REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735 O PROJETO HIP-HOP COM/CIÊNCIA: AÇÃO POLÍTICOEDUCACIONAL NA PERIFERIA DE MARÍLIA-SP Bráulio Roberto C. Loureiro 1 Introdução O Projeto Hip-Hop com/ciência fez parte do Projeto do Núcleo de Ensino da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Marília) Ciências Sociais na escola: Sociologia em questão, durante o ano de 2006. Esse Projeto realizou suas atividades entre fevereiro e novembro daquele ano no espaço da Escola Estadual José Alfredo de Almeida, localizada no bairro Jardim Continental, na periferia de Marília-SP. De modo geral, a forma pela qual a educação pública é estruturada no capitalismo cumpre objetivos que contemplam condições necessárias à manutenção e ao desenvolvimento de uma sociedade dividida em classes e baseada na exploração dos trabalhadores. No contexto da sociedade burguesa a escola possui funções estratégicas, tanto qualificando minimamente a mãode-obra quanto reproduzindo a visão de mundo da classe dominante. O conhecimento encontra-se fragmentado e a educação disponível aos filhos da burguesia difere da educação fornecida aos filhos da classe trabalhadora. Enquanto aqueles possuem acesso a um conhecimento sistematizado, estes, quando podem, se deparam com uma educação/capacitação distante da reflexão e com a finalidade de integrá-los à sociedade como força de trabalho subordinada. Nas palavras de Mészáros (2005, p.35), significa “[...] fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista, mas também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes”. 1 Mestrando da Linha de Pesquisa Trabalho e Sociabilidade do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista – Unesp/Marília. 294 REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735 É possível afirmar que, no âmbito da escola pública brasileira, os elevados índices de repetência e evasão entre os alunos, o desinteresse por parte dos próprios estudantes, a precarização das condições do trabalho docente e o expressivo aumento das situações de violência envolvendo alunos e professores podem caracterizar um cenário de crise em que o sentido da escola se esvazia para o jovem. No entanto, uma crise que se apresenta ao compreendermos a escola como espaço de socialização e transmissão do conhecimento, pois, na perspectiva do capital, esta escola em crise prossegue cumprindo seus objetivos político-educacionais de contenção de classe e divisão do conhecimento. A face atual dessa divisão do conhecimento, marcada no Estado de São Paulo por um processo de reforma educacional neoliberal e a conseqüente precarização das condições de trabalho dos professores, faz com que por meio de programas e conteúdos superficializados (visando quase que exclusivamente adaptar o contingente de jovens às demandas da produção e do consumo) as disciplinas vão sendo ministradas de modo que a reflexão é suprimida e o que é aprendido, muitas vezes, parece estar descolado da realidade. Ocorre o que Gramsci define como perda ou ruptura da unidade entre escola e vida. Para Gramsci (2004, p.44), A consciência individual da esmagadora maioria das crianças reflete relações civis e culturais diversas e antagônicas às que são refletidas pelos programas escolares: o “certo” de uma cultura evoluída tornase “verdadeiro” nos quadros de uma cultura fossilizada e anacrônica, não existe unidade entre escola e vida e, por isso, não existe unidade entre instrução e educação. [...] Antes, pelo menos, os alunos formavam uma certa “bagagem” ou “provisão” (de acordo com os gostos de noções concretas; agora, quando o professor deve ser sobretudo um filósofo e um esteta, o aluno negligencia as noções concretas e “enche a cabeça” com fórmulas e palavras que não têm para ele, na maioria dos casos, nenhum sentido, e que são logo esquecidas. Construção e execução do Projeto Hip-Hop com/ciência A principal responsabilidade dos bolsistas e voluntários envolvidos no Projeto Ciências Sociais na escola: Sociologia em questão estava contida na 295 REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735 tarefa de introduzir métodos e práticas educacionais que contribuíssem para a apropriação do conhecimento por parte dos alunos da escola através do resgate de alguns conteúdos das disciplinas de ciências humanas. Ademais, a ação dos bolsistas e voluntários da Unesp deveria ser orientada por objetivos de emancipação e socialização