ATIVIDADES TRANSDISCIPLINARES: ENSAIOS DE UM PROJETO DE ENSINO PARA A EJA II. Daniela Manini e Cláudio Borges, EMEF Dulce Bento Nascimento – SME/ Campinas-SP. [email protected], [email protected] 1) Descrição do objeto e dos objetivos O projeto das Atividades Transdisciplinares (doravante, ATs) surgiu a partir da constatação das dificuldades nas habilidades de leitura e escrita apresentadas pelos alunos da EJA II na EMEF Professora Dulce Bento Nascimento. Cientes desse problema, os professores deste segmento, juntamente com a direção e orientação pedagógica da escola, elaboraram um projeto de atividades visando a minimizar tais defasagens e o encaminharam à Secretaria Municipal de Educação no segundo semestre de 2005. Um aspecto característico do projeto foi a modificação da grade curricular. Cada disciplina ficou com três aulas semanais e, durante a semana, quatro aulas são destinadas para o desenvolvimento das ATs (duas na quarta e duas na quinta-feira), momento em que alunos dos quatro termos são divididos em três grupos e, em cada grupo, dois professores (eventualmente três) orientam atividades de leitura, interpretação e produção de textos dos mais variados gêneros, selecionados em função de um tema comum a ser abordado pelo grupo. É importante ressaltar que as habilidades de leitura e escrita são prérequisitos em todas as disciplinas, daí a necessidade de trabalhá-las de modo transdisciplinar, isto é, envolvendo todos os professores e utilizando gêneros textuais que se relacionam às diversas áreas do conhecimento. Não é demais salientar que uma das principais metas dos educadores, sobretudo dos que trabalham com a EJA e lidam diretamente com a exclusão, é promover o letramento, isto é, levar o aluno ao domínio apropriado da leitura e da escrita, relacionando-as à oralidade quando necessário, para as práticas sociais em que deverá fazer uso das mesmas (Soares, 2003), haja vista que, em uma sociedade grafocêntrica como esta em que vivemos, um indivíduo capaz de realizar as várias leituras e escritas que tal sociedade nos impõe terá mais autonomia e capacidade para realizar suas escolhas. Além das ATs, há também um sistema, ao qual chamamos de Tutoria, que consiste em uma dupla de professores ficar responsável pelo acompanhamento das atividades escolares de um grupo de alunos. Os dois professores responsáveis por determinado termo têm a tarefa de informar aos alunos seu rendimento em cada disciplina, tirar suas dúvidas quando possível ou encaminhá-los para as atividades de reforço/ aulas-extras, bem como indagar o motivo de várias ausências seguidas, procurando sempre trazer os alunos para a escola. O projeto prevê também assembléias semestrais, entre alunos e professores, para a avaliação das atividades do curso. O sistema de avaliação do curso é semestral, respeitando as necessidades específicas da Educação de Jovens e Adultos, que organiza o tempo da seriação por semestres. A seguir trazemos o exemplo de uma AT, a fim de ilustrarmos como se desenvolve o principal aspecto do nosso projeto de ensino para a EJA II. 2) Procedimentos adotados e alguns resultados A partir do filme Dois filhos de Francisco, a que os alunos desejavam assistir desde o seu lançamento, desenvolvemos algumas atividades; aproveitamos para associar esse desejo às diversas possibilidades de leitura que o filme permite. No primeiro dia de atividade, o filme foi projetado em um telão, no refeitório da escola, com todas as turmas e os professores presentes, em clima de entusiasmo. Ao final do filme, alguns alunos bateram palmas, tamanha a empolgação com a história. No segundo dia, as turmas foram novamente agrupadas em três. Cada grupo iniciou as atividades com um debate sobre as impressões que o filme havia causado: cenas marcantes, personagens interessantes, a determinação do Francisco, os sonhos, as conquistas dos personagens, os lugares diferentes, o que emocionou, o