis menores. Um deles foi Desesperato, do Sérgio Bernardes Filho. Era um filme sobre guerrilha. Filmamos em Guaratiba, dentro de um rio. Eu faço um dos guerrilheiros. É um filme muito interessante, uma metáfora da guerrilha. O Raul Cortez interpreta um escultor, que lança um livro no Rio de Janeiro, mas está decepcionado com tudo e resolve participar da resistência ao regime militar. Ele fala com um amigo, o Nelson Xavier, que o leva para um grupo guerrilheiro. Nisso há uma luta onde o escultor é morto. Recordo que o Serginho disse: Aqui morreu um guerrilheiro, mas vocês vão querer se safar. Então esse guerrilheiro vai servir de barreira contra os inimigos. Raul Cortez se recusou a fazer a cena porque alegou que seu personagem não aceitaria isso. Não houve jeito de convencê-lo. O filme termina com um belo poema do padre Camilo Torres, lido pelo Rogério Duarte. O texto fica meio solto no ar, mas é muito bonito. Os quatro sobreviventes da guerrilha que fogem pelas montanhas são: eu, Waldir Onofre, Nelson Xavier e outro ator que não me lembro. Desesperato foi proibido em 1968 e só seria liberado quase vinte anos depois, no Governo Sarney. 12083517 J Marinho miolo.indd 148 25/11/2010 16:09:08 Vida Provisória foi feito pelo Maurício Gomes Leite, jornalista mineiro de Montes Claros. Ele veio ao Rio trabalhar na revista Manchete, onde era jornalista e crítico de cinema. Ele escreveu para o Jornal do Brasil um artigo belíssimo sobre Terra em Transe. Nessa época eu morava no famoso edifício Belair, na Praia de Botafogo, com Guará Rodrigues. O apartamento era de um primo do Emmanuel Cavalcanti. Lá moravam um sargento da Aeronáutica e uma figura de identidade misteriosa. Era um rapaz claro, bonito, de olhos azuis, de Vitória, Espírito Santo. O nome dele: Lúcio Vilar Lírio. Ele voltou para Vitória e dois anos depois chegam as notícias sobre um famoso bandido Lúcio Flávio, que virou até filme, com as mesmas características, nome e sobrenome. Então não sei se era ele ou parente. Falei com Carlos Uchoa uma vez sobre isso e ele disse que não era o mesmo Lúcio. Mas até hoje eu não sei. 149 No seu apartamento do Belair, Guará recebia amigos de Minas que vinham ao Rio para assistir ou participar do Festival JB-Mesbla. Entre os visitantes, me lembro do Flávio Werneck, cineasta mineiro; do crítico Ricardo Gomes Leite, que era fotógrafo e de vez em quando passava por lá; e recordo também do Neville Duarte D’Almeida, recém-chegado dos Estados Unidos e sempre 12083517 J Marinho miolo.indd 149 25/11/2010 16:09:08 muito elegante. A gente comprava um garrafão de vinho barato e ficava bebendo a tarde toda, recebendo os amigos. Rogério Sganzerla passou por lá algumas vezes, assim como Andrea Tonacci. Nos juntávamos ali e caminhávamos até a Rua Senador Vergueiro, no Flamengo, onde ficava o badalado Cinema Paissandu, palco do Festival JB. 150 Foi numa visita ao Belair, para conversar com seu irmão Ricardo e rever a turma, que o Maurício Gomes Leite me conheceu e elogiou meu trabalho em Terra em Transe. Os atores principais de Vida Provisória eram Paulo José e Dina Sfat. Entre os coadjuvantes estavam Paulo César Peréio, Hugo Carvana e eu – três que vinham de Terra em Transe. Em homenagem ao Glauber, Maurício pediu que mantivéssemos nossos próprios nomes, Marinho, Hugo e Paulo César. Nós fomos filmar em Brasília. Meu personagem era o chefe de reportagem de um jornal, que indicava o que as pessoas deviam fazer. O Maurício colocou o Celso Japiassu para fazer uma entrada ali, porque eram amigos e o Celso tinha sido ator. Nessa cena, eu dizia ao Paulo José: Agora você vai entrevistar o Senador Japiassu. E era uma homenagem ao Celso, porque quando ele aparecia não citavam o nome. O Wilker também participava desse filme, novinho, magrinho com óculos de fundo de garrafa. Inclusive acho que 12083517 J Marinho miolo.indd 150 25/11/2010 16:09:08 o primeiro papel do Wilker fui eu quem o indiquei, no El Justicero, em um grupo de playboys da Zona Sul. Nesse meio tempo, o Glauber estava me procurando para fazer o Dragão, mas como eu estava filmando em São Paulo, ele colocou o Vinícius Salvatori no meu lugar, no papel do pistoleiro, Mata Vaca. O Bandido da Luz Vermelha Depois dessa maratona, compondo tipos diferentes e trabalhando com diretores de diversos estilos, em produções ambiciosas ou modestas, recebi um recado do Rogério Sganzerla, que se preparava para filmar O Bandido da Luz Vermelha. Eu estava em Brasília fazendo A Vida Provisória quando ele me pediu para viajar imediatamente para gravar o Bandido. Desde que me viu em Terra em Transe, ele queria que trabalhasse num filme dele. Eu tinha visto o roteiro no bar da Líder, onde ele aparecia às vezes. Depois, em São Paulo, quando fui lançar Todas as Mulheres do Mundo, fiquei morando uns dias com um amigo dele, José Alberto Reis, na Rua General Jardim. Como o Rogério aparecia muito nesse apartamento, à noite nós saíamos e ele falava com entusiasmo do projeto do Bandido. 12083517 J Marinho miolo.indd 151 151 25/11/2010 16:09:08 José Marinho em O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, 1968 José Marinho e Luiz Linhares em O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla 12083517 J Marinho miolo.indd 152 25/11/2010 16:09:08 Arnaldo Weiss, José Marinho e Luiz Linhares em O Bandido da Luz vermelha, de Rogério Sganzerla 12083517 J Marinho miolo.indd 153 25/11/2010 16:09:09 154 Quando fui para São Paulo ainda não sabia como estava a produção. Peguei o ônibus da meianoite e viajei ao lado do cineasta Marcos Farias, que tinha negócios em São Paulo. De manhã, encontrei o Rogério. Fomos às lojas comprar as roupas e adereços do personagem que iria interpretar: chapéu de palhinha branca, cachecol. Terminamos de montar o guarda-roupa e às cinco da tarde já estávamos na Avenida São João para aquela sequência inicial do carro de polícia e da moça que é jogada. Foi tudo improvisado ali. Aquele diálogo todo ali foi improvisado. Eu vou pendurado no carro da polícia, pulo, o Luiz Linhares, que era o delegado Cabeção, estava dentro do carro e eu olho para dentro do carro da polícia onde estou pendurado e falo: A Flor do Meu Bairro se mandou chefe. O Linhares: Você a conhece? Conheço, a Cíntia, amante do japonês voador. Ah, como se não bastasse o Luz! E ainda por cima vem cair na minha área! Luz era o Bandido que o delegado estava procurando. Como foi feito esse diálogo com ares surrealistas? É que o Rogério tinha que dar um nome qualquer para a prostituta. Aí disse: Não estou gostando desse nome... Marinho e Linhares, me ajudem, vocês são mais experientes. Me lembrei de uma música do Adelino Moreira, cantada pelo Nelson Gonçalves. Os versos eram marcantes, puro melodrama: A flor do meu bairro / 12083517 J Marinho miolo.indd 154 25/11/2010 16:09:09 Tinha o lirismo da lua/ Morava na minha rua/ Num chalé fronteiro ao meu/ Eu conheci/ O seu primeiro amor/ O seu primeiro beijo/ O primeiro beijo seu... Hoje depois de alguns anos/ Eu encontrei-me com ela/ Na rua dos desenganos/ Menos ingênua e mais bela. O Rogério gostou: Ótimo, tá aí, é a prostituta. Tá certo. Virou a Flor do Meu Bairro. Porque o cara conheceu a prostituta quando ela, menininha, morava na casa fronteira à sua, os dois namoraram e tal, e mais tarde ele a reencontra na zona e tem que pagar por um beijo. O Rogério achou ótimo. Foi nesse clima de improvisação que construímos essa sequência. E uma outra, aquela do cigarro, lá na Boca do Lixo, num botequim na Duque de Caxias. Na mesa, eu e Linhares bebíamos conhaque e olhávamos fotos do Bandido, e no meio dessas fotos aparecem algumas de aniversário da filha dele, aí mistura tudo. E eu digo: Oh, que bonito. Ele diz: Ih, rapaz, isso aí não é bandido não, é minha filha, Tarzan pô! E no diálogo do cigarro há também nossa contribuição: Ô chefe, tá fumando demais, fumo dá câncer. É, eu já tentei parar, mas não consigo. Fumo americano, que dá mais câncer ainda. Qualquer dia desses ele diz Tarzan, de tanto fumar acho que vai dar um treco no meu coração. Doutor, não tem problema, tamos aqui. Porra, Tarzan, tu já quer assumir meu lugar! Tudo isso foi improvisado. 12083517 J Marinho miolo.indd 155 155 25/11/2010 16:09:09 156 Diálogo Produtivo Rogério dialogava conosco. Eu e o Linhares montávamos um diálogo e mostrávamos ao Rogério, que dizia: Tá bom. Foi tudo assim. E num clima muito bom, relaxado. Quando você trabalha tenso com um diretor, não faz a coisa legal. Você só está bem quando confia no diretor, um confia no outro. Você está entregue a ele. É uma pessoa entregue à outra. Porque no teatro você faz sozinho, o diretor já cuidou de você há muito tempo. Em cena, é você, o palco e a plateia. No cinema não, o diretor tá toda hora de olho. O teu olhar falseou, qualquer coisa, ele já está vendo. Então ele tem que confiar em você. Fazer um take de dois, três minutos, para um ator é tempo para caramba ensinando. A câmera é a coisa mais verdadeira que existe. É a coisa que mais disciplina o diretor e o ator. O limite da câmera. Porque você só tem direito ao seu enquadramento. O Glauber fazia o enquadramento com os dedos, sem aparelho nenhum. E dava ao ator o limite pra ele atuar e improvisar ali. O Rogério já tinha a escola do Glauber com ele, gostava de Terra em Transe, que me botou em muitos outros filmes, inclusive declaradamente no Bandido da Luz Vermelha. E ele era muito jovem. Rogério completou 21 ou 22 anos durante as filmagens. Muito novo. Ele dizia: Eu não tenho 12083517 J Marinho miolo.indd 156 25/11/2010 16:09:09 experiência com prostituição, malandragem. Eu disse para ele uma coisa. Ele tava procurando o personagem do Bandido. Já tinha andado por São Paulo procurando o Cabeção. Primeiro, queria o Lima Duarte. O Lima não aceitou, estava fazendo uma peça e ficou meio indeciso, o diretor era um garoto novo. Aí fomos assistir a Fernanda Montenegro fazendo A Volta ao Lar, de Harold Pinter, e lá estava o Linhares. O Rogério disse: Pronto, é o Linhares. Fechamos com o Linhares. Fomos procurar depois o Bandido. Ele queria um tipo másculo, com cara de bandido, mas meio galã, que tivesse um certo charme de galã. Isso dificultava a escolha do ator. Nessa procura para lá e para cá, conseguimos fechar mais ou menos o elenco. Quando voltei para o Rio, ele já pensava no Paulo Villaça. E acabaram fechando. Foi um alívio, porque era exatamente o tipo que ele queria: Villaça tinha algo que lembrava o Bandido da Luz Vermelha verdadeiro. Bastava ver as fotos publicadas no jornal. O Rogério queria retratar essa semelhança. O Villaça tinha um certo troço de cabelo, de olhar. E saiu genial. Está imortalizado naquele personagem. 157 O Rogério tinha um jeito de garotão do sul de Santa Catarina, era muito tímido, tinha relação difícil com determinadas pessoas. Mas sabia o 12083517 J Marinho miolo.indd 157 25/11/2010 16:09:09 158 que queria. Durante dois anos, ficou levantando recursos para a produção do filme. O maior investimento, a maior força econômica foi do Deca, da Uranus Filmes. O irmão do Rogério, que era fazendeiro em Santa Catarina, também ajudou no financiamento. Rogério pagou todo mundo dentro da tabela sindical. Sem criar problema com ninguém foi montando aquele filme que virou uma marca na cinematografia brasileira. Nesse tempo em que estive lá, Zé Alberto Reis foi morar com o Carlos Ebert, fotógrafo que fez câmera no Bandido. Ficamos então morando juntos. Filmamos em março, abril e maio. Voltando ao Rio, depois da filmagem, participei das passeatas de 1968. Com Rogério mantive uma amizade pelo resto da vida, apesar de alguns tropeços. Uma vez o encontrei em Brasília e ele me propôs um café da reconciliação, porque estávamos meio brigados. Foi por causa da UFF, inclusive. Ele ficou chateado com um aluno que foi lá procurá-lo em meu nome, e o rapaz teria tratado mal a Helena Ignez. Por isso o Rogério ficou zangado comigo. Quando lancei meu livro sobre documentário paraibano, Rogério elogiou e achou o título maravilhoso, Dos Homens e das Pedras. Mas detestou o subtítulo, Ciclo do Documentário na Paraíba: Tira isso, Marinho! Cinema é universal. 