dentro de um espaço de contradição, no qual, naquele momento, práticas autoritárias e alienantes se faziam hegemônicas. Parte da direção da escola via na atuação dos bolsistas e voluntários a possibilidade de amenizar as tensões existentes na escola com os alunos considerados problemáticos e indisciplinados, recolocando-os nos caminhos estabelecidos pela escola e pelo Estado. Interpretamos naquele momento que o Projeto, para uma parcela da direção da escola, tinha a finalidade de minimizar as ações de violência que, em muitos casos, atingiam os professores, os funcionários e a própria direção. Uma percepção que gerou, no decorrer das atividades, conflitos entre o grupo de estudantes do Núcleo de Ensino e a direção da escola. A intenção, o sentimento e o objetivo dos membros do grupo de estagiários e voluntários era o de conseguir atuar naquele espaço turbulento enxergando em cada aluno um intelectual, um sujeito dotado de potencialidades a serem trabalhadas e desenvolvidas a partir da elaboração de atividades intelectuais. E somente a partir de algo que despertasse o interesse e fizesse sentido para os jovens seria possível resgatar conteúdos importantes para a formação desses sujeitos. Assim, a partir do relato de alguns professores sobre o interesse dos jovens pelo Hip-Hop e da percepção dos estudantes do Núcleo de Ensino no contato com os alunos da escola, nas reuniões do Horário Pedagógico de Trabalho Coletivo (HTPC) decidiu-se que os objetivos educacionais do Projeto do Núcleo de Ensino da Unesp-Marília seriam buscados a partir do Hip-Hop. Era o inicio do Projeto Hip-Hop com/ciência. O Hip-Hop é um movimento artístico, político e cultural que contem quatro elementos e que surgiu nos guetos dos Estados Unidos na década de 1970. O rap (ritmo e poesia) é a junção de dois dos quatro elementos do HipHop, o MC (mestre de cerimônia) e o DJ (disk jóquei). Os outros dois elementos do Hip-Hop são o break (dança) e o grafite (pintura). Um ponto 296 REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735 interessante (e importante) desse movimento é o seu caráter de contestação social, visto que o Hip-Hop se desenvolveu ao longo das últimas décadas como um movimento que expressa formas de resistência e auto-organização políticocultural dos jovens das periferias dos centros urbanos. Encerrado entre os meses de fevereiro e março o processo de definição sobre a temática principal que guiaria as atividades do Projeto, o primeiro passo prático dado compreendeu uma etapa de observação e aproximação dos estudantes da Escola José Alfredo de Almeida. Essa primeira etapa durou aproximadamente três meses (abril, maio e junho) e foi marcada pela presença sistemática dos estagiários e voluntários da Unesp na escola. O objetivo era conhecer os alunos da escola, falar das características do Projeto que pretendiam realizar, além de tornarem-se conhecidos naquele espaço, tanto entre os alunos como entre os funcionários e professores. Ao longo do processo de observação e contato inicial com os estudantes foi possível identificar que a escola não conseguia lidar com os grupos de alunos que não se adequavam às normas impostas. Os alunos considerados indisciplinados falavam inclusive em organizar uma rebelião na escola. O interessante (mas não surpreendente) é que ao longo do Projeto foram esses jovens que mais se destacaram no que diz respeito à profundidade das reflexões e à capacidade de articulação e liderança perante os demais alunos. As atividades do Projeto iniciaram-se em agosto, com freqüência semanal (aos sábados), e contavam com a presença de 16 jovens. Dentre os participantes estavam alunos da Escola José Alfredo de Almeida, alunos de outras escolas da região e jovens desvinculados de qualquer instituição educacional. Nas atividades semanais, buscava-se por meio de análises das letras de rap, exibição de documentários relacionados aos movimentos sociais de resistência política e realização de dinâmicas de grupo, trabalhar conteúdos referentes às disciplinas de Geografia e História, estudando os processos históricos que levaram ao surgimento de movimentos como o Hip-Hop. É importante pontuar que o Hip-Hop não é um movimento homogêneo e progressista em todos os seus aspectos. O Hip-Hop, como um movimento formado por indivíduos imersos nas relações sociais capitalistas, é contraditório e possui limites. É fato que dentro do Hip-Hop