Dia-Logos ___________________________________________________ REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Nº 5 | OUTUBRO DE 2011 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitora Maria Christina Paixão Maioli Sub-Reitoria de Graduação Lená Medeiros de Menezes Sub-Reitoria de Graduação e Pesquisa Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron Sub-Reitoria de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Ciências Sociais Domênico Mandarino Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas José Augusto de Souza Rodrigues Coordenadora Geral do Programa de Pós-Graduação em História Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/ REDE SIRIUS/ CCS/ A ____________________________________________________ D536 Dia-Logos - RJ. - vol.1 nº1 (2004) .- Rio de Janeiro: UERJ, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2004 – v. Anual Dia-Logos - Revista dos alunos de Pós-Graduação em História da UERJ, nº5, 2011. ISSN 1414-9109 1. História - Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. CDU: 981 (05) Dia-Logos ___________________________________________________ REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Nº 5 | OUTUBRO DE 2011 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Conselho Consultivo (UERJ) André Nunes de Azevedo; Eliane Garcindo de Sá; Lená Medeiros de Menezes; Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves; Lucia Maria Paschoal Guimarães; Márcia de Almeida Gonçalves; Maria Regina Candido; Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos; Oswaldo Munteal Filho; Tânia Maria T. Bessone da Cruz Ferreira. Conselho Consultivo (professores convidados) Álvaro de Oliveira Senra (CEFET/RJ); Anita Correia Lima de Almeida (UNIRIO); Bernardo Kocher (UFF); Carlos Gabriel Guimarães (UFF); Célia Cristina da Silva Tavares (UERJ-FFP); Cláudia Regina Andrade dos Santos (UNIRIO); Daniel Pinha (PUCRIO); Felipe Charbel Teixeira (UFRJ); Fernando Luiz Vale Castro (UFRJ); Gelsom Rozentino de Almeida (UERJ-FFP); Georgina da Silva Santos (UFF); Icléia Thiesen Magalhães Costa (UNIRIO); Iza Terezinha Gonçalves Quelhas (UERJ-FFP); Laura Nery (UERJ); Márcia Regina Romeiro Chuva (UNIRIO); Maria da Glória de Faria Leal (CEFET/RJ); Maria Letícia Corrêa (UERJ/FFP); Mário Fernandes Correia Branco (UFF); Patrícia Wolley Cardoso Lins Alves (FIS); Rebeca Gontijo Teixeira (UFRRJ); Ronaldo Vainfas (UFF); Sérgio Chahon (FIS/GAMA FILHO); Sônia Wanderley (CAP-UERJ); Surama Conde Sá Pinto (UFRRJ); Sydenham Lourenço Neto (UERJ-FFP); Tânia Salgado Pimenta (COC/FIOCRUZ); Thiago Rodrigues (CEFET/RJ); Tereza Fachada Levy Cardoso (CEFET/RJ); Vágner Camilo Alves (ICFH-UFF). Comissão Editorial 2010-2011: Gustavo Pinto de Sousa, Roberta Ferreira e Shelia Conceição Silva Lima Comissão Editorial 2011-2012: Beatriz Piva Momesso, Carlos Eduardo da Costa Campos, Manuela Brêtas Medina, Sheila Conceição Silva Lima. Designer gráfico Tricia Magalhães Carnevale Desenho de capa Gabriel Costa Labanca Correspondência Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco F - 9º andar - sala 9037 Maracanã - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20550-013 Tel./Fax.: 21 2587-7746 - e-mail: [email protected] Site: www.revistadialogos.net Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a posição da editoria ou da instituição responsável por esta publicação. ÍNDICE 7 Apresentação Tania Bessone 9 Editorial Conselho Editorial 11 Eduardo Prado: um monarquista em tempos republicanos Amanda Muzzi Gomes Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 33 Letras Revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão Anderson da Silva Almeida Universidade Federal Fluminense 51 Os Quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta André Inácio de Assunção Neto Universidade Federal do Rio de Janeiro 69 O Modelo político de Alexandre, o Grande na Roma do século II d.C: Perspectivas teóricas na Anábase de Alexandre Magno de Arriano de Nicomédia André Luiz Leme Universidade Federal do Paraná 89 A Vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira: um exemplo de biografia moderna em terras brasileiras Andréa Camila de Faria Universidade do Estado do Rio de Janeiro 107 Academia dos Renascidos: o saber como poder na Bahia setecentista Bruno Casseb Pessoti Universidade Estadual de Santa Cruz 127 Os perigosos Domínios de Hespanha: contatos e tensões na fronteira luso-espanhola da Capitania do Rio Negro (1780-1808) Carlos Augusto de Castro Bastos Universidade de São Paulo 147 O Conhecimento aplicado do Historiador Islâmico Medieval: O poder, a sociedade e a erudição na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406) Elaine Cristina Senko Universidade Federal do Paraná 167 Memória social, memória coletiva e História: um mapeamento da questão Fábio Osmar de Oliveira Maciel Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 185 Fritzmac e o ano de 1888: A revista de ano como palco de discussões políticas na corte Flávia Ferreira de Almeida Universidade do Estado do Rio de Janeiro 205 Os segredos da nação: o IHGB e a criação da "arca do sigilo" Isadora Tavares Maleval Universidade do Estado do Rio de Janeiro 225 Éramos "Oito": A Trajetória da Dissidência Comunista da Guanabara/ Movimento Revolucionário Oito de Outubro (19641973) Izabel Priscilla Pimentel da Silva Universidade Federal Fluminense 247 Polícia Política em Minas Gerais: Fabricação de crimes políticos e imaginário anticomunista no regime militar de 1964 Júlia Letticia Camargos Universidade Federal de São João Del Rei 265 O Cultural Change Institute: a cultura como via única para o progresso Samantha Cintra Magnanini Universidade do Estado do Rio de Janeiro 285 Sociedades Mercantis e as práticas de articulação comercial entre Pará e Mato Grosso (179-1820) Siméia de Nazaré Lopes Universidade Federal do Rio de Janeiro 307 Resumos | Abstracts 323 Normas Editoriais APRESENTAÇÃO A quinta edição da revista Dia-logos traz muitas expectativas positivas para todo o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História do IFCH. O periódico tem cada vez mais corpo e alma e demonstra grande qualidade e maturidade intelectual dos discentes empenhados em dar à publicação o impacto que merece. Dentro da categoria do complexo universo de revistas acadêmicas, vinculadas a diversos programas de pósgraduação em História no Brasil, Dia-logos destaca-se pelo excelente desempenho que tem apresentado e por ser uma ótima oportunidade de divulgação de artigos articulados às pesquisas realizadas em diversos programas de Mestrado e Doutorado. Mantém periodicidade, exige avaliação por pares e é indexada, o que preenche exigências atuais quanto à avaliação de qualidade. Os quinze textos selecionados para compor o número formam um rico mosaico de temas que, para além da diversidade e de parâmetros temporais, aproximam-se quanto a questões teórico-metodológicas recentes e tão caras à historiografia contemporânea. Por fim, deve-se destacar que o projeto da revista encontra-se em perfeita sintonia com as linhas de pesquisa do programa de Pós-graduação em História da UERJ, vinculando-se com pertinência não só à linha de pesquisa Política e Cultura, como também àquela denominada Política e Sociedade, ambas muito bem representadas neste número. Além disso, os artigos aqui veiculados articulam-se a diversos grupos de pesquisa nacionais – e às diversas instituições que, através dos textos de seus alunos, apresentam resultados de pesquisa neste periódico. 7 Apresentação Ao participarem dos eventos anuais, organizados em conjunto pelo Programa de Pós-Graduação em História da UERJ e seu corpo discente, se estabelece o primeiro vínculo entre os pós-graduandos e seu público. Isto ocorre na já conhecida Semana de História, atualmente em sua sexta edição, quando os pesquisadores têm a oportunidade de submeter seus textos à comissão editorial e aos pareceristas ad hoc, outros elementos fundamentais para seleção dos trabalhos que melhor desenvolvem abordagens teórico-metodológicas no âmbito da história política. Desta forma, o periódico viabiliza as publicações, criando instâncias que possibilitam a discussão das idéias de pesquisadores de variadas instituições e com múltiplos temas de interesse, enriquecendo sua elaboração. Por conseguinte, na publicação, veiculam-se a pesquisa empírica com a reflexão teórica, transformando-se em uma opção sólida e original, não só para os estudos da história e da historiografia, quanto para temas políticos e culturais que são o eixo central do projeto do PPGH. Longa vida à revista Dia-logos! Tania Bessone, pela Coordenação do PPGH/UERJ 8 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 EDITORIAL Chegamos a mais uma edição da revista Dia-Logos. A cada ano consolidamos nossa posição e estilo junto aos grandes periódicos acadêmicos de nosso país! Dessa forma, nos alegramos por poder divulgar a excelência de nosso Programa de PósGraduação em História Política da UERJ. Esse esforço se deve ao trabalho voluntário e árduo de alunos, professores e servidores do supracitado programa, como a colaboração de docentes de outras instituições que nos privilegiam com sua presença e participação. Essa trajetória de sucesso tem início na Semana de História Política/ Seminário Nacional de História dos alunos do PPGH/UERJ, que, a cada ano, abrange um número expressivo de participantes de todos os Estados do Brasil. Esse processo tem beneficiado professores e jovens pesquisadores, que tem a oportunidade de dialogar com seus pares e o público em geral, acerca de suas pesquisas e sobre a produção histórica. O resultado desse debate se expressa nessa quinta edição de nosso periódico, que inaugura o acréscimo de cinco artigos, pois superamos a marca de 50 textos aprovados para a análise dos pareceristas. Sendo assim, a partir dessa edição, contaremos com 15 artigos na composição da Revista. Esse ano de 2010, alcançamos a marca dos 200 inscritos. Estamos primando pela qualidade e respeito aos artigos dos proponentes que, a cada ano, vem depositando sua confiança em nosso trabalho. Artigos de excelência envolvendo um profundo diálogo com a História Política, o que muito nos tem feito avançar enquanto Programa e espaço de difusão, discussão e consolidação de novos pesquisadores. É importante ressaltar, que essas variedades de proposições contribuem diretamente para o aprimoramento das trocas intelectuais, feitas no Seminário, o que influencia diretamente na qualidade da Revista Dia-Logos. Aqui se encontram os artigos de maior qualidade, selecionados após criteriosa análise realizada por nosso Conselho Consultivo, formado por professores doutores de instituições de excelência. Como revista discente, a Dia-Logos cumpre o papel de difundir e fazer circular alguns dos melhores trabalhos historiográficos, apresentados pelos nossos jovens pesquisadores. Dessa forma, não se delimita temáticas para esse periódico. A nós 9 Editorial cabe o papel de promover o conhecimento dos novos trabalhos que se desenvolvem na academia, as mais interessantes pesquisas desenvolvidas por jovens talentos, da mais variada gama de assuntos, de acordo com os pareceres de especialistas nos mesmos temas. Sendo assim, a Dia-Logos comporta artigos que tratam da abordagem da História Política, como dos demais domínios da História. E essa edição brinda o seu leitor com dois trabalhos dos períodos da Antiguidade e do Medieval, além do enfoque da História Moderna ou da História Contemporânea, sobre conceitos, ideias ou movimentos de longa duração. Nesse quinto ano de revista, somos brindados com cinco textos de Estados coirmãos: Bahia, Minas Gerais, Paraná (2) e São Paulo. Imprimir uma revista acadêmica no mundo virtual de hoje pode parecer ultrapassado. Contudo, sem nostalgias e retrocessos, queremos resguardar a história como há milênios os papiros do Egito e do mar Morto se conservam. Apesar da importância do aparato tecnológico, o livro ainda guarda todo o seu encanto e permanece como o maior suporte de memórias. No entanto, também não queremos nos afastar do processo da internet, pelo contrário. Nosso trabalho e empenho foram reconhecidos pela CAPES e, desde o ano passado, nosso periódico encontra-se indexado no Qualis, contando com a avaliação B5. Nosso site já está disponível para consulta em endereço próprio www.revistadialogos.net, onde, igualmente, se disponibiliza os números das revistas passadas e as novas produções. Portanto, é muito relevante imprimir, anualmente esse periódico, difusor de novas pesquisas e pesquisadores, e distribuí-lo entre os principais programas de pósgraduação em História do país e quiçá do exterior. Esperamos que apreciem a revista e mais uma vez agradecemos a todos que participaram desse imenso e árduo trabalho, mas de grande importância para a divulgação da pesquisa científica no Brasil. Boa Leitura! Conselho Editorial 10 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos Amanda Muzzi Gomes Sem estimar consideravelmente os métodos do Império, Prado amava o trono imperial pela antiguidade que lhe davam, não os anos, mas a hereditariedade, a continuidade histórica, como ramo mais poderoso e mais frutífero do velho tronco colonial que apodrecera.[...] Com o desaparecimento do Império ele temia o desaparecimento do velho Brasil, da sua sociedade esmerada e culta, dos seus costumes graves e doces, da sua disciplina social, da sua segurança legal, da sua harmonia econômica, da sua autoridade entre as nações de toda aquela ordem famosa que o erguia na América como o representante mais alto da civilização latina. 1 Inserções sociais e trajetória monarquista Eduardo Paulo da Silva Prado foi um dos mais expressivos intelectuais monarquistas da década de 1890. Filho do senador Martiniano da Silva Prado e de Veridiana Prado, membros da aristocracia cafeeira paulista, ele nasceu, em 1860, em berço no qual se destacavam a fortuna e o prestígio, tendo vários familiares influentes na política imperial. Entretanto, ele não chegou a ocupar cargos políticos durante a monarquia.2 Nos tempos de estudante Eduardo Prado dirigiu revistas literárias e jornais políticos e foi repórter do Correio Paulistano, Amanda Muzzi Gomes órgão da União Conservadora, chefiada pelo conselheiro Antônio Prado, mas não produziu obras políticas antes da instauração da república. Após formar-se bacharel em ciências sociais e jurídicas pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1881, Eduardo Prado viajou pela Europa, América do Sul e África. O seu livro Viagens, cujo primeiro tomo saiu em 1896, como o título indica, relata suas impressões com as viagens realizadas. Ao retornar ao Brasil, Prado foi nomeado adido à Legação Brasileira em Londres, chefiada por Francisco Inácio de Carvalho Loiola, o barão de Penedo. Foi com a queda da monarquia que Eduardo Prado iniciou de fato sua militância política, em reação aos excessos de arbítrio e violência da república recém instalada. Como já estava morando em Portugal, ele escreveu uma série de artigos de crítica ao Governo Provisório, de novembro de 1889 a junho de 1890, na Revista de Portugal. Prado fazia parte do grupo literário luso-brasileiro “Vencidos na vida”, que incluía intelectuais como Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, Afonso Arinos e Rio Branco. Sob o pseudônimo de Frederico de S., ele pode atacar o novo regime, tendo na revista dirigida pelo amigo Eça de Queiroz, a liberdade que jamais teria aqui. Esses artigos foram reunidos em livro sob o título Fastos 12 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos da Dictadura Militar no Brazil, publicado em Lisboa, em 1890. No Brasil a obra não sofreu a mesma censura que A Ilusão Americana sofreria posteriormente durante o governo de Floriano Peixoto, mas também foi cerceada durante o governo de Deodoro da Fonseca. Fastos da Dictadura Militar no Brazil foi o primeiro conjunto organizado de críticas ao regime republicano e imediatamente após a sua instalação. Além das críticas pontuais aos ministros Rui Barbosa e Benjamin Constant, os seus principais alvos de ataque eram: o militarismo, o positivismo e o jacobinismo. Esses elementos passaram a ser ainda mais execrados por todos os monarquistas durante o governo de Floriano Peixoto. Além disso, segundo Janotti, seus artigos sistematizaram o próprio discurso monarquista, pois “as idéias de Prado serviram como uma plataforma de base ideológica do grupo em formação”.3 Eduardo Prado ainda estava em Portugal quando o visconde de Ouro Preto, presidente do último Conselho de Ministros, e sua família para lá foram exilados. Desde os tempos de faculdade, Eduardo Prado era amigo de seu filho mais velho, Affonso Celso de Assis Figueiredo Júnior. Foi Ouro Preto quem o apresentou à família imperial. Eduardo Prado acabou sendo 13 Amanda Muzzi Gomes um dos monarquistas que mais auxiliou financeiramente o Imperador destronado no exílio.4 Quando retornou da Europa, Prado intensificou sua atuação jornalística. Inicialmente ele foi redator de A Tribuna, novo título da Tribuna Liberal, jornal que havia sido lançado por membros do Partido Liberal em dezembro de 1888, dirigido por Carlos de Laet, mas que teve sua circulação suspensa em novembro de 1889. Desde que o jornal ressurgiu a 1º de julho de 1890, sob a direção de Antonio de Medeiros, Eduardo Prado atacava efusivamente Deodoro e os oficiais beneficiados pela ditadura. Foram os corrosivos artigos de Prado que motivaram o famoso ataque de militares e civis ao jornal, a 29 de novembro, em que houve muitos feridos e foi atingido mortalmente o revisor João Ferreira Romariz. O Ministério do Governo Provisório pediu demissão coletivamente. A imprensa da capital se reuniu na redação do Jornal do Comércio e lavrou um manifesto público contra a arbitrariedade do governo.5 Prado continuou a escrever artigos nos quais combatia a nova situação política em sua colaboração na seção “Opiniões”, de assuntos gerais, do Commercio de S. Paulo, dirigido por César Ribeiro. Eduardo Prado adquiriu esse jornal em 1895, com seus próprios fundos, para que se tornasse órgão da propaganda monárquica. Os seus artigos publicados nessa folha 14 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos foram reunidos, entre outros escritos, na série sob o título Collectaneas, composta de quatro volumes, publicados postumamente, de 1904 a 1906. Prado fez do Comercio de São Paulo um órgão de denúncia aos abusos do governo republicano, como na ausência de repressão aos envolvidos em empastelamentos de jornais de oposição ao governo, bem como de suas más gestões em assuntos tópicos, como os subsídios à lavoura cafeeira. Prado travou alentadas polêmicas com eminentes publicistas republicanos, como Ferreira de Araújo, e desenvolveu idéias de obras suas anteriores, como a crítica à tendência brasileira em imitar os Estados Unidos, que já havia feito em A Ilusão Americana. Prado também transformou o jornal no mais eficaz instrumento de propaganda da causa monárquica na cidade de São Paulo. Em suas colunas ele divulgava as realizações dos monarquistas, como o banquete de 15 de outubro de 1895, organizado por ele mesmo e Rafael Correia em homenagem ao aniversário de D. Pedro de Alcântara, filho mais velho da Princesa Isabel. Outro feito que Prado destacou foi o Manifesto do Partido Monarchista de S. Paulo, propositalmente lançado a 15 de novembro do mesmo ano, redigido por João Mendes de Almeida, com quem ele dividia a liderança do grupo 15 Amanda Muzzi Gomes monarquista de São Paulo. Pouco depois, os dois líderes organizaram o Partido Monarchico, o que estimulou os monarquistas do Rio de Janeiro para a criação do Diretório Monarchico no ano seguinte. Eduardo Prado foi o maior aglutinador de seguidores à causa restauradora na cidade de São Paulo. Por isso, nos momentos de crise política ele foi bastante perseguido por republicanos. Prado foi também um dos ativistas que mais investiu financeiramente no movimento monárquico. Além do círculo paulista, ele mantinha estreitos contatos com monarquistas do Rio de Janeiro, entre os quais Joaquim Nabuco, com o qual partilhava certas idéias, como a da tradição monárquica no Brasil e a anglofilia. Do final de 1889 até ser obrigado a fugir do Brasil em 1896, em razão das perseguições que sofreu pelas ruas de São Paulo, sobretudo por parte dos jacobinos, Eduardo Prado dedicou-se quase que exclusivamente à causa monárquica. Entre os jovens monarquistas ele foi o mais expressivo intelectualmente, secundado pelo companheiro Affonso Celso Júnior. A propaganda monarquista absorvia quase todo o seu tempo, o que não impediu, todavia, que ele ajudasse na fundação da Academia Brasileira de Letras, na qual ocupou a cadeira de número 40, e se tornasse sócio do Instituto Histórico e 16 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos Geográfico Brasileiro. Ele também foi membro do Instituto Histórico de São Paulo e do Conselho Superior da Sociedade de Etnografia e Civilização. Seus méritos literários eram reconhecidos também na Europa, tendo sido laureado pela Academia Francesa. Foi em Paris, ainda em 1896, que ele se dedicou à segunda edição de A Ilusão Americana, sua obra política de maior repercussão, até mesmo por ter sido a primeira obra apreendida pela polícia na república brasileira, no mesmo dia em que foi posta à venda nas livrarias de São Paulo, a 4 de dezembro de 1893.6 Nabuco atribui a si a idéia inicial de A Ilusão Americana. Ele diz que algumas vezes expôs a Eduardo Prado as linhas gerais do livro, que ele inicialmente havia denominado A perda de um continente, e desejava que alguém o escrevesse.7 De todo modo, em 1893, quando o Brasil ainda estava sob a presidência militar de Floriano Peixoto, ambos tinham ardor europeísta; eram anglófilos; preferiam a forma de governo monárquica e combatiam a república, sobretudo a norte-americana, para eles objeto de exemplo e mesmo imitação pelos países latino-americanos, o que só aumentava a desordem e a anarquia dos mesmos. Ambos consideravam que a civilização européia é que lhes devia servir de exemplo, especialmente o parlamentarismo inglês. 17 Amanda Muzzi Gomes Contudo, na segunda metade da década de 1890, embora tenham prosseguido a amizade e troca de idéias, as opiniões ficaram divergentes a esse respeito. Nabuco aderiu ao monroísmo e pan-americanismo, ao passo que Prado continuou crítico a esses, tanto que ele não faz alterações de conteúdo à segunda edição de A Ilusão Americana. Todavia, por causa das perseguições sofridas, mesmo após retornar ao Brasil, Prado não voltou a fazer propaganda monárquica, apesar dos contatos com os amigos monarquistas. Ele não tinha mais rígidas posições como antes. Prado foi um dos poucos, por exemplo, a apoiar Nabuco na aceitação do cargo diplomático oferecido por Campos Salles, colocando-se contrariamente à opinião da velha guarda monarquista: visconde de Ouro Preto, João Alfredo Correia de Oliveira, Lafayette Rodrigues Pereira e Andrade Figueira.8 Eduardo Prado tornou-se profundamente católico, tendo organizado a série de conferências sobre José de Anchieta. Seus últimos escritos foram de teor religioso. 9 Em A bandeira Nacional, obra póstuma publicada em 1903, como ela começou a ser escrita em outubro de 1890 em Paris, ele até defende a monarquia como o governo representativo e constitucional, mas se concentra no combate às alterações feitas pelos republicanos 18 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos na bandeira do país e na refutação à Apreciação Philosophica, de Teixeira Mendes.10 Apesar de sua morte prematura, em 1901, com 41 anos, Eduardo Prado foi um dos monarquistas mais atuantes não apenas em termos de produção intelectual, como em aglutinação de seguidores ao movimento monárquico. A mudança de regime e o Segundo Reinado nos textos de Prado Eduardo Prado não chegou a escrever uma obra específica sobre a monarquia, ou mesmo de algum assunto a ela referente. No entanto, seus textos de crítica à república são pincelados por avaliações sobre a monarquia. De modo similar a boa parte dos intelectuais monarquistas, Prado adotou a reflexão retrospectiva como recurso narrativo para as críticas à república. Dessa maneira, as realizações monárquicas eram contrapostas aos erros republicanos. As mazelas da República eram confrontadas às proezas do Império. Portanto, a finalidade, causticar o novo regime, era uma marca forte em suas ponderações sobre o antigo regime. Prado costumava representar o Período Regencial e o Segundo Reinado de maneira homogênea e unificada, como os sessenta anos de paz, ordem e liberdade que abriram crédito na 19 Amanda Muzzi Gomes opinião universal ao Brasil e o colocaram em supremacia sobre os latino-americanos. As palavras do amigo Eça de Queiroz, que foram utilizadas como epígrafe a esse artigo, bem demonstram o papel civilizador que Prado atribuía à monarquia após a Independência. Essa imagem aparece já na introdução aos artigos de Fastos da Dictadura Militar11, atravessa A Ilusão Americana e prossegue nos artigos do Commercio de S. Paulo. Contudo, para Prado, um dos culpados pela queda da monarquia foi o próprio governo. O Partido Republicano dia a dia tornou-se mais numeroso, ruidoso e ansioso por dominar o país. Além do excesso de liberdade ter permitido esse ímpeto por parte do partido adverso à monarquia, o Exército estava esquecido, mal organizado, pessimamente remunerado e erroneamente instruído, de modo que lhe foi permitido criar uma situação dissolvente de toda a disciplina e destruidora de todo o respeito. Prado ainda acrescenta que era justo o descontentamento do exército. Para ele, “o acordo entre essas duas forças” foi fatal, até mesmo porque lógico.12 Além da conjugação desses fatores, ele responsabiliza pessoalmente Pedro II, já que ele “caiu pelo excesso de algumas virtudes que hão de immortalisal-o”, como a liberdade concedida a todos, mesmo aos opositores, e a abolição da escravidão. 13 20 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos A imagem de D. Pedro II que Eduardo Prado compartilha é a do monarca cidadão, construída na década de 1870.14 Prado defende que o Imperador elevou o nível intelectual do país como um rei civil, constitucional e sábio, sendo um famoso freqüentador de bibliotecas, museus e universidades. No entanto, a virtude criou um problema, pois “o divórcio do Imperador das coisas militares, entendidas à hespanhola, foi o que salvou a civilização brasileira, mas foi o que perdeu a monarchia”. 15 O rei sábio soube projetar a imagem do Brasil como o país sul-americano mais civilizado e livre. No entanto, ele não utilizou de seus conhecimentos em relação às classes militares e tampouco cuidou do ensino em relação a essas. Prado defende que “o governo monarchico commeteu um erro imenso deixando ao ensino militar o seu caracter exclusivamente theorico”. Assim, “o Sr. D. Pedro II, tão ocupado das ciências, não fez senão abacharelar o official do exercito que agora naturalmente revela um tão pronunciado furor politicante, discursante e manifestante”.16 O excesso de liberdade de imprensa, reunião e pensamento – permitiu aos civis do Partido Republicado almejar a tomada de poder. Já o bacharelismo desviou os militares de suas funções precípuas e, somado com as péssimas condições 21 Amanda Muzzi Gomes em que o governo deixava o Exército, originou o desejo de conquista do poder também por parte desses elementos. Deste modo, Eduardo Prado, além de admitir a responsabilidade da monarquia em sua própria queda, e inclusive esclarecer sobre erros pontuais do Imperador, também entende que o ato de 15 de novembro de 1889 foi mais do que um simples levante militar, tendo sido a conjugação de esforços de civis e militares. Por isso, ele explica que aquilo que a princípio seria apenas uma revolta militar acabou se tornando uma revolução. Por outro lado, Eduardo Prado não se preocupou em explicar o abolicionismo e nem mesmo a extinção da escravidão. O abolicionismo teria apenas servido de derivativo para o “nervosismo especial” que ele diz acometer os militares e parte da população civil do Rio de Janeiro, já que ele via a população da Corte como mais barulhenta em suas manifestações. Em razão da atmosfera abolicionista, o Imperador foi delirantemente saudado tanto em sua partida para viagem à Europa, como em seu retorno, em agosto, pouco após a abolição.17 Todavia, Prado não vê participação popular em relação ao abolicionismo e nem menciona fatores relacionados, como o surgimento de jornais abolicionistas. Tampouco ele destaca a 22 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos atuação de intelectuais no movimento, como o amigo Joaquim Nabuco. A própria abolição é retratada por ele como um ato do trono: por vezes da Princesa Isabel, mas principalmente do Imperador.18 Ele define Isabel como chefe libertadora, sem atentar ao caráter interino de sua regência. Mais tarde, com o exílio e o martírio de ter que viver longe da pátria, ela foi consagrada.19 Todavia, não há nos escritos de Prado um culto à Princesa Isabel. O representante da dinastia dos Bragança de sua adoração é D. Pedro II. Ainda que lhe aponte defeitos e erros no governo, o Imperador era a personificação do monarca justo e exemplar. São constantes em sua obra os elogios à “nobre personalidade” do Imperador e ao seu modo de vida, simples e comedido.20 A elevação de caráter de Pedro II fazia-o desinteressado pelo dinheiro e pelo luxo, como o demonstrava o próprio Paço de São Cristóvão, com modestos aposentos. Prado até defende que os republicanos resolveram transformar a residência em museu nacional justamente para que a posteridade não se lembrasse “da simplicidade da vida e do desinteresse que tanto honram o velho Imperador”. 21 Em relação ao Poder Moderador, apesar de fazer uso do poder pessoal, Prado argumenta que, pelo próprio sistema parlamentar, o Imperador tinha bem menos poderes do que os 23 Amanda Muzzi Gomes presidentes republicanos.22 As intervenções do Pedro II em sua maioria visavam atender aos desejos da opinião pública. Até a escolha dos presidentes do Conselho de Ministros era feita segundo esse critério. Para Eduardo Prado, não havia rotatividade dos partidos no poder. O que ocorria era que quando o partido dominante gastava-se no poder, a oposição tinha total liberdade para agitar a opinião pública. Caso esta simpatizasse com os oposicionistas, o Imperador, sempre atento às movimentações políticas e sociais, chamava logo a oposição para o governo.23 Curiosamente, apesar de reafirmar que o Imperador fazia concessões em relação aos seus súditos como um todo, Prado em nenhum momento se indaga sobre as pouquíssimas manifestações populares em prol da monarquia ou mesmo de Pedro II imediatamente após o ato de 15 de novembro. Essa foi uma questão que afligiu muitos de seus correligionários, como o conselheiro Tito Franco d’Almeida 24 e o amigo Affonso Celso.25 Outra questão que não é objeto de indagação ou reflexões por parte de Prado era por que o Imperador, tão justo e solícito aos anseios gerais, não acabou antes com a escravidão. A explicação, para ele, era muito simples: a culpa era dos Estados Unidos. Ao argumentar acerca da superioridade da monarquia em relação à república, e no rol de criticas à 24 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos república norte-americana, Prado compara os Estados Unidos e o Brasil face ao mesmo problema: a abolição da escravatura. A “solução genuinamente republicana e norte-americana” ocorreu pela violência, pela força, no fragor da guerra fratricida. Diferente foi a “solução genuinamente monárquica e brasileira”, feita de forma pacífica e que “excedeu os sonhos dos otimistas mais humanitários”. Por esse motivo, “a monarquia brasileira teve a glória de ser punida por uma ação libertadora”.26 E para o fato do Brasil ter sido o último país em extinguir a escravidão a explicação é a mesma: a culpa foi dos Estados Unidos. Prado escreve A Ilusão Americana para desmistificar a noção da fraternidade americana, ou seja, a visão dos EUA como protetor das nações do continente. Por isso, ele arrola as muitas influências negativas dos EUA sobre a América Latina e o Brasil, como a própria adoção da forma de governo republicana. O seu alvo de críticas indireto é a república brasileira: que estaria imitando a norte-americana em vários aspectos, como na própria carta constitucional. Entretanto, contraditoriamente, Prado acaba, ainda que de maneira mais indireta ainda, criticando a própria monarquia brasileira: esta se deixou levar também pelas más influências norte-americanas, que começaram logo após a Independência. Prado explica que o Brasil conservou por tanto tempo a escravidão por causa dos 25 Amanda Muzzi Gomes Estados Unidos. Segundo Prado, o Brasil só manteve demasiadamente a “instituição iníqua” porque a maior nação da América a legitimou, e de sua parte escravocrata nos veio o incentivo, inclusive pelas notícias aqui chegadas sobre o que se fazia e se dizia nos EUA para defender a escravidão. Entretanto, não foi só pela “força danosa do seu exemplo” que a escravidão demorou a ser extinta no Brasil, mas também “por ter inspirado aos tímidos o receio de que a solução do problema no Brasil fosse a mesma tragédia da América do Norte”. Prado cita documentos, como a mensagem do presidente Taylor de 4 de dezembro de 1849, que comprovam que o tráfico de africanos para o Brasil era feito por navios construídos nos EUA, pertencentes a americanos e comandados e tripulados por americanos.27 Assim, a culpa pela demora em resolver a principal “questão social” do Brasil, como Prado a entendia, é atribuída aos Estados Unidos. Já a solução, a abolição, é vista como um gesto do trono, ou seja, uma concessão de cima para baixo, da monarquia aos súditos. A intensificação da campanha abolicionista não é analisada por Prado, possivelmente mesmo porque destacá-la implicaria em acentuar a ação de outros atores, como os próprios escravos. Ele não menciona nenhuma das atuações da Princesa 26 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos Isabel em favor da abolição, como a acolhida de escravos fugidos no Palácio Real, a participação em quermesses que visavam arrecadar fundos para a causa abolicionista e a organização da primeira “batalha das flores”.28 Até a representação da Princesa como a redentora não é muito destacada, fator que até o ajudaria na argumentação da abolição como um feito do trono. No máximo ele a vê como redentora, mas todo o destaque que ele é confere é ao Imperador, símbolo maior da monarquia. Enfim, em relação a certos fatores, como no tratamento dado ao Exército, Prado vê erros no reinado de Pedro II. Já para outros, como a abolição, a visão é unilateral, apontando apenas a benevolência governamental. Por ter escrito na década de 1890, com a república já instalada, Eduardo Prado não dedica atenção a fatores candentes do final do Segundo Reinado, como as reformas políticas propostas pelos Liberais e cada vez mais demandadas nos últimos anos monárquicos. Essa ausência em suas análises também se deve ao fato de que ele mesmo não foi político durante a monarquia. A sua preocupação é menos com o que a monarquia poderia ter feito para não cair do que com os problemas, alguns originados da própria virtude do Imperador em manter as liberdades políticas, que a fizeram desmoronar. 27 Amanda Muzzi Gomes Como Prado escreve em um momento em que a monarquia não mais vigorava, ele não tinha apelo salvacionista, embora visasse fortalecer o movimento restaurador com suas denúncias e combates aos governos republicanos. Nos ataques à república recém-implantada Prado foi um publicista da monarquia. No momento tenso da primeira década republicana ele trouxe à tona elementos da tradição imperial. Retoricamente esses elementos foram mobilizados como instrumental de crítica em sua argumentação contra a república. Por outro lado, na prática restauradora essa tradição se inseria em um passado recente que se queria reinstalado em futuro próximo. Contudo, Prado não efetuou construções discursivas que tencionassem vitimizar o Imperador destronado e eximir sua administração de qualquer culpa na queda da monarquia. Intelectual refinado, Prado admitiu imperfeições majestáticas. O maior erro do Imperador, para utilizar uma expressão de Joaquim Nabuco29, foi marcar o seu reinado pelo excesso de liberdades. Assim houve abertura de espaço para as contestações e confabulações diversas que levaram à queda do regime. O mesmo fator, a liberdade, servia para marcar positivamente o regime findo e em sentido inverso o recém instalado. Justamente a liberdade era o que menos existia no novo regime, impetrado pela força militar, coadjuvado pela civil, e que só pelo arbítrio 28 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos poderia se sustentar. Esse foi o eixo de denúncias de Fastos da Dictadura Militar no Brazil. As obras de Prado ficaram conhecidas como de combate à república brasileira, porque de fato o eram, além de terem sido as primeiras cerceadas pelo novo regime. No entanto, de maneira subliminar ele tentou traçar certa memória do regime monárquico. E memória ligada às incertezas de um turbulento presente. Memória, apropriandonos de Gilberto Velho, que tinha em vista projeto, ação de futuro. Memória e projeto esses que davam significado a uma trajetória individual. 30 Contudo, Eduardo Prado sofreu obliteração. Sua atuação política foi ofuscada até pela de seus familiares ilustres, como Paulo Prado e Antonio Prado, inclusive porque ele não ocupou cargo na política institucional. Ademais, sua militância praticamente se circunscreveu a um movimento político fracassado, conforme foi o ativismo monárquico. Raramente se encontrará estudo sobre o limiar da república, principalmente de história intelectual, que não mencione seu nome ou suas obras, até pela repercussão que tiveram na época. Mas quase não há estudos sobre Eduardo Prado. Ele é um dos atores/intelectuais mais comentados e menos analisados pela historiografia. Esse artigo visou ajudar a preencher essa lacuna, em um primeiro plano. Já num segundo, tencionou destacar a riqueza de 29 Amanda Muzzi Gomes experiências políticas deste momento ímpar de nossa história: o da transição entre as suas duas formas de governo, monarquia e república. Notas de Referência 1 2 3 4 5 6 7 8 9 30 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de História Social da Cultura da Pontifícia Católica do Rio de Janeiro (PUC), orientada pelo Professor Doutor Marco Antônio Villela Pamplona. Contato: [email protected] Bolsista CNPQ. QUEIROZ, José Maria Eça de. Notas contemporâneas. Apud: JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 34. As informações biográficas de Eduardo Prado foram extraídas de: JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco, op. cit., p. 29-35; das Fichas Técnicas de Arquivos e Coleções Particulares do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Anexo “Sobre o autor” para a quinta edição de PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: Ibrasa, 1980, p. 189-190. JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Op. cit., p. 34. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 484. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1966, p. 290-293. JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Op. cit., p. 37-41. Os detalhes sobre a proibição da venda, a apreensão dos demais exemplares na tipografia em que o livro foi impresso logo no dia seguinte e a opinião de Eduardo Prado sobre o sucesso do livro e sua proibição encontram-se na entrevista que ele concedeu à Platéia, a 5 de dezembro. A matéria com a entrevista foi reproduzida como Apêndice à 5ª ed. de A Ilusão Americana, p. 183-188. NABUCO, Joaquim. Joaquim Nabuco: Diários. Rio de Janeiro: Bem-tevi, 2006, 5 de dezembro de 1893, p. 346. Id., ibid.,7 de janeiro e 8 de março de 1899, p. 400-402. PRADO, Eduardo. Collectaneas. São Paulo: Escola Typograhica Salesiana, 1906, vol. I. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 Id., A bandeira Nacional. São Paulo: Escola Typograhica Salesiana, 1903. PRADO, Eduardo. “Introdução”. Fastos da Dictadura Militar no Brazil. 