Análise de documentos/fontes
Analisar um filme histórico
Cinema e História
O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História.
Marc Ferro
O mundo de imagens animadas, que é o cinema, entrou na nossa vida e na História há pouco mais de um
século, quando os irmãos Lumière inventaram o cinematógrafo. Como espetáculo de massas, com uma
função recreativa mas, também, informativa e artística, o cinema adquiriu uma tal projeção que muitos filmes são hoje considerados documentos históricos. Por um lado, porque testemunham os costumes,
a ideologia, a mentalidade e os valores da época que os produziu. Por outro, e na qualidade de filmes históricos propriamente ditos, porque exploram um facto ou um episódio da História.
Apesar de os filmes históricos merecerem frequentemente reservas no que toca à fidedignidade dos factos relatados, não devemos descurar o seu potencial enquanto divulgadores de saber num tempo dominado pelo audiovisual. E, como acontece com outro qualquer documento, há que descodificá-los, cruzá-los
com outras fontes, de molde a contribuir para uma construção crítica do conhecimento histórico.
Regras de análise
Fazer uma pesquisa prévia (no manual, em livros de História,
enciclopédias, CD-ROM, Internet):
Resumir o filme:
– acontecimentos, personagens, época a que se refere o filme.
Identificar as personagens relevantes e caracterizá-las:
Visualizar o filme na íntegra e posteriormente, se necessário,
excertos.
– personagens principais e secundárias determinantes no
enredo – seus traços de carácter.
Apresentar o filme:
Identificar o contributo do filme para o estudo da História:
– tipo de filme histórico (reconstituição, biografia, ficção,
filme-mito, filme etnográfico, filme de época, documentário);
– fidedignidade do enredo e das personagens;
– ficha técnica (título original, origem e datação, realização, produção, argumento, fotografia, banda sonora, guarda-roupa,
duração, elenco);
TEHA11-P2 © Porto Editora
– prémios recebidos.
Identificar o assunto central e contextualizá-lo:
– título (pode ajudar; prestar atenção ao título original);
– acontecimento(s) histórico(s) relatado(s) – sua localização no
espaço e no tempo.
– linhas gerais do enredo.
– elementos da época a que se reporta o filme (vestes,
alimentos, utensílios, transportes, edifícios, obras de arte,
livros, costumes, crenças, divertimentos);
– possíveis erros e anacronismos;
– possível escolha do assunto do filme em função de uma
problemática atual à data da sua realização.
Análise de documentos/fontes
TIPO DE FILME
Biografia
FICHA TÉCNICA
Título original: L’Anglaise et le Duc
Origem: França (2001)
Realização: Eric Rohmer
Produção: Antoine Beau e Françoise Etchegaray
Argumento: Eric Rohmer (a partir de Journal of my life
during the French Revolution, escrito por
Grace Elliott em inícios do século XIX
e publicado em 1859)
Fotografia: Diane Baratier
Cenários: Jean-Baptiste Marot e Antoine Fontaine
Efeitos especiais: Buf Compagnie
Guarda-roupa: Nathalie Chesnais e Pierre-Jean Larroque
Música: Jean-Claude Valero
Duração: 125 minutos
Fotograma do filme “A Inglesa e o Duque”
PRÉMIOS
Elenco:
Jean-Claude Dreyfus .... Philippe, duque de Orleães
Lucy Russell .... Lady Grace Elliott
Alain Libolt .... Duque de Biron
Charlotte Véry .... Pulchérie
Rosette .... Fanchette
Léonard Cobiant .... Champcenetz
Francois Marthouret .... Dumouriez
Caroline Morin .... Nanon
Héléna Dubiel .... Madame Meyler
Daniel Tarrare .... Justin
Marie Rivière .... Madame Laurent
Michele Demierre .... Chabot
Serge Renko .... Vergniaud
Christian Ameri .... Guadet
Eric Viellard .... Osselin
François-Marie Banier .... Robespierre
Seleção oficial do festival de Veneza 2001 (fora de competição).
Um dos melhores filmes de 2001, segundo os Cahiers du Cinéma.
ASSUNTO
CENTRAL
E SUA
CONTEXTUALIZAÇÃO
HISTÓRICA
“A Inglesa e o Duque” debruça-se sobre as peripécias dramáticas que a aristocrata britânica Grace Elliott viveu em
Paris durante a Revolução Francesa e registou no seu diário.
