A prova da devastação
Daniela Goulart Pestana
A comunicação que segue procura pensar algumas especificidades constitucionais
do feminino a partir do aforismo lacaniano: “Não há relação sexual”. Para dizer da
impossibilidade de escrever matematicamente a relação de dois sexos diferentes. Lacan em
L´Eturdit escreve que o complexo de Édipo freudiano contrasta como o fato da devastação
na mulher. Como entender o termo, “devastação”, na relação mãe e filha. De que forma a
devastação constitui um entrave no caminho da feminilidade. De que devastação se trata é o
que pretende a comunicação.
Dentro da língua francesa o termo ravage (devastação), com seus reviramentos tem
a mesma etimologia do verbo venir. Esta proximidade semântica que convida a declinar
este ravir que está em jogo na relação mãe e filha e a interrogar sobre a arquitetura de seus
lugares.
Freud caracteriza as relações da menina com sua mãe de Libidinosen Beziehungen,
relações libidinais ativas e passivas, onde a mãe desempenha o papel de iniciadora, a
sedução primária que é feita pela mãe. São os cuidados maternos a despertar a via das
sensações prazerosas nas zonas genitais.
Tomando o texto A Sexualidade Feminina, cito Freud:
“Não se pode compreender uma mulher, a não ser considerando-se a fase de sua
ligação pré-edípica à sua mãe”. (1931)
Freud chega a afirmar que “um certo número de mulheres permanecerem detidas em
sua ligação original à mãe sem nunca alcançarem uma verdadeira mudança em direção aos
homens.” P.260
Chamam atenção às indagações que Freud já faz em 1931: Como a menina encontra
o caminho para o pai, quando e porquê se desliga da mãe? Procuraremos investigar o que
está em jogo nessa questão. O que se coloca na fase pré-edípica? E, porque para algumas
mulheres torna-se tão difícil a tarefa de abandonar a fase pré-edípica? O que a prende à
mãe? E como uma relação demasiado intensa de uma menina com a mãe, pode impedir o
caminho na via de tornar-se mulher? Extraímos de relatos clínicos ser uma relação
atravessada por impasses e confrontos, sempre permeada pela ambivalência, amor e ódio,
demonstrando o jogo obscuro nas relações de uma menina com sua mãe.
Freud reconhece que grande parte da história pré-edípica determina o futuro de cada
mulher, e que aceitar a castração é o que se encontra em jogo para o futuro da feminilidade
da mulher.
Freud comenta a dificuldade da mulher de separar-se da mãe para abraçar uma
relação com um homem. Na clínica, temos testemunhos de que muitas vezes, o vínculo
com a mãe é tão forte que ela não consegue voltar-se para um homem, quando isso ocorre,
é sempre aos trancos e barrancos, carreando estragos, levando a mãe para a relação, sem
desvencilhar-se psiquicamente. O que dá margem a todos os mal-entendidos, por nós
observados tão frequentemente.
Freud em: “Um Caso de Paranóia que Contraria a Teoria Psicanalítica da Doença”
(1915):
“O apreço da paciente ao seu próprio sexo se opunha as suas tentativas de adotar
uma pessoa do outro sexo como objeto amoroso. Seu amor pela mãe se tornava o porta-voz
de todas as tendências que, desempenhando o papel de uma“consciência”, procuram
embargar o primeiro passo de uma moça na nova estrada que leva à satisfação sexual
normal – sob muitos aspectos perigosa – e, na realidade conseguiu perturbar sua relação
com homens.” p. 301.
A partir daí, desenvolve a idéia de que a mulher terá dificuldade de separar-se da
mãe para ir em direção a um homem. Ainda no mesmo artigo ressalta:
“A manifestação da reação neurótica será sempre determinada, contudo, não por sua
relação atual com o que sua mãe é hoje, mas pelas relações infantis com sua imagem mais
antiga da mãe.” P. 302
Na clínica temos notícias de como é difícil para o sujeito sair desse lugar marcado
pelas relações infantis com a mãe. Trata-se da fixidez a esse primeiro objeto de amor, da
força em que as relações libidinais foram inscritas, é isso que deve ser abandonado.
Segundo Lacan nos Escritos , “Função e campo da fala e da linguagem”:
“Sabemos com efeito, da devastação que chega até mesmo à dissociação da
personalidade do sujeito, que pode exercer uma filiação falseada, quando a pressão do meio
se empenha em sustentar-lhe a mentira.” P.279
Lacan aqui, afirma os efeitos que a devastação pode desencadear na vida dos
sujeitos a ponto de comprometer a personalidade.
O que o ensaio procura indagar é o ponto de conjunção com o Outro, do qual uma
mulher precisa separar-se. Segundo Lacan:
“O único real que verifica o que quer que seja é o falo, na medida em que ele é o
suporte da função significante, acerca do qual assinalo nesse artigo que ele cria todo o
significado.” Sem “O Sinthoma” p. 114
Uma filha se volta para sua mãe ou a uma outra mulher para achar a resposta ao que
se espera sobre o enigma da feminilidade. Na verdade, é a curiosidade sobre seu gozo
erótico que faz enigma e aos quais ela se mede sendo derrubada pela aproximação do corpo
feminino, lugar de desejo, obsceno e fascinante ao mesmo tempo. É aí, onde localizamos
que a palavra devastação faz eco.
