Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia:
historiografia
brasileira e modernidade
ENTRE A FÉ E A HISTÓRIA – DESAFIOS EM TORNO DA
HISTORIOGRAFIA DA REFORMA PROTESTANTE
João Henrique dos Santos
1
RESUMO
Um dos principais desafios que se impõem ao historiador que se dedique a
estudar a Reforma Protestante é a confiabilidade das fontes, visto estas estarem, na
maior parte das vezes, comprometidas pelos tons apologéticos. A multiplicidade de
olhares sobre um mesmo fato histórico não é monopólio da modernidade, inaugurada
pela própria Reforma, mas esta, sem dúvida, lhe confere uma polifonia peculiar, que
perpassa grande parte das obras referenciais para o estudo desse evento e compromete a
isenção das fontes primárias.
LUTERO E SUAS BIOGRAFIAS
A pesquisa em um tema como a Reforma Protestante, especialmente focada na
pessoa do homem que a iniciou, revela-se um desafio bastante interessante, visto a
Reforma, mesmo transcorridos 490 anos desde seu marco inicial, é tema tratado
apaixonadamente e, por vezes, de forma nada isenta e inteiramente parcial.
Boa parte da bibliografia existente sobre a Reforma e, em particular, sobre
Martinho Lutero, reveste-se de tom confessional e apologético. Muitos dos biógrafos de
Lutero, especialmente seus contemporâneos, mas também os posteriores, escrevem
apaixonadamente sobre o homem e a obra, vendo-o quer como santo, quer como
demônio, dependendo da filiação religiosa do biógrafo.
1
Professor da Universidade Gama Filho, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata &1Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:
EDUFOP, 2007.
Para aqueles autores vinculados ao catolicismo romano e que foram moldados
pela Contra-Reforma Tridentina, Lutero era a soma de todos os defeitos e males, a
epítome da perversidade, irreligiosidade e devassidão. Não escreveram biografias ou
panfletos para descrever o homem, mas sim para buscar desmoralizá-lo e, por extensão,
a causa que ele defendeu.
Vale, contudo, lembrar que o primeiro biógrafo de Lutero, e também seu inimigo
feroz, Johannes Cochlaeus, já em 1529, dizia ter o Reformador alemão “sete cabeças”,
em alusão a demônios apocalípticos.
Como recorda Robert Kolb, as diferenes imagens de Lutero, como “Profeta,
Professor e Herói”, demoraram um século, de 1520 a 1620, para ser consolidadas, por
obra dos partidários da Reforma, quer teólogos, quer políticos, e do próprio povo
alemão.
Por outro lado, os apologetas da causa luterana – e da Reforma em geral – ou
não viam defeitos ou os minimizavam, quer na vida, quer na obra do Reformador. O
Revdo. J. A. Wylie, em sua obra “The History of Protestantism”, de 1878, usou uma
epígrafe de Carlyle para a abertura do livro: “Protestantismo, a causa sagrada da Luz e
Verdade de Deus contra a Falsidade e Escuridão do Demônio”, o que exemplifica
sobejamente quão tendenciosa era sua visão dos fatos históricos que ele narrava.
Efetivamente, no sexto livro dessa obra, que contém o recorte histórico que se
estende do Debate de Leipzig (1519) à Dieta de Worms (1521), esse autor não consegue
mostrar nada de bom vindo de Roma nem nada de mau vindo de Wittenberg. Ao
comentar a ameaça representada pelos turcos (p. 358), o autor afirma que “não há turco
no mundo como o turco romano”.
Dompnier, em sua obra sobre a imagem católica sobre o protestantismo, Le
Venin de l’hérésie, mostra como para os católicos nos séculos XVI e XVII, de modo
especial os franceses, nada de bom poderia advir do protestantismo.
Emblemática é a obra do jesuíta Hartmann Grisar, que, mesmo escrita no início
do século XX, é fortemente tingida com as cores da Contra-Reforma, retratando Lutero
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como um sectário fanático. Ainda que não tenha sido possível a checagem das muitas
fontes citadas ao longo dos seis volumes dessa obra, existe a forte possibilidade de que
algumas delas tenham sido fabricadas por católicos, ao sabor da Contra-Reforma, para
desacreditar o Reformador alemão.
Este é o desafio para o historiador: selecionar quais biografias usar e, ao
selecioná-las, extrair o que é factual ou interpretativo, separando daquilo que é
meramente apologético. Não há outro caminho, senão o da consulta às fontes primárias
e a leitura dos que as analisaram e discutiram, quer coetaneamente, quer posteriormente
à redação desses documentos.
No caso específico de Martinho Lutero, Lucien Fèbvre refere como existentes
sete edições das obras de Lutero, sendo as duas referenciais conhecidas como as
Edições de Erlangen e Weimar, de 1826 a 1885 e 1883 a 1921, respectivamente. A
edição de Erlangen, que é a que será usada sempre que se fizer necessária a consulta às
fontes primárias, consta de 67 tomos de obras em alemão, “Dr. M. Luthers Sämmtliche
Werke”, e 33 tomos de obras em latim, “Lutheri opera”.
Esta é a Edição que vem sendo mais usada pelos historiadores e teólogos que se
dedicam ao estudo da vida e obra de Martinho Lutero, à qual se deve agregar a
correspondência de Lutero, reunida nos 18 volumes da Edição Enders (1884-1923).
Usando a expressão de Carr: “Melhor olhar para a História menos em termos de
comportamento pessoal consciente e mais em termos de atitudes e situações de grupo
sub-conscientes”. Isso se contrapõe à formulação de Roskill, de que “sua função [dos
historiadores] é não mais que reunir e registrar os acontecimentos de um período com
precisão escrupulosa e imparcialidade”, visto o que se propõe ser a ruptura com a
presuntiva neutralidade do historiador, levando à formulação de juízo e ao seu
posicionamento.
A neutralidade, na visão de Bloch, coaduna-se com a visão do cientista, e não
historiador, visto a ciência basear-se em análise e classificação e a História em
descrição, análise e narração. Nessa abordagem, a investigação deve procurar investigar
o quanto o “espírito do tempo” – espírito de negação da possibilidade de alteridade
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religiosa – foi condicionante ou mesmo determinante para o comportamento individual
e coletivo dos envolvidos nos eventos cuja análise é proposta.
Deve-se procurar, a todo custo, fugir de formas simplistas que vejam a Reforma
“de dentro”, como se fosse fenômeno hermético que pudesse ser apreciado e entendido
unicamente do ponto de vista teológico/filosófico. Em verdade, muito mais útil se revela
a abordagem de Lucien Fèbvre, buscando entender e desvendar as teias econômicas,
políticas e sociais que moviam os protagonistas dos eventos, de modo especial de 1520.
Portanto, das abordagens existentes quanto à religião, a que se configura mais
interessante ao historiador é aquela que busca ver a religião como um elemento de
coesão social, unindo homens em torno de ideais práticos e não em torno de idéias
teológicas.
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