4ª ed. Pelotas: Americana, 1894, p. II. Id., ibid., p. 2. Id., ibid., p. 7. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit., p. 319-343. PRADO, Eduardo. Fastos da Dictadura Militar no Brazil, op. cit., p. 7-8. Id., ibid., p. 29. Id., ibid, p. 26. Id., Fastos da Dictadura Militar no Brazil, p. 22-23 e A ilusão americana, p. 50. Id., A ilusão americana, p. 50. Id., Fastos da Dictadura Militar no Brazil, p. 7, p. 145. Id., ibid., p. 145. Id., “Moreira de Barros”, Commercio de S. Paulo, 11.7.1896, in: Collectaneas, vol. II, p. 282. Id., “Uma lição de Aristóteles”, Commercio de S. Paulo, 12.12.1895, ibid., p. 110. FRANCO, Tito. Monarquia e Monarquistas. Prefácio de Manuel Correia de Andrade. 2ª ed. rev. e atual. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1990. Série República, vol. 14. CELSO, Affonso. O Imperador no exílio. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1893. PRADO, Eduardo. A ilusão americana, p. 131. Id., ibid., p. 166-175. Sobre as participações da Princesa Isabel no abolicionismo, A. O. Mattos, Guarda Negra: A Redemptora e o Ocaso do Império e R. Barman, Princesa Isabel do Brasil, p. 236-237. NABUCO, Joaquim. O erro do Imperador. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1886. Propaganda Liberal: série para o povo. Primeiro opúsculo. VELHO, Gilberto. “Memória, identidade e projeto”. In: Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1994, pp. 97 a 105. 31 Amanda Muzzi Gomes 32 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão Anderson da Silva Almeida Não faz muito tempo que a escrita epistolar passou a fazer parte do conjunto de fontes analisadas pelos historiadores brasileiros em suas pesquisas. De acordo com Angela de Castro Gomes, “não são ainda muito numerosos os estudos que se dedicam a uma reflexão sistemática sobre esse tipo de escritos [cartas, diários íntimos e memórias] na área da história do Brasil”. Acrescentando que “as iniciativas que constituem exceções provêm muito mais do campo da literatura e, recentemente, de estudos de história da educação”.1 Estando necessariamente associadas à emergência do indivíduo moderno que se sobrepõe a uma lógica coletiva tradicional, as escritas de si ou práticas de produção do eu, vão paulatinamente ganhando terreno no campo analítico da historiografia brasileira. 2 Ainda sobre a questão do indivíduo e a construção do eu, Gomes pontua que: A correspondência pessoal, assim como outras formas de escritas de si, expande-se pari passu ao processo de privatização da sociedade ocidental, com a afirmação do valor do indivíduo e a construção de novos códigos de relações sociais de intimidade (...). A escrita de cartas expressa de forma emblemática tais características, com uma particularidade: elas são produzidas tendo, a priori, Anderson da Silva Almeida um destinatário. Assim, tal como outras práticas de escrita de si, a correspondência constitui, simultaneamente, o sujeito e seu texto. Mas, diferentemente das demais, a correspondência tem um destinatário específico com quem se vai estabelecer relações. Ela implica uma interlocução, uma troca, sendo um jogo interativo entre quem escreve e quem lê – sujeitos que se revezam, ocupando os mesmos papéis através do tempo. Escrever cartas é assim „dar-se a ver‟, é mostrar-se ao destinatário, que está ao mesmo tempo sendo „visto‟ pelo remetente, o que permite um tetê-à-tête, uma forma de presença (física, inclusive) muito especial.3 De acordo com Rebeca Gontijo, a carta “trata-se de um tipo de comunicação escrita, que varia conforme o uso a que se destina”.4 Citando Cécile Dauphin, Gontijo acrescenta que o termo é polissêmico, significando “traço, o „vestígio de uma realidade complexa‟; texto produzido e objeto trocado, testemunha das trocas afetivas, profissionais e intelectuais entre os indivíduos”. 5 O conceito é ampliado pela análise de Brigitte Diaz, para quem as correspondências são “textos híbridos, que transitam entre categorias distintas como o arquivo, o documento e o testemunho”.6 A carta que iremos analisar nas linhas seguintes, poderia ser compreendida facilmente com esse sentido híbrido destacado por Diaz e pela polissemia pontuada por Dauphin. Ou seja, ela é um traço, um rastro, um vestígio de um momento histórico da política brasileira, e ao mesmo tempo 34 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão – e por isso mesmo – pode ser vista como um documentotestemunho de um determinado personagem da história recente do Brasil, como também das aspirações e visões políticas do seu destinatário, o almirante Cândido da Costa Aragão. No que diz respeito à questão metodológica, Gomes chama a atenção para o fato de que “trabalhar com cartas, assim como com outros documentos, privados ou não, implica procurar atentar para uma série de questões e respondê-las”. Dentre as principais questões levantas pela autora, destacamos as seguintes: Quem escreve/lê as cartas? Em que condições e locais foram escritas? Onde foram encontradas e como estão guardadas? Qual ou quais o(s) seu(s) objetivo(s)? Quais as suas características como objeto material? Que assuntos/temas envolvem? Como são explorados em termos de vocabulário e linguagem?7 É a partir dessas questões que construiremos nossa análise. A Carta Encontramos a missiva quando pesquisávamos no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no fundo Ordem Social, a presença de marinheiros na luta armada depois de 35 Anderson da Silva Almeida terem sido excluídos da Marinha após o golpe de 1964. Chamou-nos a atenção o fato de o almirante Cândido da Costa Aragão - o comandante dos fuzileiros navais que se recusou a reprimir a rebelião dos marinheiros em março de 1964 e que era muito ligado a Leonel Brizola – aparecer como um dos personagens mais vigiados pelo sistema de informações do período ditatorial. O remetente era ninguém menos que Carlos Marighella, o qual na época em que escreveu a missiva, já era histórico militante do Partido Comunista Brasileiro.8 Em suas letras revolucionárias, datilografadas em pouco mais de duas folhas simples, e com todas as formalidades possíveis, comunicava sua decisão definitiva de romper com o Partido e mergulhar de vez nas ações armadas contra a ditadura civilmilitar. O tipo de suporte utilizado (papel ofício e letras em datilografia) nos passa a ideia de que o emissor não queria correr o risco de que alguma palavra, expressão ou frase do seu texto fosse mal compreendida. Ou seja, a mensagem teria que ser passada sem gerar dúvidas quanto ao objetivo desejado, o que poderia ocorrer caso enviasse um texto manuscrito. As formalidades e estrutura de uma carta, também não foram ignoradas pelo remetente: 36 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão Havana, 28 de setembro de 1967 Ao Almirante Cândido Aragão Prezado Patrício Depois de nossas conversações e após o exame que fizemos dos problemas políticos do nosso país, estou remetendo esta carta para dizer-lhe que concordo com a sua posição em termo de unidade das forças populares e revolucionárias brasileira. (sic) Suas posições sobre a recente Conferência da Olas, sobre a frente popular revolucionária, sobre a luta armada e outras questões contam com o meu apoio. 9 Já nessa abertura, temos vestígios significativos do momento específico e dos objetivos de Carlos Marighella ao escrever a Aragão. Escrevendo de Cuba em setembro de 1967, o comunista baiano cita conversações anteriores entre os dois, nas quais discutiram necessariamente a conjuntura política brasileira e a busca de soluções para a derrubada da ditadura instalada em abril de 1964. Outro fator de relevada importância nessa introdução é a referência à conferência da OLAS [Organização Latino-Americana de Solidariedade]. Esta conferência ocorreu entre 31 de julho e 10 de agosto de 1967 e foi organizada por Cuba com o objetivo de fazer da Ilha um centro revolucionário na América Latina. De acordo com Jean Rodrigues Sales, “entre outras formulações, a OLAS criticou a política defendida pelos partidos comunistas e indicou a luta guerrilheira como estratégia adequada para a maior parte dos países latino-americanos, 37 Anderson da Silva Almeida proclamando que o dever de todo revolucionário era „fazer a revolução‟”.10 Esse encontro aparece comumente lembrado pela historiografia como o momento no qual Marighella rompeu com o PCB e passou a defender abertamente a solução armada para a derrubada da ditadura. O que de fato ocorreu.11 E já a partir daquele ano, iriam desembarcar na Ilha vários militantes articulados com a nova organização, que tinha em Marighella seu grande líder, a Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo guerrilheiro que enviou o maior números de militantes para o treinamento guerrilheiro em Cuba. 12 No entanto, naqueles dias, o que mais ganhou destaque na imprensa brasileira foi a presença em Cuba de José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo.13 Desaparecido desde sua fuga do Alto da Boa Vista em 1966, Anselmo foi a maior estrela da delegação brasileira presente na conferência, então chefiada por Aloísio Palhano, exdirigente sindical. Ambos representavam o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). Anselmo, inclusive, foi escolhido como o orador da delegação do Brasil. Marighella estava apenas como observador.14 O indisciplinado militante comunista havia participado do encontro sem a autorização do PCB e por isso sua expulsão já tinha sido decidida pela cúpula do Partidão. Dessa forma, 38 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão escrita apenas um mês após a Conferência, é possível que a carta escrita a Aragão tenha sido um dos primeiros sinais da decisão definitiva do ex-deputado, já com mais de cinquenta anos de idade, em partir para as ações armadas. Em dezembro ele regressou e começou a colocar em prática questões que já vinha sinalizando há algum tempo e que também estavam na carta de setembro:15 Penso que os revolucionários brasileiros têm o dever de procurar unificar suas forças. Sem tal unidade, nosso povo não pode libertar-se do domínio do imperialismo norte-americano e da opressão dos gorilas que assaltaram o poder com o golpe de abril. O empenho na luta pela unidade das forças revolucionárias brasileiras merece o aplauso e a colaboração de todos os que não se conformam com o atual estado de coisas em nossa Pátria. Secundando sua opinião, participo também da ideia de que concentrar os esforços em termo da luta de guerrilhas como genuína expressão da luta armada popular, é a melhor forma de pugnar pela unidade das forças revolucionárias brasileiras.16 Escrevendo a um militar de alta patente e tendo em seu remetente um dos mais expressivos militares que foi preso e processado por ter ficado fiel ao presidente João Goulart, Marighella teve a preocupação e o cuidado de fazer referência ao imperialismo norte-americano, de matizar a expressão forças revolucionárias brasileiras - com destaque ao adjetivo pátrio – 39 Anderson da Silva Almeida ratificando ainda a questão nativa com a expressão nossa Pátria. Para um experiente militante comunista, fazer uso de um vocabulário próprio ao seio militar foi também uma estratégia, uma escolha, uma tentativa de se aproximar ao máximo do mundo e da cultura política de um oficial conhecidamente nacionalista e antiimperialista, como era o caso de Aragão. Nesse trecho, interessante também é a expressão nosso povo, tendo em vista que o destinatário da carta era conhecido no seio das esquerdas no início da década de 1960 como o “almirante do povo”, devido ter começado sua carreira na Marinha como soldado, nascido na Paraíba, e ter chegado ao posto de vicealmirante. No entanto, para seus opositores - intra e extra Marinha – Aragão era considerado o “almirante vermelho”. Outro trecho da carta-documento expõe um Marighella teórico da revolução, mas acima de tudo pragmático. A ação salta em seu texto e é possível visualizarmos, sentirmos e compreendermos melhor porque sua organização foi batizada de Ação Libertadora Nacional: O que nós – os revolucionários brasileiros – precisamos, é fazer unir nossas forças, partindo da luta de guerrilha e a criação de um núcleo armado com base na aliança operário-camponesa, a qual devem se juntar o combativo movimento estudantil, a intelectualidade, a juventude, a mulher brasileira, os funcionários públicos, e os militares 40 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão revolucionários de dentro e fora das forças armadas. (...) É chegado o momento de fazer a coleta de fundos, comprar e capturar armas e munições, fabricá-las clandestinamente e, selecionar e adestrar combatentes, preparar médicos, enfermeiras, recolher remédios, roupas, calçados e alimentos, estabelecer o apoio logístico a guerrilha (sic).17 Esta passagem ilustra bem e corrobora algumas análises que apontam a participação de Marighella na OLAS como o momento crucial de sua “conversão” à luta de guerrilhas. Segundo Denise Rollemberg, há ainda certa polêmica em relação à sua adesão ou não à teoria do foco guerrilheiro naquele momento.18 Porém, a autora interpreta a concepção do líder da ALN, em sua visão da luta revolucionária, como sendo de “uma maneira bem mais ampla e complexa do que o foquismo propunha, supostamente legitimado na Revolução Cubana”. 19 A nosso ver, ao fazer menção na carta à aliança operário-camponesa, ao movimento estudantil, à intelectualidade, à juventude, à mulher brasileira, aos funcionários públicos e aos militares revolucionários, Marighella expressa sim uma forma mais sofisticada e mais abrangente que o tipo de luta proposta pelo foquismo. Sem dúvida, esta correspondência contribui de sobremaneira no que diz respeito à interpretação do que seria [foi] o pensamento embrionário dos militantes de uma das mais importantes 41 Anderson da Silva Almeida organizações armadas que atuou no período da ditadura civilmilitar. Fica ainda a impressão, neste trecho da missiva, que o almirante Aragão poderia ser um valoroso colaborador em relação à logística da nascente organização, afinal, eles precisariam de armas, munições, remédios etc. Naquele contexto, o seu interlocutor não seria um dos mais indicados para intermediar também adestramento de combatentes? Quem sabe até seus antigos homens, os fuzileiros navais – muitos deles expulsos da Marinha após o golpe - não poderiam somar forças e agregar conhecimento militar sobre armamentos, táticas e treinamentos específicos para a nova organização guerrilheira? Ou seja, há demandas nas letras, nas palavras. Na epístola também há, um tempo. 20 Apressado, imediato, inadiável, corrido, que fica bem explícito na passagem: “É chegado o momento(!)”. É um tempo individual, próprio do remetente, do “eu”, de si, mas necessariamente provocado e inspirado nos problemas da sociedade, da coletividade: “o dilema é realmente submissão ou rebelião, pacificismo ou luta armada, organizar o povo para a violência, legítima e necessária, ou ficar no conformismo, a reboque da burguesia”, prossegue Marighella, para em seguida, se declarar, mostrar um “eu” decidido, assumindo sua posição: “Diante deste dilema já temos uma posição definida. Somos pela luta armada e 42 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão pela unidade das forças revolucionárias, e por isso mesmo estamos juntos”.21 Este trecho deixa claro que o autor compromete-se, assina um contrato, dá sua palavra [escrita] de honra sob condições estabelecidas entre as partes em contatos anteriores. Daí a sua característica principal ser um documentotestemunho, que fica ainda mais explícita pelo fato de estar arquivada como pertencente ao acervo da antiga Delegacia de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS-SP), provavelmente encontrada com algum militante preso. O futuro mostraria que as letras revolucionárias escritas por Carlos Marighella em setembro de 1967 eram mesmo para valer. Em dezembro daquele ano, sua organização guerrilheira dava início às ações, interceptando um carro que transportava dinheiro em São Paulo. Nos anos seguintes, ações contra instituições financeiras foram a principal marca da ALN, sendo uma das mais impressionantes, a efetuada contra o trem pagador em agosto de 1968.22 A morte física de Meneses – codinome utilizado na guerrilha – aconteceria em novembro de 1969 depois de ter sido emboscado pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, em São Paulo. 23 Seu Patrício, a quem escreveu a carta, não entraria em ação propriamente, mas foi um dos personagens mais emblemáticos do período da ditadura civil-militar no Brasil, 43 Anderson da Silva Almeida sendo constantemente vigiado no exílio – inclusive pelo Centro de Informações do Exterior (CIEX), pertencente ao Itamaraty. 24 Aragão permaneceu quinze anos exilado, passando por países como Uruguai, Cuba, China, Argélia, Chile e Portugal. Ao retornar ao país, em outubro de 1979, foi preso no Aeroporto, mesmo com a lei da anistia já aprovada. Seu passado como excomandante dos fuzileiros navais do governo João Goulart ainda pesava naquele momento. No entanto, não é absurdo pontuarmos que ter sido um dos destinatários de uma carta tão emblemática escrita por aquele que é considerado por muitos o maior nome da esquerda armada brasileira – ao lado de Carlos Lamarca –, contribuiu para sua prisão. Aragão faleceria em novembro de 1998, no ostracismo. Naquele mesmo ano, em março, um livro histórico dos fuzileiros navais já havia o “assassinado”. Entre dezembro de 1963 e março de 1964, período no qual Aragão foi o comandante máximo daquela tropa, ninguém. Nenhum nome, nenhuma pintura, nenhuma medalha. Silêncio, só o silêncio. Silêncio das letras, silêncio das imagens, silêncio na imagem. Aragão é a foto que falta no álbum. 25 O álbum dos exemplos a serem seguidos. O panteão dos que foram escolhidos pela instituição como símbolos de liderança, de inteligência, de amor 44 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão à pátria e de dedicação à Marinha, ou seja, a galeria dos heróis. Os heróis construídos. Carlos Marighella já teve sua trajetória recuperada em livros, reportagens e filmes. Logicamente como mártir das esquerdas e inimigo das direitas. Aragão, talvez por não ter entrado em ação, ainda permanece no ostracismo. Diga-se de passagem, que é um caso emblemático de silêncios ambidestros. Curioso é que em sua conclusão epistolar, o comunista baiano já refletia sobre o futuro [do Brasil e de ambos] ao pronunciar sua vontade de deixar por escrito sua decisão: Era este o pronunciamento que eu desejava deixar por escrito nas mãos do estimado patrício e companheiro, com o pensamento voltado para a libertação do Brasil e confiante em que não será em vão o esforço em favor da unidade das forças revolucionárias e patrióticas.26 Saudações Revolucionárias Carlos Marighella. Conclusão Mais uma vez, cabe aqui a referência a Angela de Castro Gomes, no sentido de que o historiador ou o pesquisador que se propor a ver a escrita epistolar como fonte e como objeto, terá um rastro multiplamente rico em vários aspectos.27 A carta em 45 Anderson da Silva Almeida análise trouxe o extraordinário, uma decisão, um testemunho. Mas explicita também relações pessoais, ideias, culturas políticas, demandas, posicionamentos, segredos, linguagens, vocabulários, imagens. Ela é também um documento – em todos os seus aspectos de significados, materiais e de arquivamento. No entanto, interessa principalmente aos historiadores e pesquisadores do período e interessados também na metodologia e epistologia da História, a questão das temporalidades. E nesse sentido, nós temos nessa fonte, pretérito e presente; presente e futuro, dialogando constantemente, sem linearidade. Tudo o que caracteriza uma boa fonte histórica, levando-se em conta, é claro, o contexto e as condições em que foi produzida, reproduzida e preservada. Notas de Referência 1 2 46 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), orientado pela Professora Doutora Samantha Viz Quadrat. Contato: [email protected] GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 08. Para uma introdução refinada desse indivíduo moderno, ver GOMES, op. cit. p. 11-14; HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Felinto Müller. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – PPGAS/UFRJ, Rio de Janeiro, 1997. Já para a produção historiográfica, cito como exemplo o próprio livro organizado por Angela de Castro Gomes, Escrita de Si, escrita da história, que já se tornou referência nos estudos das práticas Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 de produção do eu, como também as obras: Refúgios do eu: educação, história, escrita autobiográfica, organizada por MIGNOT, Ana Christina; BASTOS, Maria Helena C. e CUNHA, Maria Teresa Santos. Florianópolis: Mulheres, 2000; e Memórias e narrativas (auto) biográficas, organizada por GOMES, Angela de Castro e SCHMIDT, Benito Bisso. Rio de Janeiro: Editora FGV/ Porto Alegre: UFRGS, 2009. GOMES, op. cit. 2004, p. 19. Grifos do original. GONTIJO, Rebeca. “„Paulo amigo‟: amizade, mecenato e ofício de historiador nas cartas de Capistrano de Abreu”. In GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de Si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p.164. Ibid. Grifo do original. Ibid. Grifo do original. Ibid, p. 21. Além das questões citadas, temos: Qual o seu ritmo e volume? Tendo em vista que temos somente uma carta, essa estratégia não se aplica a este texto. Carlos Marighella entrou para o Partido Comunista aos 18 anos e como deputado, participou da elaboração da Constituição de 1946. Ver ROLLEMBERG, Denise. “Carlos Marighella e Carlos Lamarca: memórias de dois revolucionários”. In FERREIRA, Jorge e REIS FILHO, Daniel Aarão (orgs.). As esquerdas no Brasil. Revolução e democracia. Vol. 3. 1964...Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Versão eletrônica disponível em: http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/Carlos_Marighella_e_C arlos_Lamarca.pdf, p. 01-02. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social, documento 30-Z-160-12.269. SALES, Jean Rodrigues. A luta armada contra a ditadura militar: a esquerda brasileira e a influência da revolução cubana. São Paulo: Perseu Abramo, 2007, p.60-61. Ver GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – as esquerdas brasileiras: das ilusões perdidas à luta armada. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1987; SALES, Jean. op. cit.; ROLLEMBERG, Denise. O apoio de cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. ROLLEMBERG, Denise. op. cit. 2001, p.40. José Anselmo dos Santos – o “cabo” Anselmo – era sergipano de nascimento e ingressara na Marinha em 1958 na Escola de AprendizesMarinheiros da Bahia. Em maio de 1963, foi eleito para a presidência da 47 Anderson da Silva Almeida 14 15 16 17 18 19 48 Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Em 25 de março de 1964, quando se comemoraria o segundo aniversário da entidade, cerca de dois mil marinheiros e fuzileiros rebelaram-se em virtude de o ministro da Marinha, almirante Sylvio Motta, ter mandado prender membros da diretoria dias antes. A rebeldia dos marinheiros em não regressar para os navios exigia ainda que a AMFNB fosse reconhecida e outras inúmeras reivindicações. Após o Golpe de 1964, Anselmo foi expulso, exilado e fez treinamento guerrilheiro em Cuba. No entanto, o que marcaria seu nome na história recente do Brasil, seria sua traição aos membros das organizações armadas, atuando como agente duplo. BN- Jornal do Brasil, 04 de ago. 1967, p.02. Para outra cobertura da imprensa, ver também Jornal Última Hora, dias: 02 de ago. 1967, capa e p.08; 04 de ago. capa e p.07. Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/uhdigital/pesquisa.php. Consultado em 21 out. 2009. Marighella já havia escrito Por que resisti à prisão, em 1965, sobre o episódio em que foi ferido em 1964 após o Golpe, e A crise brasileira, escrito em 1966. Neste último, ele já propunha [mas não decidira aderir na prática] a luta de guerrilhas acopladas ao movimento camponês. GORENDER, op. cit, p.95. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social, documento 30-Z-160-12.269. Ibid. ROLLEMBERG, Denise. op. cit. 2007 p. 04. Nota do autor: De acordo com a teoria do foco guerrilheiro, este deveria ser desencadeado a partir de uma região estrategicamente favorável ao desencadeamento da luta armada, onde um pequeno grupo de guerrilheiros realizaria as primeiras ações armadas do processo revolucionário. A partir das ações do contingente e do apoio das massas camponesas entre as quais se realizaria a propaganda armada, seriam criadas as condições necessárias para a transformação da região numa zona de guerrilhas, permitindo o surgimento de novas zonas de guerrilhas e ampliando sua zona de ação, dando-se assim os primeiros passos para a construção do Exército Popular Revolucionário (...). Dois livros teriam influenciados a esquerda brasileira a aderir ao foquismo: A guerra de guerrilhas de Che Guevara (1961) e Revolução na revolução (1967), do francês Régis Debray. Cf. SALES, Jean Rodrigues. op. cit. 2007, p.69; 91-92. Ibid. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão 20 21 22 23 24 25 26 27 Ver HÉBRARD, Jean. “Por uma bibliografia material das escrituras ordinárias”. In MIGNOT, Ana Cristina V.; BASTOS, Maria Helena C. e CUNHA, Maria Teresa Santos (orgs.). Refúgios do eu: educação, história, escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000, p.30. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social, documento 30-Z-160-12.269. GORENDER, Jacob. op. cit. p. 98. Ibid, p. 175. SEQUEIRA, Cláudio Dantas. “O serviço secreto do Itamaraty”. Correio Brasiliense, 22 de jul. 2007. Disponível em: http://diplomatizzando.blogspot.com/2007/07/757-o-itamaratycolaborando-com.html. Consultado em 10 ago. 2010. A imagem em questão encontra-se em: FUZILEIROS NAVAIS: combatentes anfíbios do Brasil. Rio de Janeiro: Action Editora, 1997, p.143. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social, documento 30-Z-160-12.269. GOMES, Angela de Castro. op. cit. 2004, p.21. 49 Anderson da Silva Almeida 50 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta André Inácio de Assunção Neto A diversidade complexa Na metade final da década de 1970 algumas publicações de histórias em quadrinhos na Espanha trazem na capa um registro (“para adultos” – Ilustrações 1 e 2) que pode ser tomado como emblemático de uma série de mudanças editoriais, artística e de consumo, mas também de mudanças sociais e políticas em uma Espanha que vivia quarenta anos sob regime autoritário. O registro em si não diz muita coisa, mas se voltarmos a atenção para os diversos elementos ligados à impressão na capa das revistas das palavras “para adultos”, poderemos entender melhor essa reificação que alcançará seu ápice nos anos oitenta. O lançamento de revistas como “1984”, “Totem”, “El Víbora”, “Cimoc”, “Cairo” demonstram um novo cenário insólito de publicações na Espanha. Mas esse processo de publicações mais ousadas se torna possível muito pelo fato da censura já estar em seu processo de definhamento, apesar de ainda ter força suficiente para gerar diversos constrangimentos. Em 1972 já é possível observar uma ampliação da circulação de André Inácio de Assunção Neto quadrinhos satíricos, como é o caso do semanário sobre esportes “Barrabás”, onde através de narrativas gráficas se dava um novo tratamento à crítica ao mundo dos esportes; tratamento que no ano seguinte se aplicou a crônica da atualidade por meio da revista “El Papus”, nascida na mesma fonte que a anterior, aproveitando o que naqueles anos se chamou popularmente de “a abertura” do regime franquista, já no fim, para canalizar o humor até a sátira político-social e erótica, limitada ainda pelas travas que o sistema político seguia impondo. 1 As revistas underground, em geral auto-produzidas, também passam a se arriscar com publicações de histórias centradas na sátira ácida, com as temáticas preferidas desse segmento: drogas, sexo e crítica social. É o caso de “El Rrollo enmascarado”, que tinha entre sua equipe criativa Nazario; escritor que se tornaria bastante conhecido anos depois por seu personagem travesti Anarcoma, publicado nas páginas de “El Víbora”. Nos anos sessenta houve algumas tentativas de publicações exclusivas para adultos que, entretanto, eram amortizadas pela ferrenha censura. É o caso das revistas “Can Can”, “El DDT” e “Mata Ratos” (e outras publicações que seguiram seus traços) de 1963, 1964 e 1965, respectivamente, que se auto-apresentavam como revistas para adultos, embora o 52 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta conteúdo, basicamente humorístico, não trouxesse, como diferencial, nada além de inocentes e distantes pitadas eróticas. De forma crítica, podemos dizer que os verdadeiros quadrinhos para adultos são os com conteúdo mais complexo, dotados de exposições explicitas de uso de drogas, pornografia, críticas aos diversos elementos que constituem o status quo da sociedade espanhola da época. Essas publicações assumiam, estrategicamente, uma auto-representação que situava a narrativa desenhada como forma legítima de arte, com abordagens mais esteticistas em narrativas fantásticas, com elementos da ficção-científica ou de histórias de espada e magia, bem como de histórias satíricas com composições burlescas e escatológicas, para citar apenas alguns elementos, de forma reducionista, haja vista a diversidades de conteúdos. Os quadrinhos para adultos, de fato uma novidade na Espanha do final dos anos setenta, só vão se materializar na leva de publicações que surgem por impulsos editoriais específicos, e praticamente minoritários, se pensarmos a baixa tiragem dos títulos; no entanto, dizer que a força desse cenário que surge esteja apenas nos investimentos editoriais (abrindo também possibilidades para incrementações artísticas) que se arriscam a publicar quadrinhos para adultos, seria desconsiderar que essas publicações vão interessar a leitores, que vão consumi-las e 53 André Inácio de Assunção Neto tornar esse um segmento fértil e lucrativo para as editoras e para os artistas. Ilustrações 1 e 2 – Nas capas o registro “para adultos” que, além de advertência, é também uma estratégia editorial. Arte de Nazario (acima) e de Richard Corben (abaixo) para os primeiros números das revistas “El Víbora” (1979) e “1984” (1978), respectivamente. Barcelona: Ediciones La Cúpula, 1979; Barcelona: Tourtain Editor, 1978. Um desvio esclarecedor Façamos um desvio momentâneo para esclarecer uma questão. Não existem conteúdos que em si sejam mais adequados para adultos ou para crianças. A própria noção de infância – com todo o conjunto de relações que a torna um período diferenciado da vida humana, que traz inclusive regras que limitam e orientam, sugerindo atitudes e conteúdos mais ou menos adequados para esse período da vida – deve ser pensada 54 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta como um processo de atribuição de sentido, datado, onde dentro de um meio cultural, através de diversas práticas, os homens passam a enxergar um objeto através de uma configuração particular, sobre o qual constituem suas ações. Em outras palavras, em uma época específica, o conjunto das práticas engendra, sobre tal ponto material (o corpo humano na “primeira fase” da vida), um rosto histórico singular em que acreditamos reconhecer; mas em outra época, será um rosto particular muito diferente que se formará no mesmo ponto, e, inversamente, sobre um novo ponto, se formará um rosto vagamente semelhante ao precedente.2 “Não existe a infância através da história” é algo que pode ser categoricamente dito da mesma forma que não existe adolescência ou juventude através da história. A infância é uma invenção “recente” e está sujeita ao “desaparecimento”, basta que as práticas mudem de tal forma que isso que entendemos por infância não faça mais nenhum sentido, já que em uma nova configuração de práticas os sentidos serão outros. No livro O grande massacre de gatos Robert Darnton escreve algo que pode tornar mais claro o que quero dizer com a questão da recusa a um objeto natural. Ele propõe que no século XVIII famílias inteiras se amontoavam em duas camas e se cercavam de animais domésticos para se manterem aquecidos. 55 André Inácio de Assunção Neto Assim, as crianças se tornavam observadores participantes das atividades sexuais de seus pais. Ninguém pensava nelas como criaturas inocentes, nem na própria infância como uma fase diferente da vida, claramente distinta da adolescência, da juventude e da fase adulta por estilos especiais de vestir e de comportar. As crianças trabalhavam junto com os pais quase imediatamente após começarem a caminhar, e ingressavam na força de trabalho adulta como lavradores, criados e aprendizes, logo que chegavam à adolescência.3 Dessa forma, os conteúdos produzidos na Espanha nos anos setenta, inegavelmente originais tendo em vista tudo produzido até então, são objetivados como conteúdos para adultos, não porque esses conteúdos são naturalmente para adultos, mas por que em um contexto social específico (portanto histórico) uma série de elementos funciona como apropriados para a leitura de adultos e não para crianças. Algumas proposições A compreensão do porquê o surgimento de quadrinhos para adultos na Espanha (com tudo o que os acompanha em termos artísticos) ser considerado algo tão original, ao ponto de ser amplamente valorizado como um momento áureo da história da narrativa desenhada nesse país, se explica muito pelo fato de 56 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta que nunca se produziu e publicou nada com tanta qualidade estética, narrativa e amplamente livre de qualquer restrição dos aparelhos de censura. Vejamos alguns aspectos da especificidade que diferencia a conjuntura dos anos setenta, onde surgem as HQs para adultos, em relação aos anos anteriores. Desde seu surgimento, a produção dos quadrinhos esteve atrelada a uma necessidade de mercado, ou seja, os meios editoriais4 visando produzir histórias mais comerciais e de fácil degustação, para alcançar o máximo de leitores, encomendavam determinados “formatos” aos artistas (em muitos casos os editores solicitavam aos artistas uma mimetização de estruturas que estavam em evidencia e, portanto, vendendo mais), que produziam, então, sob essa “tensão”. É verdade também que os artistas podiam produzir suas histórias sem imposições editoriais diretas, embora se quisessem vender seu material, as histórias tinham que estar de acordo com as possibilidades de publicação dentro do território espanhol; por outro lado, alguns preferiam enviar suas histórias para o exterior na esperança de reconhecimento e de melhor remuneração. A hegemonia da editora Bruguera entre as décadas de 1950 e 1960, com sua política bastante comercial, arrebanhou praticamente uma geração inteira de roteiristas e desenhistas. 57 André Inácio de Assunção Neto Em um texto da revista Historia de los comics, o desenhista Manuel Vázquez, em tom irônico, diz algo sobre a situação dos produtores de histórias em quadrinhos nos anos sessenta: Transcorria a década de 1960. Em Barcelona, onde no momento eu completava meus bons 11 anos de martírio editorial, a indústria de comics e de livros de bolso estava praticamente monopolizada por uma editora em que eu colaborava (como absolutamente quase todos os desenhistas da época) e de cujo nome não gostaria de me lembrar jamais. Naqueles tempos qualquer desenhista podia trabalhar naquela santa casa, já que seu editor era um verdadeiro pai para nós todos. Pai postiço, porém pai. Se não pagava muito, tenho que reconhecer que jamais quis fazer valer seu direito “senhorial” e se conformava humildemente apenas com que lhe cedêssemos os direitos; todavia, o desenhista tinha a satisfação de ver seus trabalhos publicados na mesma editora, não uma, mas várias vezes. Pedir que pagassem por cada vez que o trabalho era publicado seria abusar de sua boa fé, coisa que, por outro lado, seria impossível, já que do assunto cuidava uma espécie de robô com forma quase humana, o gerente da editora, e do qual me lembro só de uma demonstração de humanidade: quando ficou sabendo da morte de Hitler, deixou escapar uma lágrima. Entretanto, tenho que reconhecer que apesar da escassa remuneração pelos trabalhos, os desenhistas conseguiam ir vivendo [...] e ao longo dos anos conseguiram duas coisas: 1ª, demonstrar que ninguém era original e que todos se copiavam uns aos outros; 2ª,dar-me uma fama internacional de acomodado (homologada em Nova York, Hong-Kong e Badalona) que perdura até os dias atuais. Obrigado pessoal, nunca os esquecerei.5 58 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta O texto de Vazquez demonstra alguns aspectos que nos interessam: 1) o monopólio editorial das publicações de quadrinhos, que certamente se trata da editora Bruguera, para quem Vázquez publicou até os anos setenta; 2) as regras em relação aos direitos autorais estavam configuradas de forma que os direitos sobre as produções pertenciam às editoras, que então podiam fazer o que bem entendessem com o material; 3) o pagamento pelas produções não era dos melhores, o que demonstra a situação marginal da profissão no período; e finalmente, 4) a falta de originalidade nos trabalhos publicados, onde, se alguém publicasse algo em algum aspecto mais original era logo rigidamente copiado – a cópia em si não é a questão, afinal, o mimetismo é um processo imanente a produção artística, mas nesse caso o uso dos discursos (em algum sentido mais originais) produzidos resultavam em cópias, isto é, eram usados como modelos que resultavam em apropriações nada originais - salvo raros casos. Nos anos setenta a situação é outra. Além de serem reconhecidos os direitos autorais dos artistas sobre seus trabalhos (que antes ficavam sob a tutela da editora), novas editoras investem em produções mais ousadas, pondo em circulação no mercado revistas e livros com maior qualidade 59 André Inácio de Assunção Neto gráfica e dão liberdade para os artistas produzirem suas histórias. Duas editoras lideraram a renovação: por um lado, a Editora Ikusager – sob o comando de Ernesto Santolaya – promove basicamente criações de artistas espanhóis e se centra em livros com alta qualidade gráfica; em 1981, depois de uma expansão, a editora lança a revista “Cimoc”, com periodicidade mensal, que traria em suas páginas os mais diversos gêneros, indo do western a histórias de guerra, passando do policial ao histórico. Por outro, a agência de Josep Toutain, um editor bastante experiente, e há anos envolvido com o envio de material de artistas espanhóis para o exterior, funda seu próprio selo de publicações e lança na Espanha revistas com histórias já consagradas no exterior e até então desconhecidas dentro do território espanhol (por razões de censura, mas também industriais). Sob o selo e os investimentos de Toutain títulos da Warren Publishing 6 e produções de Moebius, Milo Manara, Hugo Pratt, Guido Crepax, Will Eisner, Robert Crumb, Richard Corben puderam então ser publicadas na Espanha nas páginas das revistas “1984”, “Creepy”, “Totem”, “El Víbora”, etc., e em encadernados especiais; além disso, autores que posteriormente seriam consagrados no cenário espanhol, e também no internacional, publicam suas histórias nos títulos da editora: é o caso de Josep Maria Beá e de Fernando Fernández, que além da 60 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta arte belíssima e extremamente realista, produzem histórias no solo do fantástico e da ficção-científica que estão entre as melhores dessa geração de escritores. Ilustração 2 – O protesto em prol de liberdade de expressão na segunda edição de “El Víbora” é demonstrativo de que em 1979 a censura, mesmo que já bastante enfraquecida, ainda mantinha forças e atuava efetivamente. “El Víbora”, nº2, 1979. 