12083517 J Marinho miolo.indd 158 25/11/2010 16:09:09 Amizade com Nelson Com Nelson, fiz três filmes – El Justicero, Amuleto de Ogum e A Estrada da Vida – e mantive uma relação de amizade que se prolongou pela Universidade Federal Fluminense. Costumo dizer que Nelson é meu padrinho, nessa área de cinema brasileiro. Foi por mérito do Jofre Soares e do Nelson que cheguei ao Roberto Santos e ao Matraga. Trabalhei em São Paulo até 1970 fazendo cinema na Boca do Lixo. Foi em São Paulo que fiz Viagem ao Fim do Mundo, Bandido da Luz Vermelha e Uma Nega Chamada Tereza. Depois voltei ao Rio no início de 1971 para dirigir uma peça. Antes da estreia, o banco desistiu de emprestar o dinheiro, e a peça foi suspensa. Eu estava pensando em voltar para São Paulo quando encontrei um amigo pintor e ele me levou para um ateliê de restauração de quadros. Um dos donos do ateliê, Fernando Barreto, professor da UFF, me disse: Marinho, você lá em Recife dava aula em um curso pré-vestibular para Belas Artes. Não quer dar aula em cinema, não? Curioso, respondi na hora: Posso dar. Esse professor me contou que na Fluminense estavam criando um curso de comunicação social que teria um setor de cinema coordenado pelo Nelson. Ele me pediu um currículo para ser encaminhado ao departamento e se comprometeu a falar com o Nelson. Fiz o currículo e entreguei. Mas, e o 12083517 J Marinho miolo.indd 159 159 25/11/2010 16:09:09 Nelson? Estava na França. Esperei um mês até que uma noite encontrei o Nelson numa festa em Niterói. Ele ficou feliz com meu interesse em dar aula. Falei que tinha entregue o currículo ao Fernando Barreto. Um mês depois encontro o Nelson num bar na Rua Álvaro Ramos. Ele pediu um chope para nós e brindamos: Toca aqui, somos colegas! Intrigado, eu disse: Claro, você é diretor e eu ator. Ele explicou: Não, ambos somos professores. E bateu o chope, quer dizer, o mesmo chope que o Jofre bateu lá atrás pra eu fazer Matraga, ele bateu de novo. 160 Depois, já na universidade, fizemos juntos O Amuleto de Ogum e o Nelson dizia: Marinho, quero dar aula, mas não posso abandonar meu trabalho de diretor do cinema brasileiro. Tenho responsabilidade com isso. Não posso me isolar só pra dar aula. Ele acabou se licenciando, sem remuneração. Mais tarde, voltou a dar aulas e a articular projetos para o curso e tudo. Todos os projetos que o curso desenvolveu na década de 1970 para curta-metragens foram resultado da ação do Nelson junto à Embrafilme, ao INCE e a outras instituições que respeitavam seu prestígio de cineasta. Um Método Peculiar O Nelson é um universo totalmente diferente do Rogério, do Roberto Santos e do Glauber. 12083517 J Marinho miolo.indd 160 25/11/2010 16:09:09 O Nelson tem um método de instigar por fora. Nós ficamos hospedados em Caxias, num colégio onde tinha cozinheira que preparava nosso jantar. Numa noite cheguei para filmar e estava com o cabelo grande – eu tinha feito uma peça de teatro. O Nelson me mandou cortar o cabelo. Fui a uma barbearia do outro lado da praça, cortei o cabelo e voltei. O Jofre Soares comentou: Esse cabelo ainda tá grande. O Nelson não quer cabelo desse tipo, não. No outro dia de manhã fomos para filmagem. O Nelson chegou lá e disse É, Marinho, esse cabelo tem que cortar mais um pouco. Aí o Francisco Santos, que escreveu o argumento do Amuleto de Ogum, se ofereceu: Eu sei cortar com gilete, baixinho, francês. O Nelson pediu então para ele cortar meu cabelo. O Jofre me chamou depois e disse assim para mim: É, Marinho, você tava com cabelo de galã e o galã aqui não é você não, é o Nei, o filho do Nelson. 161 Fiquei intrigado com a observação do Jofre sobre o negócio do cabelo. Na hora do jantar, até o Carnera, que não se intrometia na vida dos outros, começou a implicar com o cabelo. E o Nelson nem tava aí. Fiquei indignado com as reclamações. Quinze dias depois, o Nelson me chama para conversar e diz: Marinho, lembra a confusão daquela noite, do Carnera e do Jofre enchendo teu saco? Fui eu quem mandou. 12083517 J Marinho miolo.indd 161 25/11/2010 16:09:09 Antonio Carnera, José Marinho e Washington Fernandes em Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, 1973/74 José Marinho em filmagem de Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, no campo de futebol do Clube América/RJ, 1973 12083517 J Marinho miolo.indd 162 25/11/2010 16:09:09 José Marinho e figurante Russo, nas filmagens de Amuleto de Ogum em Duque de Caxias/RJ, 1973 12083517 J Marinho miolo.indd 163 25/11/2010 16:09:09 Você estava fora do personagem. Você estava tratando o Jofre como se fosse numa relação de igual para igual, e não deveria ser assim – ele é o coronel, você é o pistoleiro. Então eu tinha que fazer o Jofre te provocar, para você ficar com raiva dele, mas respeitando. Agora nem me preocupo mais com você, você já tá no personagem. 164 É assim que funciona o método do Nelson. Cada diretor tem um caminho próprio para conseguir o resultado, e o do Nelson era mandar os outros me provocarem para me enquadrar no personagem. O Nelson pode estar louco para discordar de você, mas ele se contém. Para ele, estourar é difícil. Ele vai de outro jeito. Primeiro, na piada, na brincadeira. Se você não entender pela piada, pelo humor, ele vai duro. Mas ele tenta que você entenda pelo humor. Tem vezes que você pensa que é apenas uma piadinha, mas não é, ele tá dando um aviso. E isso é outro negócio que ele faz muito. Em São Paulo, filmando José Rico e Milionário – Estrada da Vida, eu fazia o papel de um feitor da construção civil. José Rico e Milionário eram operários que a certa altura pediam licença para fazer alguma coisa, e na verdade estavam indo numa gravadora. Numa cena, o técnico de som Juarez Dagoberto marcou o lugar onde eu estava sentado e de onde deveria chamar alguém para 12083517 J Marinho miolo.indd 164 25/11/2010 16:09:09 Figurante Manuel Cavalcante e José Marinho em Amuleto de Ogum, 1973/74 12083517 J Marinho miolo.indd 165 25/11/2010 16:09:09 Antonio Carnera, Emanuel Cavalcanti, Chico Santos, José Marinho e Ney Sant’ana em Amuleto de Ogum 12083517 J Marinho miolo.indd 166 25/11/2010 16:09:10 ver onde estavam os caras (Zé Rico e Milionário). O Juarez instalou o Nagra na minha frente. Então, num movimento acompanhado pela câmera, eu gritava Sebastião!, virava para outra câmera e gritava de novo. O Juarez deslocava o microfone de um lado para outro. Quando começava a gravar, eu inverti tudo e o Juarez ficou sozinho: Marinho, que derrubada você me deu. Olha lá a cara do Nelson. E o Nelson lá parado olhando com aquela ironia, som direto, queimou película, perdeu rolo de filme. E o Nelson: Marinho, você tem noção de direta e esquerda? Ele faz umas piadinhas assim de leve pra não estourar. Esses erros que a gente faz às vezes é uma confusão. Mas o Nelson vai assim, com essas ironias. Para ele, estourar é difícil, quando ele estoura o negócio é sério. 12083517 J Marinho miolo.indd 167 167 25/11/2010 16:09:10 12083517 J Marinho miolo.indd 168 25/11/2010 16:09:10 Capítulo IV Tipologia do Homem Nordestino Na galeria de personagens que fiz nos filmes que citei há algumas características físicas bem determinantes, quase uma tipologia. Foi preciso ter muito talento para sair desse enquadramento, desse ciclo vicioso. Esse ciclo vicioso vem de uma formação de uma estética cartesiana, apolínea, da coisa bonita, do galã, do grego com herói bonito, forte, um deus. Desde as estátuas gregas e esses mitos todos. E depois isso foi se disseminando pelo mundo. O teatro, que também começou na Grécia, já tinha esse tipo de preocupação, porque, na definição do diretor russo Meyerhold, para fazer um herói épico, o ator deveria ser alto, espadaúdo, atleta e ter voz potente; para fazer um galã, um Dom Juan, precisava ter o rosto pálido, delicado, até um pouco feminino. 169 Essa concepção estética da arte e da tipologia, que data da época grega, chegou ao século XX. Chegou ao cinema americano com esse tipo do John Wayne de fazer o herói do western, o durão. Aos delicados cabia a composição dos heróis românticos. O Dom Juan espanhol gostava de aventuras amorosas à sombra, sempre 12083517 J Marinho miolo.indd 169 25/11/2010 16:09:10 170 nos lugares escondidos, porque senão perde o mistério do amor. E isso vem passando e você tem essa estética no cinema contemporâneo, principalmente no cinema americano e no francês também. Veja o caso do James Dean: era um tipo com feições delicadas, com cara de menino, vulnerável. Quando acontece isso com James Dean, que era um genial ator, essa coisa encaixa e vira mito, ninguém tira mesmo. Encaixa no inconsciente coletivo e vai além das coisas que se imaginou para aquele personagem, você o transporta para além do que está pensado. Porque o ator muitas vezes pega um personagem que está escrito de uma forma e leva para muito mais longe com ele. O ator que consegue melhor resultado é o que rompe as barreiras, o talento é tão grande que ele rompe com tudo isso e deixa o diretor pasmo. Em relação a James Dean, Elia Kazan dizia: Tem dia que eu não consigo fazer uma cena com ele, ele apaga e acabou. Agora tem dia que ele tá perto de Deus, luminoso. Aí rodo 10 planos, 15, ele faz tudo maravilhoso. Preconceito Cultural Com o ator de origem nordestina acontece o seguinte. Eu ia falar do Texas, do cowboy que é sempre alto, forte e o ator tem que ter essa relação. Até o sotaque lá tem. Aqui no Brasil tem isso. O teatro brasileiro sustentou isso por 12083517 J Marinho miolo.indd 170 25/11/2010 16:09:10 muito e muito tempo. No teatro brasileiro até a década de 1940 toda pronúncia, toda fonética era portuguesa. Porque a escola do ator brasileiro era moldada por Portugal, desde a época da companhia de Eugênia Câmera e tantas outras. O ator brasileiro de teatro foi formado nessa escola. Essa escola ensinava um diapasão de fonética, de inflexões, de sonoridades da língua... Você vê que os atores antigos tinham um domínio da língua de brincadeira. Me lembro que o velho Manuel Pera, pai da Marília Pera, falava com uma precisão de português erudito, com toda inflexão portuguesa, mas com uma precisão da língua fantástica. E na rua falando com você não tinha a mesma linguagem. Quem quebrou isso no Brasil? 171 A contestação desse esquema pode ser atribuída a muita gente. Mas na verdade, a principal ficou por conta do Arena de São Paulo. Com o Boal tentando encontrar uma linguagem para o ator brasileiro, adequada ao ator brasileiro, ao ator carioca, nordestino, gaúcho, mas brasileiro, com traço de brasilidade. Essa foi uma das grandes contribuições do Boal no Arena. Todo mundo que conviveu com Boal sabe disso. E dá confiança a você. Eu logo que cheguei no Rio, fiz Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come. Mas só consegui fazer porque era uma peça do CPC da UNE, com um pessoal arrojado 12083517 J Marinho miolo.indd 171 25/11/2010 16:09:10 como Vianinha, Ferreira Gullar, Armando Fontes, Paulo Pontes, que já tinha quebrado esse tabu de teatro esnobe, de pronúncia portuguesa, de francesismo. Para ser Hamlet é obrigatório ser loiro de olhos azuis e feições delicadas? Eles quebraram com tudo isso. Hamlet é o ator que eu botar para fazer. 172 Essa subversão deu muita força para a gente que veio do Nordeste poder entrar nesse universo. Tanto que eu entrei primeiramente muito mais no cinema do que no teatro carioca. Eu fiz O Bicho no teatro e quando voltei ao palco com Amir Haddad, Paulo Affonso Grisoli não tinha mais esse preconceito. Era o que eu pensava. Quando, por exemplo, o Antonio Abujamra montou uma peça francesa no Rio fui procurá-lo, porque precisava trabalhar. Ele me desapontou ao dizer: Marinho, como é que você quer fazer um personagem francês? Não vai dar, meu filho... Depois que entrei na Globo, na primeira versão da novela Roque Santeiro, o negócio começou a melhorar e o preconceito a desaparecer. Fiz 42 capítulos, mas a novela acabou proibida, não foi ao ar. Mas o Daniel Filho, que tinha visto a novela, me chamou e acabei fazendo Pecado Capital – de ponta a ponta. Depois disso vieram as séries Carga Pesada, Plantão de Polícia e outras. Dali em diante, ao menos na Globo, o pessoal foi 12083517 J Marinho miolo.indd 172 25/11/2010 16:09:10 esquecendo meu sotaque, e eu fazia qualquer coisa: drama, comédia. Quando você ganha certo status, esquecem seu sotaque. Passei a fazer Viva o Gordo, Chico Anísio Show... Ninguém mais perguntava se Marinho era nordestino. Isso é incrível. Mas tem muita gente que sofre com isso, com ser rejeitado pela origem. O José Dumont deu a volta por cima pela genialidade dele, mas mesmo assim estão procurando enquadrá-lo. Para escapar dessa armadilha do tipo nordestino é preciso mais do que força de vontade individual, é preciso vencer uma resistência cultural, que está disseminada no meio artístico. A formação teatral brasileira está ligada à escola europeia, francesa. Por incrível que pareça, quem tentou quebrar essa fôrma foi um europeu. Em matéria de encenação, foi Ziembinski, um polonês, que em 1944, na primeira montagem de Vestido de Noiva, pegou toda a gíria carioca do Nelson Rodrigues e jogou no palco. A estrutura linguística da peça era desconhecida no teatro praticado então. Para verificar, basta ler a crítica da época, os críticos de suplementos dominicais, que ficaram assustados com a ousadia da encenação. Ziembinsky serviu-se do Nelson para quebrar a fôrma. 