Momento da Criação: Sobre a filosofia no Brasil Mauro Lúcio Leitão Condé1 Em função do atual desenvolvimento da filosofia no Brasil, já é mais do que hora de nós, filósofos brasileiros, encararmos de modo sistemático não apenas a pergunta pela profissionalização da filosofia no Brasil, mas questões inquietantes, como por exemplo, a que indaga sobre a existência (ou possibilidade de existência) de uma filosofia brasileira original. Com toda a qualidade internacional que a filosofia no Brasil já atingiu, seríamos capazes de ter uma contribuição para a filosofia ocidental que fosse inovadora? Enfim, a cultura brasileira está apta a produzir filósofos inaugurais que, para além do importante trabalho exegético de interpretação dos textos clássicos, possa criar um pensamento inovador que acrescente algo significativo ao diálogo filosófico da cultura ocidental? Paradoxalmente, talvez o grande êxito da filosofia no Brasil seja exatamente o entrave que gera a limitação da nossa ousadia interpretativa, isto é, nossa eficácia “técnica” no interpretar os clássicos do pensamento ocidental parece impedir nossa criatividade em propor uma filosofia inaugural. Em outras palavras, para atingir a qualidade necessária à boa filosofia já realizamos o primeiro passo: qualificarmo-nos tecnicamente e termos uma comunidade filosófica capacitada para a compreensão do pensamento filosófico ocidental com toda a complexidade que essa tarefa exigiu. Não foi um trabalho fácil, mas o Brasil hoje possui especialistas altamente qualificados praticamente na obra de todos os filósofos importantes da história da filosofia ocidental. E é essa eficácia de sermos comentadores, uma espécie de “escolástica brasileira”, que nos nutre, mas, em grande medida, nos impede da ousadia de pensarmos de modo mais autônomo. Somos assim “técnicos” da filosofia, especialistas em autores. Parece que, procedendo desta forma, atingimos cada vez mais uma qualidade internacional, enquanto comentadores ou historiadores da filosofia, e nos distanciamos cada vez mais da condição de filósofos para interpretar a nossa própria realidade. Não seria esse preço alto demais? Como é sabido, a filosofia foi a mãe da maior parte dos saberes da cultura ocidental. Por exemplo, já ouvimos dizer que a psicologia, a sociologia, etc. “saíram” da filosofia, isto é, tornaram-se ciências positivas a partir de questões filosóficas. Agora vivemos em uma época que parece que a própria filosofia “saiu” da filosofia. Em outras palavras, parece que a filosofia contemporânea foi domesticada pelo cientificismo próprio da big science, em que o conhecimento é produzido de forma fragmentada e depois reunido na linha de montagem dos grandes laboratórios multinacionais, industrializado pelas grandes corporações, tornando o conhecimento um produto, 1 Professor de filosofia e história da ciência na UFMG. um artefato para uso em escala comercial. Se esse processo industrial, em diversas áreas, é importante para se produzir mais alimentos, remédios, bens de consumo para o conforto da humanidade, seria igualmente importante na filosofia? Certamente, o cientificismo do modo de produção filosófico no mundo contemporâneo não é um fenômeno apenas brasileiro, está presente na produção filosófica de nações com grande tradição no cultivo do pensamento, mas aqui as conseqüências de tal fenômeno podem ser muito mais prejudiciais. Enquanto regido pelas normas do cientificismo, o filósofo é obrigado a enfrentar a mesma rotina extenuante de seus colegas cientistas, produzindo seus papers e fazendo seus comunicados em congressos com uma regularidade quase industrial. Muitas vezes, ignorando o tempo de maturação necessário à reflexão filosófica, o filósofo também teve que entrar na lógica cientificista do “publique ou pereça” (public or perish). Essa é mais uma forte razão para sermos especialistas, diante do tempo escasso e da rigidez do processo cientificista de produção, visões muito generalistas (universais?!) “atrapalham” a produção. As conseqüências futuras dessa prática poderão ser desastrosas. Será que a universidade continuará a ser o locus privilegiado da filosofia no futuro próximo? Se não podemos saber sobre o futuro, aprendemos com o passado, na própria história da filosofia, que