que foi inusitado, e outras questões que foram surgindo. Após esse debate, que durou uma aula, os alunos tiveram como tarefa a produção de um texto relatando um pouco sua história de vida, os sonhos que carregam, as conquistas realizadas e as que estão por realizar. De início, para alguns, foi difícil pensar sobre o tema, principalmente para os adolescentes. Mas, aos poucos, todos foram se envolvendo com a proposta e começaram a escrever. Alguns concluíram o texto e o entregaram no mesmo dia, outros se comprometeram a entregar na semana seguinte. No terceiro dia de atividade, os alunos receberam seus textos corrigidos e comentados e tiveram como tarefa a reescrita dos mesmos, revendo a adequação à proposta, a organização textual, a clareza na apresentação das idéias e fatos, e aspectos formais como ortografia, concordância e pontuação. Terminada a tarefa dos alunos, os professores de cada grupo fizeram um comentário geral sobre a realização da atividade e os alunos participaram dizendo o quanto foi (ou não) interessante realizar tal proposta. É válido ressaltar que vimos histórias de vida muito marcantes, tristes, bonitas, longas e, sobretudo, cheias de esperança; “mais interessantes que a do filme”, no dizer de alguns alunos. É bom dizer também que vários alunos terminaram seus textos em casa e nos entregaram antes do encontro seguinte, para que pudéssemos corrigi-los; isso revela o empenho e o interesse despertados pela atividade proposta. Até mesmo alunos que normalmente não escrevem nas atividades escolares de cada disciplina ou que escrevem pouco nos surpreenderam com suas histórias. No quarto dia, a atividade foi sobre a linguagem cinematográfica e o que está envolvido na elaboração de um filme. Em cada grupo, os professores fizeram breves comentários sobre o que é roteiro, direção, produção e atuação em um filme, ouviram o que os alunos sabiam a respeito dessa linguagem e, em seguida, fomos todos ao refeitório onde estava projetado o telão para assistirmos ao making off do filme, aos depoimentos de diretores, atores e produtores, aos erros de filmagem, enfim, à linguagem envolvida na construção de um filme. Para alguns, isso foi uma grande novidade, para outros, uma linguagem já conhecida, mas nem por isso pouco interessante. Após essa atividade, os alunos foram reagrupados com três equipes de professores e grupo fez uma atividade diferente, tendo como base o filme. O grupo I realizou uma atividade de pesquisa e discussão sobre os seguintes temas: a) Saúde pública; b) Qualidade de vida; c) Planejamento familiar; d) História da vacina. Houve um debate sobre tais assuntos, sempre a partir do que o filme mostrou e relacionado aos conhecimentos dos alunos. Em seguida, houve uma divisão da turma em quatro grupos; cada grupo iniciou a pesquisa de um dos temas acima relacionados. As fontes para a pesquisa foram livros didáticos, artigos de jornais e revista e a Internet. Os resultados das pesquisas foram reunidos em anotações e na elaboração de painéis expositivos. Estas atividades foram desenvolvidas em dois encontros. O grupo II também realizou uma atividade de pesquisa e discussão; os temas foram: a) Migração; b) Trabalho infantil; c) Cidades e estados do Brasil. Os alunos foram divididos em três grupos diferentes, cada qual com um assunto a pesquisar. Os professores orientaram o desenvolvimento das atividades, que seriam de leitura, interpretação, discussão e elaboração de painéis e cartazes sobre os temas. A fonte para a pesquisa foram livros didáticos, artigos de jornais e revista. Estas atividades foram desenvolvidas em dois encontros. O grupo III propôs uma atividade focando o percurso da música sertaneja mostrado no filme. Houve um debate inicial sobre o que os alunos entendiam sobre música sertaneja, a diferenciação entre a música sertaneja de raiz e a sertaneja romântica, que caracteriza a produção recente mostrada no filme. Em