173 No cinema há o perigo do exotismo, do típico. Sei que existe esse perigo. Por isso às vezes evito fazer determinados personagens. A não ser que 12083517 J Marinho miolo.indd 173 25/11/2010 16:09:10 174 seja uma coisa que me interesse muito. Porque se só é pra botar physique du rôle lá, eu não vou. Se precisa de nordestino, podem pegar alguém por aí... Mas se o personagem me interessa, eu vou. No Bandido o personagem Tarzan era um investigador de polícia, paulista a vida inteira. Até hoje ninguém discutiu alguma coisa do gênero: Marinho fez um nordestino lá em São Paulo. Todo mundo aceitou. É só vestir, limpar o sotaque e seguir adiante. Veja o caso do Bandido, de Terra em transe. Já no Amuleto de Ogum, estou caracterizado como nordestino, mas por uma exigência do papel. O personagem é um pistoleiro que vai de ponta a ponta da narrativa. Agora, se for para fazer uma participação especial de um dia de filmagem, interpretando um nordestino, não dá. Folclore não. Não entro nesse esquema do folclore. Nunca fiz pornochanchada. Não devido a preconceito, mas por causa de uma visão política e cultural. Eu vivia muito no mundo do Cinema Novo, de um cinema que pensava no Brasil, refletia o Brasil, preocupava-se com o processo político brasileiro. Então achava que não tinha nada a ver um cinema para ganhar dinheiro. E nunca pensei em ganhar dinheiro, isso também era um negócio da minha cabeça. É uma questão de formação. Desde menino, meu irmão Josias, que 12083517 J Marinho miolo.indd 174 25/11/2010 16:09:10 hoje é comerciante aposentado, tinha sempre uma atitude quando alguém chegava para ele e propunha: Josias, quer trocar esse cinto aí teu por esse aqui meu? Eu te volto tanto... Ele dizia: Vamos! Tirava o cinto e dava para o outro. Comigo sempre foi diferente. Eu nunca trocava nem um pão pelo outro. Nunca fui de negócio, nunca pensei em ganhar dinheiro. Então fazia as coisas, e faço até hoje, por amor às causas. Por isso fiz o cinema brasileiro mais ligado à esquerda. Também fiz o teatro ligado a isso, desde Recife. Depois me envolvi com a universidade, virei professor, fiz mestrado e fui me afastando do teatro. Porque o teatro é realmente uma religião, você tem que se dedicar 24 horas por dia. Se não, você não faz teatro legal. Ainda fiz algumas montagens lá dentro da universidade mesmo. Mas como ator, nunca mais. Cheguei a fazer muito teatro aqui e em São Paulo. Trabalhei em peças maravilhosas, como Tom Payne, com direção do Ademar Guerra; fiz Grande Sertão: Veredas. Mas nunca me encantei com esse lado de ganhar dinheiro e também nunca fui galã, nem no teatro, nem no cinema. Esse physique du rôle não pega comigo. Mas fiz muita coisa que gostei de ter feito, sem ter que ser galã nem ter que fazer também essas coisas enclausuradas num retrato só. 12083517 J Marinho miolo.indd 175 175 25/11/2010 16:09:10 José Marinho, Elias Gleizer e Antonio Petrin na peça Tom Payne no Teatro Veredas/SP José Marinho durante a temporada de Tom Payne no Teatro Veredas - São Paulo/SP 1969 12083517 J Marinho miolo.indd 176 25/11/2010 16:09:10 Capítulo V Reflexão sobre o Ator Sobre a espontaneidade interpretativa desenvolvida com o Cinema Novo, seria preciso dizer que ela é uma consequência da evolução do ator no cinema moderno brasileiro. Em comparação com outras épocas, essa mudança é visível. Por exemplo, em todo o período da Vera Cruz, que é época do cinema sério, dentro dos moldes clássicos, os atores ainda estão muito presos. Revendo esses filmes, você percebe como os atores são formais. Já no Rio, a chanchada solta os atores. Oscarito, Grande Otelo, Ankito, esses puxadores das gags, da comédia popular, são descontraídos e descontraem o elenco. Por isso os elencos das chanchadas parecem muito mais espontâneos com relação aos atores dos dramas ou comédias da Vera Cruz. 177 Quando estive no México, há uns 10 anos, notei que o ator mexicano das novelas, com seus cabelos engomados e sua voz empostada, era muito preso, tradicionalista, na postura e no físico. Até hoje ele mantém aquele traço do melodrama mexicano de lá, da época do Arturo de Cordova e outros tantos. Comentei esse aspecto com um professor da Universidade do México e ele observou que a dramaturgia da novela brasileira 12083517 J Marinho miolo.indd 177 25/11/2010 16:09:10 é muito melhor, mais bem resolvida do que a deles, tanto do ponto de vista de elenco como no das narrativas. Esse professor também é até roteirista de cinema. E disse que lá no México ele até lutava para romper com esse padrão, mas não tinha sucesso, porque a mentalidade é muito tradicionalista e segue rigidamente modelos clássicos de dramaturgia e de interpretação. 178 Antes do Cinema Novo, Nelson já tentava algo diferente em Rio Zona Norte, Rio 40 Graus... Mas Grande Otelo com o sambinha e Ângela Maria, por exemplo, ainda obedecem às marcações. Ismail Xavier observou que Rio Zona Norte ainda está muito preso aos padrões tradicionais do cinema. Só aos poucos o Nelson vai se soltando. No começo, ele ainda está influenciado pelas chanchadas e os dramas da Vera Cruz, na qual foi assistente de direção ou coisa parecida. Já quando fez Boca de Ouro, percebemos que ele se soltou, que lidou muito bem com a malandragem carioca. Aliás, ninguém adaptou Nelson Rodrigues tão bem quando o Nelson. Arnaldo Jabor foi maravilhoso também. Mas a concepção do malandro do Jece Valadão em Boca de Ouro é única. O método muda em Vidas Secas. Nelson teve que ser mais rigoroso, porque o Átila Iório era um ator de teatro, aquele de tipo tradicional. 12083517 J Marinho miolo.indd 178 25/11/2010 16:09:10 Foto de José Marinho feita na casa de praia de Nelson Pereira dos Santos em Itaipuaçu - RJ 1999 12083517 J Marinho miolo.indd 179 25/11/2010 16:09:10 O Nelson o obrigou a andar descalço, por cima das pedras. Átila dizia que não aguentava, que tinha espinho por ali e o Nelson dizia que não tinha nada. Então tirava os sapatos e andava por cima das pedras, que estavam cheias de espinho embaixo. E depois dizia: Agora anda você. Câmera! Foi Nelson quem me contou isso. Ele mesmo ficou descalço para convencer o ator. Desse modo, sai da bitola, do tipo Peraí, o ator não aguenta então vamos solucionar de outra forma. Ele tem essas saídas. 180 No Amuleto de Ogum, por exemplo, a gente estava filmando dentro de uma sala pequena, na casa do Tenório Cavalcanti, lá em Caxias, onde o coronel interpretado pelo Jofre recebia os pistoleiros e lá do interior da casa vinha a Anecy, amante dele. O Nelson fez toda a decupagem e quando foi filmou viu que o Carnera estava fora da cena. Qual foi a saída? Ele criou um primeiro plano em que o Jofre manda o Carnera ir buscar gelo, e este sai e fecha a porta. Só que, no plano seguinte, entrava a Anecy vindo do interior da casa dizendo: Olha o gelo! Olha o gelo! Para justificar a sequência, então, o Nelson cria outro plano final do Carnera voltando e dizendo ao Jofre: Ô, patrão, eu não consegui encontrar o gelo. Ah, não precisa de gelo porra nenhuma! Vai embora! Funcionou. 12083517 J Marinho miolo.indd 180 25/11/2010 16:09:10 Com o Nelson, a espontaneidade controlada virou um estilo. No Cinema Novo, essa espontaneidade se consolida com outros diretores. As improvisações do Glauber no Deus e o Diabo na Terra do Sol, com aquela câmera na mão, aquelas ladeiras, aqueles atores, só conversando com o Othon... Eu gostaria de saber como ele conseguiu aquele resultado. Eu acho que houve uma combinação de sol ardente, daquele sol do sertão, de força de vontade dos atores (e muita persuasão do Glauber) para os atores aguentarem... Yoná Magalhães e Geraldo D´El Rey, atores da cidade colocados no meio daquele tabuleiro ali, não é fácil não! E todo mundo interpretando, vivendo como se fossem gente dali mesmo, adaptados ao ambiente, ao clima, ao calor. 181 Já em Macunaíma a gente vê que o estilo do Joaquim Pedro é diferente daquele de O Padre e a Moça, que está mais solto, mais espontâneo. Todo o clima de literatura com a liberdade dos atores e a espontaneidade vai aparecendo naturalmente. Como no Bandido, como eu lhe falei aparece muita espontaneidade dos atores e improvisação do diretor ali na hora. Há planos que não estavam na história, mas de repente uma coisa acontece ali e é aproveitada. O Rogério, por exemplo, tem um rapaz que é preso na Boca do Lixo e o pessoal amarra ele num poste e começa a bater nele. Ele é ladrão e tá drogado babando. 12083517 J Marinho miolo.indd 181 25/11/2010 16:09:10 Nós íamos sair para filmar com a equipe, estava tudo no carro. Aí o Rogério mandou filmar o cara no poste amarrado enquanto a polícia ia chegar para prender o cara. Depois ele botou aquilo dentro do filme. Não estava no roteiro, nem nada, mas na Boca do Lixo cabe tudo, então cabe essa também. Como coube o do ecrã no Dragão da Maldade. 182 Quando o Ismail Xavier deu um curso sobre o Glauber e a desconstrução narrativa no Cinema Novo, conversamos muito sobre essa questão, que acompanhei de perto, trabalhando com diretores que tinham métodos diferentes de narrar. Comentei com o Ismail que essa desconstrução do Cinema Novo deixou de existir. O cinema brasileiro atual não é nem Vera Cruz, nem Cinema Novo, nem é chanchada da Atlântida – é um outro cinema brasileiro. O bom cinema é diferente, ainda estou tentando encontrá-lo, mas não sei como vou chegar nele. Vejo um filme, peço outro na locadora, procurando encontrar esse cinema atual. Sei que tem um filão lá atrás do Cinema Novo, mas não é uma coisa direta, não tem o empenho ideológico do Cinema Novo, não tem uma postura intelectual. Mas percebo que os novos cineastas querem trabalhar uma linguagem brasileira bonita, simples, descontraída, descarregada. Por isso não há desconstrução narrativa, mas simplicidade no modo de contar, 12083517 J Marinho miolo.indd 182 25/11/2010 16:09:10 simplicidade nos enquadramentos, sem muito rebuscamento. Existem alguns mais rebuscados, como o Cláudio Assis do Amarelo Manga e do Baixio das Bestas. Mas o cinema que vejo não me parece ser aquele cinema que está lá atrás, com o Cinema Novo. Lembra Iracema? A historinha é que interessa. Esse negócio amadureceu e deu em outro cinema. Outras Vertentes Acompanhando a mudança no cinema brasileiro, como ator e professor, percebo que não houve um desenvolvimento na linha do Cinema Novo. Tempos atrás, em outra discussão com o Ismail Xavier e com gente de cinema em Brasília, eu disse que ainda tinha muita coisa no esquema do Cinema Novo. Os filmes da Tata Amaral, por exemplo, são de um cinema dela, absolutamente pessoal. Ainda assim acho que tem alguma coisa de Cinema Novo. Acho que os filmes do Cláudio Assis, que mencionei acima, têm uma certa violência daquela época, mas não têm uma violência da favela. Por outro lado, tem filmes que não têm violência e são maravilhosos. Sei que a violência faz parte do cinema de hoje, que é um elemento da atualidade. Mas é cansativa, exagerada. É coisa do cinema americano. Na década de 1930, o cinema americano era o musical e o policial, não tinha mais saída. Final de 1930 já começou O Vento Levou, romances e tudo o 12083517 J Marinho miolo.indd 183 183 25/11/2010 16:09:10 mais. Depois vem o filme de guerra, o cinema noir – a década de 1940 foi quase toda de noir. E depois vem a juventude rebelde, anos 1950, rock‘n’roll, James Dean, Elvis Presley, Marlon Brando, Juventude Transviada. 184 No Brasil, também o cinema de hoje reflete essa realidade, essa violência. Mas reflete outro tipo de sentimento, outro tipo de preocupação. Ainda estou meio perdido para ter uma visão precisa disso. Preciso juntar um bocado de filme para refletir direito sobre este cinema contemporâneo. Porque até uns cinco, seis anos atrás eu ainda tinha um referencial, mas depois perdi esse referencial. Mas sei que tem alguma coisa diferente, que tem um outro cinema que já está aí e é muito bom. E também tem mudança nos atores. Você encontra um ator mais solto, não é mais aquele ator preso da década de 1950. Ele está dentro de um espaço que não é a televisão. O Selton Mello, por exemplo, é de televisão, mas quando está no cinema muda de postura. Fiz com o Selton Guerra de Canudos e vi como ele entra no cinema. O ator antigamente, quando fazia muito teatro, tinha medo de fazer cinema, de se perder no cinema. Às vezes já era ator famoso no teatro e achava que o cinema ia rebaixá-lo. Os atores de hoje não têm mais esse preconceito, eles até vol- 12083517 J Marinho miolo.indd 184 25/11/2010 16:09:10 tam a fazer teatro. Os diretores de hoje não têm muito trabalho com os atores. Os atores são mais maduros, a própria história do cinema brasileiro amadureceu isso. As coisas têm que ter memória, você não pode partir do nada. Você como ator tem que ver muito o trabalho de outros atores, como cineasta, ver muito o trabalho de outros cineastas. É uma linguagem. O talento já está desde o início. Nos seus primeiros trabalhos o ator já evidencia seu talento. Mas a técnica, a linguagem, isso só vem com o tempo. Hoje me sinto muito mais solto para fazer os personagens. Fiz uma participação especial na Record: um padre no meio do calor, num cemitério e um batalhão de polícia, uma banda de música. Há muito tempo não fazia um set profissional. Mas aí foi um padre que fez um discurso, um salmo inteiro, e eu me senti no início assim pesado. E pensei Peraí, Marinho, sai dessa, é a apresentação da novela. E aí peguei o texto já assim e o cara não fez nenhuma observação. Repetiu umas dez vezes para mudar o enquadramento mas nunca fez observação sobre o texto, nada. E os colegas acharam perfeito. 