importantes filósofos jamais entraram na universidade, ganharam a vida em outro métier, como Maquiavel, Nietzsche, Kierkegaard ou Marx, para citar apenas alguns dos grandes. Muitas vezes foram chamados de malditos e, devido à suas concepções inovadoras, foram excluídos da comunidade filosófica de seu tempo. Ironicamente, para terem suas obras minuciosamente estudadas tempos depois, por essa mesma comunidade. Na filosofia cientificista que caracteriza a nossa época, mesmo importantes filósofos, não tão malditos assim, não entrariam nos quadros da universidade, a principal produtora do conhecimento filosófico hoje. Wittgenstein, um dos maiores filósofos do século XX, por exemplo, que publicou apenas dois títulos em vida, seria recusado por baixa produtividade. Ainda que seja a fonte de nosso “ganha pão”, pois daí vem o financiamento de nossas pesquisas, deveríamos ser mais críticos com relação a esse “cientificismo” caracterizado pelo modus operandi da big science que nos aprisiona no “tecnicismo” da história da filosofia. O eminente filósofo francês George Gursdorf, afirmou que a educação filosófica deveria ensinar menos história da filosofia e ensinar mais a filosofar. Este é um ponto sobre o qual deveríamos refletir com muito cuidado. Certamente, a história da filosofia é imprescindível, mas não é tudo. A História da filosofia está para a filosofia, assim como os exercícios físicos estão para o atleta, ou as escalas musicais estão para o músico. Ninguém vai ao teatro para assistir um músico tocando escalas, mas, certamente, melodias bonitas e agradáveis, ainda que as escalas estejam todas lá, por trás de cada frase melódica. A história da filosofia é fundamental, mas ela não tem que nos tolher na capacidade criativa de pensarmos os problemas filosóficos que atingem o nosso tempo e espaço. Não temos que repetir fórmulas que não reflitam nossa realidade apenas porque grandes gênios do pensamento humano as conceberam. Nosso principal papel deve ser articular esse legado com os nossos problemas que demandam reflexões filosóficas. O Brasil certamente já possui a capacidade técnica para o filosofar bem, da mesma forma que nossa sociedade possui a complexidade cultural dos grandes eixos temáticos da filosofia, como a questão estética (um país que produz o samba, a bossa nova, etc. não poderia ter uma teoria estética à altura de tais manifestações artísticas originais?), a questão política e ética (não precisa dizer o quanto tais questões no Brasil são sui generis e ricas para as análises filosóficas), etc. Assim, precisamos esquecer um pouco “os clássicos pelos clássicos”, deixar de pensarmos que a filosofia se resume à história da filosofia. Ao pensar que, talvez, estejamos confundindo um pouco o que seja realmente a filosofia, me vem à memória o ensinamento de Pascal (o que mostra que a história da filosofia sempre será nossa referência) quando afirmou que a verdadeira filosofia zomba da filosofia. Cá entre nós, na suposta “incompetência da América Católica”, como diria o poeta Caetano, a teologia, em uma escala cientificista muitíssimo menor, foi muito mais audaciosa. A teologia da libertação talvez tenha sido o pensamento mais original produzido na América Latina até hoje. Estamos esperando com grande expectativa o que a filosofia, a partir de tudo que ela já “cientificamente” alcançou, ainda possa “filosoficamente” nos mostrar. Para pesquisar e debater questões semelhantes a essas, a UFMG criou de forma pioneira, em 2001, sob a liderança do professor Paulo Margutti, o Grupo de Filosofia no Brasil – FIBRA (www.fafich.ufmg.br/~margutti). Credenciado junto ao CNPq, de 2001 a 2006, o FIBRA esteve sediado na UFMG. Em 2007, com a transferência do professor Paulo Margutti para a FAJE, o grupo passou a ficar sediado nessa instituição. Aberto a toda comunidade interessada nessas questões, o FIBRA conta, entre seus membros, com a participação de professores da UFMG, da FAJE e da PUCMG, além de aproximadamente quinze alunos da UFMG e da FAJE. As pesquisas do grupo têm sido publicadas em diferentes revistas e livros de filosofia. Iniciativas como essas são extremamente relevantes para revigorar as discussões sobre a filosofia no Brasil e, com isso, contribuir para modificar o quadro descrito nesse artigo.