61 André Inácio de Assunção Neto A possibilidade de criar suas histórias sem as imposições editoriais de outros tempos permite aos escritores explorar a diversidade de gêneros literários e cinematográficos em apropriações inegavelmente anteriormente nas histórias astuciosas, em jamais quadrinhos vistas espanholas. Concomitante às produções mais autorais, vão aparecer os discursos situando a narrativa desenhada como forma legítima de arte. O próprio Toutain na primeira edição de “El Víbora” tenta definir o que é essa linguagem e afirma, no intuito de legitimação, que é um meio artístico tão digno quanto qualquer outro; pode ser superado em muitos aspectos, embora seja insubstituível em outros. Esse parece ser um impulso comum nos anos setenta em diversas partes do mundo. É possível ver esforços similares anos antes na revista francesa Metal Hurlant, e anos depois no livro de Will Eisner Comics and sequential art, onde o autor norte-americano, há anos discutindo o assunto na Escola de Artes Visuais de Nova York, procura chamar os comics de sequential art, buscando positivar a relevância artística das histórias em quadrinhos. 62 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta Ilustração 3 – Nazario escreve um dos personagens mais ousados do período. Em uma história detetivesca que se passa no subúrbio de Barcelona, aborda, sem pudores, o universo homossexual onde a personagem principal é um travesti. Roteiro e Arte de Nazario para “Anarcoma”. “El Víbora”, nº2, 1979. Ainda enumerando questões para entendermos o ambiente que torna possível a emergência dos quadrinhos para adultos na Espanha é preciso lembrar a censura, que é outro fator que constrangeu fortemente o aprimoramento da narrativa desenhada. Alguns conteúdos eram expressamente proibidos – 63 André Inácio de Assunção Neto como aconteceu a em 1966 com a longeva série “El guerrero del antifaz”, de Manuel Gago García, que ficou proibida de representar armas em suas histórias 7 – e mesmo na década de 1970, quando o regime autoritário definhava e dava lugar a democracia, várias perseguições e condenações foram perpetradas a artistas que se arriscavam a conteúdos vetados pela censura. No segundo número da revista “El Víbora”, de 1979, a quarta página traz um protesto contra prisões de artistas realizadas por “atentado contra a religião” (Ilustração 2). O fato de aparecer um protesto estampado nas páginas da revista, sem falar em todos os conteúdos produzidos nesse período, indo do pornográfico ao escatológico, mostra que a censura já não era tão feroz e temível como em outros tempos, embora ela existisse e freqüentemente mostrasse suas garras. A própria “El Víbora” foi vítima da censura; seu nome seria Goma-3 (uma tiragem com esse título chegou a ser impressa), mas o título foi vetado por se tratar do nome de um explosivo. Por fim, há ainda um ponto que merece atenção. Essa evolução das histórias em quadrinhos na Espanha se dá em um contexto de luta por liberdade após quarenta anos do regime franquista. Uma parcela da população – principalmente jovens, intelectuais e estudantes – insatisfeita com a situação social e política do país se põe a agir das mais variadas formas e, mais 64 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta intensamente após a morte de Francisco Franco, desafia os diversos níveis de imposições restritivas que até então vigoravam. O resultado disso é um amplo processo efervescente de busca por prazeres (aos moldes da tríade contracultural norteamericana: sexo, drogas e rock’n’roll) e de produções nas mais variadas áreas artísticas: cinema, teatro, quadrinhos, literatura, pintura e etc. Nasce daí Pedro Almodóvar, Fernando Márquez (El Zurdo), Millás, Carlos Berlanga, entre outros. Esse momento de efervescência cultural no final dos anos setenta, que se deu de forma efetiva em algumas capitais espanholas, foi batizado de La Movida (ou também Rollo ou Reinaixença, variando de acordo com a região). Almodóvar em uma entrevista para o jornalista Rafael Cervera diz algo sobre o que foi La Movida: É difícil falar de La Movida e explicá-la para os que não viveram estes anos. Não éramos uma geração, nem um movimento artístico, nem um grupo com ideologia concreta, éramos simplesmente um montão de gente que vivia em um dos momentos mais explosivos do país, e de Madri em particular. [...] Como dizia, houve um momento em que de repente as pessoas perdem o medo da polícia, dos vizinhos, da própria família, do ridículo, e delas mesmas. Constata-se que Franco morreu de verdade há dois anos e isso provoca uma explosão de liberdade enorme em todo o país, ainda que eu me refira sempre a Madri e ao pequeno círculo no qual eu me movia.8 65 André Inácio de Assunção Neto É dentro desse turbilhão de acontecimentos que os quadrinhos na Espanha alcançam sua maturidade. Algumas produções trazem, de forma mais explícita, as marcas das mudanças sócio-políticas do período e da sensação de liberdade que acomete essa geração de escritores e desenhistas. Embora haja também artistas mais preocupados em aprimoramentos estéticos e gráficos, ou na utilização original de gêneros e da própria linguagem por qual narram suas histórias. Logicamente que não quero sugerir aqui que qualquer artista gráfico que produzia comics para adultos na Espanha nos anos setenta possa ser enquadrado no que se chama de La Movida, que é um nome genérico para uma série de práticas bastante localizadas de grupos distintos, no entanto, não se pode desconsiderar que diversos artistas de quadrinhos estivessem envolvidos com esses grupos. De outra forma, se La Movida for pensada como uma espécie de “renascença” cultural espanhola, no sentido de que as pessoas não se preocupavam mais com a censura e simplesmente produziam o que bem entendessem, de acordo com a disposição e as possibilidades, talvez a explosão da narrativa desenhada para adultos possa ser enquadrada aí; mas isso não diria muita coisa sobre as particularidades desse gênero específico e da configuração particular do campo com agentes distintos, muitas vezes desarmônicos, buscando produzir 66 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta suas histórias e conquistar não só capital monetário, mas também simbólico. As histórias em quadrinhos na Espanha no final dos anos setenta até meados dos oitenta vivem momentos de tamanha expressividade por meio dos títulos para adultos, abrindo novas possibilidades editoriais e artísticas. O interesse dos leitores por essas publicações também estão entre os motivos centrais para o triunfo dos novos tipos de histórias. Entretanto, como vimos ao longo do texto, são diversos os elementos, todos importantes, que constituem o espaço de possibilidade para a emergência dos quadrinhos para adultos e tudo o que representam no universo de produtores e leitores no território espanhol. Notas de Referência 1 2 3 4 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), orientado pela Professora Doutora Andréa Casa Nova Maia. Contato: [email protected] Bolsista CAPES. COMA, Javier (org.). História de los comics. Barcelona: Toutain Editor, 1984, Fascículo 41. VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988. DARNTON, Robert. Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso. In: O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 47. É importante deixar claro que “meios editoriais” são pensados aqui não como uma unidade essencial que funciona harmoniosamente, mas sim os indivíduos-agentes em toda a sua diversidade se relacionando imersos 67 André Inácio de Assunção Neto 5 6 7 8 68 em uma conjuntura contingencial particular, sobre qual agem, e onde alguns são mais talentosos que outros. COMA, Javier (org.). História de los comics. Barcelona: Toutain Editor, 1984, Fascículo 41. Editora norte-americana que durante a década de 1960, pouco se importando com o Comics Code Authority, retomou a linha editorial popularizada pela EC Comics com publicações dos gêneros de ficção criminal, horror, sátira, ficção militar e ficção científica. COMA, Javier (org.). História de los comics. Barcelona: Toutain Editor, 1984, Fascículo 38. CERVERA, Rafael. Alaska y otras historias de La Movida. Barcelona: Plaz & Janés, 2002. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre, O Grande na Roma do Século II d.C.: Perspectivas Teóricas na Anábase de Alexandre Magno de Arriano de Nicomédia André Luiz Leme Quando realizamos a leitura da obra Anábase de Alexandre Magno, composta pelo grego Arriano de Nicomédia (cerca de 90 – após 145/6 d.C.) 1 na primeira metade do século II d.C., nossa primeira impressão é a de uma narrativa que simplesmente ordenou os acontecimentos da notável expedição militar do rei macedônio. No entanto, tal escrito possuía, no tempo de Arriano, uma inteligibilidade própria, atribuindo-lhe um potencial teórico instrutivo em relação à discussões sobre a política e o poder em seu tempo. Consideramos, portanto, a obra de Arriano enquanto uma proposta historiográfica. Desde Tucídides o discurso histórico sobre o passado ganhava uma espécie de função social: servia de amparo aos homens que, no presente ou no futuro, deveriam lidar com situações semelhantes ou iguais àquelas já ocorridas no passado 2. Políbio também ressaltou a importância do paralelo passado/presente quando se avaliava as circunstâncias do momento3, novamente ressaltando a idéia de utilidade do discurso histórico. Este, para ser útil e servir aos homens, deveria, necessariamente, apresentar relatos André Luiz Leme verdadeiros, amparados no rigor crítico e metodológico do historiador. Arriano, logo ao início de sua obra, deixa claro aos leitores que seu escrito era verdadeiro, tendo em vista a crítica e manuseio das fontes que fez4; além disso, propunha através dele servir à humanidade com alguma utilidade 5. Podemos, a partir dessas considerações, propor um olhar diferenciado sobre a obra de Arriano, buscando entrever uma narrativa que, através da escrita historiográfica, levantava perspectivas teóricas sobre o comportamento e as ações de um governante. Boas ou ruins, tais perspectivas seriam, invariavelmente, pertinentes e adequadas em relação ao panorama político de seu tempo de composição. Como, então, poderíamos encontrá-las na obra? Devemos, antes de tudo, procurar as regularidades: momentos no quais Arriano atribua uma mesma característica ao personagem Alexandre. Dessa forma, vislumbramos a subjetividade do autor na construção de seu trabalho, bem como seu desejo em incutir no leitor determinado pensamento. No seguimento realizamos tal exercício de análise tendo por base uma questão principal: quais aspectos legitimavam Alexandre em sua posição no poder? Para tal, vejamos alguns momentos da expedição de Alexandre, especialmente indicativos para o tema de estudo. 70 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre Nosso primeiro caso de interesse aconteceu imediatamente após a ascensão de Alexandre ao poder. De fato, após a morte de seu pai, Filipe II, o novo rei macedônio enfrentou grandes dificuldades para assegurar sua ascensão e legitimação no poder. Durante esse momento, Alexandre teve de se direcionar à região da Trácia, onde algumas tribos, até então dominadas pelos macedônios, acabaram se rebelando. No desenrolar dessa campanha, um momento específico nos chamou atenção: a batalha do monte Hemo. Nesse instante, o rei macedônio e seu exército encontravam-se em perigo devido à ação de alguns rebeldes que, a partir de uma posição estratégica (o monte Hemo), ameaçavam jogar carros de guerra sobre eles. Diante dessa situação: Alejandro estudió otras maneras de atravesar por el monte con mayor seguridad para sus tropas, pero, convencido de que no existía otra opción, decidió arrostrar el peligro, ya que por ninguna otra parte había acceso. Con todo, hizo a sus hoplitas las siguientes prevenciones: cuando vieran que los carros se despeñaban cuesta abajo contra ellos, todo el que tuviera vía libre debía romper la formación y apartarse para dejar que los carros pasaran entre las filas de soldados y fueran a estrellarse peñas abajo. Les recomendó igualmente, que si algún grupo se veía sorprendido y los carros se les venían encima, debían agazaparte y echarse justo en que los carros cayeran sobre ellos, pues así cabría esperar que los carros saltaran por encima, debido al impulso que llevaban, y pasasen de largo sin causarles daño. Efectivamente, ocurrió tal y como Alejandro había 71 André Luiz Leme supuesto, de suerte que parte de sus hombres, que siguieron en todo sus consejos, rompieron la formación; respecto a los demás, apenas sufrieron daño, pues los carros rodaron sobre sus escudos. Ni un solo hombre murió aplastado bajo ellos. 6 Nesse relato militar, vemos um Alexandre que agiu de modo consciente, estudando suas opções de ação. Diante de uma situação que não proporcionava muitas opções de ação, Alexandre demonstrou coragem e se decidiu por enfrentar uma situação perigosa. No entanto, essa decisão veio acompanhada de várias prevenções e recomendações às suas tropas, momento no qual Alexandre demonstrou que não agia por impulso, possuindo sempre o controle da situação e das possíveis adversidades que poderiam dificultar seu plano. Sua estratégia compreendeu dois movimentos: 1) quando os carros fossem jogados, os soldados deveriam se afastar, abrindo colunas, justamente para que os carros passassem pelo meio deles e não os atingissem diretamente; 2) se por algum motivo o choque contra algum carro fosse inevitável, os soldados deveriam se abaixar, esperando que os carros passassem por cima deles. O segundo movimento é uma espécie de “plano B” para a situação, mas o que nos chama atenção foi sua concepção: Alexandre orientou suas tropas pautando-se em critérios racionais advindos de uma observação e estudo da natureza, e por isso considerou que os carros de guerra, devido ao impulso que levariam ao 72 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre descer o monte, poderiam muito bem saltar sobre os macedônios e, assim, não infligir dano algum a eles. Toda essa versatilidade do rei macedônio teve como conseqüência o sucesso de sua empreitada, pois, como Arriano assinalou, tudo ocorreu como ele, Alexandre, havia suposto que ocorreria. De fato, não houve quaisquer surpresas imprevisíveis para o rei macedônio. Mas ainda notamos outro aspecto interessante ao final dessa passagem, uma espécie de lição moral: aqueles que obedeceram ao rei macedônio, seguindo totalmente os seus conselhos, conseguiram avançar de modo seguro; quanto aos demais, que provavelmente não seguiram à risca o plano principal e tiveram de se utilizar do “plano B”, estes já sofreram alguns pequenos danos. Através dessa interessante contraposição que acabamos de salientar, fica também implícita a lição da obediência, a qual não pode faltar e que só pode prejudicar àqueles que não a praticam e seguem rigorosamente – especialmente em relação à um líder que se demonstrava tão apto para enfrentar situações como essas. Nosso próximo momento de análise também ocorreu durante a perseguição aos povos rebeldes da região da Trácia. Nessa empreitada, Alexandre teve de enfrentar uma situação inusitada: perseguir bárbaros, trácios e ilírios, que haviam se refugiado em uma ilha, no rio Istro, buscando proteção. Ainda 73 André Luiz Leme que alguns poucos barcos tenham vindo, partindo de Bizâncio, para ajudar Alexandre em sua chegada até a ilha, a situação demonstrou-se muito mais complexa, como Arriano ressaltou: La mayor parte de la isla era muy escarpada para intentar un desembarco, y la corriente del río en exceso impetuosa (y ello era natural, ya que en ese punto el cauce del río se estrangula y se hace mucho más estrecho). A la vista de ello, Alejandro decidió retirar las naves, cruzar al otro lado del Istro, y marchar contra los getas que por allí habitaban (podía verlos en gran número sobre la otra orilla, y calculó que serían unos cuatro mil jinetes y más de diez mil infantes).7 Os aspectos naturais da região tornavam o desembarque uma tarefa inviável na perspectiva do autor, o qual reiterou, a partir de uma observação própria, o estreitamento natural que o rio apresentava naquele lugar. Alexandre, consciente dessas adversidades e do perigo real que elas representavam, decidiu então cruzar o rio Istro e enfrentar outro povo bárbaro que habitava a região, os chamados getas. No entanto, antes calculou a dificuldade da tarefa pela quantidade de inimigos que ele mesmo observara na margem oposta do rio. No seguimento, Alexandre estabeleceu um procedimento para enfrentar a situação, apresentado por Arriano da seguinte forma: El plan de Alejandro era dispersarlos para poder atravesar el río, empresa por la que sentía vivo interés, y para la cual él mismo se había embarcado 74 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre en una de sus naves. Para llevar a cabo su plan, realizó la siguiente operación: llenó de paja las tiendas de cuero con las que solía construir el campamento, y reunió todas las canoas hechas de un solo tronco de árbol que solían utilizar los ribereños (y de las que había conseguido un buen número, ya que los indígenas las emplean para la pesca, para hacer expediciones río arriba, y porque muchos se dedican con ellas a la piratería); reuniendo, pues de éstas el mayor número que pudo, comenzó así con ellas la travesía de su ejército. Consiguió de esta forma que pasaran a la otra orilla mil quinientos jinetes y unos cuatro mil infantes.8 O Alexandre desse momento demonstrou-se movido por um interesse peculiar, uma motivação especial que derivava da sua própria vontade de alcançar objetivos e, conseqüentemente, a vitória. Para isso, ele estabeleceu um plano, o qual compreendia uma série de operações. O primeiro aspecto de seu planejamento foi garantir a travessia segura de suas tropas pelo rio Istro – assegurada por meio da busca e recolhimento de canoas. Durante e depois desse momento, Alexandre continuava demonstrando seu controle sobre a situação, orientando suas tropas para as ações certas: Llevaron a cabo la travesía durante la noche, por donde había un crecido trigal que llegaba hasta el mismo río, y gracias al cual pudieron pasar desapercibidos. Bajo los primeros rayos del sol, Alejandro condujo a sus hombres a través del trigal, recomendando a los infantes igualar con sus sarisas inclinadas la altura del trigo, e irse así abriendo camino hacia el terreno no labrado.9 75 André Luiz Leme O momento da travessia foi apresentado por Arriano através de uma narrativa nitidamente dramática e repleta de tensão. A estratégia de Alexandre compreendeu uma travessia noturna: desse modo, passariam despercebidos. Quando do raiar do sol, Alexandre fez recomendações aos seus soldados, assegurando a marcha deles por um campo de trigo. Finalmente, o momento do ataque do exército macedônio foi descrito por Arriano de modo exaltado, como um grande trunfo do gênio de Alexandre e de seu plano: Los getas no resistieron siquiera el primer ataque de la caballería; en efecto, la osadía de Alejandro (que con toda facilidad había cruzado en una sola noche el Istro, que es el mayor de los ríos, y eso sin tener que tender un puente para su paso) les pareció increíble, como terrible les pareció el cerco de la falange y violento el ataque de la caballería.10 O termo “ousadia” utilizado por Arriano não pressupõe uma atitude inconseqüente de Alexandre, pela contrário: o modo como o rei macedônio lidou com a situação, organizou e preparou racionalmente seu ataque tornou uma tarefa, supostamente difícil, fácil. Arriano dimensionou a vitória de Alexandre como uma superação da própria natureza, nesse caso o rio Istro – o “maior” em seu pensamento. No desfecho dessa ação vitoriosa, Arriano comenta que Alexandre ofereceu “un sacrifício sobre la ribera del Istro a Zeus Salvador, a Heracles, y 76 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre al próprio rio Istro, cuya travesía le había resultado tan cômoda. Aquel mismo día hizo retornar a todos sanos y salvos al campamento”.11 Portanto, vemos que o zelo de Alexandre para com seus companheiros garantiu a segurança de todos e o sucesso de seu plano. Nosso próximo momento de análise, comparado aos anteriores, é bem posterior: ocorrera após o confronto entre Alexandre e Dario. O rei macedônio, após sua vitória sobre o rei persa e conseqüente perseguição de seu assassino, Beso, buscou fortalecer sua posição de comando na longínqua região da Sogdiana, enfrentando diversos grupos rebeldes e construindo fortes militares. Nesse ínterim, surge uma situação interessante, um grupo havia se estabelecido numa praça forte, uma montanha, visando proteção frente à Alexandre, como verificamos na seguinte passagem da narrativa de Arriano: No hizo más que despuntar la primavera, cuando Alejandro se dispuso a avanzar hacia la Roca Sogdiana, en la que habían encontrado seguro refugio, según informaciones a él llegadas, buen número de sogdianos. La propia mujer de Oxiartes el bactrio y sus hijas estaban en este refugio, según se decía; allí las había llevado Oxiarte por ser un lugar algo apartado e inexpugnable y que él mismo había sublevado antes contra Alejandro. Estava convencido Alejandro de que una vez tomada esta posición fuerte nos les quedaría nada que hacer a los sogdianos que pretendieran sublevarse. A medida que se aproximaba a la roca, observó Alejandro con gran sorpresa que resultaba prácticamente 77 André Luiz Leme inexpugnable por todas partes, y que los bárbaros habían conducido a su interior suficientes provisiones para un largo asedio. De otra parte, una gran nevada que había caído recientemente dificultaba el acceso a los macedonios, al tiempo que aseguraba aprovisionamiento de agua a los bárbaros.12 O local onde se encontravam os rebeldes, entre os quais se incluíam familiares do nobre bactrio Oxyartes, era denominado de a “Rocha Sogdiana”. Esta fortaleza era tida como inexpugnável, uma ótima posição estratégica de defesa. Justamente por isso, Alexandre acreditava que, se tomada, não haveria outras opções de proteção para aqueles sogdianos que pretendessem se rebelar – uma visão prática para se acabar, finalmente, com as revoltas. No entanto, o olhar atento de Alexandre fez com que ele percebesse uma série de obstáculos para a conquista dessa fortaleza: ela era praticamente inacessível, não importando qual parte dela se planejasse atacar; as pessoas em seu interior estariam preparadas para um longo sítio, tendo em vista terem conduzido grandes provisões alimentícias para o interior da praça; por fim, havia acontecido uma grande nevada recentemente, a qual dificultaria ainda mais o acesso para os macedônios, ao mesmo tempo em que assegurava um melhor fornecimento de água para os bárbaros. Alexandre, portanto, levou em consideração todos esses fatores que, de certo modo, 78 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre dificultavam e muito a conquista da fortaleza na montanha. Porém, mesmo diante dessas circunstâncias, Alexandre optou sim por conquistá-la: Aun con todos estos inconvenientes, Alejandro decidió el asalto a la fortaleza. Habían hecho los bárbaros declaraciones en extremo jactanciosas que habían provocado en Alejandro un vivo interés por alcanzar gloria en esta afanosa empresa. En efecto, en el transcurso de unas entrevistas mantenidas para procurar la salvación e retirada de los sitiados a cambio de abandonar el fuerte, éstos, en tono de burla, dijeron en su jerga bárbara a Alejandro que buscara soldados con alas, con los que talvez podría capturar la plaza, en la convicción de que ningún otro mortal podría hacerla suya. Ante esto, hizo proclamar Alejandro que para el primero que subiera habría una recompensa de doce talentos, para el segundo un segundo premio, otro para el tercero, y así sucesivamente hasta el último que subiera, que obtendría uno no menor de trescientos daricos. El efecto de esta proclama no hizo sino avivar aún más los ánimos de los macedonios, ávidos como ya estaban por escalar la roca.13 Arriano transmitiu a idéia de que Alexandre estava sim consciente de sua ação, pois sabia das dificuldades que enfrentaria ao tentar conquistar a Rocha Sogdiana. O que realmente teria motivado Alexandre a enfrentar o perigo foram as declarações bárbaras, demasiadamente presunçosas: eles teriam dito, em tom de chacota, que os macedônios precisariam encontrar “soldados com asas”, pois somente assim teriam condições de conquistar a praça – ato que nenhum outro mortal 79 André Luiz Leme conseguiria. Mas Alexandre, diante disso, compreendendo o aspecto moral da questão, encontrou uma estratégia de incentivo para vencer a dificuldade do momento: aqueles que escalassem a íngreme parede ganhariam, em termos da ordem de chegada, uma recompensa financeira. O ânimo, diante disso, aumentaria, bem como a possibilidade de conquista. Esse incentivo veio acompanhado de algumas recomendações por parte de Alexandre, as quais tornavam a escalada uma atitude viável: Se reunieron a propósito los hombres que ya en otros asedios habían adquirido práctica en escalar posiciones difíciles, unos trescientos aproximadamente. Se equiparon con unas pequeñas estacas de hierro, las mismas que se utilizan para fijar los vientos de las tiendas, y las fueron hincando en la nieve cuando ésta tenía suficiente consistencia, o en las calvas de roca que entre la nieve aparecían; las enlazaron luego con resistentes cordeles de lino, avanzando así durante toda la noche por la parte más abrupta de la roca, que era precisamente la menos vigilada. Clavando, como queda dicho, las estacas sobre la roca donde ésta se hacía visible, y la mayor parte de ellas sobre la nieve que resistía sin hacerse polvo, fueron ascendiendo uno tras otro por la roca. En la escalada perecieron unos treinta hombres cuyos cuerpos cayeron despeñados por distintos lugares, sin que fueran jamás localizados para darles sepultura. Sin embargo, los demás consiguieron culminar la ascensión del monte antes del amanecer. Desde allá arriba agitaron unas banderas para hacerse visibles al ejército macedonio, siguiendo con ello las instrucciones que Alejandro les diera. Envió entonces Alejandro un heraldo a las primeras filas de los bárbaros, no a conversar por más tiempo, sino a decirles que se rindieran, ya que él había conseguido 80 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre los hombres con alas que necesitaba (al propio tiempo el mensajero debía señalar a la cima del monte para que vieran que los macedonios tenían copada las alturas). Ante esto, los bárbaros quedaron estupefactos, no dando crédito a lo que sus ojos veían. Temiendo que los que ocupaban las alturas fueran más de los que en realidad eran y estuvieran perfectamente pertrechados, se entregaron sin ofrecer resistencia. Tal fue el miedo que sintieron a la vista de aquel reducido número de macedonios. Fueron hechos prisioneros mujeres y niños, y entre ellos la mujer e hijas de Oxiartes.14 Os mais experientes em matéria de sítio e escalada foram selecionados, pois era deles que se esperava a conquista da parede. Através do uso de estacas de ferro, iniciaram a escalada, mas não a partir de qualquer ponto – partiram do lado onde a vigilância era menor por parte dos bárbaros, sendo intencionalmente empreendida na escuridão da noite. Pela manhã, alguns já haviam conquistado a parede. Seguindo as instruções de Alexandre, assinalaram com o agitar de uma bandeira este feito. Os bárbaros, quando questionados pelo mensageiro de Alexandre sobre a rendição ou não deles, demonstraram-se surpresos pela atitude de conquista que presenciavam, como se Alexandre tivesse realmente conseguido os tais “soldados alados”. Frente ao temor que surgiu no momento, os bárbaros se entregaram sem oferecer resistência. Em suma, percebemos que esse momento da expedição de Alexandre provou novamente que o rei macedônio, mesmo 81 André Luiz Leme diante de certas dificuldades naturais, era plenamente capaz de obter a vitória, tendo em vista que os obstáculos foram vencidos pelo seu raciocínio e planejamento. Tendo em vista esses três momentos de análise no documento, verificamos que a narrativa de Arriano construiu em Alexandre um modelo de governante que possuía características singulares no comando. Quando o rei macedônio enfrentava obstáculos naturais em sua jornada, não contava com a sorte para superá-los: apoiava-se em seu amplo conhecimento e raciocínio para compreender cada circunstância atenuante, avaliando a melhor ação para garantir a inevitabilidade de seu sucesso. A partir dessas perspectivas, entrevemos o âmago da proposta teórica de Arriano: o governante deveria ser um homem preparado, possuindo uma formação adequada e experiência no campo da liderança. São, portanto, princípios que legitimam a posição de alguns e não de outros no governo. Isso posto, de que forma essa proposta teórica tornava-se inteligível na época de Arriano? Poderíamos dizer, no que se refere ao ambiente de poder do Império Romano de inícios do século II d.C., que tal pressuposto encontrava sua utilidade quando direcionada como elemento de reivindicação por parte do grupo senatorial15 em relação a escolha de quem seria o princeps. De fato, essa questão remonta aos constantes conflitos 82 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre entre o grupo senatorial e o princeps durante o primeiro século depois de Cristo: o Imperador era muitas vezes acusado de despótico e tirânico, ou seja, um homem que governava sem dar ouvidos à instituição que representava o Senado.16 Para os membros desse grupo, não bastava o personagem ter sido aclamado17 pelas legiões: era preciso estar em consonância com o pensamento deles, governando para o interesse deles. Os historiadores Engel e Palanque destacam três formas de ascensão ao principado que foram claramente rejeitadas pela opinião senatorial: Não se quer um imperador “imposto pelos soldados” e escolhido fora de Roma. Recusa-se o imperador surgidos das obscuras tramas de uma imperatriz que houvesse subjugado o esposo. Desconfia-se dos ambiciosos que tenham ou possam ter segundas intenções de abusar da monarquia.18 Nesse sentido, não seria qualquer um que poderia almejar tal posição no poder. Dentre aqueles que poderiam, estariam justamente e principalmente os senadores. Estes defendiam a prerrogativa da tradição política que representavam, ressaltando o critério teórico de uma formação especial que eles adquiriam, exemplificada no cursus honorum, e que lhes garantiam a experiência necessária para exercer uma boa liderança. Portanto, enquanto parte do universo mental do grupo senatorial, a proposta teórica que encontramos na obra de 83 André Luiz Leme Arriano vem no sentido de reforçar um demanda em relação ao poder: os mais bem preparados deveriam governar, sendo os legítimos detentores do poder para o bem de todos. No que se refere a tal perspectiva, não podemos deixar de entrever uma aproximação, em termos teóricos, para com certos aspectos do modelo de governo denominado basiléia. Segundo o historiador Renan Frighetto, esse modelo foi proposto “por pensadores gregos do século IV a.C., especialmente por Isócrates e Platão, em que os melhores e mais bem preparados cidadãos exerceriam as tarefas de governo em prol de toda a comunidade política”. 19 Domingo Plácido Suárez, em seu artigo Las formas del poder personal: la monarquia, la realeza y la tirania, reforça que tal perspectiva da basiléia esteve sim presente na caracterização do governo de Alexandre na Anábase de Alexandre Magno. Segundo ele, ao apresentar Alexandre como modelo de bom governante, Arriano teve por base uma forma de realeza tradicionalmente grega, ou seja, “heredera de la realeza antigua, la que se identifica con la aristocracia heróica, la βασιλεία homérica”.20 De fato, a teoria em torno desse modelo de governo pressupunha, visando o bem da comunidade política, que apenas os melhores e mais bem preparados homens – entenda-se, advindos de uma elite tradicional e aristocrática – é quem poderiam assumir posições 84 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre no governo com autoridade e boa liderança. Nesse sentido, o rei deveria ser exatamente o melhor dentre esses homens: o mais virtuoso e o de maior conhecimento. Ao mesmo tempo, ressaltamos também a intenção de resgate, por parte de Arriano, de toda uma tradição helenística que prezava, dentro de uma ideologia de realeza, pela excelência na educação daqueles que iriam governar – aspecto este que também foi personificado no personagem de Alexandre, como aponta Victor Alonso Troncoso em artigo intitulado La paidéia del príncipe y la ideología henelística de la realeza: […] junto a las imágenes del Alejandro conquistador, y explorador, y estadista, la historiografia helenística consagró asimismo la del rey bien educado, empezando por Marsias de Pela y Onesícrito de Astipalea, y en consecuencia también la del fomentador de la paideia a escala de la nueva ecúmeno grego-oriental.21 Portanto, a contraposição passado/presente que a Anábase de Alexandre Magno projeta no tempo de Arriano constrói e fortalece uma idéia de continuidade entre uma herança helenística e romana. 22 Ao servir de exemplum, o modelo de governo de Alexandre estabelecia preceitos teóricos inteligíveis ao universo senatorial e à tradição que esse grupo representava, os quais podemos entender enquanto demandas 85 André Luiz Leme em relação ao poder no que se refere ao panorama político do Império Romano de inícios do século II d.C. Notas de Referência * 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 86 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), orientado pelo Professor Doutor Renan Frighetto. Contato: [email protected] Nascido em Nicomédia, na província romana da Bítinia-Ponto, era membro de uma importante família da aristocracia local. Cidadão romano, seguiu o cursus honorum senatorial, tornando-se cônsul em 129 d.C. e chegando à posição, no ano de 131/32 d.C., de legatus Augusti pro praetore na província da Capadócia. Dentre suas obras, encontramos escritos de cunho historiográfico (Bithyniaca, Partthica, To meta Alexandron), filosófico (Diatribai, Encheiridion) e militar (Periplous Euxeinou Pontou, Techne taktike, Ektaxis kata Alanon). TUCIDIDES. Historia de la guerra del Peloponeso: libros I – II. Trad. Juan José Torres Esbarranch. Madrid : Gredos, 1990, pp. 164-166. POLÍBIO. Historias: livros V-XV. Trad.de M. B. Recort. Madrid: Gredos, 1981, p.503. ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Tradução de Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 117. ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Tradução de Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 255. ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Tradução de Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 122. Idem, p. 127. Idem, pp. 127-128. Idem, p.128. Idem, p. 129. Idem, p. 129 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Tradução de Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, pp. 48-49. Idem, pp. 49-50. Idem, pp. 50-51. Segundo P. Stadter, “A book like the Anabasis was addressed to the elite of the Roman Empire – those administrators, senators, officers, and Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Modelo Político de Alexandre 16 17 18 19 20 21 22 intellectuals who could appreciate the restrained classicism of his style, the careful reconstruction of military operations, the interest in Alexander’s moral development. […] the intended audience […] is much more knowledgeable and refined”. In: STADTER, P. A. Arrian of Nicomedia. Chapel Hill, 1980, p.168. Verificamos aqui a influencia do estoicismo, corrente de pensamento ético e filosófica predominante no grupo senatorial, em relação à construção dessa crítica, tal como aponta a seguinte afirmação de Rostovtzeff: “O governante, príncipe ou rei, não era um senhor, segundo o ensinamento estóico, mas um servo da humanidade e devia trabalhar para o bem de todos, e não em prol de seus interesses próprios e de sua manutenção no poder”. In: ROSTOVTZEFF, Michael Ivanovich. História de Roma. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p.205. Segundo Frighetto, “ao fim e ao cabo o poder imperial estava associado ao efetivo controle do mando militar através de um dos mais importantes e significativos símbolos da auctoritas do princeps, a aclamatio imperii, aclamação das forças legionárias sem a qual nenhum pretendente ao poder supremo, que traduzimos por império, poderia manter-se”. FRIGHETTO, Renan. “Imperium et orbis: conceitos e definições com base nas fontes tardo-antigas ocidentais (séculos IV-VII)”. In: Andréa Doré; Luís Filipe Silvério Lima; Luiz Geraldo Silva. (Org.). Facetas do Império na História: Conceitos e métodos. 1ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, vol.1, p.159, 2008. ENGEL, J. M.; PALANQUE, J. R. O Império Romano. São Paulo: Atlas, 1978, p.71. FRIGHETTO, Renan. “Imperium et orbis: conceitos e definições com base nas fontes tardo-antigas ocidentais (séculos IV-VII)”. In: Andréa Doré; Luís Filipe Silvério Lima; Luiz Geraldo Silva. (Org.). Facetas do Império na História: Conceitos e métodos. 1ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, vol. 1, p.149, 2008. PLÁCIDO, D. “Las formas del poder personal: la monarquía, la realeza e la tiranía”. Geríon, Madrid, v.25, n.1, p. 153, 2007. ALONSO TRONCOSO, V. “La paideia del príncipe y la ideología helenística de la realeza”. Gerión, Madrid, v.23, n.9, p. 200, 2005. Segundo a historiadora Maria José Hidalgo de La Vega, “La fundación de este Imperio como régimen político, en algunos aspectos, pretendía ser el heredero del imperio alejandrino y continuador de su programa civilizador y conquistador”. In: HIDALGO DE LA VEGA, María José. 87 André Luiz Leme “Algunas reflexiones sobre los límites del oikoumene en el Imperio Romano”. Gerión, Madrid, v.23, n.1. p. 275, 2005. 88 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira: um exemplo de biografia moderna em terras brasileiras Andréa Camila de Faria A escrita biográfica não se apresentou sob um modelo contínuo ao longo da história e suas variações dialogam, embora não coincidam, com as variações na história da escrita da História. O processo de laicização interferiu na forma de conceber a natureza humana, interferindo desta forma na maneira de escrever as ações humanas. Nesse sentido, os debates contemporâneos sobre a escrita biográfica contribuíram para o desenvolvimento de uma história do gênero, caminho percorrido, por exemplo, por Daniel Madelénat 1. Para o autor, dizer que algo tem uma história significa relacioná-lo a uma tradição, nesse caso, uma tradição vinda da cultura escrita do ocidente europeu, cujas heranças e desdobramentos estão ligados aos valores e práticas do mundo clássico, ou seja, da Antiguidade Greco-Romana. Ao dizer isso Madelénat estabelece uma tradição, mas também determina a historicidade da escrita da vida individual, criando uma chave de leitura através da periodização da escrita biográfica segundo três paradigmas, a saber: o paradigma clássico, que perduraria da Andréa Camila de Faria Antiguidade ao século XVIII; o paradigma romântico, em vigor na virada do século XVIII para o XIX; e o paradigma moderno, iniciado no século XIX e consolidado no XX. Pensando nessa renovação do biográfico ocorrida no século XX, Aguirre Rojas nos aponta que dentro do âmbito da chamada história innovadora desenvolvida no período, o gênero biográfico não gozava de muito prestígio, o que se dava pelo fato de as historiografias renovadoras da Europa Ocidental procurarem se afirmar em uma oposição direta à chamada historiografia positivista, dominante entre o final do século XIX e o início do XX. Oposição essa que levou a uma valorização dos processos coletivos em detrimento dos grandes homens, mas que isso, na esfera exterior a da historiografia não significou, de maneira alguma, que o gênero tivesse caído em desuso. Rojas ressalta também que se a biografia tem como tarefa reconstruir a vida de um indivíduo, é preciso que se compreenda antes o que é um indivíduo, e nesse ponto ele, citando Marx, nos lembra “que el individuo y la individualidad no son un punto de partida de la historia, sino por el contrario, más bien un resultado creado por ella”2. E nesse sentido ele afirma não ser possível construir uma biografia adequada sem se conhecer os níveis de progresso da individuação que os sujeitos conquistaram na curva evolutiva das civilizações humanas. 