185 A gente amadurece com o tempo. Tem ator que chega muito mais rápido à maturidade. Há atores que com cinco anos de carreira estão perfeitos para qualquer personagem, quer dizer, dentro das limitações que o homem tem. O Wilker con- 12083517 J Marinho miolo.indd 185 25/11/2010 16:09:10 tou isso outro dia como piada. Tem uma história do Marlon Brando, num making off que fizeram do Marlon Brando num filme do Coppola, e perguntaram como ele fazia o personagem. Ele disse: Eu, quando vou fazer um personagem, sento, estendo a mão e espero. Perguntaram o que ele esperava. E ele: A máscara. O Wilker, quando lhe perguntaram como buscava o personagem, ele respondeu: Eu não busco nada, ele, se quiser, que venha pra mim. Não sei se ele tava contando dele mesmo ou de outro ator. 186 Prêmio Especial Durante minha vida de professor sempre me neguei a trabalhar com os alunos como ator. Eu ficava na organização da produção, apoio e tal. Mas de uns anos para cá comecei a interpretar em filmes da escola. Numa dessas participações, para um filme de um aluno chamado Thiago Morena, terminei ganhando um prêmio especial do júri no Festival de Brasília do ano 2000. Faço um produtor de um filme pornô que contrata um ator e o ator não atinge o que ele quer, não consegue fazer a coisa legal, é muito afeminado, é muito cheio de frescura. É uma crítica a essas coisas todas. Aí ele demite o cara, tem um enfarte e corrige o diretor e tal. Sou eu e um ator que começou lá no curso de cinema da UFF também, o Thales Coutinho. Somos nós dois e outros personagens menores. E lá no festival de 12083517 J Marinho miolo.indd 186 25/11/2010 16:09:10 Tiago Moreno, Juan Carlos Gonzales e José Marinho nas filmagens de Arábia, de Tiago Moreno 12083517 J Marinho miolo.indd 187 25/11/2010 16:09:10 José Marinho no filme Arábia, de Tiago Moreno 12083517 J Marinho miolo.indd 188 25/11/2010 16:09:11 Após receber o prêmio especial do Júri de Melhor Ator no 33º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, por Arábia, ao lado da roteirista Patricia Freitas, 2000 12083517 J Marinho miolo.indd 189 25/11/2010 16:09:11 Após receber o prêmio especial do Júri de Melhor Ator no 33º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, por Arábia, ao lado do diretor do filme, Tiago Moreno 2000 12083517 J Marinho miolo.indd 190 25/11/2010 16:09:11 Brasília, depois de uma sessão do filme, chegou um menino da USP e me perguntou: Você é o Zelito Viana? Fiquei surpreso com a pergunta, mas falei: Não, por quê? É porque você fez aquele produtor com tanta naturalidade que pensei que fosse o Zelito Viana. Criou-se então no festival uma febre em torno dessa atuação. Uma menina, professora da UNB, me encontrou e elogiou: Marinho, que coisa fantástica esse personagem. Mas parou de falar porque, alegou, ela era do júri! E um amigo meu virou para mim e disse: Marinho, acho que você vai ganhar esse prêmio. Já vi umas outras pessoas do júri comentando o mesmo que essa menina aí. Esse seu personagem está dando o que falar. Resolvi então ficar até o final do Festival e saiu esse prêmio especial do júri, porque não havia prêmio para 16 mm. O filho do Sérgio Mamberti ganhou o prêmio de ator de melhor filme em 35mm; e eu ganhei o de melhor em 16 mm. 191 É claro que fiquei muito feliz com esse prêmio especial porque estreei no Festival de Brasília em 1966. O primeiro foi promovido por Paulo Emílio Salles Gomes e ainda nem era Festival Brasileiro do Cinema, tinha outro nome. Matraga foi o filme premiado naquele ano. Outros filmes que fiz também foram premiados em Brasília, inclusive O Bandido da Luz Vermelha. O Ismail uma vez 12083517 J Marinho miolo.indd 191 25/11/2010 16:09:11 fez uma conta e disse Marinho, acho que você é o que mais tem filme premiado. Matraga foi premiado em Brasília, Bandido, Viagem ao Fim do Mundo, acho que foi também, Desesperato em Belo Horizonte. E o Ismail fez lá uma conta. E viu que eu estava sempre em um. 192 O Bogart da Boca No Festival de Brasília, O Bandido ganhou todos os prêmios, não foi proibido e teve muito sucesso em São Paulo. Com o passar do tempo, virou um cult movie, mas na época era um filme comercial, um filme de cinema. Foi nessa ocasião que a namorada do Carlos Ebert, a Sandra, me deu o romance Grande Sertão: Veredas com uma dedicatória: Ao Marinho, o Humphrey Bogart da Boca. O filme tinha o clima de filme policial, uma admiração do Rogério pelo gênero. Foi por isso que numa entrevista famosa ele qualificou O Bandido de bangue-bangue da Boca do Lixo. Aliás, foi essa entrevista que detonou o rompimento dele com o Cinema Novo. A relação dele com o Instituto Nacional do Cinema e, mais tarde, a Embrafilme, nunca foi boa. Mas foi a partir de seu rompimento com a turma cinemanovista que Rogério enfrentou dificuldades com os poderes instituídos. Os projetos dele eram vetados, até que Roberto Parreira, que dirigia a Embrafilme, o convidou para conversar. Com medo de ir sozinho, ele passou na minha casa, 12083517 J Marinho miolo.indd 192 25/11/2010 16:09:11 tomamos um litro de uísque e me convidou para acompanhá-lo. Um ano depois a Embrafilme aprovou o projeto de Nem Tudo É Verdade. Depois ele teve outro projeto aprovado, uma biografia do Noel Rosa, que não chegou a filmar. Joel Barcellos foi convidado para o papel. Quando eles começaram a filmar em Santa Tereza, Rogério e Joel brigaram e o filme não saiu. Esse episódio está registrado em uma conversa que tive com Rogério e que entreguei para a Helena Ignez publicar depois de mais de vinte anos. Escandalosas e Lampião Minha atuação em Bandido me abriu as portas para muitos filmes. Meus dois trabalhos seguintes foram no Rio de Janeiro, em As Escandalosas, do Miguel Borges, e Meu Nome é Lampião, do Mozael Silveira, produzido pelo Roberto Farias. Eu já estava morando em São Paulo quando o Miguel me chamou para interpretar esse delegado. Uma tarde eu e Miguel fomos ver na Cinelândia A Noite do Dia Seguinte, um filme com o Marlon Brando, em que ele participa do sequestro de uma garota. O Marlon se revezava com outro comparsa, tomando conta da garota. A certa altura, o Marlon Brando, que estava simpatizando com a garota, se queixa ao chefe que o outro sequestrador está paquerando ela. O chefe não dá muita bola. Marlon Brando volta enfurecido, ergue 12083517 J Marinho miolo.indd 193 193 25/11/2010 16:09:11 Ivan Candido e Marinho em As Escandalosas, de Miguel Borgues 12083517 J Marinho miolo.indd 194 25/11/2010 16:09:11 as mãos, gesticulando com raiva – e interpreta tudo com as mãos. O Miguel comentou nessa hora: Marinho, isso é genial! Essa cena pagou o filme! Ele expressa tudo com as mãos! Miguel tinha sido crítico e conhecia muito cinema. Ele gostava de citar cenas e diretores que apreciava. Na semana seguinte, quando voltamos a filmar, Miguel trabalhava uma cena em que uma garota morria em um bordel e um delegado ia lá investigar. O delegado vê a garota morta em cima de uma mesa. Miguel fez um travelling que ia da mulher até a porta e saía. O meu personagem, o delegado, ia e olhava a mulher morta. A atriz fora Miss Guanabara e tinha uns peitos grandes. Miguel mandou a moça tirar a blusa e ficar nua, mas coberta com um lençol. A cena começa com uma lente fechada em cima dos peitos da mulher, tomando a tela toda. A lente vai abrindo, eu vou chegando e entro no quadro. Nisso, um puxa-saco vem falar comigo e o carrinho vai saindo. Enquanto ele está saindo eu fico falando, gesticulando com as mãos para o alto, igual à cena do Marlon Brando. Rindo, Miguel disse: Pronto, Marinho, homenageamos o Marlon Brando. O Miguel era um diretor exigente que não filmava enquanto as coisas não estivessem como ele queria. Havia uma cena em que um puxa-saco ia acender o cigarro do delegado e tinha que ser um isqueiro zippo, mas não conseguiram o zippo. Miguel não 12083517 J Marinho miolo.indd 195 195 25/11/2010 16:09:11 quis filmar sem o zippo. Tiveram que ir ao Centro achar o isqueiro. Ele queria citar algum cineasta nessa cena que eu não sei. 196 Depois de As Escandalosas fiz Meu Nome é Lampião. A produção foi montada pelo Roberto Farias e a direção ficou com o Mozael Silveira, um ator característico, que trabalhou em muitos filmes no Rio e até na Vera Cruz. O Mozael dirigia, mas o Roberto estava lá de olho o tempo todo. Meu personagem era um cangaceiro, que seria interpretado pelo compositor João do Vale, porque tocava sanfona e cantava. Mas o João do Vale, que já estava famoso, não aceitou. Foi então que o Roberto me chamou. Ele me mandou cortar o cabelo para não ficar com cara de galã, já que o personagem era um cangaceiro feio, que currava mulheres. No filme há duas cenas de sexo. A primeira é com a Dilma Lóes, que faz a filha de uma baronesa. Os cangaceiros invadem a casa e a moça está vestida de noiva para casar. Eu a pego com vestido e tudo, jogo no chão e transo com ela enquanto os cangaceiros dão cobertura. A polícia chega e eu saio correndo com a braguilha aberta. O Roberto Farias riu bastante dessa cena: Pô, Marinho, que realismo fantástico! A outra cena de sexo se passa em outra cidade. Quando o bando invade a cidade, o Milton Ribeiro, que faz o Lampião, 12083517 J Marinho miolo.indd 196 25/11/2010 16:09:11 dá as instruções para todo mundo e me manda fazer a barba. Como na barbearia tinha um espelho, falei com o Mozael de uma cena clássica do western My Darling Clementine (Paixão dos Fortes), do John Ford, onde o Henry Fonda aparece sentado na cadeira do barbeiro. O Mozael gostou: Vamos homenagear o Henry Fonda e o Ford. Quando estou na barbearia, passa um galo na calçada. Tem dois cangaceiros de guarda, um em cada ponta. Eu mando um cangaceiro se afastar, faço a mira pelo espelho e atiro, matando o galo. Depois pego o galo e dou para uma filha do barbeiro cozinhar e vou transar com outra filha no quarto, na marra. Quando termino e saio para a calçada, alegre, chega Lampião. O barbeiro se queixa que eu currei uma filha dele e Lampião diz: Não tem perdão. Puxa a pistola 45 e me mata. Minha participação morre ali. 197 Meu Nome é Lampião foi feito no Município de Macaé, no Estado do Rio, no final de 1969. Depois da filmagem, voltei para o Rio e resolvi ir de novo para São Paulo, onde fiquei durante todo o ano de 1970 fazendo teatro. Mas além de trabalhar nas peças Grande Sertão: Veredas e Tom Payne, participei de Uma Nega Chamada Tereza, do Fernando Coni Campos. 12083517 J Marinho miolo.indd 197 25/11/2010 16:09:11 12083517 J Marinho miolo.indd 198 25/11/2010 16:09:12 Capítulo VI Novos Tempos e Desafios Enquanto já lecionava como professor, participei de vários filmes, trabalhei em teatro e televisão. Foi um período animado, intenso, com diversificação de tipos, personagens e métodos de interpretação. Voltei a filmar com Nelson (duas vezes), trabalhei com Paulo Thiago (duas vezes também), reencontrei o Rogério, estive em filmes de ex-alunos da UFF (Augusto Ribeiro, Tizuka Yamasaki e Nuno César de Abreu), conheci o jovem Fábio Barreto e retornei ao sertão com Roberto Farias. 199 Amuleto de Ogum Eu estava fazendo uma peça, chamada As Incelenças, onde era codiretor e ator, quando o Nelson organizava a produção de Amuleto de Ogum. Seis meses antes da filmagem, ele disse que me queria no filme. Comecei então a aparecer na Regina Filmes, produtora do Nelson, que ficava em Botafogo. Ia sempre lá nos finais de tarde conversar com ele e com o pessoal da Regina. Na época ele estava dando retoques no roteiro, pedindo sugestões, escolhendo o nome dos personagens. Chamou os atores e cada um escolheu o nome do personagem do outro. Nisso, Emmanuel Cavalcanti ficou Dr. 12083517 J Marinho miolo.indd 199 25/11/2010 16:09:12 200 Baraúna, que é uma árvore com uma casca preta que por dentro é vermelha e dura. Como ele iria vestir um terno preto e era um homem duro de opiniões, ficou esse nome. O Carnera, que tinha aparência de índio, ganhou o nome de Zé Índio, acho que por sugestão do Jofre. O Chico Santos ficou Chico mesmo. Para o Jofre, o Nelson inicialmente queria Severiano, numa alusão irônica ao Severiano Ribeiro, poderoso distribuidor e exibidor de cinema. Outro nome sugerido era Corleano, em uma referência ao Don Corleone encarnado pelo Marlon Brando em O Poderoso Chefão. Meu personagem, um pistoleirozinho abusado, ficou Quati, que é um bichinho vermelhinho e abusado. O Nelson incorporou esses nomes ao roteiro. Como era época de férias, a produção conseguiu um colégio em Caxias, onde nos hospedamos. Foram colocadas camas e contratada uma cozinheira para fazer o jantar. O almoço geralmente era um sanduíche na hora da filmagem. Então tomávamos café lá, íamos filmar, no almoço parávamos para comer sanduíches e à noite havia um farto jantar. O Nelson fotografou inicialmente com um assistente. O assistente de direção foi o Luiz Carlos Lacerda, o Bigode. Um dos atores foi o Jards Macalé, que também fez a trilha sonora. 