Monárquica fervorosa, adepta da velha “ordem”, amiga e ex-amante do duque de Orleães, com quem trava curiosas
disputas verbais, Grace assiste com inquietude à escalada revolucionária que depõe o monarca e o executa,
massacra muitos dos seus amigos e a faz correr, também, perigo de vida. Pode dizer-se que, nos anos de 1790 a
1794, Grace viveu «no fio da navalha».
As peripécias da vida de Grace cruzam-se, na verdade, com as da Revolução Francesa. O filme inicia-se com os
preparativos da Festa da Federação (14/7/1790), quando parecia ainda possível uma conciliação entre o Rei e a
Nação. Mas tal não acontece e, dois anos decorridos, a França torna-se uma República, cujos destinos são
governados pela Convenção. Nela, os jacobinos mais radicais (os Montanheses), com fortes apoios entre os
sans-culottes, travam-se de razões com outros mais moderados (os Girondinos), a propósito do rumo a dar à
Revolução, isto é, da concretização dos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. As posições extremam-se, os
radicais e os sans-culottes levam a melhor e a França mergulha no Terror (1793-1794). O rei, a rainha e milhares de
nobres e revolucionários moderados sobem ao cadafalso.
RESUMO
Tendo como pano de fundo a complexa relação de amizade e antagonismo ideológico entre Grace Elliott e o duque de
Orleães nos conturbados anos de 1790 a 1794, a ação de “A Inglesa e o Duque” centra-se em quatro momentos-chave.
O primeiro ocorre em julho de 1790 (na véspera da Festa da Federação), quando Grace escolhe permanecer em Paris,
em lugar de partir para Inglaterra, como o duque de Orleães lhe aconselha.
O segundo momento sucede em 1792, após a deposição do rei e a prisão da família real. A França, e especialmente
Paris, é um lugar perigoso para os aristocratas como Grace, que assiste, horrorizada, à fúria dos populares
massacrando um nobre e vê, espetada num pique, a cabeça de uma princesa amiga.
O medo, porém, não impede a solidariedade e a generosidade por parte da aristocrata, que dá guarida a
Champcenetz, o governador do palácio real das Tulherias. Por pouco, uma patrulha, que lhe revista a casa, não o
descobre. Vale a Grace, mais tarde, a amizade do duque de Orleães que, apesar de estar do lado dos revolucionários
e detestar Champcenetz, faculta meios para que este saia de França.
O terceiro momento-chave do filme coincide com o julgamento de Luís XVI. Está-se em janeiro de 1793 e Grace e o
duque de Biron solicitam ao duque de Orleães que, na sua qualidade de deputado à Convenção, não vote a
condenação do ex-monarca, que é seu primo. Com profunda consternação, Grace, uma amiga, o duque de Biron e o
general Dumouriez recebem a notícia da condenação à morte de Luís XVI, especialmente quando sabem que Filipe de
Orleães, não obstante ter jurado que nunca o faria, votou a favor.
Finalmente, o quarto momento-chave do filme decorre sob o signo do Terror. Sabe-se que o general Dumouriez se
passou para a coligação de países inimigos que atacam a França revolucionária e que, com ele, partiu, igualmente,
um filho do duque de Orleães. A Convenção republicana radicaliza ainda mais a sua ação, enchendo as prisões de
suspeitos que julga sumariamente e executa. Os duques de Orleães e de Biron contam-se entre as suas vítimas.
Grace sofre, também, a provação da prisão mas enfrenta com valentia o interrogatório do Comité de Segurança.
Só a queda de Robespierre a impede de subir ao cadafalso.
TEHA11-P2 © Porto Editora
GUIÃO DE ANÁLISE DO FILME HISTÓRICO “A INGLESA E O DUQUE”*
TEHA11-P2 © Porto Editora
Análise de documentos/fontes
PERSONAGENS
RELEVANTES E SUA
CARACTERIZAÇÃO
Grace Elliott – Nascida c.1754, numa família escocesa (os Darlymple), segue o percurso típico da cortesã aristocrata. Casa-se muito jovem com o velho Dr. Elliott e alimenta várias ligações amorosas. Entre os seus amantes, contam-se o príncipe de Gales, de quem tem uma filha, e o duque de Orleães que a leva para França.