90 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira Essa ressalva de Rojas atenta para o cuidado para que a biografia não caia numa tentação de normalizar a vida do biografado, pois segundo ele, quando se conhece um determinado percurso biográfico tende-se a introduzir nele seu resultado desde sua origem. Mas atribuir naturalidade ao desenvolvimento individual de um sujeito não é ou era exclusividade dos biógrafos, Gonçalves Dias (1823-1864), o sujeito da biografia que será analisada aqui, queixava-se deste fato nos seguintes termos: “para os outros é muito natural: é muito natural que eu indo a Coimbra seja Bacharel, que eu sendo brasileiro esteja no Rio de Janeiro, e que enfim eu faça versos tendo nascido poeta: ó santa natureza!”3. Nosso objetivo aqui é, então, não apenas problematizar uma natureza de Gonçalves Dias, mas principalmente pensar a imagem que dele foi construída por Lúcia Miguel Pereira em obra publicada em 1943 e que é hoje a biografia mais conhecida do poeta, sendo também aquela em que a autora pôde contar com maior vastidão documental, possuindo assim a marca das biografias modernas e estando sua produção inserida no chamado boom biográfico ocorrido em solo brasileiro na primeira metade do século XX. Marcia Gonçalves, em seu estudo sobre a obra de Otávio Tarquínio de Sousa, comenta que entre finais da década de 1920 91 Andréa Camila de Faria e os anos de 1930 e 1940 houve uma epidemia biográfica associada a uma renovação da biografia, levando alguns a teorizarem sobre a emergência, em terras brasileiras, da chamada biografia moderna 4. De acordo com seus argumentos, na metade inicial do século XX “a escrita de biografias passou a usufruir de significados e usos alargados entre os intelectuais, letrados, empreendedores do mundo dos livros e seus respectivos leitores” 5. Ela nos aponta que esse processo não configurava apenas uma renovação do biográfico, era também uma renovação da própria história, um novo entendimento e a busca pela renovação da escrita da história nacional. Em suas palavras: Se a história, enquanto conhecimento disciplinar era, por excelência, um instrumento basilar na edificação da identidade nacional, a discussão de como ela deveria ser escrita, e de que sujeitos deveriam protagonizá-la – os indivíduos, os grupos, ou as forças sociais –, acabava por cruzar com o debate sobre quem de fato construía ou havia construído a nação. Nesse cruzamento tenso, o lugar do texto biográfico era buscado e, por vezes, entendido como a panacéia que poderia resolver tantos impasses.6 Longe de pretender tratar a fundo destas questões aqui, o que buscamos é situar que a obra de Lúcia Miguel Pereira sobre Gonçalves Dias encontra-se inserida neste contexto, até porque Lúcia foi uma das que esteve envolvida nos debates sobre essa 92 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira renovação da história e da biografia, chegando a afirmar que a biografia seria o melhor meio de se fazer história, pois era o único meio “capaz de fazer com que os brasileiros se interessassem pelas grandes figuras da terra”7, atribuindo assim ao gênero um caráter pedagógico que ainda que distinto daquele empregado pelos biógrafos do século XIX não deixava de se pautar em certo tipo de exemplaridade. Lúcia Miguel Pereira nasceu em Barbacena (MG) em 12 de dezembro de 1901, e mudou-se ainda menina para o Rio de Janeiro, realizando seus estudos no Colégio Notre Dame de Sion. Segundo Marcia Gonçalves, suas amizades com Alceu Amoroso Lima e com o grupo católico organizado em torno do Centro Dom Vital interferiram em sua estréia no mundo das letras com a atuação na Revista Elo em 1927-19298. Mais reconhecida por sua atuação como crítica literária em periódicos como a Gazeta de Notícias, o Boletim Ariel e o Correio da Manhã, Lúcia foi também autora de romances – entre eles Amanhecer (1938) e Cabra-cega (1954) – e de livros infantojuvenis como A fada menina (1939) e A floresta mágica (1943). Entretanto, nesse estudo, daremos enfoque a sua atuação enquanto biógrafa. Em 1936 Lúcia lança Machado de Assis: estudo crítico e biográfico9, onde apresenta ao leitor um novo tipo de biografia, 93 Andréa Camila de Faria uma biografia onde a narrativa é conduzida por uma busca da autora em “fazer viver” e ao mesmo tempo compreender o seu biografado, nesse caso específico, através das “pistas” deixadas por Machado em sua obra. Quem está em cena neste sentido não é o sujeito pré-condicionado a algo e sim o sujeito humano fragmentário, com todas as suas dúvidas e inquietações; era assim, uma busca por apresentar o biografado no máximo de sua condição humana10. Após percorrer este caminho na busca por um entendimento de Machado de Assis, Lúcia decide-se então por (re)conhecer Gonçalves Dias, e é esse o ponto que nos interessa aqui. A vida de Gonçalves Dias11 é publicado em 1943 pela editora José Olympio como volume integrante da Coleção Documentos Brasileiros, dirigida então por Otávio Tarquínio de Sousa, também biógrafo (autor das biografias dos Fundadores do Império do Brasil) e marido de Lúcia. No prefácio ao livro, escrito em dezembro de 1941, Lúcia justifica a obra dizendo que já acalentava o projeto há cinco anos, pois depois de escrever sobre Machado de Assis ficara tentada a “estudar o nosso primeiro grande poeta depois do nosso maior romancista, de unir de algum modo esses dois mestiços admiráveis”12, deixando claro assim, logo no início, que seguiria uma abordagem onde a 94 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira questão da raça seria crucial em sua interpretação de Gonçalves Dias, como o fora em Machado. Tento consultado não só o arquivo de Antonio Henriques 13 Leal , que havia sido recém doado por seu filho, o general Alexandre Leal, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), como o arquivo pessoal de Nogueira da Silva, este último constituindo-se, segundo ela, em mais do que um arquivo de raro valor, mas em um ambiente de culto a Gonçalves Dias14, ela deixa claro que foi sua intenção, desde o início, citar a maior parte dos documentos a que teve acesso, ainda que isso tornasse “pesado” o livro e por vezes quebrasse a unidade da narrativa. Procedeu assim por entender que era o mais correto e até mais honesto, deixando “sempre que possível, falar o próprio Gonçalves Dias”15. Lúcia afirma ainda que apenas na transcrição do Diário do Rio Negro – texto inédito, resultado da viagem de Gonçalves Dias ao Amazonas, quando da sua participação na Comissão Científica de Exploração e que é apresentado por ela em apêndice à biografia – adotou o critério de resumir16. Já no caso do diário da última viagem à Europa, transcrito no Pantheon Maranhense17, e que segundo ela, se resumido perderia muito do valor causado pelas emoções descritas no relato, optou por apresentá-lo na integra em meio à narrativa. Das cartas diz que 95 Andréa Camila de Faria aproveitou o máximo possível embora, pelo fato de serem numerosas não pudessem ser reproduzidas integralmente. Dessa forma, ela diz que com tantas citações, perdeu certamente o livro aquela coesão estrutural das biografias bem delineadas, mas Gonçalves Dias ficou mais em valor, dominando – e até acachapando, se quiserem – a obra que lhe é consagrada18. Vemos assim ela expor o seu entendimento de qual seria o melhor modelo de biografia, fundamentalmente estruturada em base documental – tal como a história –, deixando o biografado “falar”. Entendimento esse pautado em certo modelo da chamada biografia moderna que segundo Marcia Gonçalves, ao recuperar os critérios defendidos por André Maurois, deveria entender o biografado como “uma verdade a ser construída a partir de um método de investigação pautado no abandono de quaisquer idéias preconcebidas e no levantamento de toda a documentação disponível”19. Nesse tipo de biografia, o biografo deveria ainda utilizar-se da estética do romance para sensibilizar o leitor e “fazer viver” o biografado, mas sem cair no mero elogio dos panegíricos comuns no século XIX. Lúcia entendia que a biografia era o melhor meio de se fazer história e para Marcia Gonçalves, dentro destes desdobramentos da biografia renovada existiria um redimensionamento dos valores da identidade nacional, onde a 96 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira biografia, enquanto “melhor forma de se fazer história” deveria também edificar a fisionomia nacional20. Parece-nos então que Lúcia com suas duas biografias – Machado de Assis e Gonçalves Dias – tinha a intenção de ressaltar a característica mestiça do país, apresentando-nos dois “mestiços admiráveis” para ao mesmo tempo demarcar a singularidade da nação, no que diz respeito ao povo que a constitui e as particularidades destes notáveis, que como indivíduos e brasileiros são apresentados com todas as incompletudes e dilemas do ser humano, aumentando assim o grau de identificação do leitor. No caso particular de Gonçalves Dias, Lúcia desenvolve a chave do homem de meia cor e meia classe, para caracterizar o homem filho de pai português e mãe de origem indefinida (não se sabe se índia ou cafuza), fruto de relação ilegítima e por tudo ou, além disso, sem posição social definida. É com essa chave que ela vai tentar compreender o “estado d’alma” de Gonçalves Dias, de buscar conhecer, ao máximo, sua personalidade, apresentando ao leitor muito mais o homem, em sua condição de sujeito fragmentário, do que a obra ou o gênio transcendente, empreendendo uma biografia psicologizante com certa 21 inspiração de autores como Lytton Stranchey . Nesse caminho, Lúcia percorre a vida de Gonçalves Dias do nascimento à morte, começando por ressaltar a importância 97 Andréa Camila de Faria de sua origem ao falar tanto da nota autobiográfica escrita pelo poeta a pedido de Ferdinand Denis, onde ele relaciona seu nascimento ao “nascimento” de sua pátria e que ela usa como ponto inicial de sua narrativa, quanto da natureza que o cercou na primeira infância e do sofrimento a se ver afastado da mãe ainda menino, quando seu pai, João Manuel, “despede-se” de Vicência (a mãe do poeta) para casar-se com D. Adelaide (a madrasta). Construindo uma narrativa repleta de referencias pessoais de Gonçalves Dias, seu cuidado é em tentar ao máximo expor o biografado em seu íntimo, com suas dores, angustias, sofrimentos, alegrias e esperanças. Assim, ao falar da partida de Gonçalves Dias para Coimbra, para onde ia com o fim de dar prosseguimento aos estudos, ela diz que Ia cumprir o seu destino intelectual, fugindo ao estreito meio em que nascera... e ia também cumprir seu destino de sofredor, enfrentando sozinho a vida, devendo à generosidade alheia o pão que comia, as roupas que vestia, os livros em que estudava, o jovem Gonçalves Dias, possuidor de seis moleques, de um apaixonado e sofredor temperamento poético, de uma lúcida, positiva inteligência, e de uma imensa, invencível ambição.22 Sua interpretação de Gonçalves Dias é profundamente marcada pelos estudos de Gilberto Freire, principalmente no que diz respeito às questões sociais e de raça. Baseia-se nele 98 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira inclusive para analisar a obra do poeta, chegando a afirmar que “seu indianismo teria de fato o caráter de reação contra a superioridade do branco que o sociólogo do Recife denuncia no romantismo brasileiro”23. Seguindo este caminho, Lúcia estabelece ainda a interpretação de que em sua condição mestiça, Gonçalves Dias identificava-se muito mais aos índios ou mesmo aos negros (cuja “influência” em sua origem não é confirmada) do que ao português, cujo sangue, segundo ela, ele desprezava. É com base nesses critérios que ela analisa, por exemplo, O canto do índio, poema de Gonçalves Dias datado de 15 de março de 1845 e que para ela é chave também para interpretar suas impressões ao retornar a Caxias (no Maranhão) depois dos anos de estudo em Portugal24. Nestes versos Gonçalves Dias canta a paixão de um índio por uma mulher branca que ele vira banhando-se em um rio. Para Lúcia, que o interpreta como único documento deixado sobre este retorno a sua terra natal, Não é pois impossível que este tivesse uma origem real, que uma bela banhista descuidada houvesse sido percebida pelo poeta; a indicação do momento em que a viu, o por do sol, não parece apenas fruto de imaginação. E nada mais natural do que deixar-se o poeta, tão sensível aos encantos femininos, empolgar pela visão, e em torno dela tecer todo um poema de amor. O que é estranho, interessante, talvez sintomático, é ter sentido essa mulher branca como se fora um índio. Teria sido o filho de 99 Andréa Camila de Faria Vicência dominado pelo sangue indígena ao pisar na terra de seus avós? Ter-se-ia sentido índio o moço mestiço, a despeito da cultura coimbrã e do canudo de bacharel? Essa viagem, essa navegação solitária pelo rio que cortava a bravia terra maranhense, ainda tão povoada de índios era uma tomada de contacto com tanta coisa esquecida, uma volta ao passado, ao próximo passado da infância, ao longínquo passado da raça. E Gonçalves Dias, subindo o rio numa piroga, reagiu como índio às impressões que o assaltavam.25 A biógrafa também tenta encontrar explicações para a tristeza e melancolia infindável do poeta. Sentimentos que transparecem em suas cartas, poemas, diários... e que em seu entender era marca indelével de sua personalidade romântica, tomando por romântico, efetivamente a sua vinculação ao movimento literário do qual hoje é símbolo no que diz respeito à poesia brasileira, marcadamente em sua vertente indianista. Encontra ainda outro motivo, segundo ela condicionado pela reunião de todos os outros fatores – dos preconceitos românticos, da insatisfação de mestiço, da instabilidade social e da saúde precária – e que o marcaria profunda e definitivamente: a incapacidade de fixar amor em contraste com uma necessidade vital de afeto, de constância na amizade e um profundo horror a solidão. Novamente em uma interpretação psicológica Lúcia aponta nesse sentido que 100 Muito sensível à sedução feminina, Gonçalves Dias correu a vida toda atrás de uma mulher ideal, só Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira tendo sido fiel ao amor que não realizou26– talvez justamente porque o não tenha realizado.27 Notamos assim as particularidades da biografia feita por Lúcia Miguel Pereira. Sintoma de uma época, como o foram também todas as outras biografias do poeta, e como o é todo tipo de escrito, seja ele histórico, biográfico ou literário, ela é ainda importante por reunir em si como fonte e bibliografia as narrativas escritas por Bulhão Pato, Antonio Henriques Leal e Joaquim Manuel de Macedo, além de tantas outras. Nela percebemos o trabalho minucioso de alguém que buscava a excelência na escrita da história e da biografia, chegando a afirmar que (...) a pesquisa não basta; sem a sensibilidade para poder se pôr no lugar dos homens do passado, para compreendermos a situação, sem espírito de crítica e de síntese para apreender o sentido dos acontecimentos, o ensaio histórico não passará de relatório. Afinal, escrever história, e sobretudo escrevê-la em forma de biografia, pondo em primeiro plano um homem, é uma forma de criação.28 Nas palavras de Marcia Gonçalves, Lúcia Miguel Pereira, como escritora e crítica “sublinhava as interfaces da biografia com a literatura e dessa, por sua vez, com o imaginário nacional” 29, ação que sem dúvida estava de acordo com o movimento da chamada biografia moderna, que uma vez 101 Andréa Camila de Faria “humanizando” seus personagens, serviria de estratégia para a renovação da escrita da história nacional30. Nesse sentido, parece-nos sintomático que ao escolher aqueles que iria biografar, Lúcia não tenha se detido aos nomes do cenário político e militar, ao contrário, tenha voltado-se não só para o mundo das letras, mas principalmente para “dois mestiços admiráveis”, para dois homens que em suas vidas enfrentaram dificuldades de todas as ordens e ainda assim conseguiram construir através de suas obras um nome que era e é reconhecido dentro e fora de seu país. Se considerarmos que como aponta Márcia Gonçalves, no entender dos intelectuais do início do século XX, as biografias, uma vez que desenhassem as contradições de uma vida individual, em suas mediações sociais e culturais, cumpriam um papel de redescobrimento do homem e do Brasil31, podemos entender que Lúcia parecia caminhar no sentido de apresentar ao Brasil os brasileiros, através de dois nomes notáveis sim, mas de notáveis que tinham a particularidade de provirem de origem humilde e que expostos em todas as suas incompletudes, fragilidades e desafios superados, serviriam para conquistar o leitor pela semelhança, cumprindo assim a função que ela mesma havia atribuído à 102 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira biografia, que era a de fazer com que os brasileiros se interessassem pela história. Para Luís Viana Filho, a chamada biografia moderna tinha a finalidade de nos proporcionar, em traços vivos e claros, o retrato de um homem considerado sob todos os seus aspectos e nela tanto interessariam as questões históricas que estivessem ligadas ao biografado, quanto os simples atos de sua vida, desde que estes fornecessem elementos necessários ao conhecimento da individualidade do personagem. Para ele, na busca por esses elementos, a biografia lançaria mão da história, da crítica e da psicologia, mas sem se subordinar a nenhuma delas, pois encontraria fim em si mesma, na busca por oferecer-nos uma visão de conjunto de uma vida considerada em sua totalidade 32. Foi esse então o método utilizado por Lúcia para escrever A vida de Gonçalves Dias. Lançando questões a si própria e ao leitor a medida que ia descrevendo as passagens da vida do poeta, Lúcia utilizava-se da psicologia para fundamentar suas interpretações e argumentos sobre as ações de Gonçalves Dias, construindo uma narrativa onde a indagação, a dúvida, o talvez, adquirem grande valor, principalmente ao levar o leitor a se sensibilizar com o biografado. É esse, por exemplo, o recurso utilizado por ela ao narrar o naufrágio do Ville de Boulogne no qual o poeta vem a falecer em 1864, comentando já na 103 Andréa Camila de Faria penúltima página que “Talvez houvesse palmeiras no trecho da costa que avistou, talvez ao menos isso – apenas isso – lhe haja concedido o destino”33, para finalizar sua biografia com as seguintes palavras: Teria o espírito intrépido conservado a lucidez? Teria Gonçalves Dias morrido como desejava, como tantas vezes pedira, com o nome de Teófilo e da Amada nos lábios? Não lhes pôde legar o último sorriso, e sua última lágrima, como desejara – mas, se estava em si, legou-lhes certamente o seu último pensamento. Teófilo e Ana Amélia, a amizade e o amor, eram o que de melhor lhe dera a vida. Amando e sofrendo cumprira o seu destino de homem e de poeta.34 Lúcia usou assim das melhores técnicas do romance para tornar envolvente a narrativa, usou a psicologia para tentar desvendar os “estados d’alma” de Gonçalves Dias e a história, para mostrar como este letrado esteve inserido nos processos de construção e consolidação da identidade nacional. Em sua narrativa ela conseguiu ao mesmo tempo o que se espera da história, ao dar voz ao poeta através de seus documentos, e o que se espera da literatura, ao abrir espaço para sua criação literária indagando-se sobre seus sentimentos. Assim, Lúcia fez de sua biografia de Gonçalves Dias aquilo que ela almejava, uma forma de criação. 104 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira Notas de Referência 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Professora Doutora Márcia de Almeida Gonçalves. Contato: [email protected] MADELÉNAT, Daniel. La biographie. Paris. PUF, 1984. IDEM. Pág. 16. Grifo no original. DIAS, Gonçalves. Carta n° 43 a Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, de 11 [13] e setembro de 1847. In: ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL. Correspondência Ativa de Gonçalves Dias. Vol. 84. Rio de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação, [1964] 1971. Pág. 91. Grifo nosso. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço: biografia e história na obra de Otávio Tarquínio de Sousa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. Pág. 97. IDEM, Pág. 103. IDEM, Pág. 128. PEREIRA, Lúcia Miguel. Apud GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Pág. 125. GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre, nevropata: biografia e modernidade no Machado de Assis de Lúcia Miguel Pereira”. In: GOMES, Angela de Castro e SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). Memória e narrativas (auto)biográficas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. Pág. 192. PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. 6. Ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1888. Para maiores informações sobre o Machado de Assis de Lúcia Miguel Pereira ver: GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre, nevropata”. Op. Cit. PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943. IDEM. Pág. 05. Amigo de Gonçalves Dias e autor do Pantheon Maranhense, obra onde se encontra a primeira biografia do poeta. PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 06. IDEM. Pág. 7. Vale ressaltar que Lúcia não foi simplesmente a responsável por levar a conhecimento público este material, foi também a responsável por transcrevê-lo do manuscrito original, escrito a lápis por Gonçalves Dias e em condições que tornam sua leitura um verdadeiro exercício de decifração. 105 Andréa Camila de Faria 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 106 LEAL, Antônio Henriques. Pantheon Maranhense: ensaios biográficos dos maranhenses ilustres já falecidos. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1987. 2ª edição. Tomo 2. PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 07. GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre, nevropata”. Op. Cit.Pág. 201. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Pág. 132. Lytton Stranchey (1880-1923) tornou-se nome emblemático na Inglaterra ao escrever biografias onde os homens e mulheres desciam de seus panteões para personificarem a grandeza e a miséria de suas condições humanas, como em Eminent Victorians, publicado em 1918. Sua casa foi um dos pontos de encontro do grupo de Bloomsbury, nome de um bairro de Londres e que passou a designar um grupo de amigos que, compondo um círculo de escritores, intelectuais e artistas, do qual participavam Leonar e Virginia Woolf, Arthur Waley, Clive e Vanessa Bell, entre outros. Cf. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Págs. 157-158. PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 31. IDEM. Pág. 110. Gonçalves Dias chegou a Portugal em outubro de 1838 e lá permaneceu até fevereiro de 1845. IDEM. Pág. 56. Lúcia refere-se aqui a Ana Amélia Ferreira do Vale, prima e cunhada Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, melhor amigo do poeta, e por quem ele se apaixonou, mas cujo pedido de casamento feito por ele a mãe da jovem foi recusado, ao que parece, por ser ele um mestiço de origem ilegítima. IDEM. Pág. 110. PEREIRA, Lúcia Miguel. Apud. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Pág. 124. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Pág. 128. IDEM. Pág. 128. IDEM. Pág. 131. VIANNA FILHO, Luis. Apud. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Pág. 196. PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 380. IDEM. Pág. 381. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos: O Saber como Poder na Bahia Setecentista Bruno Casseb Pessoti As mercês e a relativização das razões fundadoras Nas sociedades do Antigo Regime, as relações de poder estavam intimamente associadas a um sistema de trocas alimentado por uma cadeia de obrigações calcada na tríade dar, receber, retribuir, equação que envolvia a comunhão das noções de generosidade e obrigação.1 Luciana Gandelman afirma que os monarcas eram instados “a gastar para além das capacidades de suas fazendas” o que teria como contrapartida a manutenção e a consolidação de um poder que “derivava justamente da capacidade de conceder dádivas e angariar, por meio destas, gratidão e obrigação.”2 Ainda que tudo o que os súditos recebessem do rei fosse considerado fruto da benevolência e do amor paterno demonstrados pelo monarca, havia uma avaliação dos serviços prestados pelos vassalos, na qual a relação serviços/mercês seria mensurada e o resultado final dependia inteiramente da vontade do soberano.3 Aos vassalos restava esperar que o valor dos serviços oferecidos fosse reconhecido e, conseqüentemente, considerado merecedor de mercês a serem contempladas pela benevolência régia. Há que se considerar que Bruno Casseb Pessoti aqueles que reivindicavam, assim procediam, por acreditarem ter feito jus a alguma recompensa pelas ações realizadas em nome da grandeza e dos interesses da coroa a que serviam. Na América portuguesa vigorava uma realidade na qual o que realmente contava para a elite colonial era “o processo de nobilitação e não, como em Portugal, a reprodução social da nobreza.”4 Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, o ato de nobilitar era uma moeda de troca interessante aos monarcas do Antigo Regime, pois através dela objetivos eram alcançados de uma forma que não acarretava grandes despesas à Fazenda Real já que os “vassalos se contentavam com honras e privilégios inerentes à condição de nobre.”5 No Brasil, durante o período colonial, a nobilitação que surgiu atrelada aos feitos militares de expulsão de estrangeiros e apropriação do território em nome da Coroa, foi gradativamente estendida e passou a ser utilizada “para incentivar a busca e a extração do ouro, para solidificar o corpo mercantil e aumentar as transações comerciais, e para compensar aqueles que ajudavam financeiramente os reis nas ocasiões de crise.” 6 Nesse sentido, o consulado pombalino aparece como tempo de mudanças importantes, período em que diversas medidas foram tomadas no sentido de facilitar a mobilidade social. Foi no reinado de D. José I, por exemplo, que os homens ligados ao 108 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos comércio tiveram seu estatuto modificado. Pombal concedeu aos comerciantes os direitos de nobreza estabelecendo, nos estatutos das companhias de comércio, que a nobilitação poderia ser utilizada como atrativo para incentivar os investimentos.7 Nizza da Silva assevera que “a legislação Josefina marca sem dúvida uma ruptura ao permitir que as elites mercantis das principais praças (Bahia e Rio de Janeiro) tivessem acesso a mercês honoríficas concedidas pelo monarca.”8 A Academia dos Renascidos surgiu em um momento histórico em que certas peias que entravavam as possibilidades de ascensão social e de acesso a cargos nobiliárquicos estavam sendo paulatinamente eliminadas. Crescia, assim, o número de súditos que poderiam almejar novas posições na hierarquia social, ao passo em que aumentava a quantidade de oportunidades em que serviços e préstimos oferecidos pelos vassalos poderiam gerar a requisição de mercês e recompensas. Do estatuto renascido pode-se inferir que os acadêmicos nutriam a expectativa de serem agraciados com benesses decorrentes dos préstimos que a Academia ofereceria ao rei. A produção erudita era uma atividade subsidiária de outras funções que os membros desempenhavam no corpo administrativo ou na hierarquia eclesiástica colonial e nenhum dos sócios se dedicava exclusivamente aos trabalhos acadêmicos 109 Bruno Casseb Pessoti o que faria da produção intelectual renascida, um novo elemento que poderia vir a aumentar a folha de serviços prestados ao rei. Ronald Raminelli afirma que nas sociedades do Antigo Regime, as redes de informação se inseriam na lógica hierárquica que retroalimentava a procura por privilégios e distinção e que “como qualquer serviço prestado à realeza, o conhecimento era parte de uma troca, de um negócio entre o rei e seus súditos.”9 Os membros da Academia estavam dispostos a mostrar que os seus trabalhos intelectuais poderiam figurar na economia das trocas como serviços diretamente relacionados aos interesses da monarquia e, como tais, passíveis de serem convertidos em elemento de barganha e solicitação de mercês. Sintomático que durante a segunda reunião da Academia dos Renascidos, após a leitura dos estatutos, foi apresentada, pelo diretor da academia, uma carta encontrada por um sócio supranumerário na qual o rei, D. Pedro II, concedia a Diogo Gomes Carneiro o cargo de cronista-mor do Brasil. Na ocasião da leitura da carta foram enaltecidos o estipêndio que lhe caberia e as instituições que deveriam prover a quantia. 10 A apresentação desse documento trazia à tona a idéia de que o trabalho que os acadêmicos se propunham a fazer – agora em caráter coletivo – que em alguma medida poderia ser associado àquele desempenhado 110 pelos cronistas, era digno de honrarias Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos pecuniárias. A produção intelectual, certamente, poderia ser considerada como uma modalidade que complementava “as praxes e os usos do pedir.” 11 A academia, nesse caso, se apresentaria como um centro no qual esforços de um tipo específico seriam feitos em nome da glória e dos interesses da Coroa portuguesa, tendo como fim a busca por prestígio e favorecimento.12 Para o dia da inauguração oficial do grêmio, que foi, de fato, a terceira reunião, os temas escolhidos para as dissertações foram devotados ao monarca D. José I. Não apenas a reunião fora marcada para o dia de seu aniversário – 6 de junho – como todos os trabalhos convergiram para homenageálo. Assim, foram apresentados poemas líricos e versos heróicos em honra ao rei13 e com as dissertações não foi diferente. Dissertou-se sobre Qual he a mayor gloria para o nosso monarcha, contar os seus felicissimos annos depois do terremoto e geral perigo de 1º de novembro de 1755, ou contar depois do sucesso de 3 de setembro do anno passado de 1758? Discorrendo-se em qualquer destes horrorosos acontecimentos se mostrou a Providencia Divina, mais empenhada em conservar a preciosa vida do nosso Fidelissimo Rey e Pay da Patria.14 Houve ainda uma dissertação dedicada a responder a questão sobre o que seria mais glorioso para o rei, ser celebrado em Lisboa ou na Bahia, 15 bem como uma que propunha a comparação entre D. José I e o rei-sol francês, Luiz XIV.16 A 111 Bruno Casseb Pessoti última dissertação do dia versou sobre “o grande affecto d‟El Rey Nosso Senhor, ás Sciencias e Bellas Lettras.” 17 Esse trabalho, especificamente, exige uma atenção mais pormenorizada. Nesse caso, para facilitar a diligência dos discursos, ou mesmo para incentivar os tópicos a serem contemplados, foi distribuída uma advertência a todos os acadêmicos. Ela prenunciava: Que entre muitas outras provas, se mostra que S. M. Fidelissima favorece tanto ás sciencias, que carecendo todas da sua real attenção para as innumeraveis providencias determinadas pelo tremendissimo terremoto de 1º de novembro de 1755, o não embaraçaram estas, para ordenar tambem pouco depois do mesmo terremoto, que a Academia Real da Historia Portugueza, concorresse em corpo de tribunal, ao paço, mandando que para isso tivesse carta de aviso em todas as funções, e que continuasse as suas litterarias conferencias em uma de suas casas reaes do campo de Belém, assistindo o dito senhor a muitas, pessoalmente, para por este modo, restaurar com as obras d‟aquelles sabios academicos, as memorias que se extinguiram no incendio e mostrar o quanto são uteis e estimaveis estes illustres Corpos litterarios, concorrendo igualmente, para que o pontifice estabelecesse rendas á academia Litúrgica, composta dos mais illustres sabios do Reino, sem embargo de que esta Academia não é Real.18 Optamos pela reprodução da advertência completa, pois acreditamos que se trata de um documento que consegue evidenciar com bastante propriedade o espírito de algumas das 112 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos aspirações da Academia dos Renascidos. Aqui, tentou-se conjugar a glória do monarca e os interesses dos acadêmicos. Mesmo por que, a celebração do rei era um dos caminhos para que se tivesse acesso à materialização desses interesses. Em uma dissertação sobre os incentivos régios às ciências e letras os renascidos fizeram uma referência à Academia Real da História, centro do qual os acadêmicos brasílicos haviam emprestado a sua base estatutária e boa parte dos objetivos. A escolha da academia histórica portuguesa como exemplo não foi casual, uma vez que a academia brasílica se propunha a fazer no universo luso-americano o que a metropolitana propusera para a realidade da metrópole. Houve ainda, a referência à recuperação da memória que fazia dos sabios acadêmicos, úteis e dos illustres Corpos litterarios, estimáveis. Significativo, principalmente quando se considera que a Academia dos Renascidos apresentava propostas de junção de letrados e de produção intelectual calcadas nas mesmas bases. Exaltar a relevância desse tipo de trabalho foi uma estratégia, necessária, que não passou despercebida aos acadêmicos renascidos. Nada melhor, para cercar o grêmio de legitimidade, do que enaltecer o valor que o monarca, em pessoa, conferia a esse tipo de iniciativa. Sua utilidade na metrópole poderia ser facilmente transposta para a colônia uma vez que aqui, reuniam-se todos os 113 Bruno Casseb Pessoti elementos a justificar uma produção histórica em moldes parecidos, mesmo sem terremotos ou incêndios devastadores. Além disso, foi necessário evidenciar a concessão de rendas, o que, aliás, certamente estava nos horizontes de expectativa da reunião dos „mais illustres sabios‟ da América portuguesa. A advertência destacou que, mesmo não sendo Real, à Academia Litúrgica não haviam sido colocados embargos que a impedissem de receber rendas por parte do Pontífice. Interessante que quando da votação que colocou em pauta se a Academia dos Renascidos deveria ou não pleitear a dignidade do título de Real, trinta e seis dos quarenta acadêmicos foram contra, o que impediu que a requisição fosse encaminhada ao rei.19 Talvez houvesse entre os acadêmicos o receio de que o monarca recusasse a concessão do título de Real a uma academia fundada em território colonial, sendo então melhor não fazer o pedido do que arriscar a sua recusa, evitando a depreciação da sua imagem. Mas, como vimos na passagem acima, mesmo que uma academia não dispusesse dessa honrosa alcunha, não haveria embargo de que ela fosse contemplada com rendas. Podemos então identificar a conjugação de dois fatores bastante marcantes da produção intelectual: louvar o rei e solicitar mercês. Em se tratando desse documento em particular 114 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos não foi uma requisição direta, mas uma referência que relacionou a produção intelectual ao recebimento de favores. Desde o começo, datando do primeiro encontro em caráter oficial, os renascidos contemplaram a celebração do monarca, dedicada a enaltecer suas ações públicas e episódios de sua vida privada, o que pode ser visto como uma forma de fazer se manifestarem seus interesses em meio a atividades que na aparência eram apenas laudatórias. É preciso ter em mente que cativar o monarca era apenas um dos trunfos em poder da Academia dos Renascidos. O outro era o oferecimento de um serviço que fez com que suas similares metropolitanas fossem reconhecidas como úteis e estimáveis e que estava, comprovadamente, atrelado aos interesses régios. Essas funções, que poderiam ser associadas ao conjunto de propostas elaboradas pelo grêmio renascido, eram as moedas de troca que poderiam redundar na concessão de mercês pelo soberano aos membros da Academia. Tornar-se digno do reconhecimento régio foi um dos objetivos que os acadêmicos renascidos acalentaram e se esforçaram para alcançar quando da fundação do congresso e que marcou a Academia durante sua breve existência. Houve membros, inclusive, que mesmo depois do encerramento das atividades utilizaram-se da alcunha de membros da Academia dos 115 Bruno Casseb Pessoti Renascidos para oferecer suas produções intelectuais ao rei. O acadêmico Jose de Mirales ofereceu sua obra Historia Millitar do Brazil desde o anno de mil quinhentos e quarenta enove, em q’ teve principio a fund.am da Cid.e de S. Salv.or Bahia de todos os Santos até o de 1762 ao monarca nos seguintes termos “offerecida a EL REY FIDEL.MO D. Ioze o I.º composta por D. Ioze de Mirales Ten.e Cor.el de hum dos Regimentos da Goarnição da mesma Cidade do Salv. or; e Academico numer.º da Accademia Brazilica dos Renascidos”20, depois do fim das atividades acadêmicas. Destarte, o texto que antecedeu a apresentação dos estatutos, evidenciou a causa que teria originado a fundação da Academia: Os fieis vasslos d‟elrei nosso senhor, que habitaõ n‟esta capital dos seos estados do Brazil, aos quaes nenhum da Europa poderá exceder na lealdade e sincero amor ao soberano, viveraõ na maior consternaçaõ dêsde que receberaõ a noticia da perigoza enfermidade de S. M. Fidelissima (...) em que conseguiraõ a certeza do perfeito restabelecimento da importantissima vida, e precioza saude do mesmo senhor. Foraõ ainda mais os jubilos nos coraçoens, que os repiques nas igrejas, e com innumeraveis festas publicas repetidas vezes manifestou-se o gosto que tinhaõ no peito.21 Os súditos residentes da América portuguesa enalteceram a recuperação da precioza saude do rei como fato que fez nascer neles a motivação para criar a Academia dos Renascidos, que foi representada nos estatutos como sendo uma forma de celebrar o 116 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos restabelecimento da importantissima vida do monarca. Com a finalidade “de perpetuar na memoria p.ª os séculos futuros sua imcomparavel alegria alimentada da pureza da sua fidelidade” 22, os súditos buscavam um “novo modo de dar ao mundo hua prova demonstrativa da sinceridade desses obzequios.” 23 O documento não se furtou de enaltecer que a escolha fora feita com base na afeição que os acadêmicos sentiam por seu monarca. Considerando as oferendas que poderiam ser dignas do rei, eles ponderaram que “os Soberanos saõ Senhores das vidas, honras, e fazendas dos seus Vassalos, e q‟ offerecer lhes tudo isso he mais prova de sugeiçaõ, q‟ do affecto”24 e então decidiram estabelecer “hua Academia q‟ tenha por principal Instruçaõ escrever a Historia Universal Ecles.ª e Secular da America Portuguesa.”25 Os idealizadores do projeto almejavam expressar “hum perpetuo padraõ de sua alegria e do seu affecto”26 para com o rei que seria homenageado, ainda, pelo começo das atividades “no feliz dia em q‟ se celebra o Anniversario da nossa maior fortuna, dedicando a este sublime objecto as primeiras produçoens dos seus engenhos.”27 Na apresentação de todas as propostas de dissertações que se seguiriam aos estatutos, o monarca seria, ainda, objeto de outra dissertação sobre, “As Memorias para a Historia do nosso Augusto Soberano e Protector da Academia dos Renascidos, o 117 Bruno Casseb Pessoti Muito Alto, Muito Poderozo Rey e Pae da Patria.” 