12083517 J Marinho miolo.indd 200 25/11/2010 16:09:12 Na filmagem aconteceu uma confusão, porque na peça Incelenças eu usava o cabelo grande e o Nelson me pediu para cortar. Fui a uma barbearia e mandei cortar curtinho e baixo. Quando voltei ao colégio, o Jofre começou a me instigar: Este cabelo tá grande demais! Você tá com cara de galã e você não é o galã do filme. E começaram a me cutucar tanto que eu perdi a calma e saí da mesa. No outro dia, na filmagem, o Nelson falou com o Chico Santos que disse que sabia cortar cabelo com navalha e o Chico deixou meu cabelo ainda mais baixo. E então começamos a filmar. Filmávamos o dia todo e à noite íamos para um bar que tinha perto do colégio. Era época de verão, então todo mundo diariamente tomava uma cachaça e chupava um caju, como tira-gosto. Depois de 15 dias rodando, o Nelson deu uma folga e me chamou para falar em particular. Ele disse: Marinho, aquela briga que você teve com o Jofre, fui eu que provoquei. Eu precisava que você respeitasse mais o Jofre Soares. Você, enquanto pistoleiro, estava tratando ele, que é o coronel, de igual para igual e não estava conferindo o respeito que o personagem exige. E aquela bronca que o Jofre te deu foi justamente para causar isso, você ter o respeito por ele. E agora você já conseguiu encontrar o personagem e eu já nem me preocupo com você. No resto do filme fiquei mais à vontade. 12083517 J Marinho miolo.indd 201 201 25/11/2010 16:09:12 202 Na história, Anecy viaja para São Paulo, onde morariam os pais dela. Nelson me perguntou se conhecia alguém no subúrbio de São Paulo. Lembrei-me de um amigo, o Araújo, militante do Partido Comunista, que trabalhou no governo Arraes. Ele era pai do meu amigo Petrucio, que já mencionei. Lembrei-me que eles tinham construído uma casa no bairro Jardim Brasil. Falei com o Nelson e ele me mandou falar com o Araújo e acertar a locação. Toda a equipe iria na sexta-feira, porque o Ney Santanna casaria lá no sábado e no domingo seria a filmagem. O Ney namorava uma menina em São Paulo. Ele tinha ido morar lá para se preparar para o vestibular de Medicina. No domingo, foi marcada uma feijoada na casa do Araújo e aproveitamos para fazer tudo de uma vez: a filmagem e o casamento do Ney. A família do Araújo acabou fazendo o papel de família da Anecy na filmagem. Na esquina da casa tinha um sanfoneiro e o Nelson mandou contratá-lo para tocar no almoço. Eu e Araújo fomos lá e contratamos o sanfoneiro. Em cima da casa deles havia um terraço. E tudo isso formou aquela famosa cena do terraço com a música do Macalé tocada pelo sanfoneiro e a panorâmica do Jardim Brasil. Na crítica do José Carlos Avellar no Jornal do Brasil, se não me engano, ele começa falando daquela sequência, como se ela definisse o filme. E o Nelson brin- 12083517 J Marinho miolo.indd 202 25/11/2010 16:09:12 cava: Esse pessoal tem mania de fazer análise estrutural. Mas foi muito boa a crítica do Avellar. Quando retornamos ao Rio, paramos em Caçapava, onde estavam os túmulos do avô e do pai do Nelson. Ele quis filmar os túmulos porque sua intenção era incluir essas imagens no filme, mas na montagem ele acabou não o fazendo. O Amuleto tem o Tenório Cavalcanti como uma figura emblemática. O Tenório residia em outra casa e dispôs a casa de Caxias para nós, onde a irmã dele ainda morava. A família do Tenório é a mesma família do Emmanuel Cavalcanti. Quem criou o Tenório foi o avô do Emmanuel. Isso está no filme do Sérgio Rezende depois. Então havia esse parentesco. Um dia a irmã do Tenório chama o Emmanuel, que está com um terno preto, um guarda-chuva e diz: Você está lembrando o nosso bisavô, Barão de Buíque. Foi essa coisa familiar que permitiu que entrássemos na casa toda para filmar os quartos e tudo lá dentro. Na sequência final, filmamos no quarto do Tenório mesmo, onde Anecy fica com Emmanuel depois que o Jofre morre. Ele canta aí uma música que foi até sugestão minha Ingrata, porque me foges/ Por que me fazes sofrer?/ É inútil me fugires/ Hei-de amar-te hei-de amar-te até morrer! Ele canta isso olhando lá para baixo, o Jofre morto, o tiroteio acabou e está aquele silêncio. O Nelson guardou 12083517 J Marinho miolo.indd 203 203 25/11/2010 16:09:12 essa música para o final e o Cavaca, que é cantor, a interpreta muito bem. Depois o Amuleto ficou pronto e o Nelson fez uma sessão no cinema principal de Caxias. Convidou muita gente do Rio para assistir e lá estava o Tenório. Ele assistiu ao filme e quando terminou a sessão, ficou na frente do cinema, juntou a multidão e fez um belo discurso elogiando o filme. Foi uma sessão maravilhosa. O filme foi lançado, foi bem-sucedido e fiquei muito feliz de ter participado. 204 Sagarana, o Duelo Paulo Thiago era músico, tinha um conjunto musical e estudava Sociologia na PUC. Ele passou a aparecer na Difilm e comecei a conhecêlo. E tinha outro amigo nosso, que era o Ivan Cavalcanti Proença, e o Paulo Thiago o chamou para adaptar os contos do Guimarães Rosa. Me chamou também para dar umas espiadas no roteiro, dar umas opiniões e tal. O Ivan fez, então, a adaptação dos contos e o Paulo Thiago me incorporou no filme fazendo um personagem que era chofer de caminhão, um camarada meio malandro, esperto, que já tinha morado fora de Minas e encontra com o Turíbio, que é o Joel Barcellos. O Turíbio tinha ficado acampado em uma tenda cigana, dormido com uma cigana que rouba a roupa dele e vai embora. Ele acorda no 12083517 J Marinho miolo.indd 204 25/11/2010 16:09:12 dia seguinte sozinho e nu. Eu paro o caminhão no posto de gasolina, quando ele aparece nu e eu o ajudo, dou roupas e o levo no caminhão para fugir. A música que toca é uma do Caetano, que ele fez em Londres. Além de misturar muitos contos do Guimarães, Sagarana tinha um elenco muito complexo. O Paulo Thiago costumava brincar: Esse meu elenco é a seleção brasileira. Era, de fato, um grupo bastante diversificado e importante, quase uma homenagem ao cinema brasileiro moderno: estavam lá Átila Iório; Emmanuel Cavalcanti; Paulo Villaça; Joel Barcellos; Milton Moraes; Ítala Nandi, entre vários outros que ele foi escolhendo. Também tinha o Paulo César Pereio, que era um beato que andava louco, fazendo sermões. O Paulo Thiago soube usar bem aquele temperamento explosivo e forte dele. Gosto de Sagarana, que sai um pouco do eixo do Cinema Novo, embora retome a questão do filme baseado na literatura nacional. O que aconteceu com A Bagaceira, do José Américo de Almeida, que também fiz sob as ordens do Paulo Thiago. 205 Soledade, a Bagaceira Foi filmado na Paraíba, nos engenhos da família do José Lins do Rego. Nós fomos para lá e ficamos hospedados na casa-grande da família dona da propriedade. Ali perto tinha o engenho que fora 12083517 J Marinho miolo.indd 205 25/11/2010 16:09:12 do pai do José Lins e passou a ser do primo dele. Filmamos uma sequência lá do engenho moendo a cana. Interessante foi que uma noite fomos à casa do Zé Lins, falar com ele que filmaríamos no dia seguinte, e havia uma cerca na frente do portão. Quando chegamos ao portão, tinha um homem armado de rifle. Ele liberou a gente depois que mandou outro ir lá dentro e perguntar ao Zé Lins se podíamos entrar. Isso lá em 1975. O sertão é assim desde lá e até hoje, o homem armado na frente da propriedade. 206 Na Paraíba, filmamos todos os engenhos, inclusive o da família Albuquerque Mello e o que pertenceu ao pai do poeta Augusto dos Anjos. Nesse engenho houve um incidente desagradável quando Paulo Thiago, para resolver um problema de enquadramento, pediu para cortar uma árvore. Ele não sabia que essa árvore era mencionada num poema do Augusto dos Anjos. Os jornais locais criticaram muito isso. O Lins, que era músico de vanguarda aqui do Rio de Janeiro, durante anos mandava um telegrama para o Paulo Thiago lamentando o corte da árvore. E comentava que continuaria a fazer isso para lembrar ao Paulo o absurdo que ele fez. No elenco tinha o Nelson Xavier, como ator principal, além da Rejane Medeiros, Ney, eu, Maurício do Valle, Emmanuel Cavalcanti e outros. Fiz o 12083517 J Marinho miolo.indd 206 25/11/2010 16:09:12 José Marinho em A Bagaceira de Paulo Thiago. Agreste Paraibano - município de Pombal / PB, 1975 12083517 J Marinho miolo.indd 207 25/11/2010 16:09:12 208 papel do vaqueiro Quincão. Na primeira sequência, estou no curral quando chega Emmanuel e canta uma música que eu tinha recolhido no sertão de vaquejada. Na cantiga ele me avisava que eu desonrara uma filha de um amigo dele. Amenizo a situação e saio fora. Numa outra sequência, estou procurando uma vaca, e subo em uma pedra para ver se a encontro. Quando chega o personagem do Emmanuel e diz: Quincão, eu não te avisei! E aí eu tento me escamotear e ele parte para cima de mim com um facão. Eu puxo um facão também e começamos uma luta em cima da pedra até que eu caio em um poço e ele me fere. Nisso aparece só o sangue indicando que eu morri e ele se safa. Para essa luta, montei uma encenação com o Emmanuel. Combinamos uns gestos, umas quedas para lá e para cá e umas posições. E com cuidado fomos fazendo a cena. Muito perigoso, aliás, hoje eu não faço mais, naquele tempo eu era atleta. Ninguém podia ferir o outro pra valer, então tinha que ter cuidado porque facão escorrega e corta mesmo. Mas fizemos a luta e está lá no filme. Gosto muito desse personagem, que é uma vítima dessa coisa que acontece muito no sertão. As mulheres costumam se apaixonar facilmente pelos vaqueiros, que são um mito para as garotas, montam bem a cavalo, são meio galãs, heróis para 12083517 J Marinho miolo.indd 208 25/11/2010 16:09:12 a juventude sertaneja. Todo rapaz sertanejo foi vaqueiro ao menos por um dia. Mesmo o cara que vai para a capital estudar, quando vai ao sertão monta a cavalo, vaqueja e depois volta a estudar sua medicina. Então é um personagem muito bonito. Eu monto muito bem, porque fui criado em fazenda. Isso me beneficiou depois no cinema. Da experiência rural, há uma volta à selva urbana, com Gordos e Magros, de Mário Carneiro. O Mário tinha esse roteiro já há algum tempo e resolveu filmar. Tem um personagem principal interpretado pelo Wilson Grey, que é o magro e vai carregar uma cruz, mas não pode passar em frente a um boteco que tem que parar para tomar uma cachaça. O gordo era o Carlão, Carlos Kroeber. Os outros são pessoas amigas do Mário e eu fui um desses convidados. Ele filmou isso em um domingo ali no Saara. Depois filmamos também lá em um cinema na Voluntários da Pátria, em Botafogo. Era uma poeira que só passava filme pornô e acabou fechado. Filmamos lá uma sequência interessante, com uns objetos estranhos. Gordos e Magros não foi um filme comercial, mas uma experiência autoral, de baixo custo. Mas que tem seu valor e até precisa ser revisto, porque o Mário era muito talentoso, dirigiu e fotografou o filme também. Na época, achei o filme interessante. 12083517 J Marinho miolo.indd 209 209 25/11/2010 16:09:12 210 Boi de Prata Eu me casei em setembro de 1978. Foi nessa ocasião que participei desse filme do Augusto Ribeiro Jr., no papel de um vaqueiro. Ele preparou a produção na Regina Filmes, onde eu às vezes o encontrava. O Júnior era um menino brilhante, muito antenado e com uma forte presença de espírito. Tinha sido aluno da UFF, do grupo que veio de Brasília. Muito inquieto, ele queria dirigir e começou a fazer o roteiro do Boi de Prata, que mostrava para o Nelson. A Regina Filmes acabou montando uma produção com a Embrafilme e o Júnior resolveu filmar no Rio Grande do Norte, terra de sua família. Quem faria o papel do vaqueiro seria o Jofre Soares, que não aceitou porque estava comprometido com outro filme em São Paulo. O produtor Iberê Cavalcanti me convidou de última hora. Topei e tive que viajar para o Rio Grande do Norte. Ele providenciou passagens para mim e para Deise, que já estava grávida do Daniel. Faltavam dois meses para ele nascer. Viajamos para o sertão do Rio Grande do Norte, em Caicó. O vaqueiro era morador de uma fazenda há muitos anos. Quando o filho do fazendeiro volta para a cidade, quis recuperar a terra do vaqueiro, que não queria entregar. O filho do fazendeiro era o Álvaro Guimarães, um ator fantástico. No 12083517 J Marinho miolo.indd 210 25/11/2010 16:09:12 José Marinho como Vaqueiro Antonio no filme Boi de Prata, de Augusto Ribeiro Jr, Caicó/RN 1979 12083517 J Marinho miolo.indd 211 25/11/2010 16:09:12 212 meio disso entra um poeta, que começa a contar a história em cordel. O poeta era um ator do Rio Grande do Norte, Lenício Queiroga, O filme se desenvolve em torno disso. Ficamos hospedados em um hotel. Filmamos algumas sequências na fazenda da família Dantas, onde tem um açude maravilhoso, e outras sequências na fazenda do avô do Júnior. Houve um problema em uma fazenda, porque a produção deveria pagar por uma pequena casa que a gente iria incendiar depois. Mesmo sem ter chegado o dinheiro do Rio de Janeiro para indenizar o dono da casa, o diretor de produção, Sanin Cherques, marcou as filmagens. Fomos para a fazenda e quando chegamos com o equipamento, um dos empregados avisou que não poderíamos tacar fogo em nada sem autorização do patrão. O patrão era um comerciante da cidade. Avisado pelo empregado, esse patrão foi até lá, mandou parar tudo, deu uma volta na fazenda e voltou com três capangas armados: Vocês não pagaram o combinado, então não vai ter filmagem. Dez minutos para sair da minha fazenda! Encostou no carro e ficou olhando. Arrumamos tudo rapidamente e saímos para a fazenda da família do Lamartine Dantas, que nos deixou filmar à vontade. Era uma fazenda que tinha umas quatro ou cinco porteiras até chegar na casa-grande. Ele dizia: Aqui na minha fazenda, a gente guardava até Lampião. 