Não vou pro céu mas já não vivo no chão Hugo Sukman Depois de mais de 40 anos de carreira e centenas de músicas compostas com Aldir Blanc, finalmente uma das maiores duplas da história da música brasileira gerou a canção que retrata João Bosco à perfeição, “Sonho de caramujo”. “Cumpri o astral de caramujo musical/Hoje eu gripo ou canto/Não vou pro céu, mas já não vivo no chão/Eu moro dentro da casca do meu violão”, diz a letra de Aldir sobre o típico samba de João de onde foi tirado o título do CD, “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão”, que agora vira show e turnê que, como diz de novo a letra, vai percorrer mundo, de Quixeramobim e Bombaim, com João Bosco a bordo do seu violão. Mesmo sem ser explicitamente autobiográfico, o novo trabalho de João Bosco é uma espécie de síntese de sua vida e carreira, além de conciliar seu glorioso passado musical com um futuro não menos promissor. Do passado, João retoma sua (mais que histórica) mítica parceria com Aldir Blanc. Para o futuro, João confirma a excelência de seu mais recente parceiro constante, o próprio filho Francisco Bosco, ensaísta, poeta e letrista tão de mão cheia que impossibilita qualquer possível acusação de nepotismo. O próprio mestre Aldir Blanc declarou à imprensa recentemente que o jovem Francisco está mais maduro como letrista do que ele próprio, Aldir, quando tinha a idade dele. Através de suas melodias, de sua voz e de seu violão cada vez mais perfeito e tão característico que não precisa ser anunciado para se saber que é dele, João Bosco conta sua história auxiliado pelas palavras precisas dos parceiros. Com Aldir, parceiro desde 1971 quando fizeram o samba carioca “Bala com bala” e a canção barroco-mineira “Agnus sei” e foram consagrados na voz de Elis Regina, João celebra a arte da parceria (e outras formas de amor) em “Plural singular”: “Você é e sempre foi/Meu par/E sem par/O não-ser virando ser/Nascer/Transcender (...)/Um amor tão singular é plural/Grão de jóia sideral”. Já em “Mentiras de verdade”, além de homenagear uma de suas principais influências musicais que é o gênero samba-canção, João e Aldir narram em música a longa separação da parceria que viveram entre o início dos anos 1980 e o início de século XXI, dão sua versão da tão folclorizada briga e celebram o reatamento da parceria: “Verdade, foi tudo verdade/Eu hoje admito:/Somos um mito, sim/Maldade e carinho/Ternura sem fim/Num laço/Coleira de cetim/Quero esquecer de mim/Ser mais você, menos do que eu/Verdade e mentira que o amor entre nós reviveu”. A irreverência carioca de Aldir, tão constante na dupla encontra a contrição mineira de João no samba “Navalha” e suas contundentes metáforas religiosas: “Teu sorriso é uma navalha/Que abre meu coração/O sangue pelo peito/É do Cristo na Paixão”. Tão conhecedor do caminho criativo do pai quanto Aldir, Francisco Bosco também busca traduzir João Bosco nas contradições da “Alma barroca”: “Eu tenho o pé no chão/E o coração no ar/A minha alma é barroca/Serei bom e fiel/Seu admirador/Serei o mais cruel/Por nada, sem querer/A culpa é de ninguém/A dor é de nós dois/E nosso grande amor também”. Sim, João Bosco é barroco e em “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão” ele canta essa alma barroca que cala tão fundo em cada brasileiro. Mas aproveita também por viajar por várias de suas influências musicais e literárias. Com parceiro novo, o paulista Carlos Rennó explora sua veia lírica na sofisticada e esperançosa “Pronta pra próxima” e na amorosíssima “Pintura”, canções leves, quase jobinianas como tantas que João já compôs. Já com outro parceiro novo, o carioca Nei Lopes, João explora outra faceta tão importante de sua obra (em discos como “Gagabirô” ou “Cabeça de nego”), a influência da música negra universal, em “Jimbo no jazz”, uma homenagem a Ray Charles que vai se transformando numa floresta de ritmos que têm em comum o fato de terem vindo da África: “E o jazz e o samba e a milonga e o tango e o candombe/E a rumba e o mambo, tudo é lá do Congo”. Igualmente confortável nas grandes canções de amor (lembrem um “Papel machê” um “O amor quando acontece”, etc.) ou nos improvisos afro, João Bosco destila influências caribenhas em “Tanajura”. Mas volta sempre às modinhas cariocas como em “Desnortes”, uma bela homenagem também na letra de Francisco Bosco ao Rio de Janeiro, cidade que o mineiro de Ponte Nova escolheu para morar depois que foi apadrinhado musicalmente pelo grande poeta da cidade, Vinicius de Moraes, ainda no final dos anos 1960. Se Vinicius foi padrinho, Clementina de Jesus foi madrinha, gravando músicas suas como “Incompatibilidade de gênios” e apresentando-se com ele ainda no início da carreira. E Clementina está presente na recriação que João faz do belo samba “Ingenuidade” (de Serafim Adriano), que ambos cantaram juntos quando abriram, num concerto antológico no Rio de Janeiro em 1976, a série de shows Seis e Meia. Assim, meio que como sem querer, fazendo parecer um trabalho normal, um conjunto de novas canões, João Bosco repassa toda sua trajetória musical. Ver João Bosco desfiando seu amplo leque musical em “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão” é, como o título indica, voar pela própria história singular da música brasileira.