existem inúmeras manifestações 297 REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735 e expressões que reproduzem valores e prioridades que sustentam a ordem vigente (como a conduta machista de muitos integrantes, a inserção empresarial de ícones do Hip-Hop, a busca individual por riqueza e ascensão social, entre outros). No caso do Projeto Hip-Hop com/ciência, tais questões foram debatidas entre os bolsistas e estagiários e entre os alunos da escola. Em uma atividade específica houve um trabalho de análise e comparação de diferentes letras de rap (letras que submetiam a mulher ao homem, letras que ressaltavam o uso de drogas e o acumulo de bens materiais, e também letras que criticavam posturas machistas e individualistas e expunham a necessidade de mudanças valorativas e luta coletiva) a fim de problematizar algumas posturas contraditórias dentro desse movimento que se reivindica de resistência. Como, na perspectiva da direção da escola, um dos objetivos principais do Projeto deveria ser a contenção da violência e da indisciplina dos alunos da própria escola, e a maior parte dos participantes do Projeto aos sábados não era matriculada na escola, a direção decidiu restringir a participação de alunos não matriculados nas atividades do Projeto (o que gerou a possibilidade de encerramento do Projeto). Após discussões do grupo de estudantes da Unesp com a direção da escola, decidiu-se trabalhar dentro do horário regular da escola, em duas aulas semanais de história que aconteciam no mesmo dia e em seqüência numa turma de 1º ano do ensino médio. Com isso, aproveitando que a matéria que vinha sendo trabalhada pela professora de História era Escravidão no Brasil, o grupo de estudantes do Núcleo de Ensino organizou suas atividades e redefiniu a sistemática de trabalho. O Hip-Hop prosseguiu tendo inserção nas atividades, porém, como não se tratava mais de um Projeto em que os interessados procuravam as atividades, mas em que as atividades eram realizadas numa sala de aula, optou-se por criar outras áreas de trabalho, a partir do interesse dos alunos, já que alguns não se interessavam pelo Hip-Hop. No início dos trabalhos os alunos da escola não se abriam muito para as atividades. Foi necessário assimilar quais eram os anseios, interesses e curiosidades daquela sala de aula para que os encontros pudessem começar a dar resultados mais expressivos. A partir do momento em que os alunos do 298 REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735 Núcleo de Ensino sabiam quais eram as necessidades e interesses daquela sala de aula e a sala sabia que o objetivo do grupo de estudantes da Unesp não era simplesmente passar o tempo de aula ou cumprir carga horária, iniciou-se uma relação de sinceridade e cumplicidade entre todos. Partindo desse interesse, dividiu-se a sala em quatro grupos de oito alunos. Havia, assim, o grupo que discutia questões relativas ao Hip-Hop, o grupo que se ligava às questões a respeito do papel da mulher na sociedade, o grupo que trabalhava questões relacionadas ao uso e tráfico de drogas e o grupo que se dedicava a compreender a história do Brasil. Com relação ao método utilizado pelo grupo de alunos do Núcleo de Ensino nos trabalhos em sala de aula, a maior parte das atividades começava com a exibição de algum material áudio-visual. Posteriormente, dividia-se a classe a partir dos grupos de interesse e ocorria ali a discussões sobre os materiais apresentados, mas tendo como eixo central a seguinte questão: “O escravo de ontem é o trabalhador de hoje?”. Os alunos do grupo do Núcleo de Ensino forneciam materiais (livros, revistas, jornais) para embasar a discussão e atuavam como mediadores no debate dentro de cada grupo. Após o debate no âmbito dos grupos, organizava-se a sala de aula em um grande círculo com o objetivo de refletir e expor a perspectiva de cada grupo num debate geral. Pretendia-se, a partir dos diversos interesses, fazer com que as diferentes manifestações e pontos de vista relacionassem o tema do grupo de interesse com a proposta geral de trabalho (a questão sobre escravidão e trabalho assalariado). Com isso, resgatava-se o sentido e o significado do processo de aprendizagem, bem como despertava no aluno um olhar diferente para as possibilidades que a educação e a escola poderiam lhe oferecer. De acordo com Mendonça, “O efetivo diálogo e as discussões realizadas chamaram a atenção