12083517 J Marinho miolo.indd 212 25/11/2010 16:09:12 José Marinho como Vaqueiro Antonio, no filme Boi de Prata, de Augusto Ribeiro Jr, Caicó/RN, 1979 12083517 J Marinho miolo.indd 213 25/11/2010 16:09:12 214 Boi de Prata não teve lançamento oficial, porque depois de finalizado houve um desentendimento entre o Júnior, o Iberê e a Embrafilme. Nunca foi lançado. Teve uma sessão especial na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, com bastante gente. Depois o Júnior foi para Brasília, levou o filme com ele e nunca o lançou por lá. Algum tempo depois, ele decidiu fazer outro filme no Ceará, baseado em um romance da Rachel de Queiroz. Quando estava no meio das filmagens, faltou dinheiro. O Júnior teve que voltar a Brasília para reorganizar a produção. Nesse meio tempo, e com pressão de todos os lados, ele teve um enfarte e morreu jovem, com quarenta e cinco anos. Durante um tempo, a viúva guardou o filme debaixo da cama. Soube que mais tarde ele foi liberado e exibido e está no acervo da Ancine. Não revi Boi de Prata e tenho a maior curiosidade, porque faço um dos protagonistas, um personagem que vai de ponta a ponta e no final é assassinado. O Walter Carvalho foi fotógrafo. Estrada da Vida Eu estava fazendo mestrado na USP. Enquanto estava lá, eu saía para ir à Boca do Lixo e encontrava o Nelson por lá. Muitas sequências foram filmadas lá, inclusive porque a dupla José Rico e Milionário surgiu ali. Um perguntou para o outro: Quem é você?, e o outro respondeu: Eu 12083517 J Marinho miolo.indd 214 25/11/2010 16:09:12 sou José Rico. E o primeiro concluiu: Então eu sou o Milionário! O Nelson filmou tudo isso no mesmo hotelzinho barato ali da Rua do Triunfo, onde eles tinham se encontrado. O Nelson disse que tinha um personagem para mim. Até o Rogério andava por lá também e uma vez disse: Nelson, bota o Marinho nesse filme. E o Nelson respondeu: Pode deixar, o Marinho já tá nesse filme, não se preocupe. Eu achei interessante o Rogério dar aquela força. E o Nelson de repente disse: Marinho, é semana que vem a filmagem. Fui para São Paulo, assisti às aulas e fiz o filme no final de semana. Meu personagem era o mestre de obras, chefe do José Rico e Milionário, que trabalhavam como pedreiros. De repente, eles não aparecem um dia no serviço e em outra hora pedem para dar uma saída e na realidade já estão indo a uma gravadora. E o mestre de obras não estava sabendo de nada. 215 Acho o filme maravilhoso. Chico Botelho era o fotógrafo e Zé Roberto Eliezer era assistente. Grande parte foi filmada no interior de São Paulo. O roteiro era do Chico de Assis, dramaturgo paulista e ex-ator do CPC. O roteiro se baseia na vida da dupla sertaneja e foi financiado por uma produtora de programas de rádio muito ouvidos por caminhoneiros que cobria o eixo São Paulo 12083517 J Marinho miolo.indd 215 25/11/2010 16:09:12 216 – Mato Grosso do Sul – Amazonas. Nelson foi contratado apenas para dirigir. Acho que foi o único filme que ele só dirigiu, sem interferir na produção nem no roteiro. O filme tem muitos efeitos especiais bolados pelo Nelson. Ele tinha imaginado esses efeitos para o filme que faria sobre Castro Alves, onde reconstituiria a São Paulo da época em que o poeta estudou lá. Então ele utilizou algumas dessas coisas. Inclusive tem uma sequência, que eles fazem um negócio de cobrir metade da lente, escurecem o negativo e filmam só de um lado e depois filmam do outro lado. Isso aparece até no prédio da construção, que depois eles começam a cantar e a canção vai levando para a floresta, a mata verde. Parahyba, Mulher Macho Parahyba, Mulher Macho, de 1983, foi dirigido por outra ex-aluna da UFF, Tizuka Yamasaki. Ela foi fazer esse filme na Paraíba. Era a vida de João Dantas, que matou João Pessoa. Ela formou o elenco todo e viajou. Eram o Walmor Chagas, Cláudio Marzo, Tânia Alves, entre outros. O roteiro era do José Joffily, que naquele tempo dava aula na UFF. Uma vez eu estava conversando com ele, que disse que o filme teria personagens para mim. Ele falou com a Tizuka e me mandou procurá-la. Eu estava indo a Recife de férias. E de Recife segui para João Pessoa, onde encontrei a produção e acertamos o personagem, que seria 12083517 J Marinho miolo.indd 216 25/11/2010 16:09:12 um chefe do cangaço que combatia a polícia. Esse personagem vence a guerra no final e é parabenizado pelo Zé Pereira, interpretado pelo Oswaldo Loureiro. O Rei do Rio O Rei do Rio foi o segundo filme do Fábio Barreto, que tinha estreado com Índia, a Filha do Sol. Conheci o Fábio menino, na época do Matraga. Nessa época eu ia muito ao escritório do Luís Carlos Barreto. Estava lá quando o Fábio apareceu e me chamou para fazer o papel de um bicheiro. Tinha um núcleo central, com o Nuno Leal Maia, o Nelson Xavier e outros, e um núcleo de apoio, comigo e o Antonio Pitanga. E Andrea Beltrão, jovem, começando a carreira. Filmamos em Caxias, dentro da casa do Tenório Cavalcanti, no mesmo cenário de O Amuleto de Ogum. Muitas sequências foram feitas em torno da piscina do Tenório. Outra parte foi filmada na penitenciária Frei Caneca, demolida há pouco tempo. Alguns presos foram figurantes. 217 Fábio adaptou o filme de um texto do Dias Gomes. O Rei do Rio tem um espírito carioca muito zona norte, com os bicheiros, as encrencas. É um filme bem resolvido pelo Fábio, que tem um faro de cinema muito bom. Têm umas sequências em que ele dá um banho. Ele cheira o bom cinema. 12083517 J Marinho miolo.indd 217 25/11/2010 16:09:12 É um menino maravilhoso, que hoje está semiacordado, em coma. Isso causa grande sofrimento a todos. Lamento demais, porque sempre gostei muito do Fábio, nossos encontros sempre foram muito amigáveis. 218 Nem Tudo É Verdade Rogério foi uma amizade que mantive por longos anos. Ele tinha uma ideia de fazer algo com o material de sobra que havia no Brasil do Orson Welles, das filmagens que ele realizara na década de 1940. O Rogério roteirizou a partir dessa história e fez um filme documentário e ficção. Atuei como um policial que pegaria as sobras de negativo do Orson Welles, queimaria uma parte e a outra jogaria no Rio Maracanã. Houve uma notícia que o governo Getúlio não era simpático a esse filme do Orson Welles e criou dificuldades através do DIP. Por conta disso, o Orson Welles teria ficado desestimulado a continuar as filmagens. O Rogério, aproveitando este tema, resolveu fazer o filme. Eu e o Elyseu Visconti somos esses dois personagens que botam fogo na sobra de negativos. Estamos ali perto dos Arcos da Lapa e fazemos uma fogueira, onde um joga o filme para o outro, que joga na fogueira. O bondinho passando em cima, uma sequência muito bonita. E a outra sequência é feita lá na Tijuca, no Rio Maracanã, onde jogamos mais negativos. As duas 12083517 J Marinho miolo.indd 218 25/11/2010 16:09:12 sequências são belíssimas e eu gostei muito de ter feito esse filme. É um filme que passa pouco, deveria ser mais visto, porque um filme do Rogério sempre é um filme do Rogério. O Auto dos Trapalhões Com Roberto Farias, participei de Os Trapalhões no Auto da Compadecida, estrelado pelo Renato Aragão. O Roberto me convidou e ao José Dumont para fazermos a dupla de cangaceiros. O Zé Dumont é o Severino de Aracaju e eu sou o amigo. Foi uma situação interessante fazer o Auto da Compadecida, porque eu conheci o Ariano quando ele estava escrevendo esta peça e eu algumas vezes ensaiei com ele. Foi ali que comecei a fazer teatro. Nos ensaios eu estava sendo o Severino de Aracaju, mas depois me mudei para Salvador quando a peça foi montada. O Roberto Farias, com consentimento do Ariano, fez a adaptação para esse filme com Os Trapalhões. Foi um filme que eu gostei muito. Roberto é um diretor de estilo tradicional, mas ele tem um cuidado muito grande com a mise-en-scène. Ele chega antes de todo mundo com o assistente de direção e vai marcando posição por posição de câmera. O assistente vai anotando e desenhando tudo isso. Depois disso a luz é montada em função dessas posições todas e em seguida chama o elenco para rodar. E assim a filmagem sai rapidamente. 12083517 J Marinho miolo.indd 219 219 25/11/2010 16:09:12 Sandro Solviatti, José Marinho, José Dumont, Renato Aragão, Claudia Jimenez, Renato Consorte, Zacarias e Emanuel Cavalcanti em Os Trapalhões no Auto da Compadecida, de Roberto Farias 12083517 J Marinho miolo.indd 220 25/11/2010 16:09:12 Tem um sítio do Roberto Farias que fica lá perto do Riocentro. Lá foi feita a cidade cenográfica de Taperoá. Ali rodamos o filme com os quatro Trapalhões. São pessoas maravilhosas, bons profissionais e a convivência com eles foi muito boa, muito descontraída. Eu e Zé Dumont trabalhamos juntos pela primeira vez ali e foi uma excelente experiência. Zé é um cara ótimo, muito delicado, fino e muito cioso do seu trabalho. O elenco em si era muito bom: Raul Cortez, Renato Consorte, Emmanuel Cavalcanti, os quatro Trapalhões e mais uns anõezinhos muito simpáticos. Há uma série de efeitos especiais no final, quando os cangaceiros estão indo para o céu. Foi uma temporada boa. Almoçávamos peixe naquela área ali, que tem restaurantes de pescadores com peixes fresquinhos. 221 O filme teve um lançamento muito bom, estava dando boa renda quando foi retirado de cartaz pelo exibidor. Roberto não gostou, porque estava indo bem e sendo aceito pelo público. Era um filme com a qualidade da direção do Roberto, profissional com uma linha de produção rigorosa, que sempre cuidou bem dos seus filmes. Ele aprendeu bem na Atlântida, que era uma escola de diretores, atores e fotógrafos, assim como foi a Vera Cruz. Essas empresas foram escolas de cinema, porque naquele tempo as pessoas 12083517 J Marinho miolo.indd 221 25/11/2010 16:09:12 aprendiam na prática, tinha produção para isso. Os atores vinham do teatro, mas o resto da equipe fazia a sua formação ali na prática, dentro do filme. Isso eram escolas de cinema. A Vera Cruz mais rigorosa, pela formação europeia. A Atlântida mais solta, por ser carioca, mas também tinha seu rigor para fazer as chanchadas, algumas delas consideradas hoje obras-primas. Eu louvo muito esse trabalho de formação profissional do pessoal que trabalhou nessa época e hoje são expressões do cinema brasileiro. 222 Corpo em Delito No fim dessa fase de produção aquecida, acabei trabalhando em mais um filme de ex-aluno, Corpo em Delito. O roteiro foi do Sérgio Villela, o Serginho, de saudosa memória. Uma vez fomos jantar em Copacabana e ele me falou o roteiro que estava terminando de escrever. Ele disse que teria um personagem para mim. No final do roteiro Serginho se encontrou com o Nuno César de Abreu, com quem já tinha trabalhado, e o convidou para dirigir o filme. O Nuno precisava de uma produtora e entrou em contato com Miguel Freire, que tinha acabado de montar uma produtora e faria a produção do filme com baixo custo. Serginho e Nuno foram compondo o elenco e me chamaram para fazer um policial que não podia ser muito identificado, porque 12083517 J Marinho miolo.indd 222 25/11/2010 16:09:13 ele vinha do tempo da repressão. Ninguém sabe direito da vida dele, mas em determinadas situações ele aparece espiando alguém, seguindo alguém. O Lima Duarte fez o papel-título, que é um homem que reflete sobre a sua vida e tem uma mulher ao seu lado, que é a Regina Dourado, uma atriz baiana. O fotógrafo era um menino que morava em Londres e veio para cá, Carlos Egberto Silveira. O filme foi feito aqui no Rio de Janeiro. O Nuno dirigiu muito bem, ele é uma pessoa muito decidida. O meu personagem contracena com o Lima Duarte. Ele fica espiando uma moça, que é a Dira Paes, prendendo-a. Depois ele tem umas andadas em um carro preto sozinho, espionando o que está acontecendo com o legista ou com outras pessoas. É um personagem misterioso. Não tem uma participação grande, mas possui uma presença importante na narrativa, porque está ligado às questões que decidem o filme. O Lima Duarte é uma excelente pessoa, contador de causos, canta músicas antigas. Inclusive uma canção chamada Aço Frio de um Punhal, que é do pai do Cassiano Ricardo. Pouquíssimas pessoas que conheci na vida sabiam essa canção: uma era o Lima e outra o Luiz Mendonça. Uma canção que não tem nenhuma rima e vive só do seu ritmo, belíssima. Então nos intervalos das 12083517 J Marinho miolo.indd 223 223 25/11/2010 16:09:13 filmagens sempre tinha essa coisa de cantar músicas antigas, tomar umas cachacinhas mineiras, que o Lima gostava também. E foi tudo certo nas filmagens. O Miguel Freire meio angustiado de fazer as coisas, como ele sempre foi, mas conduziu bem a produção e o filme foi até o final. Tem uma sequência elogiadíssima, que são uns pássaros presos em um quarto. Um plano muito original, que foi muito exaltado. 