Defensora dos privilégios do Antigo Regime, Grace é leal para com o rei de França e revela-se uma dama generosa,
no sentido cristão da palavra. Acolhe uma criança pobre e esconde um nobre perseguido. Embora assustada com as
violências da Revolução, Grace não deixa de ser frontal e corajosa, digna e bondosa. Não se inibe de criticar as atitudes antimonárquicas do seu amigo, o duque de Orleães. Na prisão, não dispensa o seu saquinho de lavanda, oferece a cadeira a uma dama idosa e argumenta inteligentemente perante o Comité de Segurança. Como confessa
numa passagem inicial, Grace parece ter perdido o “medo da morte”.
Philippe, duque de Orleães – Primo direito do rei Luís XVI, é-lhe, no entanto, profundamente crítico e hostil. Por
convicção revolucionária e/ou por despeito familiar, defende a revolução como um patriota jacobino (considera-se
«francês antes de ser Bourbon») e, na qualidade de deputado à Convenção, vota a morte do ex-monarca.
Apesar de já não estar apaixonado por Grace (sabe-se que tem uma outra ligação amorosa), Philippe nutre pela
dama britânica uma relação de grande carinho e devoção. O duque de Orleães é uma figura polémica e controversa,
revelando a impossibilidade de se ser, em simultâneo, privilegiado e revolucionário.
Champcenetz – Último governador do palácio real das Tulherias, tem a cabeça a prémio após a deposição do
monarca. Gravemente ferido e aterrado, vive escondido em casa de Grace, até o duque de Orleães providenciar a
sua saída de França.
Duque de Biron – Nobre adepto dos girondinos, mostra-se preocupado com os excessos revolucionários, nomeadamente com o destino do rei Luís XVI.
Dumouriez – Famoso general francês, responsável por algumas das vitórias da França como a de Valmy, rejeita o
radicalismo jacobino (chega a dizer que o duque de Orleães «sujou as mãos de sangue»), acabando por se passar
para o inimigo.
Madame Meyler e Madame Laurent – Damas amigas de Grace Elliott, como ela adeptas da ordem do Antigo
Regime e críticas da Revolução.
Nanon e Justin – Criados fiéis e dedicados de Grace Elliott.
Pulchérie – Criada de Grace Elliott, personifica a sans-culotte-tipo. Milita numa secção e exulta com o ataque ao
palácio real das Tulherias. Grace Elliott receia-a.
Vergniaud – Deputado girondino, defende Grace perante o Comité de Segurança.
Robespierre – Político altivo, infunde respeito e temor. Em nome do pragmatismo, manda libertar Grace.
VALOR HISTÓRICO
1.° O enredo de «A Inglesa e o Duque», baseado numa fonte primária (o diário da protagonista), descreve factos
históricos efetivamente sucedidos (a Festa da Federação, em julho de 1790; o ataque ao palácio real das Tulherias,
em agosto de 1792; os massacres dos nobres, em setembro de 1792; o julgamento e a execução de Luís XVI, em
janeiro de 1793; o Terror que se seguiu).
2.° As personagens existiram na realidade, expressando pensamentos, sentimentos e condutas sustentados pela História. A figura do duque de Orleães (que ficou conhecido por Philippe Égalité) respeita com fidelidade a sua biografia.
3.° A recriação histórica da época revela-se extraordinária. Socorrendo-se da tecnologia digital e da pesquisa
pictórica, o realizador E. Rohmer faz desfilar as ruas e os edifícios de Paris da época. Neles se movem as multidões
de sans-culottes, com um realismo por vezes brutal, e se ouvem as expressões típicas da linguagem revolucionária
(o tratamento por cidadão/cidadã, por exemplo).
O período do Terror apresenta-se particularmente ilustrado. O menor pretexto serve para se ser considerado suspeito
e fazer devassar os domicílios. Nos corredores da prisão, os presos amontoam-se e, no Comité de Segurança, os
réus ficam à mercê de funcionários pouco dignos e de políticos facciosos. Uma palavra final para o guarda-roupa,
notável e rigoroso, desde o trajo dos aristocratas à farda da Guarda Nacional e à imprescindível cocarde que todo o
patriota devia apresentar.
Sugestão de atividade
Questão para refletir
Faça uma pesquisa biográfica
sobre os dois protagonistas
do filme: Grace Darlymple-Elliott e Luís Filipe II, duque
de Orleães, que ficou conhecido por Philippe Égalité.
“A Inglesa e o Duque” documenta o olhar dos vencidos
da Revolução.
Madame Grace Darlymple-Elliott, pintada por T.
Luís Filipe II, duque de
Orleães, com as insígnias
Gainsboroug, 1778.
de grão-mestre do Grande
Oriente de França.
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