de outras classes vizinhas, que também queriam participar daquela ‘aula’, onde todos podiam falar e tinham suas responsabilidades com o grupo” (MENDONÇA, 2007, p. 13). Houve uma oportunidade em que o documentário Ilha das Flores foi exibido. Conseguiu-se problematizar no debate, que acontecia após os filmes ou músicas, um pouco da essência e dos princípios e prioridades da sociedade capitalista. Pode-se dizer que foi uma importante ocasião no processo de 299 REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735 desenvolvimento da reflexão de alguns daqueles alunos. Houve uma situação marcante também no dia em que foi exibido o documentário sobre a desocupação de um acampamento sem-teto, chamado Sonho Real. Nesse dia, muitos alunos (alguns que vivenciam ou vivenciaram realidades semelhantes às daquele acampamento) começaram a fazer associações entre políticas públicas, história do Brasil, atuação policial e até mesmo entre o crime e as drogas como instrumento de alienação dos jovens. Naquele momento, era possível sentir que realmente cada um daqueles alunos era um intelectual dotado de potencialidades a serem desenvolvidas. O que fica de registro para aqueles que presenciaram ou se envolveram de algum modo no Projeto Hip-Hop com/ciência é a real possibilidade de se atuar na fissura da ordem social vigente para fins de transformação estrutural dessa ordem. Mesmo sendo uma experiência limitada e restrita a um pequeno número de jovens, é possível dizer que tanto na fase inicial do Projeto quanto em sua fase de sala de aula conseguiu-se, de certo modo, resgatar o sentido e o interesse dos alunos por conteúdos necessários para a formação e o desenvolvimento intelectual da juventude. Considerações finais Pode-se afirmar que o Projeto Hip-Hop com/ciência simbolizou a prova prática que outra concepção educativa é possível de ser introduzida no espaço escolar. Não se pode esperar que a organização social hegemônica se encerre naturalmente para posteriormente elaborar ações de teor crítico e emancipatório. É atuando nos espaços de contradição e articulando diferentes lutas ao antagonismo estrutural burguesia/proletariado que a socialização do conhecimento pode se efetivar. No momento atual, o processo de construção de uma nova prática educacional e de uma nova sociedade se faz mediante ações concretas também dentro das estruturas e instituições existentes, evidentemente, tendo com o norte a noção de atuar para além do capital (MÉSZÁROS, 2005). Nesse sentido, acreditamos que o Projeto Hip-Hop com/ciência contemplou tal necessidade ao ter buscado via Hip-Hop e demais 300 REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735 assuntos desenvolver o pensamento critico nos alunos da escola. E também atuou de modo a contribuir para que a prática social desses jovens pudesse (e possa) ocorrer a partir de uma consciência histórica. Mesmo compreendendo a complexidade da estrutura social dominante, o que significa que a escola não é um espaço isolado, mas reproduz as relações sociais de produção capitalistas, é preciso não se pautar apenas na negação, mas na construção de uma alternativa político-econômica e educacional. A própria configuração atual da educação pública, em que milhões de jovens estão matriculados e freqüentam escolas subsidiadas pelo Estado, não permite que se ignore um espaço tão importante como a escola para a tarefa de contribuir para a aprendizagem e o conseqüente desenvolvimento desses jovens. Referências ILHA das flores. Direção: Jorge Furtado. Produção: Casa de cinema de Porto Alegre. Intérpretes: Júlia Barth; Paulo José; Ciça Reckziegel. Documentário. Porto Alegre, 1989, 13 min. Disponível em: <http://videolog.uol.com.br/video.php?id=233673>. GRAMSCI, Antonio. Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: Cadernos do cárcere. v. 2, 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. MENDONÇA, Sueli Guadelupe L. Pensar sociologicamente na escola: HIPHOP com/ciência. In: Anais do XIII Congresso Brasileiro de Sociologia. Recife, 2007. Disponível em: <http://www.unesp.br/prograd/PDFNE2006/artigos/capitulo6/pensarsociologica mente.pdf>. Acesso em: 15/05/2010. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005. SONHO real: uma historia de luta por moradia. Produção: Coletivo de Mídia Independente de Goiânia. Goiânia, 2005. 1h. Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/04/315460.shtml>. 301