224 O filme é bom, tem um bom ritmo, mas sem um bom andamento comercial. E hoje é um filme que pouco se vê, o Nuno também não divulga muito, não faz sessões especiais. Nunca mais revi esse filme, não tenho cópia nem nada. 12083517 J Marinho miolo.indd 224 25/11/2010 16:09:13 Parte 4 O Professor: Época da Pedagogia 12083517 J Marinho miolo.indd 225 25/11/2010 16:09:13 12083517 J Marinho miolo.indd 226 25/11/2010 16:09:13 Capítulo I Na UFF, um Novo Aprendizado Entrei na universidade por acaso. Em Recife, onde eu fazia dramaturgia, na Escola de Belas Artes de Pernambuco, conheci Fernando Barreto, que era do Rio mas passou ensinando por lá um tempo. Ficamos amigos. Nessa época eu dava aula de literatura brasileira e portuguesa no curso pré-vestibular da Escola de Belas Artes. Então uma vez, indo ao Rio, encontrei um amigo artista plástico, Benjamin Silva, em um salão de artes que era realizado de dois em dois anos. Quando saímos da exposição, Benjamin me contou que estava indo visitar o restaurador Fernando Barreto. Perguntei se era o que dava aula em Recife. Benjamin confirmou e disse que ele estava morando no Rio, com um ateliê na Rua da Lapa. Fomos juntos até lá. Fernando ficou feliz em me rever: Marinho, você em Recife dava aula em um pré-vestibular e nós estamos criando agora um curso de cinema na Universidade Federal Fluminense. Quem está organizando o setor de cinema é o Nelson Pereira dos Santos. Como você gosta de dar aula e também está metido com cinema, você não daria aula lá? Achei uma boa ideia. 12083517 J Marinho miolo.indd 227 227 25/11/2010 16:09:13 228 Na despedida, o Fernando me pediu currículo. Fui para casa, em Santa Tereza, preparei o currículo e no dia seguinte entreguei a ele, que ficou de levar ao Nelson no IACS, que funcionava então no prédio da Matemática. Na época eu estava para voltar a morar em São Paulo, onde já tinha estado por dois anos, porque no Rio não conseguia trabalho. Fernando me pediu para aguardar o resultado. Voltei depois ao ateliê para saber a resposta. Ele contou que já tinha levado o currículo ao departamento, mas o Nelson estava em Paris. Fiquei aguardando a volta dele. Um dia, numa festa em Niterói, encontrei o Nelson. Contei a história do currículo e ele disse que já tinha convidado outra pessoa, mas parecia que ela não estava disposta a aceitar. Então aguardei. Quinze dias depois, quando estava no Bar da Líder, em Botafogo, o Nelson apareceu com o Babáu. Ele me chamou para tomar um chope. Quando sentamos, ele propôs um brinde: Bate aqui, agora somos colegas! Eu disse: Claro, somos colegas de profissão, você diretor e eu ator. Ele sorriu e revelou: Não, somos colegas professores. No sábado seguinte fui à UFF, para assistir a uma reunião do departamento. Fui apresentado como novo professor. Figuras no Departamento Foi em um ritual de passagem. Fernando Barreto estava deixando a direção do IACS e sendo 12083517 J Marinho miolo.indd 228 25/11/2010 16:09:13 Foto feita em sala de aula no IACS/UFF - RJ, 1977 Posse de José Marinho como Vice Diretor do Instituto de Artes e Comunicação Social (I.A.C.S), na UFF, abr/87 12083517 J Marinho miolo.indd 229 25/11/2010 16:09:13 substituído pelo Álvaro Sobral Barcellos. Breno Kuperman chefiava o departamento e Antônio Sérgio se candidatara para o lugar. Lembro-me que o Muniz Sodré fazia parte do departamento e me fez uma saudação legal: Que bom terem trazido você! Depois outros professores fizeram umas perguntas gerais, respondi e preenchi um formulário. Depois me encaminhei para a reitoria. Levei a documentação toda, fiz exame de saúde e fui contratado no dia 1o de agosto de 1971. Foi meu primeiro contrato, de forma provisória, por seis meses apenas. Me deram a disciplina Análise de Filmes. Foi então que conheci Tunico Amâncio, como aluno. 230 Nessa época, Breno Kuperman era de comunicação e estava querendo ir para cinema. Rogério Luz, que dava roteiro, pediu transferência para a UFRJ e o Breno entrou no lugar dele, se não me engano. Tínhamos então eu, Breno e Nelson, que dava aula nesse tempo. E fotografia era o Dave o Babáu, que não quis aceitar de início, mas eu e Nelson insistimos com ele. Então conseguimos criar uma Coordenação de Cinema. O pessoal de cinema passou a se reunir, decidir o que fazer e encaminhar ao departamento. O primeiro coordenador foi o Babáu. O Nelson viu que estávamos precisando de mais gente. Surgiram os nomes de Mário Carneiro e Gustavo 12083517 J Marinho miolo.indd 230 25/11/2010 16:09:13 Dahl para ser convidados. Além do Avellar, que veio logo no início para dar algumas aulas. Eu assistia às suas aulas para aprender. O Avellar era altamente didático. Aqueles dois meses foram para mim um curso de cinema total. Depois pensei que estava ótimo para dar aula. Como o Avellar trabalhava no Jornal do Brasil e ficava até tarde na redação, acabou desistindo. Então assumi o lugar dele. O curso de cinema era ministrado em dois espaços: uma parte na Matemática e outra na Reitoria. Naquela época, o primeiro andar do prédio da Reitoria era ocupado por salas de aula. Havia uma grande integração, porque a Reitoria tinha o cinema, onde a gente passava filmes e também dava aulas. Como não dispúnhamos de filmoteca ou acervo, o Luís Carlos Barreto tinha lá na Difilm uns dez filmes brasileiros de longametragem sem censura e ofereceu ao Nelson para a gente exibir nas aulas. Com estes filmes, dei aula muito tempo. Semanalmente, passava filmes maravilhosos. Dava um curso de Cinema Novo, que eu conhecia já, e Análise de Filmes. 231 A repressão naquela época era muito forte, com os generais, então era necessário muito cuidado em sala de aula para não haver assuntos políticos, polêmicos. E eu às vezes tocava no assunto um pouco, porque vivi muito a política dessa 12083517 J Marinho miolo.indd 231 25/11/2010 16:09:13 época toda, participei de muitos filmes políticos do Cinema Novo, do Glauber, do Nelson, do Sganzerla. Mas o Nelson disse: Olha, Marinho, tem cuidado para não sair da tela. Cola na imagem que está na tela. Não levante polêmicas para não causar problemas. 232 Segui a recomendação do Nelson e procurei concentrar as aulas na interpretação do ator, na fotografia, na montagem. Comecei então a comprar livros de cinema e fazer minha bibliografia, e fui ficando à vontade. No ano seguinte, 1972, o contrato já foi de um ano, mas ainda como professor provisório. Era praticamente um boia-fria. Depois, em 1975, houve um concurso interno para regularizar os professores todos e passá-los para Auxiliar de Ensino I. Participei e fui aprovado. No ano seguinte, foi realizado outro concurso para Assistente, para quem tinha mais de quatro anos de faculdade. Eu e Babáu passamos e fomos os dois primeiros Professores Assistentes do curso de Cinema. De vinte horas, passei para quarenta horas. Daí para a frente começamos a pensar em como fazer filmes no curso de Cinema. O primeiro foi Jornalismo e Independência, a história do Hipólito da Costa, do Correio Braziliense. Foi feito com a turma de Brasília, Tunico Amancio, o Alberto Cavalcanti, Nuno César de Abreu, José 12083517 J Marinho miolo.indd 232 25/11/2010 16:09:13 Antonio Serra e José Marinho no Departamento de Cinema e Vídeo do IACS – UFF/RJ 12083517 J Marinho miolo.indd 233 25/11/2010 16:09:13 Alberto Porto (o famoso Zeca), Miguel Freire, Carlos Augusto Ribeiro Jr., Sérgio Vilela e mais umas moças. 234 Cinema Versus Repressão Ao mesmo tempo, um grupo fez um filme sob a orientação do Nelson, eu não participei. Depois veio o outro filme, que o Nelson conseguiu uma verba através do INC para fazer um filme sobre a Biblioteca Nacional, de encomenda. Este o Zeca dirigiu, em 1973. E depois veio o 15 Anos UFF. Eu coordenei toda a produção. Para isso convidei o Santeiro. Ele foi para a UFF dar aula e fazer este filme. Como a repressão era muito grande, os alunos não falaram nada que pudesse prejudicar o filme. Então o que o Santeiro bolou? Quem dá depoimento, não aparece a imagem e quem aparece a imagem, não dá depoimento. Criamos então uma equipe só para fazer as entrevistas e outra para as filmagens. Então entraram os alunos Zé Sérgio, Dante, que hoje é professor de fotografia da UFF, Edmundo e Ângela Cavalcanti. Então esse filme foi feito. Deu alguns problemas com a polícia. Eu tinha uma carta do reitor com o nome de todos para mostrar à polícia, porque estávamos filmando na rua. Sempre que dava problemas a gente apresentava a carta e a polícia ligava para a Reitoria confirmando as intenções da filmagem. 12083517 J Marinho miolo.indd 234 25/11/2010 16:09:13 Quando o filme ficou pronto, levei para o reitor assistir e tinha um assessor do reitor que era da polícia. Ele ficava na universidade para conferir se estava acontecendo alguma coisa que ia contra o governo. Então, no filme, havia um depoimento de um menino que falava sobre a falta de liberdade na faculdade e isso era montado em cima de um travelling na biblioteca que passava entre uma estante e outra fazendo um claro-escuro. O assessor do reitor disse: Olha, Marinho, você tem que tirar o depoimento desse aluno. Eu fui falar isso para o Santeiro, que disse: Eu não tiro! Eu fui falar com o Carlo De La Riva, diretor de som, e ele falou: Isso aqui na Espanha, no tempo do Franco, a gente fazia o seguinte: você pega nanquim e passa por cima da trilha sonora, apagando o som. Resolvemos fazer isso, mas o Santeiro só vivia na Cinemateca o tempo todo, então ele poderia descobrir. De La Riva marcou, portanto, para a madrugada. Depois da meia-noite, junto com um aluno, Carlos Alberto, levei o filme para o De La Riva. Pegamos essa cópia e mostramos ao reitor, mas deixamos a original depositada na Cinemateca do MAM, como documento. O filme acabou sendo liberado pela Reitoria e pôde ser exibido. Só que naquele tempo a gente não entrava em festivais, eles não queriam exibir os nossos filmes. 12083517 J Marinho miolo.indd 235 235 25/11/2010 16:09:13 Falavam que eram muito quadrados, pareciam institucionais, feitos para empresas. Mas serviam para a gente. 236 Em 1976, o Alberto Cavalcanti fez uma pesquisa na região de Campos e extraiu o argumento de um filme sobre a memória Goitacá. Como ele acabou indo para Brasília, fiquei com esse argumento e fui roteirizar com os alunos. Deu a maior confusão, porque eram muitos alunos e todos tinham sua ideia de como escrever o roteiro. Para resolver o problema, sentei com Carlos Alberto em um restaurante e fizemos o roteiro. No dia seguinte, levei à sala de aula, todos aprovaram e o roteiro foi rodado. Fui coordenador do projeto e supervisor de direção. O aluno não tinha autonomia para decidir onde colocaria a câmera. Filmamos canaviais, o jongo e uma Folia de Reis. O fotógrafo foi Walter Carvalho, um gênio, mas que naquele tempo estava começando e dava aula como convidado. Quando saiu o Mário Carneiro, ele passou um tempo como substituto. Depois, foi o Edgar Moura. Então fizemos o filme, um dos primeiros da UFF a participar do Festival JB. Não ganhou prêmio, mas ao menos nos representou. Foi o quarto filme do curso. Depois disso não me envolvi mais nos projetos de cinema. 12083517 J Marinho miolo.indd 236 25/11/2010 16:09:13 Nesse meio tempo, a gente tinha o projeto do NAV, na universidade, de equipamento para Cinema. Edgar Moura é quem dava aula de fotografia nesse período. Então me lembro que na primeira reunião para escolha de equipamentos, as pessoas de cinema que participaram lá na Matemática ainda fomos eu, o Edgar Moura e o Davi da Conceição, que era um estudante do Diretório Acadêmico. Depois teve uma reunião da Jussara com o ministro Ney Braga no MEC do Rio de Janeiro e ele prometeu uma verba para comprar uma câmera, uma moviola e um gravador Nagra. Esse projeto ainda rodou três anos sem conseguir importar isso através da Embrafilme, porque tinha uma dificuldade muito grande de importação. O Nelson entrou em uma comissão do governo para a reformulação da Embrafilme e ia semanalmente a Brasília participar de reuniões com diversos ministros, inclusive o João Paulo dos Reis Velloso, que era Ministro do Planejamento. O Nelson então falou com ele, que conseguiu interceder junto ao Banco do Brasil, para conseguir importar isso. Mas como o dinheiro que o Ney Braga tinha cedido já estava desvalorizado com a inflação, não deu para comprar a moviola. Adquirimos a câmera e o gravador. E chegaram exatamente quando eu estava em São Paulo, já fazendo o mestrado. 