28 A linguagem, submissa e reverente, deu o tom da homenagem prestada ao monarca e da justificativa dada para a fundação da Academia. Há aqui duas representações interessantes. Primeiro a da Academia enquanto forma mais digna encontrada pelos vassalos para mostrar ao rei – e ao mundo – seu agradecimento e seu júbilo pela recuperação da saúde da sua maior fortuna. Diante de várias possibilidades que se apresentavam, os renascidos representaram a Academia como a melhor alternativa possível para dignificar e louvar o rei. Importante ressaltar que os membros responsáveis pela elaboração dos estatutos descreveram o congresso renascido, desde as primeiras linhas escritas sobre sua fundação, como local a partir de onde se pretendia evidenciar ao mundo a fidelidade devotada ao monarca lusitano através de manifestações calcadas em práticas de escrita. Conferindo dimensão internacional ao desejo de mostrar o amor e o afeto que direcionavam a seu rei, os acadêmicos estenderam esse alcance transnacional à sua produção escrita uma vez que esta seria a ferramenta usada para que se materializasse esse desejo. Extrapolar os limites do universo metrópole/colônia era uma estratégia retórica que serviria tanto para enaltecer e superdimensionar a devoção dos súditos luso118 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos americanos como para ampliar a circunscrição dos préstimos que a Academia oferecia ao rei, que pela sua própria natureza necessitavam de uma dimensão intercontinental. A segunda representação foi a dos acadêmicos, na verdade uma autorepresentação que os descreveu como vassalos depositários de uma fidelidade pura dotados de uma alegria incomparavel, que encontraram na Academia a forma, não apenas mais digna de louvar ao rei, mas também a que mais deixaria transparecer o apreço afetivo que tinham por ele. Assim, além dos objetivos práticos que se propunha a perquirir atinentes aos interesses régios, a Academia era a expressão sentimental de uma homenagem que fora originada a partir de sensações de afeição que os vassalos de além-mar nutriam pelo seu soberano. Desde o primeiro parágrafo do documento ficou evidenciado que a lealdade para com S. M. F. não seria mitigada pela distância que o separava fisicamente de seus súditos americanos, aos quaes nenhum da Europa poderá exceder na lealdade e sincero amor ao soberano. Os estatutos se encarregaram de mostrar, ainda, todas as utilidades que uma iniciativa como a fundação do congresso renascido poderiam oferecer aos interesses do monarca. Assim, “sendo certo que dos congressos litteratos rezultaõ á republica inexplicaveis utilidades, que só se reconhecem com a experiencia, e se 119 Bruno Casseb Pessoti premeaõ as ações ilustres, perpetuando-se a memoria das que obraraõ os vassalos mais dignos.”29 Os fiéis vassalos reunidos descobriram a fórmula mais digna para dar mostras de sua fidelidade e sujeição estando em perfeita consonância com os interesses do rei que (...) fará mais estimaçaõ d‟este obzequio, que levantar-lhe em cada praça publica um estatua equestre do mais preciozo metal. (...) uma academia, que tomou por empreza escrever a nossa historia d‟este continente, e tem por obrigação averiguar a verdade, podia fazer eterno o seo agradecimento aos reaes beneficios, colocando no templo da Fama a glorioza memoria das ações de um rei, que pode ser o prototipo de todos os príncipes perfeitos. 30 Ao “Poderozo Rey D. Joze N. Sn. e Pay da Patria” 31 os acadêmicos alçaram à condição de Protector da Academia, “a quem se dedica esse utilissimo estabelecim.º” 32 bem como a quem “seraõ sempre dedicadas” 33 as obras produzidas. Os membros da Academia jogavam assim com seus interesses. Na passagem acima ficaram explicitadas as razões da superioridade do tipo de serviços e homenagens oferecidos por uma academia histórica diante de outros gêneros de reverência típicos do período. Esse parágrafo já era uma proposta bastante direta ao rei: imortalizar o monarca a partir da colocação de suas ações no templo da Fama, o que certamente ajudaria a elevá-lo à condição de príncipe prefeito – o que por si só já justificaria a 120 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos criação da academia – em troca de algumas retribuições. A imortalidade régia se transformava em algo tangível através de um serviço oferecido ao rei pelos acadêmicos. Seu preço? A concessão de alguns reaes beneficios. A história deveria ser o recurso intelectual através do qual se enalteceria a glória real legando o monarca e suas ações à posteridade. A disciplina histórica necessitaria, assim, de certos méritos que corroborassem a dignidade da empresa-proposta, e tinha, além disso, a função tácita de contribuir para convencer o monarca e comprovar a viabilidade da empreitada. Destarte, a iniciativa – de esforço conjunto para fundação da academia – se justificava apoiada no mecanismo erudito – a história – a ser colocado em prática na construção do trabalho intelectual a serviço da memória. Sem a primeira “ficaraõ injustamente sepultadas as maiores façanhas, ou pelo irreparavel ocio dos eruditos, ou pela ignorancia invencivel dos vindouros”34 e sem a segunda “nem se temeria a infamia pela facilidade, com que se poderia esquecer, nem seria muito estimavel a gloria de emprehender açoens grandes, durando pouco tempo a lembrança das heroicidades.”35 Os acadêmicos apresentavam suas credenciais para fazer com que chegasse à posteridade uma imagem gloriosa do soberano. Apesar do amor e do afeto que sentiam por ele, os renascidos acalentavam a 121 Bruno Casseb Pessoti expectativa de que essas propostas fossem contempladas por benefícios régios que seriam a comprovação de que o serviço oferecido havia despertado o interesse e o reconhecimento do rei. Na economia das trocas os acadêmicos luso-brasileiros ofereciam uma passagem para o céu, caberia ao rei julgar a qualidade do translado. A busca por prestígio e benefícios era uma moeda de dois lados. O beneplácito e a generosidade poderiam ser recompensas para os fiéis e devotados servidores dos interesses régios. A proscrição poderia ser a contrapartida que vitimava mesmo aqueles que já haviam desfrutado da confiança do rei ou do seu ministro. José Mascarenhas foi prova cabal disso. Mascarenhas foi designado para conter os motins ocorridos em 1757, no Porto, por ocasião da fundação da Companhia de Comércio das Vinhas do Alto Douro. Em 1758, chegou ao Brasil na condição de Conselheiro Ultramarino, cheio de incumbências políticas e administrativas importantes como fundar dois conselhos e orquestrar a expulsão dos jesuítas da América portuguesa. Além de ter cumprido rigorosamente com as determinações que lhe haviam sido atribuídas, Mascarenhas fundou uma academia que tinha como uma de suas principais funções render homenagens às figuras de D. José I e de seu ministro. 122 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos Mas, não importava a folha de serviços prestados anteriormente, punições severas eram a praxe para com quem descumpria determinações de Pombal. Acusado de estabelecer relações cordiais com um navio francês que aportara na Bahia, Mascarenhas foi encarcerado e condenado à prisão perpétua.36 Nem as funções que desempenhara ao longo de sua vida como funcionário do aparelho administrativo português, ou os serviços prestados por sua academia no sentido de glorificar o rei e de ajudar a comprovar a legitimidade da soberania portuguesa no Brasil, foram suficientes para salvá-lo. O reflexo foi sentido na Academia dos Renascidos que, na ausência de seu diretor perpétuo, encerrou precocemente suas atividades o que terminou por antecipar o fim das propostas de ação e intervenção da sua produção intelectual. Conectado ao ideário reformista do consulado pombalino, a produção da Academia dos Renascidos foi influenciada por conceitos ilustrados. Ainda que seja necessário relativizar o grau de amadurecimento desses conceitos, sua influência no círculo renascido parece inegável. O reconhecimento da necessidade de melhor conhecer as riquezas e as potencialidades da colônia se fez presente nos anseios desses acadêmicos que para isso lançaram mão de algumas das disciplinas mais valorizadas pelo cientificismo setecentista 123 Bruno Casseb Pessoti europeu. Apesar da efemeridade das atividades renascidas, suas ações no campo intelectual ajudaram a aperfeiçoar os ideais reformadores que seriam incorporados com mais força e maturidade pelos intelectuais que participaram do cenário político e cultural brasílico do último quartel do século XVIII. Notas de Referência 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 124 Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Assistente da UFBA. Contato: [email protected] Este artigo é parte da dissertação de mestrado, que teve apoio financeiro do CNPq: PESSOTI, Bruno Casseb. Ajuntar manuscritos, e convocar escritores: o discurso histórico institucional no setecentos luso-brasileiro. 2010. 283 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009. GANDELMANN, Luciana. “As mercês são cadeias que não se rompem”: liberalidade e caridade nas relações de poder do Antigo Regime Português. In: SOIHET, Raquel, BICALHO, Maria Fernanda B. e GOUVÊA, Maria de Fátima S. Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro, Mauad, 2005, p. 109-110. Ibidem, p. 113. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia.São Paulo, UNESP, 2005, p. 221. Ibidem, p. 7. Ibidem, p. 7-8. Ibidem, p. 7. MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998, p. 77. SILVA, op. cit., p.11. RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas. Monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo, Alameda, 2008, p. 20. LAMEGO, Alberto. A Academia Brazilica dos Renascidos. Bruxelas, D´Art Gaudio, 1923, p. 17. SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra. São Paulo, Cia. das Letras, Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Academia dos Renascidos 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 2007, p. 384. MUNTEAL FILHO, Oswaldo. Uma sinfonia para o Novo Mundo: a Academia Real das Ciências de Lisboa e os caminhos da ilustração lusobrasileira na crise do Antigo Sistema Colonial. 1999. 453 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999, p. 74. Estatutos da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos, estabelecida na cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, capital de toda a América portuguesa, da qual há de escrever a História Universal. Salvador, 21 de julho de 1759. (Em anexo, relação da distribuição dos empregos para os quais a Academia dos Renascidos elegeu por votos). BNRJ, seção de manuscritos – 04, 03, 007, Fundo/Coleção: Real Biblioteca. Original Manuscrito, 41 p. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. LAMEGO, op. cit., p. 18-20. TALHE, Regina Duarte. A Academia Brasílica dos Renascidos da Baía: sua importância histórico-cultural. 1964. Tese (Doutorado em Letras), Universidade Clássica de Lisboa, Lisboa, 1964, 1ºv, p. 11. MIRALES, José de. Historia Militar do Brasil. Rio de Janeiro, Typographia Leuzinger, 1900, folha de rosto. Estatutos da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos..., op. cit.. Ibidem. Ibidem. Estatutos da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos..., op. cit.. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. José Mascarenhas fora encarcerado em uma prisão em Santa Catarina. Com a subida de D. Maria ao poder, em 1777, e a conseqüente deposição do Marquês de Pombal, Mascarenhas foi libertado. 125 Bruno Casseb Pessoti 126 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha: contatos e tensões na fronteira luso-espanhola da Capitania do Rio Negro (17801808) Carlos Augusto Bastos Considerações iniciais As relações diplomáticas entre Portugal e Espanha no século XVIII foram caracterizadas principalmente por conflitos, ocorridos de modo visível nos domínios das duas Coroas na América. No continente americano, desenrolaram-se avanços militares mútuos nas zonas fronteiriças, bem como contestações dos dois lados sobre os direitos de ocupação de vastas áreas. Nesse século, as disputas internacionais entraram em uma nova fase, com o acirramento das concorrências entre os impérios ultramarinos europeus pela hegemonia no mundo colonial, o que influenciou as medidas visando delimitar e proteger os domínios de Espanha e Portugal no Novo Mundo. Assim, para dirimir as disputas territoriais na América, as Coroas ibéricas assinaram em 1750 o acordo diplomático que ficou conhecido como Tratado de Madri. 1 Em 1760, contudo, o monarca espanhol Carlos III determinou a anulação do tratado e, em 1761, o Tratado de El Pardo estabeleceu que a linha divisória dos domínios sul-americanos voltaria à situação anterior à 1750. Entre 1761 e 1776, travou-se nos limites hispano-portugueses da América uma “guerra de frontera”, na avaliação de Manuel Carlos Augusto Bastos Lucena Giraldo.2 A partir do final da década de 1770, deu-se um movimento de aproximação entre as duas Cortes.3 Em 1777, as duas Cortes firmaram em San Ildefonso de la Granja um tratado preliminar de limites para as possessões americanas e asiáticas, determinando a interrupção das hostilidades nas fronteiras e oficializando a intenção de resolver futuramente as pendências territoriais. Em 1778, portugueses e espanhóis assinaram o Tratado de Amizade, Garantia e Comércio, pelo qual a Coroa portuguesa se comprometeria, entre outros pontos, a não intervir em um possível conflito entre Espanha e Inglaterra. A partir de 1780, e até princípios do século seguinte, as autoridades ibéricas iniciaram os trabalhos de delimitação dos limites entre as Américas espanhola e portuguesa, almejando com isso definir os espaços de seus impérios no continente. As comissões demarcadoras espanholas e portuguesas tinham como objetivos reconhecer os espaços fronteiriços e, evidentemente, representar os interesses de suas respectivas Coroas na configuração do mapa final dos domínios de Espanha e Portugal na América do Sul. Além disso, a longa interação entre as comissões possibilitou o aumento do intercâmbio de informações entre os domínios portugueses e espanhóis na América. Essas informações eram relevantes não apenas para conduzir os trabalhos das comissões, mas também se mostravam 128 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha essenciais para conhecer, mesmo que de modo fragmentário, o que se passava nos espaços vizinhos. E, ao acompanhar a movimentação de tropas e o estado político e econômico dos territórios contíguos, portugueses e espanhóis orientaram seus planejamentos de defesa nas regiões de fronteira. Neste artigo, será analisado o caso da Capitania do Rio Negro,4 no extremo norte da América portuguesa, entre a década de 1780, quando tem início os trabalhos de demarcação de limites da Quarta Partida ou Comissão Demarcadora lusoespanhola,5 até antes da crise política dos impérios ibéricos iniciada no ano de 1808. A permanência das comissões espanholas e portuguesas nessa Capitania permitiu a circulação pela fronteira de pessoas envolvidas nos trabalhos de demarcação, assim como de informações. Em relação às autoridades portuguesas do Rio Negro, as informações que chegavam do lado espanhol foram importantes na orientação da política a ser adotada com relação aos trabalhos de demarcação, mas também na tomada de decisões sobre a defesa militar da região. Neste texto, serão abordadas as leituras e interpretações dos oficiais portugueses sobre o contato com os espanhóis e as ameaças representadas pela proximidade com os domínios de Espanha. 129 Carlos Augusto Bastos A guerra como possibilidade nos confins da América Mesmo em um contexto de aproximação diplomática, as autoridades portuguesas permaneceram bastante cautelosas sobre o que ocorria no outro lado da fronteira e suas possíveis repercussões e ameaças para os domínios de Portugal no vale amazônico. Os acordos assinados pelos monarcas ibéricos não eliminaram a preocupação com conflitos armados que poderiam se desenrolar futuramente. Esses possíveis conflitos, por sua vez, certamente envolveriam as possessões americanas. A experiência acumulada de décadas de tensões e guerras era um fator importante para alimentar o temor das autoridades portuguesas que serviam nos territórios americanos. Além dessas experiências, a circulação de informações no espaço fronteiriço também embasava a leitura política desses sujeitos, influenciando as ações voltadas para o controle da fronteira. Assim, o chefe da Partida demarcadora portuguesa, João Pereira Caldas, ao oficiar em 1783 para Martinho de Mello e Castro, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, admitia não ter naquele momento indícios suficientes para desconfiar do procedimento dos espanhóis nas províncias vizinhas, mas lembrava que o Estado do Grão-Pará era confinante “com os espanhóis, franceses e holandeses, e que a atual aliança das ditas 130 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha três grandes potências”, assim como a “revolta da América inglesa, tudo isto [deveria] contribuir para com o tempo se disporem e tomarem as convenientes precauções de defensa.”6 Ao mesmo tempo em que a Partida portuguesa buscava barrar as reivindicações territoriais espanholas, seus oficiais tentavam acompanhar a movimentação de tropas espanholas na América. Tratava-se de uma tarefa essencial para evitar possíveis agressões dos espanhóis contra os Domínios de Portugal. Em 1784, um oficial português informou que ficara sabendo, a partir de conversas mantidas com os espanhóis, que dois regimentos “bem disciplinados”, e que haviam participado da guerra contra os ingleses, haviam sido enviados para Cartagena de Indias e Santa Fé; parte dessa tropa deveria também reforçar a cidade Quito para a defesa contra as “freqüentes sublevações de Índios.”7 Temia-se, contudo que essas tropas pudessem mais tarde ser mobilizadas para fazer a guerra aos portugueses. 8 Da parte das autoridades de Castela, as inquietações eram semelhantes. Para o Primeiro Comissário da Partida espanhola de demarcação, Francisco Requena, os trabalhos de sua comissão deveriam atentar, entre outras coisas, para os prováveis movimentos de tropas portuguesas em uma guerra, protegendo-se os espaços mais sensíveis a um ataque inimigo. Os limites dos domínios hispano-americanos deveriam ser 131 Carlos Augusto Bastos guarnecidos, evitando-se que forças portuguesas alcançassem partes centrais das terras de Sua Majestade Católica no Novo Mundo. Assim, no ano de 1781, no início dos trabalhos das Partidas de demarcação, Francisco Requena escreveu sobre a necessidade de reforçar as defesas do rio Putumayo contra as incursões vindas do lado português da fronteira. Na boca do Putumayo deveria ser estabelecido um “respetable destacamento mandado por un oficial de juicio, entereza y buena conducta,” devendo ser colocado outro posto militar na “boca más occidental del río Japurá” com a finalidade de criar obstáculos aos ataques lusos. Requena destacou que as medidas eram importantes caso viesse a ocorrer “alguna guerra” com Portugal, visto que os sobreditos rios possuíam “fáciles comunicaciones con nuestras Provincias de Quito, Popayan, Napo y otros territórios de nuestro domínio.”9 Diante das possíveis ameaças vindas dos domínios espanhóis, o reconhecimento do território pelos portugueses deveria ser oportunamente aproveitado para protegê-lo de possíveis invasões. Os comissários portugueses determinaram, em várias ocasiões, que se averiguassem as ligações fluviais entre a Capitania do Rio Negro e os territórios espanhóis, para assim reforçar a presença de tropas nos pontos estratégicos. Esse era o caso do Rio Branco, onde já havia ocorrido uma invasão 132 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha espanhola. Segundo recomendações dos oficiais da Partida Portuguesa, o Rio Branco poderia servir de rota de uma nova invasão que, partindo da Capitania Geral da Venezuela, poderia ameaçar o Estado do Grão-Pará e mesmo a Capitania do MatoGrosso.10 Era necessário, assim, conhecer melhor quais rotas ligavam a região do Rio Branco à colônia espanhola, assim como ao também limítrofe estabelecimento colonial dos holandeses no Suriname. O reconhecimento do território, essencial na formulação de planos de defesa e ataque, deveria ser vedado aos espanhóis que atuavam no Rio Negro durante as demarcações. Recomendava-se constantemente o controle sobre a circulação no território rio-negrino dos oficiais e outros membros da Partida Espanhola. Havia o receio de que, nesses deslocamentos, esses sujeitos pudessem formar um conhecimento mais balizado sobre a terra e os povos sob domínio de Portugal. As autoridades portuguesas procuraram regular o deslocamento dos oficiais espanhóis através da concessão de passaportes, objetivando assim limitar o espaço a ser percorrido por esses homens apenas às áreas onde atuavam as comissões de demarcação.11 Na avaliação das autoridades espanholas, a exigência de passaportes para os oficiais de sua Partida era mais uma artimanha portuguesa para a prática da usurpação de terras 133 Carlos Augusto Bastos americanas de Sua Majestade Católica. Em 1787, o Primeiro Comissário espanhol afirmou que os passaportes eram mais um dos entraves enfrentados pela Partida de seu comando, entraves esses que visavam impedir que os espanhóis acompanhassem as expedições de reconhecimento e demarcação dos limites iberoamericanos. As poucas rotas permitidas aos espanhóis eram acompanhadas pelos oficiais portugueses, que destacavam soldados ou canoas para seguir as embarcações espanholas que circulavam entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas (pertencente à Audiência de Quito). Outros caminhos eram interditados às canoas espanholas, como a ligação com o Orinoco, enquanto que o fornecimento de víveres e o serviço de correio com a Corte espanhola eram dificultados pelos portugueses, em um claro procedimento de sabotagem da Partida espanhola.12 Contatos e temores na fronteira O cuidado em controlar o conhecimento dos espanhóis sobre os Domínios portugueses não significou a interseção de qualquer comunicação entre os homens envolvidos nos trabalhos demarcatórios. Ao contrário, a troca de informações entre autoridades portuguesas e espanholas foi constante durante os 134 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha trabalhos das comissões demarcadoras de fronteiras, pois era essencial para instruir sobre os procedimentos a serem tomados nas demarcações, e para a resolução de conflitos entre as partes envolvidas. Além desses casos, havia igualmente o intercâmbio de informações políticas mais gerais, geralmente divulgadas através de impressos. A remessa de gazetas era uma demonstração de cordialidade entre as partes, mas principalmente um recurso de instrução sobre o contexto político internacional e suas possíveis implicações nas negociações sobre os limites territoriais. Em dezembro de 1789, o Comissário da Partida espanhola, Francisco Requena, enviou aos oficiais portugueses “uma coleção de gazetas de Madri” que ele havia recebido de Quito. A coleção compreendia o período de maio de 1788 a março daquele ano, e uma das gazetas trazia a notícia sobre o falecimento do monarca espanhol, ocorrida no final de 1788.13 No caso acima, a demora do Comissário espanhol em informar a morte do rei certamente se devia não apenas às dificuldades de contato da área de fronteira com outras partes do império, mas também à cautela dos oficiais em selecionar o que contar aos portugueses, e em qual momento fazê-lo. O oficial português da Partida de demarcação já soubera da morte de Carlos III através das “canoas vindas da confinante Província 135 Carlos Augusto Bastos [espanhola] de Maynas,”14 portanto antes de ser formalmente comunicado pelas autoridades espanholas. Desse modo, a troca de impressos era evidentemente selecionada, buscando-se controlar o que deveria ou não ser informado às autoridades vizinhas. O diálogo entre as autoridades deveria ser pautado pela cautela, visto que certas notícias poderiam influenciar a condução do trabalho das comissões demarcadoras e a própria definição dos espaços imperiais na América. Contudo, o fluxo de informações na fronteira não era alimentado somente pela troca de ofícios ou conversações mantidas pelos oficiais de ambas as partidas. O período de trabalho das comissões demarcadoras caracterizou-se pelo intenso deslocamento de homens entre os domínios portugueses e espanhóis, como militares, comerciantes, índios recrutados para os serviços nas canoas de reconhecimento do território. Além desses sujeitos, foi igualmente comum o trânsito pela fronteira de escravos fugidos e desertores. Com relação aos desertores, eles eram uma importante fonte de informações para autoridades espanholas e portuguesas. Muitos desses soldados relataram dados essenciais sobre o que se passava nos domínios confinantes, como rotas de viagem, movimentação de tropas, estado político e econômico das áreas limítrofes. Desse modo, dados significativos sobre as terras confinantes, e que por isso 136 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha eram geralmente ocultados nos diálogos mantidos entre as autoridades, eram transmitidos pelos desertores. Por isso, uma das preocupações mais presentes na documentação gerada pelas autoridades portuguesas era protestar contra a fuga de desertores para os Domínios espanhóis, assim como proteger os soldados espanhóis que buscavam abrigo nas terras do Rio Negro. Segundo quatro desertores espanhóis que se apresentaram aos portugueses em Tabatinga, o Comissário espanhol Francisco Requena havia determinado que se prestassem todos os auxílios aos soldados portugueses que fugissem para o lado espanhol da fronteira; os desertores deveriam também ser encaminhados para Quito, certamente para dificultar que eles retornassem para a América portuguesa.15 Ao abrigar os desertores portugueses, os espanhóis poderiam inquiri-los sobre diferentes informações a respeito do território vizinho. Assim, um oficial espanhol confidenciou a outro da Partida portuguesa que gostaria de conhecer o “Pará pelas boas notícias que tinha ouvido daquela Cidade” em Guayaquil de um desertor português. Esse desertor lhe havia dito que a cidade “era bastantemente grande” e que “tinha muita Tropa.”16 O contato diário entre portugueses e espanhóis também proporcionava o acúmulo de dados sobre o território vizinho. Uma das descrições que os portugueses dispunham sobre a 137 Carlos Augusto Bastos cidade de Quito foi construída a partir das conversações mantidas pelo ajudante de cirurgia José Ferreira com alguns oficiais e soldados espanhóis que serviam na vila de Ega, na capitania do Rio Negro. O documento sintetiza algumas notícias conseguidas durante conversas, consistindo um pequeno relatório com informações sobre número de soldados na cidade, principais construções militares e impressões dos oficiais espanhóis sobre seus subordinados. 17 Esses fluxos cotidianos de informação acabavam, assim, se revelando valiosos para conhecer, mesmo que de maneira parcial e fragmentada, o outro lado da fronteira. Em certos momentos, porém, a manutenção da segurança interna requeria o contato com as autoridades do outro lado da fronteira. Assim, a grande sublevação indígena liderada por Túpac Amaru, no Vice-Reino do Peru no início da década de 1780, foi objeto de atenção nos documentos enviados aos portugueses. Os espanhóis encaminharam aos oficiais da Coroa portuguesa diversos informes sobre a guerra que estavam travando contra os índios no Peru e Alto Peru. Francisco Requena informou João Pereira Caldas que ocorrera em Cuzco a “escandalosa y muy sensible novedad de haber sublevado un Indio rebelde y traidor llamado José Gabriel Túpac Amaru.” Requena alertou também que a rebelião indígena iniciada em 138 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha Cuzco poderia afetar a Província de Moxos, e a partir desta “los territorios de Mato Grosso.” Por fim, lembrou Requena a João Pereira Caldas de que ele deveria informar seus “Súbditos y Jueces Subalternos” que, segundo o “espíritu del Tratado de Amistad” de 1778, não deveriam dar “auxilio, ni acogida alguna a los rebeldes.”18 A comunicação do Comissário Requena foi recebida com desconfiança, como fica evidente nos documentos trocados entre as autoridades portuguesas do Rio Negro e do Mato Grosso. Pereira Caldas remeteu a Luis Albuquerque de Melo Pereira e Cárceres, governador do Mato Grosso, o documento do Comissário espanhol. Em resposta, o governador afirmou estranhar o “esquisito zelo, e lembrança que afetou” Requena, pois as autoridades portuguesas não poderiam agir da maneira solicitada por ele sem receberem antes “muitas [ordens] expressas da nossa Corte”.19 Em outro ofício, Pereira e Cárceres informou a Pereira Caldas que a Comissão espanhola ainda não havia iniciado os trabalhos de demarcação na fronteira de sua capitania, possivelmente devido aos “embaraços da sublevação indígena.” Mas ele também supunha que os espanhóis não haviam iniciado o trabalho de demarcação porque esperavam conseguir melhores compensações territoriais no Rio Negro, o que não ocorreria na fronteira com a Capitania do Mato 139 Carlos Augusto Bastos Grosso.20 As comunicações mantidas pelos espanhóis sempre deveriam ser recebidas com desconfiança, as boas relações então mantidas com a Corte espanhola não eliminavam a experiência de disputas que caracterizaram a fronteira luso-espanhola na América. As relações entre as Cortes de Portugal e Espanha tornaram a ser caracterizadas pela ameaça do conflito armado a partir de meados da década de 1790. Depois da amenização do “perigo espanhol” pelos tratados de 1777 e 1778, e da participação portuguesa na aliança de espanhóis e ingleses contra a França revolucionária, o tratado franco-espanhol da Basiléia, assinado em 1795, assinalou a retomada das hostilidades contra Portugal. França e Espanha declararam guerra aos ingleses e pressionaram os portugueses a renunciar à sua posição de neutralidade.21 A retomada das tensões diplomáticas foi debatida pelas autoridades portuguesas na América. Em relação ao Rio Negro e ao Pará, a extensa zona fronteiriça das duas capitanias com franceses e espanhóis alimentava ainda mais o temor de uma invasão. Mais do que nunca, era necessário reforçar as tropas em pontos estratégicos, e manter a vigilância sobre o que se passava nas possessões de Espanha e França no continente. As autoridades do Grão-Pará e Mato-Grosso debatiam sobre o perigo de uma ofensiva 140 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha espanhola em todos os pontos da América e a necessidade de uma contra-ofensiva coordenada das forças portuguesas. No final do ano de 1800, o governador do Grão-Pará, Francisco de Sousa Coutinho, recebeu notícias do governador de Mato Grosso sobre a movimentação de tropas espanholas no Paraguai;22 em outra oportunidade, o governador do Mato Grosso solicitou ao do Grão-Pará o envio de soldados para reforçar a guarnição do Forte Príncipe da Beira. 23 A eclosão da guerra parecia mais concreta no final do século XVIII, levando as autoridades da América a avaliar as possibilidades de sustentar o conflito armado contra os espanhóis. Em 1797, Manoel da Gama Lobo d’Almada, governador do Rio Negro, apresentou ao governador do Pará um plano de defesa para sua Capitania, que previa também a ofensiva contra os territórios espanhóis. Segundo alguns pontos de seu plano, seria possível tomar, através de uma ação rápida, as principais fortificações espanholas na fronteira, cortando as ligações entre o Orenoco e o Rio Negro.24 A rápida ofensiva espanhola contra a fronteira portuguesa, na chamada Guerra das Laranjas em 1801, também foi seguida de ofensivas contra fortificações portuguesas no Mato Grosso, o que foi comunicado pelo governador desta capitania ao do Estado do Grão-Pará.25 141 Carlos Augusto Bastos Da parte dos oficiais que serviam no Rio Negro, também houve a preocupação de saber se os espanhóis estariam preparando um ataque. Para avaliar se haveria uma ofensiva, o oficial militar José Antonio Franco visitou o forte espanhol de San Carlos. Ao conversar com um dos soldados que servia em San Carlos, este lhe informou que haviam chegado notícias da guerra entre Espanha e Portugal, com invasões portuguesas à Galícia e à Estremadura, enquanto que espanhóis e franceses haviam respondido com a tomada de Algarves, Extremoz, Elvas e Olivença. Além disso, segundo as informações repassadas pelo soldado, “Portugal fizera pazes com Castela e com o partido de declarar guerras aos ingleses, e os portugueses não pegarem mais nunca em armas contra Castela.”26 Ainda segundo o relato de José Antonio Franco, os índios que que serviam no forte espanhol afirmaram que “os castelhanos tinham tomado na Europa do Nosso Príncipe duas Fortalezas”, e que o Príncipe português “já as tornara a comprar a peso de muito dinheiro, também disseram que os castelhanos querem vir tomar [as fortalezas portuguesas de ] Marabitanas e S. Gabriel.” Disseram também os índios que eles já estavam ocupados em “fazer roças para a gente quando viessem para a guerra,” e que os castelhanos tinham ao seu lado muitos índios, e que os portugueses, “não tinham ninguém, e que se os castelhanos não 142 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha tivessem valor não tomariam Marabitanas, nem S Gabriel, e se os portugueses também não tivessem ânimo, também não tomariam S Carlos.” 27 Considerações finais Dentre os temas que se faziam marcantes nos discursos das autoridades portuguesas e espanholas com relação às áreas de fronteira na parte norte da América do Sul, é possível elencar como um dos mais recorrentes a defesa militar dos limites territoriais desse espaço. A abordagem por parte dos oficiais demarcadores dessa questão ressaltava a experiência de conflitos envolvendo Espanha e Portugal. O futuro de paz anunciado pelo Tratado de Santo Ildefonso não apagava o passado de guerra que envolveu as duas Coroas. Desse modo, as desavenças e conflitos que opuseram historicamente espanhóis e portugueses na América deveriam ser levados em consideração na conjuntura das demarcações de limites, de modo que a delimitação e ocupação dos espaços coloniais assegurassem vantagens militares em uma guerra futura. Assim, a movimentação de tropas nos domínios da Coroa espanhola na América deveria ser acompanhada pelas autoridades portuguesas. As informações prestadas por 143 Carlos Augusto Bastos desertores espanhóis precisavam ser acolhidas de maneira cuidadosa pelos oficiais a serviço de Sua Majestade Fidelíssima. Na virada do XVIII para o XIX, as notícias sobre as campanhas na Europa eram discutidas pelos sujeitos que habitavam as zonas fronteiriças. Oficiais, soldados e indígenas tinham conhecimento da guerra em curso, e estavam cientes de que ela provavelmente envolveria as terras americanas em breve. A partir das informações disponíveis, os homens das fronteiras dos impérios ibéricos na América formulavam suas interpretações sobre a conjuntura em que viviam, e sobre o futuro das áreas coloniais. Além disso, a dinâmica das relações na fronteira, com aproximações e trânsito dos homens que habitavam a região, possibilitava a troca de informações essenciais para a orientação das políticas de defesa. A cotidiana interação entre os homens da fronteira se mostrava estratégica para a condução da política portuguesa para suas fronteiras coloniais, como o caso da Capitania do Rio Negro no período em questão. Notas de Referência 1 144 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo (USP), orientado pelo Professor Doutor João Paulo Garrido Pimenta. Contato: [email protected] LUCENA GIRALDO, Manuel (Editor). Francisco Requena y otros: Ilustrados y bárbaros. Diario de la exploración de límites al Amazonas (1782). Madrid: Alianza Editorial, 1991, pp. 9-11. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os perigosos Domínios de Hespanha 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 LUCENA GIRALDO, Manuel. “La Expedición Imaginaria: La ejecución del Tratado de San Ildefonso en la Guayana Española (17761784).” In: SOLANO, Francisco de, BERNABEU, Salvador (coord.). Estudios (Nuevos y Viejos) Sobre la Frontera. Madri: CSIC, 1991, pp. 249-276. VIDAL, Josep Juan, MARTINEZ RUIZ, Enrique. Política Interior y Exterior de los Borbones. Madrid: Ediciones Istmo, 2001, pp. 317-318. Área administrativa ligada ao Estado do Grão-Pará, o Rio Negro era fronteiriço com os Vice-Reinos de Nova Granada e do Peru, e com a Capitania Geral da Venezuela ROJO GARCÍA, Maria Loreto. “La Línea Requena: Fijación científica de la frontera brasileña con Venezuela, Nueva Granada y Perú (17771804)”. In: SOLANO, Francisco de, BERNABEU, Salvador (coord.). Estudios (Nuevos y Viejos) Sobre la Frontera. Madri: CSIC, 1991, pp. 217-247. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Rio Negro, Documento 276, 14/05/1783. Optou-se nesse artigo por atualizar a ortografia das fontes citadas. AHU, Rio Negro, Documento 347, 03/09/1784. AHU, Rio Negro, Documento 330, 30/07/1784. Archivo General de Indias (AGI), Santa Fe, 663B. Carta de Francisco Requena a Jose de Galvez. Ega, 30/01/1781. AHU, Rio Negro, Documento 291, 26/09/1783. AHU, Rio Negro, Documento 322, 28/07/1784. AGI, Santa Fe, 663B. Carta de Francisco Requena ao Marques de Sonora. Ega, 12/02/1787. Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice 461, 22/12/1789; Primeira Comissão Demarcadora de Limites (PCDL), Coleção Pontes Ribeiro (CPR), A-36, p. 15. PCDL, CPR, A-36, p. 15. APEP, Códice 482, 19/11/1791. AHU, Rio Negro, Documento 347, 03/09/1784. APEP, Códice 493, 12/01/1792. AHU, Rio Negro, Documento 227, 21/09/1781. AHU, Mato Grosso, Documento 1361, 02/07/1782. AHU, Mato Grosso, Documento 1364, 25/07/1782. ALEXANDRE, Valentim. Os Sentidos do Império: Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português. Porto: Edições Afrontamento, 1993. APEP, códice 577, 19/11/1800. APEP, Códice 577, 8/9/1801. 145 Carlos Augusto Bastos 24 25 26 27 146 REIS, Arthur Cezar Ferreira. Lobo d’Almada: Um estadista colonial. Manaus: Editora Valer, 2006, pp. 256-260. APEP, Códice 579, 10/10/1801. APEP, códice 577, 24/11/1801. APEP, códice 577, 24/11/1801. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval: O Poder, a Sociedade e a Erudição na Muqassimah de Ibn Khaldun (1332-1406) Elaine Cristina Senko Introdução Em sua obra Muqaddimah, o historiador muçulmano Ibn Khaldun (1332-1406) empreendeu uma análise histórica em torno das noções de sociedade, poder e erudição nos principais núcleos da sociedade islâmica medieval (Norte da África junto a Península Ibérica e o Oriente islâmico). Khaldun desejava, através de seu trabalho, compreender o modo como os grupos sociais se mantinham coesos e fortes, buscando estabelecer quais parâmetros orientavam os homens a viverem conjuntamente – a idéia de umran.1 Nesse sentido, Khaldun põe em prática uma metodologia historiográfica crítica e reveladora, a qual se utilizava de uma técnica advinda do tradicionalismo islâmico do tadil wa tajrih (improbatio et justificatio).2 O presente artigo busca justamente delinear o raciocínio de Khaldun no que se refere ao seu entendimento da sociedade – em torno de suas noções de sociedade, poder e erudição –, entrevendo quais seriam os principais aspectos, na justificativa Elaine Cristina Senko do autor, que orientavam a união dos grupos sociais e que caracterizavam o movimento típico das sociedades islâmicas no tempo. Metodologicamente, para compreender sociedade dos homens, Khaldun recorreu à fontes tais como Galeno em seu tratado de medicina Sobre o uso dos membros (Períkreias tón Anthrópou sómati moríon). Khaldun resgatou nessa fonte o sentido da força que o ser humano poderia se utilizar para buscar meios ao seu sustento. Ao mesmo tempo, o historiador muçulmano buscou apoio em fontes que trabalhavam com aspectos da geografia, tais como o Tratado sobre Geografia de Ptolomeu; além disso, fez um estudo detalhado acerca do planisfério de Idrissi. Assim, Khaldun passa a observar a teoria dos sete climas e inicia seu estudo no Mediterrâneo, seguindo até o Oriente. Nesse sentido, passo a passo, o historiador muçulmano demonstra seu conhecimento sobre astronomia e astrologia, tendo em vista que necessitava de orientação geográfica para identificar alguns povos: por exemplo, os chamados povos da meia noite (os negros que estão abaixo do Magreb e que também foram estudados por Al-Maçudi) e os esclavões (os povos do norte). Dentre os homens mais fortes e qualificados para sobreviverem na sociedade estão aqueles que habitam os desertos, tendo em vista que possuem uma 148 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval alimentação austera e não oriunda da cidade (com sua abundância). Esse pensamento de Khaldun, no entanto, é mais desenvolvido em outra obra sua, A História dos Berberes. Para legitimar o estudo da sociedade, Khaldun também nos traz uma análise sobre a natureza da revelação do Profeta, bem como sua diferença com certas práticas, tal como magias e leituras de augúrios (estas pertencentes aos pagãos). As fontes de informação utilizadas por Khaldun nessa parte são o Sahih de Al-Bukhari (tradicionalista), Kitab Al Gayat de Maslama (tradicionalista) e também reflexões oriundas de fatos históricos, da filosofia islâmica, da matemática aristótelica e islâmica, das bases da religião sunita e da medicina. Para alcançar um entendimento claro, Khaldun com base em seus estudos, indica que nos utilizamos da seguinte série: faculdade estimativa – faculdade memorativa – faculdade reflexiva –, assim chegando ao chamado intelecto puro. Por uma análise que compreenda a sociedade A sociedade para Ibn Khaldun está dividida entre os nômades (berberes e nômades árabes) e os sedentários (os citadinos). A questão da corrupção está ligada à luxuosidade que as famílias adentram quando alcançam a vida citadina. Para 149 Elaine Cristina Senko Khaldun há primeiro a vida no campo ou no deserto, e depois pode se alcançar a vida nas cidades. É exatamente nestas localidades que a austeridade se perde, os homens se corrompem e acabam por pagar impostos ao governante. Na vida do campo ou do deserto, os homens são mais corajosos em relação aqueles que já habitam as cidades e que se submetem ao poder. O aspecto que mantém essas sociedades unidas e fortes seria uma espécie de espírito de grupo, denominado por Khaldun de assabya. 