seguida, foram ouvidas duas músicas do grupo Ânima (Beira-Mar e Carta pro Zé), marcadas pelo uso da rabeca e da viola caipira e por letras que falam sobre o cotidiano, a simplicidade, a alegria e a amizade, marcas da vida rural e temas comuns a todos nós. Houve um debate sobre como entenderam as músicas e, por fim, ouvimos a música É o amor, de Zezé de Camargo, cantada por Maria Betânia; o arranjo não agradou os alunos. Em outro encontro, os alunos foram divididos em grupos, cada grupo leu uma letra de canção sertaneja de raiz: Romaria, Tristeza do Jeca, Luar do Sertão e, em seguida, cada grupo, com o professor Cláudio no violão, apresentou sua música para a sala. Após dois encontros para pesquisas, os grupos I e II finalizaram a elaboração dos painéis e ensaiaram o modo de fazer a apresentação. O grupo III sugeriu que os alunos levassem músicas de que gostassem e as apresentassem à turma; poderia ser qualquer estilo musical e os alunos teriam que justificar o porquê da escolha, comentar a letra e o ritmo com a classe e apresentá-la para a turma. No encerramento das AT, houve a apresentação das atividades para toda a escola. Os alunos se reuniram no pátio e o grupo I iniciou falando sobre a história da vacina, relacionando o assunto ao fato de haver no filme um personagem vítima da poliomielite; em seguida, apresentaram um grande painel com imagens e frases sobre o que entendiam como sendo qualidade de vida. Por fim, apresentaram outro painel com dizeres e imagens sobre o que não é qualidade de vida. O grupo II apresentou os resultados de suas pesquisas com vários painéis sobre os temas: trabalho infantil e fluxo migratório entre os estados brasileiros. Todos os alunos participaram: alguns apresentaram os painéis, outros fizeram leituras sobre os temas; para encerrar, fizeram uma bela apresentação da música Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. O grupo III também cantou, já que o tema das discussões foi a música sertaneja, em função do filme, e os estilos musicais preferidos pelos alunos. Foram apresentadas quatro canções: É o amor, de Zezé di Camargo, cantada por todos os alunos do grupo e tocada pelo professor Cláudio e pelo aluno Mauro; O amor venceu a guerra, um rap cantado pelo aluno Reginaldo, e dois pagodes do grupo Revelação cantados pelos alunos Laura, Ester, Leandro e Reginaldo. 3) Considerações finais A atividade descrita exemplifica como procuramos aproximar disciplinas e assuntos a partir de um tema comum nas ATs que desenvolvemos. Há várias outras propostas desenvolvidas que propiciaram o envolvimento de alunos e professores, comprovando que a aprendizagem situada, contextualizada e, sobretudo, ocorrida em situações de comunicação é realmente significativa a alunos e professores. Esta é a base do interacionismo sócio-histórico, proposto por Vygotsky ([1935] 2003). Dentre os principais pontos dessa teoria, destacamos os seguintes: i) todo aprendizado é mediado pela linguagem, portanto ocorre sempre em situações de interação; ii) o aprendizado começa muito antes de o indivíduo freqüentar a escola, por isso qualquer situação de aprendizado escolar tem sempre uma história prévia; iii) o aprendizado escolar produz algo novo no desenvolvimento do aprendiz, portanto toda situação de aprendizagem escolar deve considerar a ZDP (zona de desenvolvimento proximal), que é “a distância entre o nível de desenvolvimento real, determinado através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com outros companheiros mais capazes” (Vygotsky [1935], 2003: 112). Com base nesses pressupostos orientamos nosso projeto pedagógico e acreditamos contribuir para o desenvolvimento da aprendizagem dos alunos da EJA II, especialmente no que diz respeito às habilidades de leitura e escrita. BIBLIOGRAFIA SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. M. Cole et alli (orgs.). São Paulo: Martins Fontes, ([1935] 2003), 6ª edição.