12083517 J Marinho miolo.indd 237 237 25/11/2010 16:09:13 238 Depois que eu voltei em 1982, um aluno daqui, Celso Kaufman, foi fazer estágio na Embratel e descobriu que lá tinham importado um equipamento de cinema que decidiram não usar, porque preferiram trabalhar só com vídeo, e estavam querendo leiloar aquilo. O Celso nos trouxe a notícia e o Serginho, diretor do NAV, falou com o reitor que disse que tentaria conseguir isso e que conhecia o diretor da Embratel. Pediu para o Serginho fazer uma carta que ele assinaria e encaminharia. Essa carta foi enviada para a Embratel e depois eu fui lá ver o equipamento – uma moviola, um gravador Stellavox e uma câmera 16 mm Bolex. Então isso completaria o nosso equipamento. E Embratel fez uma doação por cinco anos que depois ficaria definitiva se ela não tivesse necessidade de pedir de volta. E eu voltei do mestrado e retomei minhas aulas, ficando até me aposentar em 2001. Dei aula ainda até 2005. Na década de 1970, me tornei coordenador de Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB). Até por uma estratégia minha, porque EPB era uma matéria oficial do governo e você ficando com aquela matéria tinha certo critério de ser uma pessoa nacionalista e tal, não havia confusão com os militares. E eu fazia o seguinte, convidava para cada aula um conferencista, só que 12083517 J Marinho miolo.indd 238 25/11/2010 16:09:13 eles faltavam e a aula não acontecia. E eu fiquei meio sem jeito, porque coordenava toda a EPB da escola, para biblioteconomia e comunicação. Então apliquei o sistema de seminários. Pegava os alunos e os incumbi de um trabalho sobre petróleo e eles faziam a pesquisa e apresentavam. E assim começou a crescer EPB e ficar uma disciplina até interessante. Uma vez pedi a eles uma pesquisa sobre a criação dos partidos políticos no Brasil. Foi um estudo belíssimo, começou pelo século XIX, quando era ótimo – o cara criava um partido na cidade dele para se eleger ao Senado, e uma vez conquistado a vaga acabava a legenda. Havia muitos partidos assim, só para um senador, sem consistência política. E então fui fazendo essas propostas de pesquisa e o pessoal começou a curtir a disciplina, ninguém mais reclamava. Quando fui para o mestrado alguém teve que assumir a disciplina e quando eu voltei já tinha acabado. 239 Meus bons momentos foram sempre regados a chope. E com o Nelson sempre por perto disso tudo. Eu também fiz dois filmes, com o Olney São Paulo, Teatro Brasileiro 1 e 2, pela Regina Filmes, firma do Nelson. Eu tenho muita ligação com o Nelson. Sem contar os quatro filmes dele que eu participei. O primeiro longa-metragem que fiz quando já dava aulas na UFF foi Sagarana, o 12083517 J Marinho miolo.indd 239 25/11/2010 16:09:13 Duelo, do Paulo Thiago, com fotografia do Mário Carneiro. Depois atuei em O Amuleto de Ogum, do Nelson. Mas foi diminuindo o meu trabalho de ator, porque o tempo na Universidade foi me tomando. Já no início dos anos 1980, comecei a fazer participações na Globo também. 240 Professor e Ator No curso de cinema, passei a ser uma espécie de referência natural devido à minha experiência de ator, da época do Cinema Novo, do teatro e tudo o mais. Por isso acabei ficando na UFF mais por causa dos alunos, que me conheciam e respeitavam. Fui me apegando muito a eles. O Antônio Serra evitava brigar comigo porque sabia que eu tinha muito prestígio com os estudantes. Eu participava de debates no DCE e de todas as confusões. Eu e o Carlos Henrique Escobar. Isso impedia que o Antônio Serra me atingisse, como atacava muita gente. Então fui ficando, fui ficando até que, na década de 1980, o Serra voltou ao IACS por concurso público. Resolvemos nos juntar e mudar a situação. O primeiro passo foi compor uma chapa para o Serra ser candidato à chefia do departamento. Houve dificuldades dentro e fora do IACS. Dentro: o bloco do Antônio Serra rejeitava categoricamente essa possibilidade. Fora: na Reitoria, o nome do Serra era visto com suspeita, pois ele era militante do PT e 12083517 J Marinho miolo.indd 240 25/11/2010 16:09:13 tinha sido preso. Então havia muito dificuldade de aprovação do nome dele. No espaço do IACS, o obstáculo foi contornado quando o grupo do Serra convidou o professor e jornalista José Carlos Monteiro para vice da sua chapa. Monteiro tinha trânsito nas diferentes áreas de oposição. Na Reitoria, a situação foi superada quando Hildiberto Ramos Cavalcanti de Albuquerque, que seria reitor em seguida, chamou a mim e ao David da Conceição e disse Em vocês dois eu confio. Vocês vão se responsabilizar perante mim sobre a candidatura do Serra como chefe de departamento. E nós assumimos a responsabilidade de que o Serra não arranjaria problemas para a universidade. De fato não criou, só engrandeceu. O Serra foi eleito com o Monteiro como vice. Mas o Monteiro tinha sido eleito ao mesmo tempo presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, e explicou que não teria condições de comparecer muito às reuniões. Eu acabei virando uma espécie de vice-chefe de departamento, de 1983 a 1985. Até que tive que fechar e defender tese do mestrado. Eu então me licenciei e fui terminar o mestrado. 241 Quando voltei, em 1986, o Serra estava sendo cotado para dirigir o IACS e me convidou para companheiro de chapa, como vice. Fomos à luta e acabamos eleitos com 86% dos votos. Fomos 12083517 J Marinho miolo.indd 241 25/11/2010 16:09:13 nomeados para a gestão de 1986 a 1991. Foi uma época boa. O País já estava sob o governo de transição do José Sarney, e se podia falar, discutir política na universidade. Depois de acabado nosso mandato, criamos o Departamento de Cinema, em 1992. O Breno foi encarregado de estruturá-lo, com a ajuda do Antônio Carlos, que colaborou muito. O reitor me nomeou diretor pro tempore e o João Luiz ficou como vice, até 1994. Nossa intenção era organizar o departamento, criar uma estrutura sólida, mas não havia gratificação de chefia ou coisa alguma. 242 Nesse meio tempo um problema quase comprometeu nossa administração: foi o desaparecimento de um gravador. Tínhamos emprestado a alunos um Nagra para que fizessem uma filmagem no Rio, e o equipamento acabou sendo roubado nas idas e vindas da equipe. Esse fato causou um transtorno interminável na universidade. Deu inquérito. Todo mundo que autorizou o empréstimo respondeu processo e quase fomos enquadrados seriamente. Tivemos que contratar advogados e suportar uma série de aborrecimentos. Pagamos caro para nos livrarmos de tudo isso – muito mais do que o Nagra roubado. E o preço tinha a ver com o modo de produção, sobre o que fazer num sistema público (sem recursos, sem infraestrutura), e a política 12083517 J Marinho miolo.indd 242 25/11/2010 16:09:13 de realização de filmes com pretensão artística e compromisso público. Na Embrafilme, Tunico e Breno conseguiram um financiamento para dez curtas-metragens. Quando voltei de São Paulo, em 1982, fui encarregado de coordenar a produção destes filmes, pois alguns ainda não tinham sido terminados. Essas produções deram um impulso inicial no curso na década de 1980, já com equipamentos. Acontece que nessa época o Calil criou na Embrafilme um conselho cultural, com a participação de representantes de escolas de cinema, cinematecas, sindicatos, confederação de cineclubes e pesquisadores. Esse conselho cultural se reunia uma vez por mês para discutir a modificação da estrutura, já que deveria ser criado um organismo para cuidar do curta-metragem. O estatuto desse organismo foi discutido ali. Representando as escolas de cinema, revezávamos eu, o Ismail Xavier e um da FAAP. Isso durou uns dois anos. Depois de uma conversa com Ismail sobre produção de filmes na universidade, manifestei ao Calil meu ponto de vista. A resposta dele foi categórica: Olha, vocês estão presos a um esquema de filme institucional. Filme que a gente não sabe para quem é feito. Não tem cara o filme da UFF, vocês precisam dar cara a esse cinema. Precisam ter uma marca autoral. 12083517 J Marinho miolo.indd 243 243 25/11/2010 16:09:13 José Marinho, Tunico Amancio e Antonio Amaral Serra, 24/9/1992 12083517 J Marinho miolo.indd 244 25/11/2010 16:09:13 Decidi levar esse recado à UFF. Tínhamos que discutir o problema da chamada cara autoral e a resposta do curso ao desafio. Fizemos um seminário de uma semana com professores e alunos. Nesse seminário o pau quebrou e mudamos o esquema de produção. Antes, os professores coordenavam o roteiro, e se não aprovássemos não seria filmado, definíamos todos os cabeças de equipe e supervisionávamos a direção. Depois da discussão ficou definido que não interferíamos nos filmes. A única coisa que passaria pela coordenação da escola era se o roteiro tinha condições de financiamento. Se o cara quer fazer um filme em Manaus, não dá, não tem dinheiro para passagens. Mas em Niterói dá. E o critério de definição do roteiro, quem fazia eram os alunos. Eles discutiam entre si qual era o roteiro melhor e apresentavam na coordenação um roteiro definido. A partir daí, o filme da escola começou a ter cara. Logo participou de todos os festivais no Brasil e no exterior e a ser premiado. Passamos a ter filmes realmente de autor. Começou a ser um cinema criativo e experimental. O curso deu um pulo e houve o crescimento e isso sustenta esse curso até hoje. Nesse mesmo ano, em 1983, conseguimos reconhecer o curso. Eu fui para Brasília decidir o currículo do curso. No planejamento inicial, o filme da escola de cinema seria em 35mm. Mas nós só tínhamos câmera 12083517 J Marinho miolo.indd 245 245 25/11/2010 16:09:13 16mm. Então o Alberto Cavalcanti, que tinha sido aluno e professor da UFF, estava morando em Brasília, participara da ABD – Brasília como um dos coordenadores do projeto do currículo de cinema. Eu o convidei para reunião do conselho para ele convencer Dom Serafim Fernandes, hoje bispo de Belo Horizonte, a alterar esse item e passar a ser tanto 35 mm como 16 mm, desde que a bitola atendesse aos requisitos de som direto, etc. O pedido foi aceito e o curso de cinema pôde ser reconhecido. Quem não era graduado, teve que voltar para a universidade para pegar o diploma. Então algumas coisas nós resolvemos nessa época. 246 Participei de vários Encontros Nacionais das Escolas de Cinema, para definir perfis e currículos das escolas. De alguma forma, as iniciativas sempre partiam da USP. Ela se tornou a matriz durante muito tempo das escolas de cinema do Brasil. Lá começaram a ocorrer reuniões dos cursos, para decidir currículo, pensar em como se libertar do curso de cinema, entre outras pautas. Nessa época, quem geralmente representava a USP era o Jean-Claude Bernadet ou o Ismail Xavier. Fizemos uma reunião em Diamantina, em São João del Rey, onde acontecia o Festival de Inverno de Minas. Nessa caminhada de reuniões em reuniões, chegamos à de São Paulo, na USP, 12083517 J Marinho miolo.indd 246 25/11/2010 16:09:13 que durou uma semana e definiu o currículo básico com elasticidade. O aluno poderia estar estudando na UFF e fazer uma cadeira de edição e vídeo em outra instituição e trazer os créditos. Isso hoje é reconhecido oficialmente como Mobilidade Acadêmica. Até então essa mobilidade só era permitida em mestrado e doutorado. Nós introduzimos essa modalidade na graduação. Tudo isso resultou dessa reunião em São Paulo, coordenada pela Marília Franco e a Dora Mourão. Também foi de lá que saiu o currículo. Nós encaminhamos esse projeto ao escritor e jornalista Arnaldo Niskier, que era um dos diretores da revista Manchete e é hoje imortal na Academia Brasileira de Letras. Niskier foi o primeiro relator deste programa. Lá em Brasília eles o examinaram e nos fizeram uma sugestão experimental e dela fomos discutindo até chegar ao currículo atual, saindo de comunicação e ficando só cinema. 247 Autonomia do Curso Meu envolvimento com o curso caminha paralelo ao processo de afirmação das escolas de cinema como instituições autônomas em relação a jornalismo. A luta pela autonomia durou uns quinze anos, vinha desde os anos 1980 e se tornava necessária para deixamos de ser subordinados ao Curso de Comunicação. Houve um momento 12083517 J Marinho miolo.indd 247 25/11/2010 16:09:13 que ficávamos na seguinte dúvida: separando de comunicação, vamos para onde? Chegamos a pensar em ir para artes. Tem até um colega que fez uma piada quando falei sobre nossa ideia de incorporação ao Departamento de Arte: Gozado, os filmes da UFF não têm nada a ver com arte, ironizou. 248 Hoje já contamos com mais de cento e cinquenta filmes. E mais da metade premiados. Até no Festival de Cannes, ganhamos um prêmio, com o curta de Eduardo Valente Um Sol Alaranjado: foi o troféu concedido pela Cine Fundation no primeiro concurso de filmes produzidos em escolas de cinema. E foi a UFF que levou, saindo na frente de outros centros avançados e da América Latina. No júri que premiou esse filme estavam o americano Martin Scorsese e o iraniano Abbas Kiarostami. Muita gente tinha curiosidade em saber como conciliei minha função no magistério com a atividade artística. Já no final dos anos 1990 para cá, vários alunos às vezes me solicitavam para aparecer em seus filmes. Até então eu me recusava a fazer dos filmes da escola como ator. Fazia teatro profissional, televisão, cinema, mas não produções da UFF. Recusei a muitos convites e pedidos até que, já em 1998, um dos primeiros filmes que participei na escola oficial