3 O espírito de grupo seria o principal fator de ânimo aos homens, em sociedade, para empreenderem a conquista. Nesse pensamento, aqueles que fazem parte de grupos no deserto tem maior chance de serem os conquistadores da cidades já corrompidas pelo luxo. Um homem poderoso como um sultão deve zelar pelo espírito de grupo em seus súditos: “Com efeito, a reunião dos homens em sociedade e o espírito de clã, podem ser considerados como os elementos constitutivos do temperamento do corpo político”.4 Além disso, o poder necessita do espírito de grupo por conta de sua auto proteção e manutenção: 150 Temos já dito que o espírito de clã ou de grupo é o meio pelo qual os homens garantem a defesa mútua, rechaçam o inimigo, se desforram das ofensas e realizam os projetos que necessitam esforço comum. Qualquer sociedade de homens tem necessidade de um chefe para manter nela a ordem e impedir que uns agridam aos outros.5 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval A nobreza (charaf) seria alcançada pelas virtudes da conquista, pela sua legitimação por parte do exército e sua defesa da religião, sendo transmitida pelas gerações da dinastia em que o espírito de grupo deve estar vivo. Por isso Khaldun critica a interferência, por exemplo, do barkamida Jafar no governo muçulmano de Harun Al-Raschid. O parentesco é o elemento essencial do espírito de grupo para se alçar a nobreza, pois a charaf e a ilustração são elementos fugazes se não bem administradas pelo poder. Por outro lado, os povos que acabam submetidos acabam copiando os costumes de seus conquistadores, tal como observa Khaldun entre os andaluzes conquistados pelos cristãos de Leão e Castela permaneceram na Península Ibérica, perecendo de que suas tradições e identidades rapidamente. Caso contrário dos andaluzes refugiados em Norte de África, que levaram consigo a tradição do sul peninsular e de certa maneira impuseram seu modelo aos berberes magrebinos. O poder deve ser digno e nobre O soberano, segundo Ibn Khaldun, deve ser digno e nobre. Para que o soberano exista precisa-se fundar um império, prática levada a cabo por meio da conquista, animada pelo espírito de grupo, e por uma religião, responsável por conduzir à 151 Elaine Cristina Senko retidão de comportamentos. Esse é o exemplo deixado pelo início da história do islamismo: o Profeta tinha por missão propagar a religião e seus adeptos, com forte motivação religiosa, empreenderam as guerras de conquistas. Depois que um império conquista muitas regiões deve-se tomar cuidado com as fronteira, pois é muito arriscado tê-las e não as conseguir proteger. Isso deve ser uma preocupação maior quando o império apresentar os primeiros sinais de senilidade. Entretanto, enquanto o espírito de grupo exista e as mílicias do sultão forem fortes nestes lugares, a proteção ainda continuará garantida. Para Ibn Khaldun o modelo de governo que deve-se implantar depois da conquista animada pelo espírito de grupo é a autocracia. O homem possui, de modo natural, o desejo de ascender. Quando da conquista, a tribo de maior força de grupo domina as outras, freia os atos de insubmissão delas e escolhem um único chefe para os liderar, pois assim ele pode controlar a sociedade no melhor desenvolvimento e na retidão dos costumes. As fases de ascensão ao poder de acordo com Khaldun são: a conquista animada pelo espírito de grupo; o soberano retém toda a autoridade; a sociedade sente a vida tranquila; daí vem um período de contentamento e depois um 152 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval momento de esbanjamento que corrobora para a ruína da dinastia. Os descendentes do primeiro soberano entraram na corrida em busca do luxo corrompido e assim chegará o fim do império. Nesse momento, quando o governo já está entregue a vida citadina luxuosa, na qual o membro de poder da dinastia não se lembra mais de suas tradições fundadoras e suas tropas de homens de armas já não é mais bem cuidada, o sultão tenta remediar a situação. O homem de poder convida estrangeiros para fazerem parte de suas tropas e elas vêm animadas pelo espírito de grupo com seus olhos fixados no poder que as contratou: “Isto demonstra que, no espaço de três gerações, chegam os impérios à decrepitude, completam o ciclo de sua evolução, mudando completamente de natureza”. 6 Tal é o caso dos mamelucos no Egito: Khaldun criticou a desorientação do antigo governo ayubbida que, dominado, acabou por perder seu poder para os estrangeiros. No entanto, o erro consiste em que os antigos governantes, tendo criado rivalidades internas, importaram os de fora e os trataram como membros de sua própria família, assim desestruturando todo e qualquer espírito de grupo da dinastia reinante. Por outro lado Khaldun indica que um procedimento de conquista que se utilizou dos estrangeiros, empreendido pelo sultão granadino Ibn Al-Ahmar, foi de 153 Elaine Cristina Senko procedência correta e sua ação resultou na efetiva resistência islâmica na Península Ibérica. Khaldun estuda os monumentos de algumas dinastias e suas receitas fiscais para explicar que esses documentos podem revelar a grandiosidade de um poder. Cita as viagens de Ibn Batuta e o quanto esse aventureiro de seu tempo pôde ver coisas maravilhosas, mas chama a atenção para os acontecimentos fantasiosos novamente: Isso acontece muitas vezes aos homens que pretendem falar de coisas novas; deixam-se influenciar tão facilmente por suas prevenções, a respeito dos fatos extraordinários, como pela mania de exagerá-los, com o fito de torná-los mais surpreendentes, como já notámos no começo deste livro. É por isso que devemos procurar os princípios das coisas e precaver-nos contra as primeiras impressões. À luz dos princípios, poder-se-á distinguir, estados de bom senso e num espírito reto, o que entra ou não nos domínios do possível como também se reconhecerá como verdadeira toda a história que não ultrapasse os limites do possível. 7 Quando um sultão é posto sob tutela devido à sua menoridade para governar e quando disso decorre que um vizir ambicioso toma o seu lugar, deve-se observar que esse fato é um acidente social produzido, conforme Khaldun, por uma dinastia que está entregue aos hábitos de luxo. Porém a retidão nos 154 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval ensina que tal vizir nunca poderia ter subtraído o poder ao ponto de se auto denominar o homem de poder de determinada região. Diferente dos emires e vizires, o sultão é um governante completo, pois tem virtudes e é apoiado pelos homens em sociedade que possuem o espírito de grupo e que praticam diante dele a bi’a (juramento). Segundo Khaldun: “A realeza, pois, é uma nobre instituição; solicitada de toda a parte, invejada por muitos defensores, e, para ser útil a todos, precisa de força e da cooperação”.8 Um dos exemplos de homem de poder no contexto muçulmano de Khaldun é o sultão: “O sultão é, na realidade, o dono, o possuidor do rebanho, aquele que apascenta e cuida de tudo o que lhe diz respeito”.9 O sultão deve ter doçura, bondade, não ser tirânico e possuir indulgência: O soberano que governa seus súditos com doçura e os trata com indulgência ganha sua confiança e atrai seu amor; cercam-no de devoção, prestam-lhe sua ajuda contra os inimigos, e sua autoridade é prestigiada em toda parte. O bom gênio do príncipe manifesta-se na sua bondade de que usa no trato de seu povo e no zelo com que cuida de sua defesa. A essência da soberania é a proteção dos súditos. A doçura e a bondade do sultão aparecem na indulgência com que os trata e no empenho de lhes assegurar os meios de subsistência; é a melhor maneira de grangear sua afeição. Agora, é preciso saber que um príncipe dotado de um espírito vivo e sagaz é pouco inclinado à doçura. Esta qualidade é, habitualmente, própria do monarca bonacheirão e despreocupado. O menor dos defeitos de um soberano dotado de viva inteligência é impor a seus 155 Elaine Cristina Senko súditos tarefas e empreendimentos acima de suas forças; porque as suas miradas alcançam muito além do que os súditos podem fazer, e quando começa uma empresa, crê e pensa adivinhar, por sua perspicácia, as consequências remotas do que empreende. Sua administração é, pois, nociva ao povo. Disse o Profeta: Regulai vossa marcha pelo passo do mais fraco entre vós.10 Acima do governo do sultanato existe o Califado, um poder que é orientado pelas leis divinas prescritas no Al Corão.11 De acordo com Khaldun, o Califado tem uma qualidade própria e é ligada à dois poderes: o temporal e o espiritual. Para sustentar o poder do califado temos os cargos de cádi (juiz) e emir (príncipe guerreiro); para o sultanato temos o cargo do vizir (ministro) que auxilia o poder e de hajib (aquele que guarda o acesso ao sultão). Mas vamos apresentar esse modelo de governo tão caro ao historiador Khaldun ao lado do sultanato (realeza pura), tendo em vista que ambos deveriam defender o islamismo e a verdade: Vê que a realeza pura é uma instituição conforme a natureza humana, e que obriga a comunidade a trabalhar para executar os projetos e satisfazer as paixões do soberano. Reconhece que o governo regido por leis tem por fim dirigir e orientar a comunidade segundo os preceitos da razão, para que o povo desfrute dos bens deste mundo e se garanta contra o que lhe pode ser prejudicial. Sabe o benévolo leitor que o califado dirige os homens segundo a lei divina, para assegurar-lhes a felicidade da outra vida; porque, aos bens deste mundo, o legislador inspirado12 os considera na dependência e 156 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval através do prisma da vida futura. O Califa é, pois, na realidade, o lugar-tenente do legislador inspirado, encarregado de manter a religião e de se servir dela para o governo do mundo. [...] O sapiente, o prudente, é Allah.13 No pensamento de Khaldun são os homens que decidem, através do uso da razão, quem deveria ser o seu sultão. Os abusos dessa soberania são a tirania, a injustiça e a sensualidade; e as virtudes são a justiça, a moderação e o zelo. Essa virtudes permanecem uma constante até o tempo de Khaldun, porém o califado já foi se transformando em realeza, misturando-se ao sultanato. Para Ibn Khaldun a „umran‟ é a substância cujo trabalho e forma é o governo. Para assegurar esse governo, o sultão deve agir com brandura, moderação, tomar cuidado com as fronteiras e com a quantidade de homens preparados em suas tropas. Se este governo ainda for incipiente é necessário ter tempo para formar uma coalisão de muitos indivíduos para formar sua tropa e se inspirarem através do espírito de grupo. No caso do governo realizar a conquista, saindo da vida nômade e entrando numa vida nas cidades (sedentária), deve-se observar no mundo muçulmano as diretrizes apontadas pela lei religiosa. Depois de preparado esse terreno funda-se, enfim, o império: “O homem é citadino por natureza. Esta máxima, muito conhecida dos que ouviram explicar os livros dos filósofos, é citada (pelos mestres) 157 Elaine Cristina Senko [...] o termo citadino deriva de cidade, vocábulo servindo para designar a reunião dos homens em sociedade”. 14 Depois da conquista deve-se escolher um homem para o poder e este que seja ciente das palavras divinas para guiar a conduta moral de seus súditos – estes que devem ser em grande quantidade para justificar um legitimo governo. Nesse ínterim religioso Khaldun nos traz a discussão do mahdi (o fatímida esperado) por meio dos debates de tradicionalistas islâmicos. Nesse âmbito do poder Khaldun nos explica o movimento histórico de ascensão, tempo que a dinastia durará, e sua queda também pelos seus conhecimentos astronômicos e astrológicos, os quais parecem que se misturam na sua hermeneutica. Nas cidades os homens ricos devem zelar por sua existência, que logo pode ser abalada pela decadência da dinastia vigente. A civilização nasce nesse escopo das cidades, que tem costumes diferentes dos nômades, como cita Khaldun: Eis aí a civilização da vida sedentária. Compreendese agora porque, nas províncias afastadas da capital, os usos da vida nômada predominam naquelas cidades, embora contendo cada uma numerosa população, e que seus habitantes se afastem, em todas as suas práticas, das formas de civilização sedentária. O caso se apresenta sob um aspecto diverso nas cidades situadas no centro dos grandes impérios, dos quais são sede e metrópoles. O fato se prende a uma causa única: a presença do sultão.15 158 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval A civilização, de vida sedentária, estaria pois nas cidades, tendo em vista que lá está o limiar de uma dinastia – no caso o auge do comércio e da vida faustuosa. Nas cidades também poderia existir o espírito de grupo quando uma família com força nos meios sociais suprimia as demais. No Norte de África, por exemplo, os considerados citadinos são os emigrantes andaluzes que trouxeram consigo toda uma civilização, enquanto os Banu Hilal são os árabes nômades que viviam sob tendas no deserto: “A civilização da vida sedentária tomou então, no Magrib, uma certa consistência e se estabeleceu alí de uma maneira sólida; mas o Magrib a deve, em grande parte, aos Andaluzes”. 16 Os andaluzes, segundo Khaldun, levaram os costumes peninsulares ao território norte-africano e estes se misturaram com outros costumes, tais como dos inúmeros viajantes e do Egito. Ibn Khaldun entendia, de maneira filosófica, que a dinastia serve de forma para sua civilização, enquanto que a matéria seria o ato de governar os súditos e as cidades. Depois da existência de uma forte dinastia, que possui o significado de civilização pelo número de seus habitantes e pela ênfase no comércio, pode ocorrer nela um período de senilidade: “Ora, a razão e a História nos ensinam que, no espaço de quarenta anos, as forças e as energias do homem atingem seu derradeiro 159 Elaine Cristina Senko limite”.17 Khaldun nos lembra que quarenta anos foi o tempo em que os israelitas ficaram no deserto até que a nova geração, rica em espírito de grupo, conseguisse cumprir a vontade divina em direção à terra prometida. Por uma concepção de tempo e história pautada na sociedade, poder e erudição A análise da sociedade e do poder feita por Khaldun revela a grande erudição do historiador, tendo em vista seu conhecimento amplo sobre todos esses temas. No entanto, de que modo podemos entender tal estudo à luz da proposta historiográfica que ele busca estabelecer em sua obra? Nossa análise detida dos tópicos anteriores ganha sentido quando passamos a seguinte reflexão: Khaldun estabelece um padrão de movimento para todas as sociedades, caracterizando diferentes e progressivas etapas pelas quais a história de um povo pode ser analisada. Vejamos a ordem de seu pensamento: primeiro o espírito de grupo anima uma dada coletividade, a qual parte para a conquista; depois, quando estabelecida a dinastia, ela pode se deixar abrandar pelo sedentarismo e a luxuosidade; tão logo isso ocorrer, perderá progressivamente o seu espírito de grupo, pois o bisneto da família esquecerá sua tradição e a decadência tornaria-se eminente. Dessa forma, o que Khaldun deseja 160 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval demostrar com seu estudo histórico do movimento das sociedades são etapas onde o poder ascende, depois se acomoda e acaba dando margem para uma reviravolta, porque outra dinastia animada pelo espírito de grupo a domina e controla seus costumes. Através desse movimento inerente a sociedade, pautado no estudo das relações de poder e da cultura (erudição) que lhe caracterizam, entrevemos na perspectiva histórica de Khaldun uma concepção cíclica do tempo. Segundo o historiador Rogelio Blanco Martínez, a influencia da concepção clássica grega de História18 em Khaldun é notória em sua construção metodológica, e o que a deixa mais à vista é a sua noção de tempo cíclico: Cierto es que la concepción histórica de Ibn Jaldún es cíclica, y con su dialéctica entre las formas de vida rural, nómada y urbana contempla la inexorable decadencia a la que abocan los crecientemente complejos entramados entre sociedad humana y civilización, siendo también en ello precursor de las más pesimistas, fatalistas e incluso „apocalípticas‟ visiones históricas occidentales, desde Frobenius y Spengler a nuestros días. Y, sin embargo, Ibn Jaldún no es propriamente ni pesimista, ni fatalista, ni menos aún apocalíptico, pues, como vamos a comprobar en la cita final que haré de él, desde el seno mismo de la devastación, en las más profunda noche, encuentra que renace la creación, la aurora. Y en este punto, las primeras „miradas españolas‟ a Ibn Jaldún fueran ya muy clarividentes; comezando por las de Rafael Altamira o la de Ortega, quien 161 Elaine Cristina Senko calificaba en El espectador de „mente clara, toda luz, pulidora de ideas como la de un griego (y que) va a introducirnos en el orbe histórico donde nuestro espíritu no logra hacer pie.19 Para Ibn Khaldun o tempo não é providencial, para ele a História é feita pelos homens e tendo como objeto a sociedade. 20 Também nos indica Juan Martos Quesada que Ibn Khaldun teve uma vida intensa, que a sociedade diante dele não era somente motivo de observação, mas que ele estava mais interessado em encontrar leis que marcassem o nascimento, a vida e a morte das sociedades humanas21: Para llegar a este objetivo, Ibn Jaldún no duda en consultar todas las fuentes escritas de las que podía disponer, ya fueran autores latinos o griegos, bizantinos o musulmanes. Actor y testigo privilegiado de su tiempo, contrasta su visión, sus opiniones y valoraciones con los datos que le ofrecen los grandes viajeros de Asia y África; y no sólo se limita a hacer una comparación de a información recabada, sino que es consciente de la implicación que sufre el historiador en su narración; según Ibn Jaldún: „el informador se introduce naturalmente en la información histórica‟.22 Portanto, Ibn Khaldun, ao estudar e estabelecer um conjunto de preceitos em relação à política, a sociedade e erudição no mundo islâmico, entrevê uma concepção cíclica de tempo. Observando uma regularidade de movimento (ascensão e queda) nas sociedades islâmicas do passado, o autor fortalece 162 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval uma perspectiva historiográfica que o auxilia a compreender o próprio presente: um período inconstante para os diferentes núcleos de poder (sultanatos) no Norte da África. Ao mesmo tempo, o trabalho de Khaldun estabelece uma noção de grande importância àqueles que se dedicavam ao estudo do passado: seriam detentores de um conhecimento que os tornavam aptos para lidar – da melhor forma possível, seguindo os bons exemplos do passado – com as circunstâncias práticas do presente. Nesse sentido, o erudito encontrava seu espaço próximo ao poder, orientando políticas ao desvendar o ritmo da sociedade. Notas de Referência 1 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), orientada pela Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães. Contato: [email protected] O conceito de “umran” de Khaldun está vinculado ao de civilização e politéia. Khaldun escolhe um panorama para discutir a formação de uma sociedade que é necessária para uma dinastia existir, passa a observar o poder quando já assentado em uma vida sedentária (citadina) e como o homem de poder deveria ou não agir para se comportar diante do tempo cíclico. Nesse sentido, Khaldun nos demonstra claramente os métodos dos jurisprudentes, dos filósofos e da arte da linguística. A História está entremeada em toda essa discussão, pois Khaldun a todo momento busca nos fatos do passado os exemplos à serem seguidos ou refutados. A própria análise da filosofia é um estudo que poderíamos denominar história da filosofia. É no sentido de legitimidade do escrito que a História é apropriada por Khaldun e através dela demonstrou o quanto é 163 Elaine Cristina Senko 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 164 importante a investigação em busca da verdade se utilizando da técnica do tadil wa tajrih (improbatio et justificatio), de demonstrar que o poder perscruta um tempo cíclico e como a sabedoria em diversas áreas é essencial como base para um pesquisador da História. O conceito de assabyia ou espírito de grupo é o que mantém os homens em sociedade. Os berberes foram os que possuíam a assabyia com exemplaridade. Essa ligação entre os homens é tida pelos laços de sangue e de família (clã). O espírito de grupo favoreceu as conquistas para o Império Muçulmano. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). Tradução integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1958, p.226. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit, p.243. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit, p.306. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit, p.326. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit, p.336. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit, p.338. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit, p.339. Os primeiros Companheiros do Profeta Muhammad estavam acima da condição de Califas, mesmo sendo nomeados pelos seus como tais, eles eram os corretamente guiados: Abu Bacr, Umar Ibn Al-Khattab, Uthman Ibn Affan e Ali Ibn Ali Tahib. O Legislador Inspirado é o Profeta Muhammad. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit, p.342. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). Tradução integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1959, p.384. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op.cit, p.255. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op.cit, p.258. KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op.cit, p.260. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval 18 19 20 21 22 “Y con ello, Ibn Jaldún – de cierto, como un „griego‟, como le viera Ortega – busca hacer la historia inteligible, deduciendo sus leyes generales; pero no sin antes haber hecho que el logos griego descendiese lo más sutilmente posible hasta las „entrañas‟ mismas de las redes de pasiones que rigen la vida social. Se le ha comparado especialmente con Tucídides, señalando cómo incluso „aventaja‟ a éste en la percepción de lo puramente social, más allá de la incidencia de individuos y héroes”. BLANCO MARTÍNEZ, Rogelio. “Ibn Jaldún: entre el saber y el poder”. Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, pp.13-22, 2008. BLANCO MARTÍNEZ, Rogelio. “Ibn Jaldún: entre el saber y el poder”. Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p.17-18, 2008. Segundo Martos Quesada: “Y en este punto considero que la visión lienal y providencial cristiana y de su secularización ilustrada en el racionalismo occidental, que – quizá tenga razón Marái Zambrano – ha hecho de la Historia su último y único dios, su ídolo. Ibn Jaldún, lejos de divinizar a la Historia, la separa drásticamente de la trancendencia que él sólo ve en lo supranatural, y de cualquier tipo de providencia que sólo acepta para lo puramente individual”. In: MARTOS QUESADA, Juan. “Presentación”. Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p. 20, 2008. MARTOS QUESADA, Juan. “Presentación”. Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p. 11, 2008. MARTOS QUESADA, Juan. “Presentación”. Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p. 11, 2008. 165 Elaine Cristina Senko 166 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Memória social, memória coletiva e História: um mapeamento da questão Fabio Osmar de Oliveira Maciel A memória e as ciências sociais trilham caminhos próximos. Um marco nesse sentido é a publicação de “Matéria e memória”, ainda em 1897, pelo filósofo francês Henri Bergson.1 Anos mais tarde, nas primeiras décadas do século XX, outro autor inaugurou uma “sociologia da memória”. Maurice Halbwachs, inicialmente discípulo de Bergson2, introduziu uma questão importante e nova ao apresentar a memória como um fenômeno constituído coletivamente. Contrariando Bergson, observou que a materialidade da memória não estava no corpo, mas na sociedade.3 A obra de Halbwachs pode ser compreendida a partir de seu vínculo com as correntes reformistas do socialismo de sua época, bem como as teorias Durkheimianas. Sempre esteve presente em seus escritos a ênfase no conceito de solidariedade e a rejeição à noção de que a natureza humana fosse animada por impulsos subjetivos ou egoístas. A crença no progresso democrático e social fazia parte de seu mundo e a ela foi acoplada a defesa do espírito coletivo e da possibilidade de sua apreensão pelo método científico. A teoria funcionalista, portanto, oferecia uma alternativa não só teórica, mas também política a diversos pensadores.4 Assim, a memória passou a interessar a diversas áreas, como a filosofia, a sociologia e a psicologia. Contudo, pela Fabio Osmar de Oliveira Maciel História, só foi abordada a partir da terceira geração dos Annales, notadamente Jaques Le Goff e Pierre Nora5, embora Marc Bloch6 já houvesse se referido a memória ao criticar Halbwachs: [...] Bloch [...] escreveu um artigo sarcástico criticando a tentativa de aplicar os critérios de objetividade e comprovação empírica aos estudos sobre o passado. Bloch defendia que fatos históricos eram produto da construção ativa do historiador e rejeitava a perspectiva teórica adotada por Halbwachs. Para os historiadores dos Annales, os estudos de memórias coletivas, como quaisquer outros, voltavam-se para a compreensão da causalidade inerente às ações sociais e não poderiam ser derivados de estudos empíricos sobre padrões de comportamento. Apesar da proximidade entre os historiadores da École des Annales com as teses de Durkheim, intelectuais como Bloch defenderam a história enquanto ciência interpretativa e estabeleceram uma demarcação teórica importante no debate da época.7 A relação entre História e Memória é normalmente entendida a partir de uma dicotomia. Para alguns autores a História é um saber científico, onde há rigor e controle, e a Memória uma construção social e emocional a partir de lembranças.8 Algumas críticas caminham no sentido de que as convergências entre Memória e História são superficiais e poucas. Embora o objeto seja o mesmo, a sua apropriação é realizada de forma diferente. Para outros autores, a Memória é “simplificadora”, reduzindo os processos ao que lhe parece mais 168 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Memória social, memória coletiva e História importante, possui uma temporalidade indefinida e simples, tem a necessidade da eleição de espaços emblemáticos, e é repetitiva. Diferente, a História é complexa, com uma temporalidade precisa e uma interpretação da sociedade dinâmica. Possui espaços relativizados, e é elaborada a partir de problematizações.9 Nos estudos para a compreensão da Memória, Maurice Halbwachs tem um papel importante. Nas primeiras décadas do século XX desenvolveu seu trabalho sobre a Memória Coletiva10, contrariando o pensamento da época que via a memória como uma ação individual e subjetiva. Para o autor, a memória é fundamental para a constituição do grupo, e nele é formada. O sociólogo afirma que a memória individual existe apenas a partir da memória coletiva, apresentando-se como um ponto de vista dentro da memória do grupo. Assim, ela é fundamental e necessária para a formação das lembranças individuais, mesmo em eventos que apenas nós estivemos envolvidos. Nunca estamos sós, pois “sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem”.11 Na sua concepção, o indivíduo compartilha das experiências, impressões e lembranças dos outros. Contudo, é necessário que vestígios de um determinado evento do passado permaneçam, sendo importante manter contanto com o grupo, 169 Fabio Osmar de Oliveira Maciel estabelecendo um elo de identificação. Devemos lembrar na qualidade de membro desse grupo, uma participação breve num grupo efêmero não é capaz de evocar lembranças uma vez que ele não existe mais. Mais do que participar é necessário procurar um ponto de contato para que as lembranças se constituam a partir de uma base comum. A descontinuidade leva ao esquecimento, durando a memória enquanto o grupo existir. Assim, a “representação das coisas evocada pela memória individual não é mais do que uma forma de tomarmos consciência da representação coletiva relacionada as mesmas coisas”. 12 Ou seja, toda lógica de percepção, compreensão ou lembrança é dada pela lógica do grupo. Sobre a História, Halbwachs a identifica como uma espécie de cemitério, limitada apenas aos eventos mais marcantes da história nacional, é sintética e não contínua, tecendo com o indivíduo uma relação artificial e de distanciamento. Os acontecimentos ligados a “memóriahistórica” nacional ocorridos num passado muito distante da existência da pessoa, não estão relacionados com a sua vida, são descontextualizados e em nada enriquecem a memória individual, isto pode ser chamado de “história aprendida”. 13 Contudo, o indivíduo é marcado por outra história, pela “história vivida”. 170 Ou seja, determinados fatos e eventos da Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Memória social, memória coletiva e História história, inseridos no seu contexto de acontecimentos – tempo e espaço – marcam determinada geração de uma forma que passam a modelar as personalidades e identidades daqueles contemporâneos aos acontecimentos. Nossa memória não se apóia na história aprendida, mas na história vivida. Por história, devemos entender não uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresenta apenas um quadro muito esquemático e incompleto.14 Para o sociólogo, as noções históricas desempenham um papel secundário, pois serviriam de ponto de apoio, não gerando também nenhuma relação íntima. O indivíduo se forma a partir do meio social em que estava inserido, é neste “passado vivido” que ele constituirá sua memória, e não na “história escrita” ou “aprendida”. No caso da história vivida, “ela tem tudo o que é necessário para constituir um panorama vivo e natural sobre o qual se possa basear um pensamento para conservar e reencontrar a imagem de seu passado”. 15 A História, explica o autor, é uma compilação de fatos, selecionados, comparados e classificados conforme a necessidade. A História começa onde acabam a tradição e a memória. A memória é continua e “natural”, pois ela retém o passado que ainda está vivo no grupo. A história para 171 Fabio Osmar de Oliveira Maciel Halbwachs é descontínua, dividida por períodos, cada um encarado como um todo, sem ligação com os demais. A História é só uma, diferente da Memória Coletiva, que são muitas, existindo tantas memórias quantos grupos existirem. 16 Apesar da importância de Halbwachs, a idéia de Memória Coletiva traz um problema, uma vez que existe sobreposta e separada dos indivíduos. A memória coletiva relaciona-se às recordações comuns, hegemônicas e oficiais, dando uma idéia de uma única concepção de passado, presente e expectativa de futuro.17 Falar em memória coletiva é mascarar conflitos, pois ela é dotada de um caráter uniformizador.18 Nesse sentido a memória coletiva é apenas o somatório das memórias individuais a partir de uma espécie de identidade coletiva. Melhor é o uso da categoria “memória social”, por se entender que são os atores sociais que elaboram e processam as memórias, dando sentido a comunidade e a construção de identidades sociais. 19 172 [...] não podemos esperar uma relação direta e linear entre o individual e o coletivo. Os registros subjetivos da experiência nunca são reflexos de eventos públicos, de modo que não podemos esperar encontrar uma “integração” ou “ajuste” entre as memórias individuais e memórias públicas, ou a presença de uma memória única. Há contradições, tensões, silêncios, conflitos, lacunas, disjunções, bem como lugares de encontro e até mesmo Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Memória social, memória coletiva e História “integração”. A realidade social é complexa, contraditória, cheia de tensão e conflito. A memória não é uma exceção.20 Halbwachs não identifica a Memória Coletiva como uma imposição ou sendo coercitiva, mas sim observa nela uma função positiva, de coesão social realizada através de uma adesão afetiva.21 Contudo, podemos verificar que a memória coletiva, assim como a memória nacional, trabalha com processos de enquadramentos e, conseqüentemente, inserem-se em espaços de disputas. A partir da década de 1960-70 algumas concepções foram mudando, principalmente com a emergência das fontes orais. A memória, assim, não deve ser simplificada a idéia de que é “redutível a um pacote de recordações”. A memória é um processo constante de construção e reconstrução, ela é fluída e mutável. 22 É importante mencionar também que falar em memória e falar em esquecimento e silêncio.23 Se a memória costuma ser automaticamente correlacionada a mecanismos de retenção, depósito e armazenamento, é preciso apontá-la também como dependente de mecanismos de seleção e descarte. Ela pode, assim, ser vista como um sistema de esquecimento programado. Sem o esquecimento, a memória humana é impossível.24 A interpretação de Maurice Halbwachs sobre a memória é limitada pelo seu contexto de elaboração. Sua análise não dá 173 Fabio Osmar de Oliveira Maciel conta de elementos inerentes da contemporaneidade, nem da diversidade de memórias cada vez mais fragmentárias. [...] as velhas abordagem sociológicas da memória coletiva – tal como a de Maurice Halbwachs, que pressupõe formações de memórias sociais e de grupos relativamente estáveis – não são adequadas para dar conta da dinâmica atual da mídia e da temporalidade, da memória, do tempo vivido e do esquecimento. As contrastantes e cada vez mais fragmentadas memórias políticas de grupos sociais e étnicos específicos permitem perguntar se ainda é possível, nos dias de hoje, a existência de formas de memória consensual coletiva e, em caso negativo, se e de que forma a coesão social e cultural pode ser garantida sem ela. Está claro que a memória da mídia sozinha não será suficiente, a despeito de a mídia ocupar sempre maiores porções da percepção social e política do mundo.25 Ampliando o debate, nos apropriando das considerações de Pollak26, podemos verificar que além da memória constituída a partir de acontecimentos vividos pessoalmente, há também aquela constituída a partir de acontecimentos que “vivemos de tabela”. Há nesses casos, por meio de uma socialização política ou histórica, uma projeção, funcionando como uma espécie de “memória herdada” que está relacionado ao sentimento de identidade. Aí a importância dos “lugares de memória”, categoria elaborada por Pierre Nora.27 Esses lugares são espaços onde a memória se cristaliza, abrigando-se. Nora assinala o fim da memória a partir da aceleração da História. Como não mais 174 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Memória social, memória coletiva e História habitamos nossas memórias, há a necessidade de lhe consagrar “lugares”.28 Em Nora, o debate sobre a relação História e Memória é retomado ao apresentá-las como opostos. A memória é viva, em permanente mudança, afetiva e espontânea, vivida sempre no presente. É fruto da interação entre lembrança e esquecimento. A história, por outro lado, é uma representação incompleta e problemática do passado, é laicizante. Diferente, a memória se alimenta das lembranças, é múltipla, relacionada a quantos grupos existirem. A história tem um caráter universal, é relativa, deslegitimadora e dessacralizadora do passado vivido. O uso da memória pela História consolidou-se, nos primeiros anos da década de 80 do século vinte, com a organização, pelo historiador francês Pierre Nora, de uma grande coletânea de artigos sobre o que ele denominou lugares de memória [...]. Na introdução deste trabalho [...] Nora contrastou as abordagens ao passado pela história e pela memória. Enquanto a história estaria associada a narrativas lógicas e lineares, mas vazias de conteúdo sobre o passado, as memória coletivas seriam aquelas que resultariam de movimentos vivos e lembranças transmitidas entre gerações. A proposta do historiador passa a ser a de estudar os “lugares de memória”, ou seja, os lugares simbólicos constituídos pela e constitutivos da nação francesa. Para ele, como para diversos outros historiadores, fala-se muito em memória, porque nada mais restou do passado.29 175 Fabio Osmar de Oliveira Maciel Contudo, a concepção de Nora dos “lugares de memória” deve ser relativizada. Andreas Huyssen, além de criticar a limitação da concepção de Halbwachs, reavalia a construção de “lugares de memória” pensados por Pierre Nora, uma vez que esses lugares são compensatórios e nostálgicos, o que passa uma idéia de engessamento da memória. Essa visão pessimista do esfacelamento da memória apresentada por Nora passa por uma reavaliação, pelo próprio autor, que passa a evidenciar uma “emergência da memória”. Entre os fatores que levaram a essa mudança em relação ao passado, o autor descreve: [...] Uma crítica das versões oficiais da história; a recuperação dos traços de um passado que tenha sido apagado ou confiscado, as raízes culturais; ondas comemorativas do sentimento; conflitos em torno lugares simbólicos ou monumentos; a proliferação de museus; forte sensibilidade para a retenção de acesso ou de exploração de arquivos, um acessório renovado para que em inglês é chamado de "heritage", e em francês “patrimoine”; a decisão judicial do passado. Seja qual for a combinação que estes elementos possam ter, é como uma onda de recolhimento que quebrou em todo o mundo e que, em todos os lugares, elos de lealdade para com o passado - reais ou imaginários - e do sentimento de pertencimento, a consciência coletiva e autoconhecimento . Memória e identidade.30 O autor assinala também o processo de “aceleração da história”, que sobrecarrega o presente com essa imperiosa 176 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Memória social, memória coletiva e História “obrigação de recordar”, assim como o processo de “democratização da história”, que representa a emergência das memórias de grupos minoritários, no qual a recuperação do passado está diretamente ligada com as afirmações de identidades. Enquanto a história está relacionada aos grupos poderosos e hegemônicos, a memória dá voz às minorias. O trabalho de Andreas Huyssen também identifica a emergência da memória como um fenômeno presente nas “preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais”. Esse “passado presente” se dá principalmente a partir da década de 1960, num contexto do processo de descolonizações e de surgimento de movimentos sociais, como uma forma de procurar histórias alternativas e revisionistas, passando por uma aceleração na década de 1980, impulsionada em torno dos debates sobre o Holocausto, principalmente através da mídia. A história para o autor possui um caráter positivo, mas desde que seja um novo modo de “escrever a história”. É essa História que será capaz de garantir “um futuro de memória”.31 No cenário mais favorável, as culturas de memória estão intimamente ligadas, em muitas partes do mundo, a processos de democratização e lutas por direitos humanos e à expansão e fortalecimento das esferas públicas da sociedade civil. Desacelerar em vez de acelerar, expandir a natureza do debate 177 Fabio Osmar de Oliveira Maciel público tentando curar feridas provocadas pelo passado, alimentar e expandir o espaço habitável em vez de destruí-lo em função de alguma promessa futura, garantindo o “tempo de qualidade” – estas parecem ser necessidades culturais ainda não alcançadas num mundo globalizado, e as memória locais estão intimamente ligadas às suas articulações.32 Uma aproximação entre Memória e História pode ser vista também em Michel Pollak O sociólogo observa a importância de uma área específica da história, a História Oral. Seu objetivo é de utilizar a história para trazer para a superfície as “memórias silenciadas”. A oposição para o autor não está na relação História/Memória, mas entre a memória oficial e as “memórias subterrâneas”, e desta forma abrindo espaço para os excluídos e marginalizados pela versão oficial. Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a memória nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma regra metodológica e reabilita a periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são 178 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Memória social, memória coletiva e História escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes.33 A memória é uma construção realizada a partir de um “trabalho de enquadramento”, muitas vezes realizado por historiadores.34 A memória é construída social e individualmente e assim como qualquer documento é uma reconstrução passível de crítica pelo historiador.35 Há nesses processos de enquadramento da memória, através, por exemplo, das criações de datas cívicas e comemorações, a formatação daquilo que deve ser lembrado ou esquecido. Há hoje uma “preocupação documental de nossa sociedade e a preparação da memória futura”. Há com isso uma expansão da memória no campo da cultura material, seja ela em coleções privadas ou institucionais e museus. 36 A memória não deve ser identificada como um “almoxarifado” do passado, ela é subordinada a uma dinâmica social. Sua elaboração se dá no presente a partir de questões do próprio presente, onde recebe incentivo e se efetiva.37 Desta forma, “a memória é filha do presente. Mas, como seu objetivo é a mudança, se lhe faltar o referencial do passado, o presente permanece incompreensível e o futuro escapa a qualquer projeto”.38 Sobre sua relação com a História, vale transcrever as considerações de Menezes: 179 Fabio Osmar de Oliveira Maciel A memória, como construção social, é formação de imagem necessária para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional. Não se confunde com a História, que é forma intelectual de conhecimento, operação cognitiva. A memória, ao invés, é operação ideológica, processo psico-social de representação de si próprio, que reorganiza simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, imagens e relações, pelas legitimações que produz. A memória fornece quadros de orientação, de assimilação do novo, códigos para classificação e para o intercâmbio social. Mas do exposto também fica patente que, após o divórcio, nas instâncias acadêmicas, entre memória e História, sobretudo depois que esta passou, cada vez mais, de História-narração e História-problema, as condições atuais de gestão da memória de novo contaminam a História. Se dúvida, na prática profissional, as exigências políticas e os compromissos científicos não deixarão de colocar dilemas eventuais embaraçosos. Entretanto, é possível continuar fixando balizas claras para evitar, não a conspurcação de uma hipotética e indefensável pureza, mas a substituição da História pela memória: A História não deve ser o duplo científico da memória, o historiador não pode abandonar sua função critica, a memória precisa ser tratada como objeto da história.39 Nas últimas décadas, principalmente a partir dos anos 80 no Brasil, o debate sobre a Memória vem se consolidando. Após longos períodos autoritários, há a necessidade de se “fazer lembrar”, intensificando desta forma os debates sobre a(s) memória(s).40 Essa mudança pode ser verificada nos diversos seminários e congressos sobre o tema 41, nas pesquisas acadêmicas e nos programas de pós-graduação42 que tem como 180 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Memória social, memória coletiva e História o objeto ou área de pesquisa a memória social. Essa aproximação com a História se dá, principalmente, a partir dos estudos da História Oral, na busca por histórias alternativas e revisionistas e nas questões relacionadas a constituição da identidade social. Memória e História não significam a mesma coisa, contudo podemos dizer que não há História sem memória, cabe ao historiador problematizá-la. Ambas estão sujeitas as prescrições do presente. Notas de Referência 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), orientado pela professora Doutora Leila Ribeiro. Contato: [email protected] BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Editora Martins e Fontes, 1990. SANTOS, Myrian Sepúlvida dos. Memória coletiva e teoria social. São Paulo: Annablume, 2003. p. 36. Ibidem, p. 49. Ibidem, p. 36. BUSTILO, J. C. “Memoria e historia”. Un estado de La question. In: _______. Memória y Historia. Madrid: Marcial Pons, 1998. p. 200-201. BLOCH, Marc. “Memória coletiva,tradição e costume: a propósito de um livro recente”. In: História e historiadores. Lisboa: Teorema, 1995. SANTOS. op. cit. p. 38-39. BUSTILO, J. C. op.cit. p. 201. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. de Macedo. “Memória e história. Fundamentos, convergência, conflitos”. In: _______. Memória Social e Documento: Uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro: 181 Fabio Osmar de Oliveira Maciel Universidade do Rio de Janeiro. Mestrado em Memória Social e Documento, 1997. 10 Fizemos nossas reflexões a partir da obra A memória coletiva, publicada em 1950 após a morte do autor. 11 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. p. 30. 12 Ibidem, p. 61. 13 Ibidem, p. 74. 14 Ibidem, p. 78-79. 15 Ibidem, p. 90. 16 Ibidem, p. 101. 17 JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memória. Buenos Aires: Siglo XXI editores, 2002. 18 POLLAK, Michel. “Memória, esquecimento e silêncio”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989. p. 4. 19 MAUAD, Ana Maria. História e Memória, TVE Brasil, [20--]. Disponível em: < http://www.tvebrasil.com.br/salto/entrevistas/am_mauad.htm>. Acesso em 5 jun. 2010. 20 JELIN, Elizabeth. op. cit. p. 37. 21 POLLAK, Michel (1989). op. cit. p. 3. 22 MENEZES, Ulpiano Bezerra de. “A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 34, 1992, p. 10. 23 POLLAK, Michel (1989). op. cit. 24 MENEZES, Ulpiano. op. cit. p. 16. 25 HUYSSEN, Andreas. "Passados presentes: mídia, política, amnésia". In: ______. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. p. 19. 26 POLLAK, Michel. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.10, 1992. p. 201-202. 27 NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, dez. 1993. 28 Ibidem, p 8-9. 29 SANTOS. op. cit. p. 87-88. 30 NORA, Pierre. “Memory: from freedom to tyranny”. Memory and History in French Historical Research During the 1980´s the 1990´s, South Africa, 12-19, aug. 2000. Disponível em: <http://www.celat.ulaval.ca/histoire.memoire/histoire/cape2/nora.htm>. Acesso em: 6 set. 2010. 31 HUYSSEN, Andreas. op. cit. 182 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Memória social, memória coletiva e História 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 Ibidem, p. 34-35. POLLAK, Michel (1989). op. cit. p. 4. POLLAK, Michel (1992). op. cit. p. 206. Ibidem, p. 207. MENEZES, Ulpiano Bezerra de. op. cit. p. 12. Ibidem, p. 11. Ibidem, p. 14. Ibidem, p. 22-23. MAUAD, Ana Maria. op. cit. Apenas como ilustração, podemos citar o XIV Encontro Regional da ANPUH-RIO, ocorrido no mês de julho deste ano, que teve como tema “Memória e Patrimônio”. Disponível em: < http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/>. Acesso em: 6 set. 2010. Através do portal da Capes, podemos encontrar cinco programas de pósgraduação, todos pertencentes à área “multidisciplinar”. Disponível em: < http://www.capes.gov.br/>. Acesso em: 6 set. 2010. 183 Fabio Osmar de Oliveira Maciel 184 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Fritzmac e o ano de 1888: A revista de ano como palco de discussões políticas na corte Flávia Ferreira de Almeida “Outros colegas falaram da minha parcialidade na apreciação de certas personalidades políticas. Muito respeitosamente observei que, em política, desde que haja opinião, não pode deixar de haver parcialidade. Eu receiava tal censura, e por isso mesmo só muito instalado escrevi uma revista de 1894, revista que necessariamente devia tocar em alguns fatos políticos ou não prestar para nada (...).” Arthur Azevedo. 2 O presente artigo tem como objetivo pensar a revista de ano Fritzmac, escrita por Arthur e Aluísio Azevedo em 1889, como lugar de expressão de importantes debates políticos que ocorreram na sociedade brasileira, em fins do século, particularmente no ano de 1888. As revistas de ano3 eram peças teatrais que reuniam música e dança para apresentar no início de cada ano um resumo cômico dos principais acontecimentos do ano anterior. Esse gênero teatral se destacou por ter sido voltado para grupos mais “populares”4 da sociedade carioca. Flávia Ferreira de Almeida Fritzmac foi representada, pela primeira vez, na cidade do Rio de Janeiro, no Teatro Variedades Dramáticas5, em 1º de maio de 1889 e teve quarenta e nove encenações; sendo a última no dia 24 de junho do mesmo ano. A revista de ano teve como cenário a cidade do Rio de Janeiro, e seu enredo contou a história do Diabo Pero Botelho, que, com a ajuda do alquimista Fritzmac, criou Mademoiselle Fritzmac da infusão dos sete pecados capitais, incumbida de corromper o país. Contra ela, o Amor criou Amorosa da infusão das sete virtudes opostas aos pecados. Ao chegar à capital do Império, Mademoiselle Fritzmac decidiu por corromper o Barão de Macuco, que passeava pela cidade. Na tentativa de protegêlo, Amorosa travou uma batalha com Mademoiselle Fritzmac, que terminou com a vitória da primeira e a condenação da segunda a ficar no Brasil, vendo o país prosperar. Como se pode ver, o texto incluía questões que incorporavam práticas medievais populares, como o alquimista, temas muito afeitos á literatura romântica, ou seja, a construção de criaturas por homens, com recursos muito impalpáveis como os pecados e as críticas políticas de fundo – à corrupção. Por se dedicar aos acontecimentos do ano de 1888, Fritzmac apresentou em muitas de suas cenas questões relacionadas ao fim da escravidão. Entre essas questões, destaco 186 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Fritzmac e o ano de 1888 a nova condição social dos negros no pós-abolição, a imigração chinesa e a implementação da república. A forma como essas questões foram representadas em revista de ano evidenciaram, por vezes, o posicionamento dos autores em relação a esses debates que tomaram a sociedade carioca naquele momento. Arthur e Aluísio Azevedo eram típicos intelectuais oitocentistas, contudo, entendo essa intelectualidade brasileira baseando-me na definição de Angela Alonso, em Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império, que defende a não existência de uma definição muito clara separando o campo intelectual do político e vice-versa. Segundo a historiadora, a concepção de atuação política era ampliada, não restrita apenas a funções representativas institucionais, e tal atuação podia ser alargada para a defesa de ideias e a formulação de projetos político-culturais, que se manifestavam em obras literárias, revistas, conferências populares, institutos de pesquisa, jornais, teatro, entre outros meios.6 Os irmãos, juntamente com outros homens letrados que viviam na corte, formavam o grupo dos “boêmios”7. Uma das preocupações comuns a esses homens era “pensar a nação” e estabelecer o papel que eles ocupariam nesse processo. Segundo seus ideais, havia a necessidade de superar um passado colonial, entendido como arcaico, e investir no alcance de um futuro, 187 Flávia Ferreira de Almeida pautado nos princípios do progresso e da civilização. Para a concretização desta “nova nação”, era indispensável a conquista da abolição da escravatura e da implementação da república. Esses processos eram entendidos como etapas cruciais para o alcance de uma sociedade moderna formada por homens livres tanto civil quanto politicamente. Suas ideias passaram a ser divulgar, principalmente em jornais, entendidos, naquele momento, como local privilegiado de intervenção, e em obras literárias. A Rua do Ouvidor, no momento em que atuou a geração “boêmia”, caracterizou-se por ser um espaço vivo tanto cultural quanto politicamente. As redações dos jornais, os cafés e os teatros compunham a atmosfera cosmopolita da capital política e cultural no país. Arthur Azevedo foi o principal teatrólogo do gênero revisteiro no século XIX, suas revistas de ano eram sucesso de bilheteria. Durante o período em que esteve na capital do Império, Fritzmac foi divulgada e comentada por colunas de jornais cariocas destinadas aos palcos. As notícias sobre a peça saíam quase que diariamente nos jornais. A estreia de Fritzmac foi relatada como um sucesso de espectadores. O Jornal O Paiz noticiou tal evento na coluna Teatro, em 3 de maio de 1889: 188 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Fritzmac e o ano de 1888 Frotzmac. O teatro Variedades Dramáticas apanhou anteontem a maior casa que tem conseguido desde a sua inauguração. O povo acotovelava-se nas galerias, no poleiro, por trás dos camarotes, nos jardins, em todas as dependências públicas do pequeno edifício de espetáculos.8 No período no qual Fritzmac esteve em cartaz, a lotação do Teatro Variedades apareceu como uma constante nos periódicos cariocas. Pesquisei notícias referentes à revista de ano nos seguintes periódicos: Gazeta de notícias, O Paiz, Cidade do Rio e Revista Illustrada. Todos foram unanimes em comentar o sucesso da revista de ano entre os espectadores. O gênero cômico e musicado havia caído nas graças do público carioca no século XIX. O cotidiano da cidade levado para os palcos de maneira satírica contribuía para o sucesso das peças. Assuntos políticos eram ingredientes indispensáveis para a construção de uma revista de ano. Em Fritzmac, as cenas relacionadas ao término da escravidão evidenciaram, inúmeras vezes, o posicionamento abolicionista de seus autores, pois o evento foi representado como uma grande conquista, muito festeja pela população carioca em geral. A escravidão era vista por muitos abolicionistas oitocentistas como um empecilho ao desenvolvimento do país, 189 Flávia Ferreira de Almeida visto que, refletia uma estrutura arcaica e distante dos ideais de progresso e civilização pautados nos princípios de liberdade dos homens e política. Vejamos um trecho da revista de ano que aborda essa questão: Primeiro Vendedor de Canivetes – Meus senhores, comprai o canivete-abolição! Todos – Bravo! Bravo!(...) Primeiro Vendedor (Mostrando um canivete.) (...) Comprai, comprai todos o canivete! O canivete-abolição extrai, destrói, extirpa, extermina esse calo chamado escravidão, com o qual o país não pode dar um passo para adiante!(...)9 A popularização do projeto abolicionista em cena cria uma ideia de unidade na opinião pública e homogeneiza os habitantes da cidade do Rio de Janeiro, construindo um discurso de que a manutenção do escravismo era algo cada vez mais questionado e indesejado na sociedade. Com o fim da escravidão, muitos debates já existentes acerca da nova condição social do negro começaram a se intensificar. As categorias e identidades socioculturais que compunham o universo escravista deixaram de existir. A estrutura de funcionamento desse universo, caracterizado pela dominação e subjugação da mão de obra cativa, não correspondia mais à nova realidade que se apresentava. Desta 190 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Fritzmac e o ano de 1888 forma, novas identidades sociais começaram a ser elaboradas em uma tentativa de reorganizar novas relações de poder. Segundo Hebe Maria de Mattos, em Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista: Brasil século XIX10, no período posterior ao fim a abolição da escravatura, a liberdade dos ex-escravos passou a ser encarada como ameaçadora da ordem, pois existia o medo da perda do controle daquela massa de libertos e a ideia de que fora do controle do sistema escravista emergiria uma “massa de vadios”. Esse debate foi abordado em Fritzmac. Arthur e Aluísio Azevedo levaram para a peça alguns dos pressupostos que permearam essa discussão na sociedade da época. Na cena a seguir, retirada de um quadro dedicado a representar os cortiços da cidade e seu cotidiano, destaco essa questão: A Mulata (Entrando.) – Me dê uma cama, seu Zé do Beco! (Dando-lhe dinheiro.) – Tem aí mais dois vintém pro café de menhã. Zé – Então tem festejado muito o Treze de Maio? A Mulata – Eu? Ixe! (Traçando o chale sobre o ombro.) Pra cá, mais pra cá! Não sou multa de Treze de Maio, nem dos livros de ouro. Esta aqui para ser livre não precisou de leses. O pai de meu filho pagou minha carta. Eu até acho os brancos faz mal em acabá cos escravo. Agora é que vai se vê o que é vadiação! (Saindo)11 191 Flávia Ferreira de Almeida O discurso de que o término da escravidão geraria a desorganização do mundo do trabalho e a desordem na sociedade aparece no trecho destacado. Na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1888, o ministro Ferreira Vianna elaborou um projeto de repressão à ociosidade. Esse ministro obteve a aprovação quase unânime da Câmara, o que demonstrou uma preocupação por parte de algumas autoridades políticas do país com o posicionamento dos libertos na urbe carioca. Tais autoridades não conseguiam pensar como seria a organização e manutenção do mundo do trabalho sem a política escravista, entendida como provedora da ordem pública. Juntaram-se também a essa questão os argumentos raciais, que classificavam os negros de “incivilizados” e “inferiores”. Sidney Chalhoud, no trecho que se segue, discute a forma como os libertos eram inferiorizados por autoridades políticas e intelectuais do país: (...) Em primeiro lugar, os libertos eram em geral pensados como indivíduos que estavam despreparados para a vida em sociedade. A escravidão não havia dado a esses homens nenhuma noção de justiça, de respeito à propriedade, de liberdade. A liberdade do cativeiro não significava para o liberto a responsabilidade pelos seus atos, e sim a possibilidade de se tornar ocioso, furtar, roubar, etc. Os libertos traziam em si os vícios de seu estado anterior, não tinham a ambição de fazer o bem e de obter um trabalho honesto, e não eram “civilizados” o suficiente para se tornarem cidadãos plenos em poucos meses (...)12. 192 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Fritzmac e o ano de 1888 A ideia de que os libertos não estavam aptos para viver sob as normas que regiam a vida dos cidadãos livres foi amplamente difundida na sociedade carioca, em fins dos oitocentos. Dentro dessa perspectiva, a vida no cativeiro teria comprometido esses indivíduos a um estado de barbárie, no qual os princípios de civilidade não teriam sido difundidos. A discussão sobre o lugar do negro liberto na sociedade juntou-se a outros debates no ano de 1888, que refletiam preocupações com os rumos da nação brasileira. A imigração foi um tema que ganhou grande destaque na imprensa e no parlamento da época, sobre tudo a imigração chinesa. Nesses espaços, discutiu-se a vinda dos imigrantes chineses. Posicionamentos favoráveis e contrários rechearam as páginas dos periódicos. Aqueles que se posicionaram favoráveis à política de imigração alegaram a necessidade de “braços para a lavoura”. Em contraposição, surgiram movimentos de rejeição aos chineses, pautados nos argumentos raciais de construção de uma nação e de uma identidade nacional. Os apologistas da imigração chinesa estavam preocupados com a lavoura e com a economia agrícola do país, pois viam tal imigração como uma medida provisória e não 193 Flávia Ferreira de Almeida como uma iniciativa permanente. Dessa forma, posicionavam-se contrários ao povoamento e à nacionalização dos chineses. Aqueles que eram contrários à imigração chinesa utilizavam a ideia de “inferioridade da raça asiática”, que era respaldada na medicina e em pesquisas que recebiam o status de científicas na época. Rejeitavam-se os chineses como possíveis imigrantes para o país, devido a um medo de que tal imigração pudesse corromper as futuras gerações com a “mongolização da raça” e a aquisição dos hábitos e costumes dos chineses, percebidos como “defeituosos”. Uma questão era consenso entre os opositores e apoiadores da imigração chinesa: ambos consideravam o povo chinês como pertencente a uma “raça inferior”. Respaldados nesse argumento, eles traçavam suas estratégias para brigar pela defesa dos seus ideais políticos. De acordo com Celia Maria de Azevedo, em Onda branca, medo negro: o negro no imaginário das elites – Século XIX, os argumentos raciais eram utilizados tanto pelos apoiadores quanto pelos opositores da imigração chinesa. Para os primeiros, o chinês era ruim e ponto final. Para os segundos, apesar do “defeito inerente à raça chinesa”, esse tipo de imigrante oferecia garantias ao atuar somente como elemento transitório de trabalho; atuação essa garantida pela sua “índole 194 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Fritzmac e o ano de 1888 inferior”, caracterizada pelo “egoísmo”, “atraso” e “aversão” à civilização ocidental. Outro discurso utilizado foi o de que os chineses tendiam à própria autodestruição; portanto, não eram tão ameaçadores. Contudo, a grande assertiva que os proponentes do projeto encontraram para tentar persuadir os contrários foi a de que o chinês era, sim, de raça inferior, mas não tão inferior quanto à do africano.13 Como esse debate marcou o ano 1888, a questão da imigração chinesa apareceu representada na revista de ano Fritzmac. O quadro que abordou a temática reproduziu o discurso racista da época, a partir de uma perspectiva satírica. Destaco a primeira cena do quadro dedicado à imigração chinesa, no qual os personagens Barão de Macuco e Amorosa discutem sobre tal imigração: (Atravessa a cena um grupo de jornalistas, falando todos a um tempo.) [Jornalistas] – Não entendi palavra! O Barão – Discutem a imigração chinesa. Amorosa – Qual é a sua opinião sobre esse assunto? O Barão – A minha? Amorosa – Sim. O Barão – Homem, menina, eu não sou muito contra os chins. Dizem que são ótimos agricultores. Amorosa – Não há dúvida, mas não passam disso. Levam miséria e a corrupção a toda parte (...).14 195 Flávia Ferreira de Almeida No trecho em destaque, o personagem Barão de Macuco se coloca favorável aos imigrantes chineses e defende seu posicionamento com o argumento de que eles eram bons agricultores. Ele representa os fazendeiros que defendiam a vinda da mão de obra asiática para a lavoura brasileira como forma de substituição da mão de obra negra. A personagem Amorosa, contrária posicionamento, à imigração, utiliza-se de para argumentos justificar seu baseados em pressupostos raciais oitocentistas, nos quais o preconceito contra os chineses fica evidente. O quadro prossegue com uma cena que, simbolicamente, representa um dos argumentos mais utilizados por aqueles que eram contrários à imigração chinesa, o da formação de uma nação brasileira “degenerada” pela miscigenação com o povo chinês, que traria para o país os “vícios” e “mazelas” provenientes da raça mongol: Amorosa – Pois deixe mostrar-lhe qual será o futuro da sociedade brasileira, se a sua terra proteger de semelhante imigração. (Agita o braço. Forte na orquestra. Ergue-se o pano do fundo e aparece uma sala no gosto chinês, lembrando ao mesmo tempo as nossas casas atualmente. Fonseca-Tching está assentado, num coxim, fumando ópio e abanando-se com uma ventarola. Continua a música em surdina na orquestra durante o quadro suplementar.) (...)15 196 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Fritzmac e o ano de 1888 Arthur e Aluísio Azevedo representam, de maneira bastante pejorativa e preconceituosa, os hábitos e costumes do povo chinês. A referência ao “vício do ópio” estava em total consonância com os argumentos racializados da época, que classificaram os chineses como um povo corrompido pelo vício e, desta forma, propensos à autodestruição. O grande medo daqueles que eram opositores à vinda dos imigrantes chineses para o país era a da formação de uma nação “mongol” com hábitos da cultura chinesa, vistos, naquele momento, como “defeito” e “inferioridade” de raça. O fim da escravidão potencializou os debates que existiam no Brasil desde a entrada das teorias raciais importadas da Europa. Nesses debates, o país era entendido como um espaço de mestiçagem. Tal característica podia implicar possibilidades ou impossibilidades de progresso e alcance da civilização, ou seja, ao mesmo tempo em que a mescla de raças podia significar a degeneração e a ameaça ao futuro do país. Os debates relacionados aos rumos da nação também diziam respeito ao regime político vigente, ou seja, a monarquia. Nas últimas décadas do século XIX, criou-se uma visão de que os indivíduos que defendiam a escravidão não partilhavam das “novas ideias” difundidas na sociedade. Almejava-se um futuro que visava destruir um passado e tudo o 197 Flávia Ferreira de Almeida que ele implicava. Nesse contexto, a monarquia foi associada à mesma ideia de atraso que caracterizou o sistema escravista. Esse embate político também foi apresentado aos espectadores de Fritzmac: Terceiro Vendedor de Canivetes (Entrando e vendo-se logo rodeado de povo.) – Meus senhores, comprai o canivete-república! Tem uma infinidade de folhas, e mais balança, em que se pesam os direitos do homem, e mais este sacarolhas, que se chama Princípios de 89. O canivete-república extrai, destrói, extirpa, extermina esse velho calo – a monarquia!(...)16 De acordo com Maria Tereza Chaves e Mello, em A república consentida: cultura democrática e científica do final do Império, os canais de propaganda republicana, no Rio de Janeiro, especialmente a partir da década de 80 do século XIX, foram variados. Charges e caricaturas foram utilizadas pela imprensa para fazer crítica ao imperador e ao regime monárquico. Essa propaganda se espalhava na literatura e pelas ruas da cidade, atingindo um público muito mais amplo do que o alfabetizado, reduzindo o prestígio do imperador, criticando a figura real e favorecendo o desapreço pelo regime. 17 A revista de ano Fritzmac foi apresentada aos espectadores cariocas no ano de 1889, meses antes da proclamação da república no país. Ao historicizá-la, aproximei198 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Fritzmac e o ano de 1888 me de importantes debates políticos da época e pude observar como esses debates estavam sendo pensados e reapropriados por membros da intelectualidade carioca oitocentista. Acredito que as revistas de ano eram um espaço de circulação de alguns dos principais debates políticos da época, contribuindo para a divulgação dos mesmos na sociedade carioca. Elas eram instrumentos em potencial para levar as vozes de seus autores para as ruas; atuação característica do grupo ao qual pertenceram Arthur e Aluísio Azevedo, visto que o público das revistas de ano se caracterizava por ser heterogêneo, incluindo indivíduos menos abastados economicamente e analfabetos. As revistas de ano contribuíram na formação de um espaço público politicamente vivo na corte, demonstrando que setores menos abastados da sociedade podiam ter acesso ao que era discutido pelos intelectuais do país. Contestando, desta forma, uma historiografia que defende a alienação de setores mais populares do cenário político carioca oitocentista. Notas de Referência Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Professora Doutora Tânia Maria Bessone. Contato: [email protected] O presente artigo pertence a minha dissertação de mestrado intitulada Fritzmac e o 199 Flávia Ferreira de Almeida ano de 1888: A revista de ano como palco de discussões políticas no Rio de Janeiro oitocentista. 2 AZEVEDO, Arthur. O theatro, em A Notícia. Rio de Janeiro, 10-051895. 3 Segundo o historiador Fernando Mencarelli, o surgimento da revista de ano no seu formato moderno e com tal nomenclatura em Paris, na França, em fins do século XVIII. Descendente direta da Commedia dell’Arte italiana e dos teatros das feiras de Paris, as revistas de ano nasceram voltadas para um público amplo e variado que, em sua grande maioria, era formado por grupos menos abastados socialmente. Ao longo do século XIX, as revistas de ano tornaram-se um gênero de maior escala mundial, espalhando-se pela Europa. Foi via Portugal que o gênero revisteiro chegou ao Brasil. A primeira revista de ano no Brasil foi As surpresas do Sr. José da Piedade, datada de 1859. Tal revista surgiu na cidade do Rio de Janeiro, de autoria controversa. Foi anunciada sem designação dos autores que, hoje sabemos, eram Figueiredo Novais, um funcionário do Tesouro Nacional e membro do Conservatório Dramático, e outro companheiro desconhecido. Cf. MENCARELLI, Fernando Antonio. Cena Aberta: a absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. Campinas SP: Editora da Unicamp, 1999. 4 O teatro de revista, juntamente com outros tipos de peças pertencentes à comediografia ligeira nacional, foi classificado por estudos destinados a analisar o gênero como um teatro “popular”, de “entretenimento” e “comercial”. No entanto, há estudos que comprovam que o teatro de revista carioca também era assistido por grupos mais abastados economicamente e não se restringia apenas aos grupos mais populares; por isso, as discussões que envolvem a análise do público que assistia às peças deve evitar generalizações. 5 O Teatro Variedades Dramáticas foi inaugurado em 21 de maio de 1888, na Rua da Constituição, 3 / fundos com a Travessa da Barreira – Centro do Rio de Janeiro. 6 ALONSO, Angela. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 38. 7 Geração boêmia foi um termo utilizado para fazer referência a um grupo de intelectuais que viveu na cidade do Rio de Janeiro, nas últimas décadas do século XIX. Tal grupo se identificava por ter adotado uma postura de engajamento político e de intervenção social, principalmente na luta pelo fim do regime monárquico e da escravidão. Seus instrumentos de críticas políticas se davam através do humor. 8 Teatro, em O Paiz. Rio de Janeiro, 03-05-1889. 200 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Fritzmac e o ano de 1888 9 10 11 12 13 14 15 16 17 AZEVEDO, Arthur. Fritzmac, em: Teatro de Arthur Azevedo - Tomo III. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 411. MATTOS, Hebe Maria de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista: Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. AZEVEDO, Arthur. Fritzmac, em: Teatro de Arthur Azevedo - Tomo III. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 416. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001, p. 41 – 42. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda branca, medo negro: o negro no imaginário das elites – Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p 150-152. AZEVEDO, Arthur. Fritzmac, em: Teatro de Arthur Azevedo - Tomo III. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 434. Idem, ibidem, p. 435. Idem, ibidem, p. 412. MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV: Editora Edur, 2007, p. 50. 201 Flávia Ferreira de Almeida 202 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação: o IHGB e a criação da “arca do sigilo” Isadora Tavares Maleval [...] falar do passado é o mais fácil que há, está tudo escrito, é só repetir, papaguear, conferir pelos livros o que os alunos escrevam nos exercícios ou digam nas chamadas orais, ao passo que falar de um presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar dele todos os dias do ano ao mesmo tempo que se vai navegando pelo rio da História acima até às origens, ou lá perto, esforça-nos por entender cada vez melhor a cadeia de acontecimentos aonde estamos agora [...], dá muito trabalho, exige constância na aplicação [...]1. Tertuliano Máximo Afonso, professor de história do ensino secundário, propôs uma modificação no ensino da sua disciplina ao diretor de sua escola. A história deveria, então, ser ensinada e até mesmo reescrita partindo do presente para o passado, não o oposto, comumente adotado. Tanto o autor da proposta em questão, quanto a própria, são “criaturas” da mente do escritor português José Saramago, em O homem duplicado. Apesar de a narrativa do livro não ser direcionada à problemática da história2, o romancista aproveitou em diversas ocasiões a oportunidade de elaborar noções sobre o tema – como foi feito na passagem com a qual se iniciou este artigo. Isadora Tavares Maleval Para o professor-personagem, a história mais recente – o presente – teria uma importância incontestável para o ensino dos estudantes, mesmo sendo de mais difícil exposição do que o passado, devido à inconstância que lhe é característica. A reflexão do prêmio Nobel português3 sobre o presente na história não deixa de ter validade para as páginas que se seguirão. A ideia de um não lugar do presente na história – ou, ao menos, a grande dificuldade resultada dessa abordagem – nos é cara por também ter uma história, por assim dizer. O projeto de Tertuliano Máximo Afonso fora aqui mencionado por seu caráter inovador, por ser uma ideia demasiado estranha aos nossos olhos, o que se deve a todo um modelo de pensar sobre a história, sua escrita e seu ensino, extremamente moderno, como se verá. Eis aqui o objeto central deste estudo: a história da história contemporânea. Apesar da repetição que torna essa delimitação redundante, poderíamos ir além e dizer que nosso artigo diz respeito à história dos limites de uma história mais recente ao tempo de escrita e, por que não, de ensino. E essa “história da história” que propomos se concentrará principalmente na segunda metade do século XIX no Brasil – bem distante do “nosso” presente, portanto. 204 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação A partir de 1838, com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a história, juntamente com a geografia, passou a ser vista como um problema. Escrever a história da nação independente havia menos de duas décadas era a questão levantada pelos letrados envolvidos na fundação da instituição. Essa tarefa, contudo, longe de ser simples, merecera as mais diversas e assíduas discussões, o que demonstra que “escrever história” naquele momento ainda era algo que carecia de maiores definições. Muito rapidamente, podemos definir a problemática sobre a historiografia, ou seja, a história da escrita da história, até meados do século XIX, tomando emprestadas algumas noções delineadas pelo historiador alemão Reinhart Koselleck. Em seus trabalhos sobre a história dos conceitos, Koselleck demonstra a validade no estudo de conceitos-chave para a compreensão de um período caro da história alemã 4, o advento da modernidade com início na década de 1750 até 1850. Isso significa dizer que conceitos como história, por exemplo, indicariam determinadas concepções de mundo mais gerais para as pessoas que viviam aquele tempo histórico. A maleabilidade daquele conceito, assim como a de outros, permitiriam ao historiador o entendimento de uma dada realidade do passado. Uma mesma palavra, semanticamente inalterada, passaria, 205 Isadora Tavares Maleval então, a agregar variadas significações, compreensíveis a partir de fontes que permitiriam “dar voz” a essas mudanças – tais como dicionários, enciclopédias, entre outras5. No século XVIII, a história ainda era vista como mestra da vida, pautada em exemplos que não só explicariam o presente, como garantiriam um determinado futuro, através da imitação de atuações tidas como positivas e do esquecimento das negativas. Haveria uma compreensão prévia das possibilidades humanas em um continuum histórico6. Passado, presente e futuro estariam unidos e indissociáveis, segundo essa concepção. Tendo como parâmetro a antiguidade clássica, e autores como Cícero, os homens daquele período entendiam que os grandes feitos do passado deveriam ser contados no presente porque ensinariam alguma coisa às novas gerações. Ao estudar o final daquele século, o historiador alemão percebeu uma modificação interessante. O entendimento sobre o que seria história mudara; o caráter de “mestra da vida” passou, pouco a pouco, a se tornar obsoleto devido a um fator de aceleração do tempo. Naquele momento, passado, presente e futuro se tornavam instâncias separadas. A história apresentava-se, então, sobretudo filosófica. Ocorria a destruição do caráter modelar dos acontecimentos passados, para perseguir em seu lugar “[...] a 206 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação singularidade dos processos históricos e sua progressão”7. A ênfase deslocava-se, portanto, do interesse pelas coisas para o interesse pelos processos8. Aliada a essa modificação, podemos partir do princípio de que, durante as primeiras décadas do século XIX, a história começou a galgar espaço entre as disciplinas “científicas”, tais como as ciências da natureza. Para demonstrar certo distanciamento das artes literárias, ou mesmo da poesia, sua grande companheira na antiguidade clássica, a história carecia de procedimentos teóricos e metodológicos que pudessem legitimá-la dentro desse novo modelo. Aos poucos, e essa é um pouco a história que pretendemos trabalhar, esses procedimentos técnicos seriam configurados e passariam a ser incorporados por todos aqueles que pretendessem “fazer” história. Nesse novo modelo, a crença nos sentidos humanos tornava-se cada vez mais obsoleta. A história-ciência tomaria para si critérios típicos das ciências biológicas, como, por exemplo, a ideia de que o mais importante não era mais o que “olho via”, mas sim o que os experimentos críticos ofereciam ao estudioso. Em outras palavras, o que vigorava nesse modelo científico era a desconfiança nas faculdades humanas e a perda da capacidade reveladora dos sentidos9. 