No coração da contra-corrente entre mãe e filha existe uma imagem do corpo
feminino que explode, pois é eminentemente desejante. A imagem de um corpo que porta a
chave da promessa de um gozo desconhecido. Segundo Lacan, dentro do campo do olhar
este é um ponto que não reflete nada, que não se identifica, que aspira a um estado segundo,
que vai da êxtase à desaparição, em segundos, um ponto de pura subjetividade do vazio e
do nada.
A imagem fascinante do corpo de uma mulher desejante se edifica no lugar onde
não há identidade sexual, nem transmissão de traços femininos de mãe a filha; um espaço
onde se juntam, a contra-corrente de um amor possessivo, despossuído de um lugar de
adição. Trata-se de uma passagem dolorosa que implica em desligar-se da influência
erótico maternal. Como se desligar da corrente erótico maternal tão presente é o que se
coloca?
O olhar da mãe deve funcionar, dizendo algo, em nível de objeto, levando à
construção de uma imagem, é a mãe, ou o grande Outro que retifica, para a criança sua
imagem refletida no espelho, ou seja, a mãe dá o aval a respeito da imagem. Função de
extrema importância para a filha menina, pois ela depende de uma cobertura imaginária
marcando um corpo onde falta o significante feminino. A mãe não pode fornecer à filha um
traço unário que suporte sua identidade de menina, pois o significante da identidade
feminina não existe.
Serge André em: “O que quer uma mulher”, diz:
“A história de uma menina e sua mãe aparece como uma história de uma separação
sempre adiada”. P189
Na devastação se joga entre as duas mulheres tocadas pela imagem do esplendor de
um corpo de mulher desejante para um homem. Revelando a impossibilidade de harmonia
de seu amor que esbarra na impossibilidade sexual entre elas. A prova da devastação é
atravessada quando a imagem fascinante será atingida a ponto de cair, marcando um corpo
que porta a marca da cicatriz.
A devastação sobrevive quando uma filha, já grande desenha em seu corpo os
signos anunciados de futura mulher. Neste momento aí, a mãe presa a contra-corrente que
assinala um renunciar dela. Não é ela a renunciar seu poder de sedução e ceder a sua filha,
pois nesse caso, terá uma só mulher, ou a mãe ou a filha. Quando uma mãe vê sua filha
tornar-se mulher ela vê mostrar nela a luz desejante é o poder erótico maternal da primeira
infância que ela deve renunciar, para dar lugar a mudança na direção erótica do desejo
sexual, afastamento necessário.
Na devastação trata-se de um afrontamento direto entre mãe e filha através de seus
corpos, sob a questão da feminilidade. A prova se situa onde a identificação ou as
identificações, se mostram impossíveis ao responder o que é uma mulher.
A questão da devastação é de grande valor clínico, pois, situamos a experiência da
devastação como a experiência disto que escapa a subida fálica, não é dá ordem de um
dom, ela é a prova de uma impossibilidade de transmissão do sexo. Concerne a um gozo
errante que se manifesta sob a forma de uma imagem persecutória.
Apesar da diferença de geração e de experiência, mãe e filha vivenciam na imagem,
pois são habitadas por um corpo erótico particular, objeto de desejo, atravessado por um
gozo sexual feminino.
A tormenta dentro da devastação diz respeito a violência com que se joga, revelando
o ódio presente dentro da demanda de amor que se conclui em ato. Não há uma
identificação resoluta possível a prova do espelho na puberdade, que dirá você é mulher,
que dará um eu mulher, é isso que angustia.
Portanto, entre uma mulher e sua mãe, não se trata da transmissão de um saber, nem
da iniciação a algum mistério, mas de experiência de uma prova a atravessar e a sair. A
devastação é a prova efetiva da impossibilidade de se fazer uma da experiência feminina.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Freud, S. “Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica Entre
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Imago Editora, 1976.
_______. “Sexualidade Feminina”. In: Obras Completas, vol XXI , Rio de Janeiro
Imago Editora, 1976.
_______. “Um Caso de Paranóia que Contraria a Teoria Psicanalítica da Doença”.
In: Obras Completas, vol XIV, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
LACAN, J. “Diretrizes para um Congresso sobre a Sexualidade Feminina”,
Escritos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988.
_______. “Função e Campo da Fala e da Linguagem”.
Escritos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988.
________.Observações sobre o Relatório de D. Lagache”.
Escritos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro
________. O seminário, livro 23, O Sinthoma, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 2007.
ZALCBERG, M. “A Relação Mãe e Filha”. Rio de Janeiro, Campus, 2003.
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