207 Isadora Tavares Maleval Grosso modo, a verdade tornou-se uma categoria apenas tangível a partir de operações bem definidas, e os estudiosos da disciplina histórica deveriam recorrer a técnicas que foram, aos poucos, sendo legitimadas. Em primeiro lugar, um esforço de catalogar as fontes, que, naquele momento, tiravam o lugar da testemunha ocular, tão importante para a historiografia antiga. Essa documentação deveria ser colecionada para, em um momento posterior, servir de fonte para as grandes sínteses da história, a partir de abordagens críticas bem rígidas. Essa crítica, por sua vez, só poderia ser atingida através de critérios de objetividade específicos, dentre os quais o ideal de imparcialidade. Notamos que esse “passo-apasso” foi seguido firmemente pelo IHGB, desde o discurso de sua fundação realizado em 183810. Além disso, o IHGB pode ser tomado como exemplo para a identificação de outro tipo de premissa moderna para a concepção de história. Todo o trabalho descrito anteriormente, de catalogar fontes e produzir sínteses, deveria também ser feito a partir de um lugar. O historiador passaria a ser identificado a um grupo, uma instituição que o legitimaria enquanto profissional11. De acordo com Valdei de Araujo, [...] novas expectativas exigiam também novos talentos do “historiador”, que já não poderia ser apenas o panegerista ou o cronista seco que se limitava ao relatório dos “sucessos” 208 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação contemporâneos. [...] sobrecarregado de novas exigências, o “historiador” vê-se ameaçado de julgamento. A qualidade de sua obra está em jogo, pois age apenas como o instrutor de um processo, cujo trabalho deve ser avaliado no que concerne à imparcialidade, fontes e crítica12. Assim, para garantir que o ideal de imparcialidade fosse respeitado dentro dessa operação historiográfica13, o presente deveria ser mantido fora do alcance da historiografia. O lugar de onde se narrava deveria ser um não-dito, jamais explicitado em uma história científica 14. Para Koselleck, à medida que o moderno conceito de história (Geschichte) consolidou-se, o registro de uma “história do presente” tornou-se cada vez menos digna: a testemunha ocular, tão marcante na historiografia antiga, perdia a posição central dentro da escrita da história. Uma nova crença indicava que a distância temporal entre o objeto da história e seu pesquisador não era fator dificultoso para a criação do conhecimento histórico. Muito pelo contrário: quanto maior o distanciamento dos fatos estudados, melhor a apreensão imparcial do conhecimento desejado. A história do presente tornava-se fraca, e o passado deixava de ser mantido na memória e na tradição oral, passando a ser reconstruído apenas através de procedimentos críticos 15. 209 Isadora Tavares Maleval Por outro lado, uma questão que assume força quando o assunto é o lugar do presente em narrativas historiográficas é a temeridade política que emerge desse assunto. Explicando melhor: se hoje, em pleno século XXI, tratar da história do tempo presente ainda é visto por alguns acadêmicos como algo problemático e contraditório, isso se deve também a uma visão de que o presente não deve ser objeto da história por causa da proximidade com eventos que podem ser ainda muito traumáticos. O caso da Segunda Guerra Mundial demonstra bem essa questão. Apesar de passadas algumas décadas desde o fim daquele conflito bélico, foi somente na década de 1970 que os arquivos sobre o período foram abertos aos pesquisadores 16. O trauma causado pelo conflito, além do fato de pessoas – “agredidos” e “agressores” – ainda estarem vivas complexificou o processo de abertura dos arquivos17. O mesmo pode ser identificado com os arquivos do período da ditadura militar aqui no Brasil18. Ora, nos dois exemplos citados acima, o que fica perceptível é o receio que se tem, ainda hoje, de falarmos de um contexto político e social problemático que nos é próximo. Até mesmo nosso contemporâneo Eric Hobsbawm fez referência às dificuldades pelas quais passou ao escrever sobre o tempo presente em A era dos extremos. Se, de um lado, dizia que “Se o 210 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação historiador tem condições de entender alguma coisa deste século é em grande parte porque o viu e ouviu” 19, recriando de certo modo o paradigma antigo de Tucídides, de outro lado, assume os riscos de contar com a própria experiência, tendo em consideração que a falta de parcialidade pode ser tomada como algo que desmerecesse a função de historiador20. Se até hoje essa é uma visão que permanece (sobre a dificuldade que existe para o historiador trabalhar com o tempo presente), podemos dizer que esse é um paradigma consolidado em meados do século XIX. No caso do Brasil, os eventos pósIndependência foram demasiadamente dramáticos e reveladores de uma falta de coesão entre os diferentes cantos do país. As revoltas do período regencial, caso fossem narradas em histórias do Brasil escritas pouco tempo depois, acabariam demonstrando a falta de unidade do Império, e unidade era palavra cara para aquele contexto. A construção e a consolidação do estado imperial necessitavam também de esquecimentos21. Ao presente (ou ao passado recente) turbulento restava a posteridade, à qual era conferida o papel de juíza dos acontecimentos. Os exemplos da Revolução Pernambucana (1817) e da Farroupilha (1825-1835) deveriam ser relegados ao “tribunal da posteridade” 22, pois “[...] rememorar os acontecimentos históricos recentes implicaria em 211 Isadora Tavares Maleval trazer à tona uma série de contradições, dúvidas e até mesmo rivalidades pessoais, que em nada poderiam contribuir para o fortalecimento das debilitadas instituições monárquicas” 23. Soma-se a isso o fato de que nessa “sucessão de conflitos internos mal resolvidos” desde antes do Primeiro Reinado, tiveram em grande medida envolvidos os fundadores do próprio Instituto Histórico 24. No dizer de Lúcia Guimarães, na Revolução de 1817, por exemplo, “[...] figuravam dois ilustres confrades: o brigadeiro Francisco Soares de Andréa e o marechal Cunha Matos, este último um dos fundadores do IHGB”25. Isso explicaria, inclusive, o “esquecimento” produzido pelo instituto com relação ao evento revoltoso em Pernambuco. De acordo com a mesma historiadora, a Revolução de 1817 seria mantida em segredo até 1853, quando, pela primeira vez na Revista da instituição um manuscrito relacionado ao tema foi tornado público26. Tendo em vista essa situação, desde o discurso de fundação do IHGB, Januário da Cunha Barbosa já aventava a possibilidade da conservação em arquivos para documentos relacionados aos tempos recentes. Dizia ele: O circunspecto gênio do historiador, sentando-se sobre a tumba do homem, que aí termina suas fadigas, despreza argumentos de partido e conselhos de lisonja, portando-se em seus juízos como austero sacerdote da verdade. A forma dos grandes homens, rompendo as trevas da antiguidade, tem chegado a 212 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação nós com os documentos de seus méritos acrisolados pela história: ela assim premia a virtude muitas vezes perseguida, restituindo à veneração dos homens a memória daqueles que dela se fizeram dignos27. O historiador deveria, então, sentar sobre a “tumba do homem” para poder, aí sim, explorar a documentação resultante daquele momento. Deveria ser, portanto, imparcial e desprezar “argumentos de partido”. Na 24ª sessão do instituto, datada do dia 22 de outubro de 1839, era feita a leitura da carta do general José Inácio de Abreu e Lima, que, além de ofertar uma obra de sua autoria – o Bosquejo historico, politico e litterario do Brazil – oferecia um manuscrito “[...] cujo valor é hoje inestimável; pelo que muito desejaria vê-lo quanto antes publicado, para que não se perdesse a relação de um acontecimento tão extraordinário, e tão notável em a nossa moderna história”28. O documento em questão era uma carta escrita pelo capitão-general da província de Pernambuco Caetano Pinto de Miranda Montenegro (depois marquês da Praia Grande), endereçada ao então secretario de estado, conde da Barca, no contexto da Revolução Pernambucana. Apesar de recebidas com “especial agrado” pela instituição, as ofertas de Abreu e Lima não tiveram o destino que o doador esperava. Pelo menos não a segunda. A Comissão 213 Isadora Tavares Maleval de História do instituto, reunida com o fito de dar pareceres a obras de cunho historiográfico ou mesmo a documentos desse porte, foi desfavorável à publicação do documento. Em sessão do dia 19 de dezembro de 1839, Manoel Ferreira Lagos, segundo secretário da instituição, representava a opinião da Comissão, ao dizer que a publicação da documentação que consiste na participação do governador de Pernambuco na revolução de 1817 havia sido vetada, pois [...] conquanto um tal documento seja na verdade de muito apreço, não convém publicá-lo já, pelo comprometimento que sua publicação poderia levar a pessoas ainda existentes; [...] que seja guardado nos Arquivos do Instituto, até que todos os nomes nesse mencionado documento tenham comparecido perante o tribunal da posteridade29. Foi nesse contexto que surgiu uma proposta interessantíssima entre os sócios do Instituto Histórico. O botânico Francisco Freire Allemão, sócio correspondente da instituição desde 16 de fevereiro de 1839 (e depois sócio efetivo), teve poucas participações relevantes na instituição. Podemos citar apenas duas: em 1847, dando parecer às memórias de Karl Von Martius que acabaram ganhando o prêmio da instituição sobre o melhor plano para escrever a história do Brasil; e, em 1850, quando entrou em discussão com 214 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação Manoel Joaquim Pereira da Silva sobre os vocábulos da língua geral brasiliense30. Apesar dessa aparente pouca notoriedade de Allemão como membro da instituição no que dizia respeito às discussões sobre a escrita da história nacional, foi dele que partiu, em dezembro de 1847, a proposta sobre uma arca “fechada com duas chaves”, uma das quais ficaria a cargo do Ministro do Império e a outra ao diretor do Arquivo Público, para que nela – na arca – “[...] se conservem debaixo de sigilo as notícias históricas contemporâneas que alguém queira enviar ao mesmo Instituto, notícias que virão lacradas em cartas, e só serão abertas no tempo em que seu autor o determinar” 31. A “arca do sigilo”, como daí por diante seria chamada, longe de ser uma abstração para designar o papel relegado ao futuro de documentos que versassem sobre o tempo recente da nação brasileira, tal como a expressão “tribunal da posteridade”, possuía uma materialidade inquestionável. Seria um “cofre forte” onde documentos e obras sobre eventos do presente, ou de um passado ainda muito recente e traumático, deveriam ser resguardados para não ocasionar perigo à paz que se queria reinante, naqueles tempos ainda turbulentos. Vale lembrar o pouco tempo de existência do Segundo Reinado, iniciado após a Maioridade de D. Pedro II em 1840. 215 Isadora Tavares Maleval A proposta sofreu julgamento por parte dos sócios da instituição, mas parece que foi aceita sem grandes sofrimentos. Naquela mesma sessão houve a aprovação, ficando apenas em aberto a maneira com que seria desenvolvida daí para frente a construção da arca e os demais tópicos relacionados ao assunto. Tal posição só apareceria, contudo, dois anos mais tarde, em sessão do dia 16 de fevereiro de 1850, honrada com a presença do Imperador do Brasil. Em discussão, a proposta de Freire Allemão foi mais uma vez tomada como imprescindível para a instituição, pela “[...] máxima utilidade de haver um depósito particular para os escritos cuja publicação não se deve fazer antes de um tempo determinado”32. A Comissão de História parecia não duvidar que a proposta em questão devesse ser posta em prática logo. Nas palavras dos sócios Manoel de Araujo Porto-Alegre, Francisco Freire Allemão e Manoel Ferreira Lagos, A comissão crê que um utilíssimo resultado se colherá da criação deste arquivo secreto, além dos que já teve a honra de ponderar: a arca do sigilo vai ser o depósito da consciência íntima de muitos escritores, que não levarão à sepultura verdades essenciais à história de um país, vai ser o juiz póstumo do caráter de todos os autores principais da cena do nosso mundo, e revelar fatos que tornariam a história obscura, forçando os escritores futuros a tatearem no mundo das conjecturas e das probabilidades. Além disto, o temor dos escritos secretos dos contemporâneos, da divulgação de crimes documentados, o pressentimento de uma 216 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação funesta herança para os descendentes daqueles que souberam iludir seus contemporâneos, fará com que muitos homens recuem e que procedam mais assisadamete [sic] nos seus atos alistando-se de preferência no mundo do idealismo, no domínio da razão, do que num pernicioso e temporário individualismo33. Os artigos que regulamentariam a “arca do sigilo” foram postos em votação alguns meses mais tarde. Após longa discussão, foram aprovados os artigos com algumas emendas. O material a partir do qual seria feita a arca, por exemplo, que antes constava como sendo de “[...] madeira incorruptível, precintada [sic] de ferro”, agora deveria ser totalmente de ferro34. Toda essa discussão visava garantir um consenso sobre a importância de um cofre desse porte. Informações como o material que deveria ser utilizado para a feitura da arca, bem como a forma como deveriam ser embalados os documentos, demonstram todo um ritual em torno de escritos que deveriam ser mantidos em segredo naquele momento, só podendo ser revelados na época que o autor considerasse pertinente. Ainda há muito a ser desvendado sobre a “arca do sigilo”. Temos, porém, alguns indícios que mostram que ela foi efetivamente utilizada por homens que tinham relação próxima com o instituto. 217 Isadora Tavares Maleval Um exemplo disso escapa ao período aqui exposto, mas permanece de nosso interesse não só pela utilização da “arca”, quanto pelo fato de o doador do documento ter sido um homem de extrema relevância para o estado Imperial. Após a queda da família real e o início do período republicano, um monarquista assumido resolvera escrever suas memórias sobre os mais distintos fatos que permearam sua própria vida. Esse homem era Alfredo D‟Escragnolle Taunay, e sua obra fora intitulada Trechos de minha vida, encetada em 1890, e que posteriormente ganharia o título de Memórias. Os manuscritos deveriam, contudo, ser abertos ao público somente após um lapso de tempo, conforme o próprio autor indicava: “Estas Memórias só podem, só devem ser entregues à publicidade depois de 22 de fevereiro de 1943, isto é completos cem anos da época do meu nascimento, ou cinquenta anos de 1893 [...]”35. Para isso, teve a ideia de confiar os manuscritos aos auspícios do IHGB, depositando-os na “arca do sigilo”. O instituto deveria conservar, “sob zelosa custódia”, os documentos, até a data indicada para a publicação – depois de 1943. Isso não sem antes consultar também o descendente mais direto do escritor. Os manuscritos foram, então, pouco a pouco – na medida em que eram escritos por Taunay –, guardados na tal 218 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação “arca” do instituto: “Foram os livros envoltos em papel impermeável, arsenicado [sic], e, novamente, em papel alcatroado, sendo o invólucro, em diferentes pontos, lacrado, com o sinete do depositante, sobre uma rede de fios metálicos”36. Motivos diversos fizeram com que as Memórias de Taunay fossem retiradas do depósito no IHGB algum tempo depois daquele prazo estipulado pelo autor, em 1946. Naquele mesmo ano, seriam publicadas através do esforço dos filhos do memorialista, Afonso e Raul de Taunay. O fato é que, para o Taunay-pai, trazer a público uma série de memórias suas sobre o período monárquico parecia-lhe, apesar de sua aparente falta de ligação com o novo regime institucional republicano, perigoso. Também neste caso, o “tribunal da posteridade” é acionado – pelo próprio autor, não pela instituição histórica. *** Os exemplos aqui citados tiveram como objetivo demonstrar como, em determinadas ocasiões, homens ligados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro acabaram colaborando com uma visão de história que percebia o afastamento temporal com o objeto de estudo – a nação brasileira – como parte dos métodos que deveriam adotar para a 219 Isadora Tavares Maleval constituição de uma história-ciência. Claro está, por outro lado, que propostas como a da “arca do sigilo” muito tinham a ver com a situação política vivida pelo Brasil imperial, e com o temor que existia entre os letrados de comentar sobre os fatos recentes da vida política do Estado. Notas de Referência 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 220 Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutoranda na mesma Instituição, orientada pela Professora Doutora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Contato: [email protected] SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 71. No caso, o romance conta a saga de Tertuliano Máximo Afonso que, ao assistir um filme em vídeo, encontra um homem igual a ele, seu duplicado, e resolve desvendar tal mistério. Reflexão muito provavelmente inspirada nas ideias do filósofo e historiador marxista Benedetto Croce (1866-1952). Podendo ser, contudo, utilizado em outras realidades, como a brasileira. Como exemplo, ver, entre outros, o trabalho de ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo. Conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. Idem. Ibidem, p. 43. Idem. Ibidem, p. 54. ARENDT, Hanaah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 88: “[...] [processos] dos quais as coisas iriam em breve se tornar subprodutos quase que acidentais”. De acordo com a autora, a idéia de processo seria o grande diferencial da concepção moderna de história. Idem. Ibidem, p. 95. Idem. Ibidem, p. 84-85. De início, o Instituto procurava realizar um trabalho arquivístico, fato que demonstraria a boa receptividade de uma noção mais antiga de história, pautada mais no trabalho antiquário do que na crítica Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação 11 12 13 14 15 documental. De acordo com Lúcia Guimarães, a instituição, naquele primeiro momento, estava mais preocupada em coletar dados e documentos relativos ao Brasil nos arquivos do país ou do exterior, do que em analisar esse tipo de documentação nos termos de uma história moderna. Em um segundo momento, após a apreensão de certa quantidade de artefatos documentais, procurava-se interpretar as fontes. Essa fase seria caracterizada pelo início da produção de síntese histórica, anunciada na segunda sessão pública, ocorrida no dia 27 de novembro de 1840. Apesar disso, o próprio imperador D. Pedro II, nove anos mais tarde, ainda indicava a necessidade de uma mudança na produção do IHGB: a coleta de dados deveria ceder lugar à escrita da história nacional. Nesse sentido, alguns pressupostos tornavam-se indispensáveis ao labor historiográfico. Estes, contudo, ainda não haviam sido especificados em termos práticos no Brasil, motivo pelo qual se fazia necessário listar objetivos e métodos que pudessem direcionar o trabalho do escritor de uma obra de cunho histórico. Ver MOMIGLIANO, Arnaldo. “O surgimento da pesquisa antiquária”. In ____. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: Edusc, 2004, p. 90; GUIMARÃES, Lúcia M. P. “Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (18381889)”. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, a. 156, nº 388, jul-set. 1995, p. 459-613; e ROCHA, João Cezar de Castro Rocha. “História”. In: JOBIM, José Luís (org.). Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999, p. 45. Sobre o “lugar social” do historiador, ver CERTEAU, Michel de. “A operação histórica”. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 18. ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. cit., 2008, p. 39. Para a expressão, ver CERTEAU, Michel de. Op. cit., 1988. Idem. Ibidem, p. 18-20. KOSELLECK, R. “Ponto de vista, perspectiva e temporalidade. Contribuição à apreensão historiográfica da história”. In: Op. cit., 2006, p. 174: “O registro de um „história do tempo presente‟ [Zeitgeschichte] foi perdendo pouco a pouco sua dignidade. Plank foi um dos primeiros a observar que as chances de se atingir o conhecimento da história não diminuíam, ao contrário, aumentavam, à medida que aumentava também a distância temporal. Com isso, a testemunha ocular foi derrubada de sua posição privilegiada [...] a idéia de que quanto mais o tempo avança mais compreensível se torna o passado é um produto da filosofia do progresso pré-revolucionária”. 221 Isadora Tavares Maleval 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 222 Havia um acordo para deixar um espaço de 30 anos após o fim da guerra para a abertura dos arquivos. HOUSSO, Henry. La hantise du passé. Entretien avec Philippe Petit. Paris, Les Éditions Textuel, 1998. Lembrando que hoje, no ano de 2010, há uma grande manifestação política para a abertura desses arquivos, com abaixo-assinados e propaganda massiva dos meios de comunicação. HOBSBAWM, E. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 8. Idem. Ibidem. A respeito da associação entre esquecimento e consolidação do ideal nacional, ver RENAN, Ernest Renan. O que é uma nação? In: ROUANET, Maria Helena (org.). Nacionalidade em questão, Cadernos da Pós/Letras: UERJ, 1997. Pelo menos essa era a posição tomada com relação à escrita da história. Temos exemplos que comprovam que, naquele período, podia ser válido escrever crônicas ou memórias sobre os acontecimentos recentes. GUIMARÃES, Lúcia. “O „tribunal da posteridade‟”. In: PRADO, Maria Emília; GUIMARÃES, Lúcia Maria P. (orgs.). O Estado como vocação – idéias e práticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acces, 1999, p. 34-35. _____. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Ed. Museu da República, 2006, p. 116. Idem. Ibidem, p. 117. Lúcia Guimarães afirma ainda que apenas em 1917, ou seja, no centenário do movimento, é que ele teria sido realmente resgatado para a história produzida pela instituição inclusive como precursor ao 7 de setembro de 1822. Idem. Ibidem, p. 120. BARBOSA, Januário da Cunha. “Discurso”. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geographico do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, t. 1, n. 1, p. 13-14, 1908 (1839). “Ata da 24ª sessão em 22 de outubro de 1839”. RIHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, t. 1, n. 4, p. 282, 1908. “Ata da 29ª sessão em 19 de dezembro de 1839”. RIHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, t. 1. n.4, p. 294-295, 1908. Sobre Freire Allemão, ver SOUZA, João Francisco de. Freire Alemão, o botânico. Rio de Janeiro: Pongetti, 1948. “Ata da 183ª sessão em 9 de dezembro de 1847”. Revista Trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geograhico Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Os segredos da nação 32 33 34 35 36 Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, t. 9, p. 567, 1869. “Ata da 213ª sessão em 16 de fevereiro de 1850”. Revista Trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geograhico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, t. 13, p. 133, 1872. Ibidem, p. 134. “Ata da 216ª sessão em 30 de agosto de 1850”. Revista Trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geograhico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, t. 13, p. 415-416, 1872. TAUNAY, Alfredo D‟Escragnolle. Memórias. Rio de Janeiro: Edições Melhoramentos, 1946, p. 9. Idem. Ibidem, p. 10. 223 Isadora Tavares Maleval 224 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito”: A Trajetória da Dissidência Comunista da Guanabara/ Movimento Revolucionário 8 de Outubro (1964-1973) Izabel Priscila Pimentel da Silva O golpe civil-militar que derrubou o governo democrático do presidente João Goulart em 1964 colocou o Brasil sob uma ditadura que, a rigor, duraria mais de vinte anos e iria perseguir, cassar, censurar, prender, banir e matar as vozes dissidentes. Os partidos e movimentos de esquerda brasileiros sofreram profundamente o impacto do golpe e da derrota sem resistência das forças progressistas, sobretudo o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, mesmo permanecendo na ilegalidade, viveu seu período de apogeu na década de 1960, representando o principal expoente das esquerdas.1 No entanto, embora o PCB fosse a maior força no seio das esquerdas consideradas mais radicais, o “Partidão” – como era apelidado – passou a sofrer a concorrência de grupos políticos mais à esquerda. A contestação ao PCB e o questionamento à sua hegemonia no campo das esquerdas eram feitos por diversas organizações como o Partido Operário Revolucionário (Trotskista), o POR(T), surgido em 1952; a Organização Izabel Priscila Pimentel da Silva Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-POLOP), fundada em 1961; a Ação Popular (AP), formada a partir de quadros da Juventude Universitária Católica (JUC) e constituída entre 1962 e 1963 e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), criado em 1962 a partir de um “racha” no próprio PCB.2 No imediato pré-64, de uma maneira geral, todos esses grupos – do PCB, então a principal força das esquerdas, até as organizações que rivalizavam com ele – confiavam na força das esquerdas. Contudo, o otimismo das esquerdas foi sobrepujado pelo golpe civil-militar das direitas. Um golpe que, praticamente, não enfrentou resistências. Após a vitória dos golpistas, iniciouse um processo de “autocrítica”, de levantamento dos “erros” e busca por “culpados” pela derrota, provocando “sangrias orgânicas irreparáveis nos partidos e movimentos clandestinos atuantes, sobretudo no PCB, principal força das fileiras derrotadas”. 3 Nesse doloroso processo, o mais antigo partido comunista do país assumiria um novo papel – o de bode expiatório.4 Acusado de cautela excessiva e conservadorismo, o PCB perdeu prestígio e influência política, sendo abalado por sucessivas e desgastantes cisões internas. O partido partia-se... O meio estudantil também não passou incólume pelas lutas internas das esquerdas nos anos 1960: entre 1965 e 1968, as 226 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” bases universitárias, em várias partes do país, romperam com o PCB, constituindo as Dissidências Estudantis (DI’s). E, para além dessa oposição externa, o PCB também era pressionado, questionado e confrontado internamente. E seria de dentro das fileiras do “Partidão” que surgiriam rebeldes – dos mais diversos matizes – que iriam desafiar abertamente a direção partidária. As divergências se aprofundariam e tornariam a relação com e a permanência no partido impraticáveis. Um abismo intransponível, onde foram gestados os embriões de organizações revolucionárias que, em pouco tempo, iriam ofuscar o velho partido comunista. “Velho” não só no sentido de antigo, mas de arcaico, ultrapassado, retrógrado, na concepção dessas organizações. Se não era possível mudar o PCB, era preciso mudar-se dele, sair, romper, “rachar”, ir além, partir pra outra e consolidar um novo campo de “novas” esquerdas – dissidentes, alternativas, radicais, revolucionárias. As divergências no interior do PCB – de onde surgiram algumas das organizações da “nova esquerda” brasileira – podem ser divididas em duas vertentes: a primeira era a chamada Corrente Revolucionária, que reuniu nacionalmente diversos setores que se opunham à direção do partido 5; a outra vertente das divergências internas do PCB estruturou-se em torno das chamadas Dissidências, basicamente formadas por 227 Izabel Priscila Pimentel da Silva setores estudantis. As DI’s, como ficaram conhecidas, surgiram em vários Estados, com destaque para Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul. Contudo, seria no então Estado da Guanabara que a Dissidência do PCB alcançaria maior relevância no cenário político e estudantil dos anos 1960. As origens da Dissidência Universitária da Guanabara, que, posteriormente, ficaria conhecida como Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB), remontam ao pré-1964 e às acirradas divergências internas que abalaram o Partido Comunista Brasileiro, em especial suas bases universitárias. Ainda em 1964, surgiu uma fração, reunindo militantes comunistas universitários, contrários aos rumos sugeridos pela direção do PCB. Segundo a definição proposta por Daniel Aarão Reis, o termo “fração”, no jargão comunista, refere-se a um “agrupamento, reunindo militantes de diferentes células, que se juntam para articular posições políticas, à revelia das direções estabelecidas”.6 Os fracionistas eram aqueles que não aceitavam as decisões das maiorias e tentavam articular, por fora das instâncias autorizadas pelo estatuto partidário, determinadas atividades secretas. Como nos estatutos do “Partidão” as frações eram formalmente proibidas, o chamado fracionismo era considerado um grave “desvio”. No caso concreto, quando os estudantes comunistas começaram a organizar sua dissidência 228 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” em relação ao PCB, o fizeram sob a forma de uma fração, clandestina aos olhos da direção partidária. Assim, só sabiam da existência dessa fração os militantes que nela estavam. Essa “fração” era basicamente constituída por estudantes comunistas da Faculdade Nacional de Filosofia e da Faculdade de Direito (pertencentes à atual Universidade Federal do Rio de Janeiro) 7 , unidades onde o PCB contava com um número razoável de militantes que, no entanto, passaram a contestar as orientações teóricas e práticas do Partido. Essa fração difundiuse nas universidades cariocas, atraindo um número cada vez maior de estudantes comunistas, muitos calouros, que já eram convocados a travar a luta interna no “Partidão”. Além disso, os fracionistas chegaram a estabelecer contatos com militantes universitários comunistas de outros Estados. Para tanto, contribuíram a “Ação Popular” e a “POLOP”, que apresentaram contatos e conexões, em outras faculdades na Guanabara e demais Estados. Como estas organizações também discordavam das orientações gerais do PCB e queriam seu enfraquecimento ou desagregação, eram simpáticas ao fortalecimento dos dissidentes do Partido. Não tardaria e essa dissidência clandestina viria à tona, consolidando o abismo que já se instalara entre os pecebistas e os dissidentes. 229 Izabel Priscila Pimentel da Silva Finalmente, em 1966, por ocasião das eleições parlamentares, inserida no contexto de crescente radicalização estudantil e de aprofundamento das divergências com as táticas e estratégias propostas pelo PCB, a recusa em obedecer as orientações do partido culminou no rompimento definitivo dos dissidentes com o Partido Comunista Brasileiro. Assim sendo, em novembro de 1966, o “Partidão” partia-se, novamente. Neste “racha”, muitos militantes – que, na prática, já estavam desvinculados da direção do PCB – abandonaram as fileiras do velho partido comunista e fundaram, agora oficialmente e não mais como fração, uma nova organização. A partir de então, no contexto de crescente mobilização e radicalização do movimento estudantil, a Dissidência da Guanabara encontrou terreno fértil para sua organização e consolidação no meio estudantil e político nacional, garantindo seu lugar entre as organizações de esquerda mais atuantes e combativas no pós-1964 e cuja atuação, um pouco mais tarde, romperia os limites universitários. Após superar, em 1967, um processo de luta política interna8, a DI-GB traçou uma trajetória ascendente, inserida no contexto de ebulição do movimento estudantil brasileiro, sobretudo no emblemático ano de 1968, quando, em todo o mundo, a revolução ganhava corações e mentes. Ao privilegiar 230 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” as reivindicações de caráter estudantil, sem perder de vista as bandeiras da luta política mais geral, a DI-GB viu seu prestígio aumentar, juntamente com seu poder de mobilização, que, em 1968, alcançou seu maior grau. Assim sendo, a Dissidência da Guanabara exerceu liderança inconteste no movimento estudantil carioca, ao mesmo tempo em que ampliou sua expressão nacionalmente.9 A década de 1960, e em especial o ano de 1968, foi marcado também por uma verdadeira efervescência cultural, que desafiava as normas e costumes estabelecidos. A rebeldia ultrapassava os limites da política e a contestação ao sistema significava também a contestação de um estilo padrão de vida. Revolução sexual, pílula anticoncepcional, emancipação feminina, Cinema Novo, Tropicalismo, psicodelismo, hippies, “paz e amor”... Os projetos e aspirações desta geração que experimentou conjuntamente novas formas de criar, na arte e na vida, eram tão revolucionários quanto as propostas das organizações de esquerda, sobretudo as que pegaram em armas. Mas, logicamente, tratava-se de um outro projeto de revolução. E esse projeto alternativo foi absorvido de forma restrita pelas organizações da esquerda armada, que, em sua maioria, embora radicalizadas politicamente, eram conservadoras do ponto de vista comportamental. Nesse sentido, a DI-GB destacou-se 231 Izabel Priscila Pimentel da Silva como a organização que mais se apropriou dos valores de 68, ou seja, os dissidentes cariocas podem ser considerados os mais “moderninhos” revolucionários. Ainda assim, o conservadorismo também estava presente na DI-GB, sobretudo nas suas lideranças mais radicalizadas. Constatamos, portanto, que a organização conseguia ser, concomitantemente, tão sectária e preconceituosa quanto revolucionária e libertária. A Dissidência Comunista da Guanabara também se notabilizou pela valorização da formação teórica de seus militantes. Assim sendo, ela pode ser considerada, entre as demais organizações revolucionárias, um dos grupos mais intelectualizados do período. A maioria de seus militantes – como acontecia com as demais organizações – era formada por homens, jovens, oriundos das camadas médias, residentes em grandes cidades e, sobretudo, por estudantes. Além disso, foi possível observar que a Dissidência da Guanabara, ao longo de sua trajetória, vislumbrava a integração numa organização maior, com bases sociais mais amplas e penetração em outros Estados. Contudo, apesar das tentativas ou expectativas, não foi possível viabilizar uma articulação nacional com as demais Dissidências do PCB – que, em cada Estado, seguiram rumo próprio – nem tampouco uma fusão orgânica com outras organizações revolucionárias como a “Vanguarda Armada Revolucionária 232 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” Palmares” e a “Ação Libertadora Nacional”. Assim sendo, a DIGB seguiu trajetória própria, semelhantes aos traçados mas percorreu caminhos pelas demais organizações revolucionárias, caminhos que por vezes se entrelaçavam. A partir do segundo semestre de 1968, quando o movimento estudantil entrou em refluxo e a ditadura reprimiu sem clemência os que insistiram em organizar o movimento, as lideranças estudantis e os que compunham a chamada “massa avançada” – que já militavam em organizações de esquerda comprometidas com a idéia de preparar a luta armada 10 – passaram à militância política além das fronteiras escolares, convertendo-se às ações armadas e abandonando, paulatinamente, o movimento estudantil. Segundo os dados levantados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais11, mais de quarenta organizações clandestinas atuaram no Brasil ao longo das décadas de 1960 e 1970. A trajetória destas organizações foi marcada por múltiplas cisões, que fragmentaram a esquerda armada, diluindo o número de militantes em dezenas de pequenos grupos.12 Inserida no contexto marcado pelo refluxo do movimento estudantil e radicalização das lideranças, onde diversas organizações da esquerda brasileira optaram pelo recurso às armas, a Dissidência da Guanabara, que já defendia a 233 Izabel Priscila Pimentel da Silva perspectiva da luta armada, também adotou formas mais radicais de luta. Em fins de 1968, a DI-GB já se envolveu em ações armadas, mas seria em abril de 1969, por ocasião da realização (clandestina) de sua III Conferência, que os dissidentes cariocas se definiram enquanto “organização comunista empenhada na guerra revolucionária” 13 e adentraram, efetivamente, na guerrilha urbana. Se até 1968, a DI-GB estava voltada basicamente para o movimento estudantil, a partir de 1969, seus recursos, seus militantes e seus projetos voltar-se-iam também, e sobretudo, para a preparação da luta armada. Contudo, é importante destacar que a organização defendia que a adoção da luta armada não deveria excluir outras formas de luta não armadas, ao contrário, estas diferentes formas de luta deveriam caminhar lado a lado no bojo do processo revolucionário. Assim sendo, a Dissidência da Guanabara, apesar de ter se engajado nas ações armadas, não pode ser considerada uma organização militarista, pois ao contrário de outros grupos, a DI-GB nunca menosprezou nem abandonou as lutas de massas. 14 Em 1969, a DI-GB alterou sua estrutura interna e foram criadas três frentes de trabalho. A Frente de Trabalho das Camadas Médias, dado o refluxo do movimento estudantil, que dera fôlego e projeção à organização, concentrava-se na 234 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” distribuição clandestina do jornal Resistência, mas os trabalhos, há muito, não conquistavam apoio de setores expressivos da sociedade. A Frente de Trabalho Operário atuava basicamente em ações de propaganda armada nas portas de fábricas, tentando recrutar operários para a organização. No entanto, apesar de seus esforços, a Dissidência da Guanabara não conseguiu conquistar apoio junto aos operários. Os contatos eram escassos e nenhum militante da organização era efetivamente operário. Por sua vez, a Frente de Trabalho Armado continuava com força total, realizando importantes ações de expropriações de bancos e armas. Mas seria em setembro de 1969 que a organização alcançaria notabilidade nacional e internacional, após conceber e realizar – com auxílio da Ação Libertadora Nacional (ALN) – a captura do embaixador dos Estados Unidos, a mais ousada ação realizada pela esquerda armada brasileira. 15 O sucesso da ação, do ponto de vista dos guerrilheiros – suas exigências foram cumpridas pelos militares; ninguém saiu ferido ou preso durante a operação e o embaixador foi libertado, em perfeitas condições, após a chegada ao México dos presos políticos selecionados –, parecia imprimir no horizonte um vermelho revolucionário. Foi no curso da ação da captura do embaixador estadunidense que a Dissidência Comunista da Guanabara empreendeu outra importante guinada em sua trajetória: a 235 Izabel Priscila Pimentel da Silva mudança do nome da organização, que passou a se chamar Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Na hora de assinar, junto com a ALN, o manifesto revolucionário, redigido por Franklin Martins, em que os guerrilheiros expuseram suas razões e exigências, surgiu a dúvida: como assinar? Como destacou Gorender, se assinassem como “Dissidência da Guanabara” surgiria uma interrogação para o público não iniciado: Dissidência de quê?16 Já Alberto Berquó, com base em entrevistas com os participantes da ação, informa que a direção da DI-GB questionou-se: “como a organização assinaria? Dissidência da Guanabara? DI? Soava ridículo. Isso não era nome público de organização revolucionária”. 17 Na realidade, a DI-GB adotou o nome de MR-8 para desafiar a ditadura. Quando a repressão desbaratou uma pequena célula de militantes políticos 18 , anunciou triunfantemente que destruíra o grupo terrorista MR-8 – nome criado pela própria repressão a partir do título de um jornalzinho encontrado com os militantes. 19 Ao assumir o suposto nome da organização recentemente aniquilada, a DI-GB objetivava fazer uma jogada publicitária, uma espécie de contra-propaganda, para desacreditar o sucesso que a repressão anunciara. Os jovens da Dissidência Comunista da Guanabara, ao assinarem o manifesto que foi entregue à imprensa após o rapto, rebatizaram-se de MR236 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” 8, provando à ditadura que a revolução continuava viva e forte. Na continuidade do nome, estava a continuidade da luta: “De agora em diante nos chamaríamos MR-8. O MR-8 éramos nós”.20 Portanto, o ano de 1969 representa um “divisor de águas” na história da DI-GB: a opção oficial pela luta armada, a captura do embaixador, a notabilidade entre as organizações revolucionárias, a mudança de nome. A organização afastava-se cada vez mais de seu passado recente de grandes mobilizações estudantis, manifestações de rua e articulação com os movimentos sociais e enveredava-se nas ações armadas urbanas, esboçando tentativas (frustradas) de deflagrar a guerrilha rural e caminhando para um crescente isolamento social. De 1969 até o início da década de 1970, a trajetória da Dissidência Comunista da Guanabara, agora chamada de Movimento Revolucionário 8 de Outubro, possuiu um traço de continuidade, ou seja, tratavase, na prática, da mesma organização, ainda que tenha adotado um novo nome, empregando novos métodos e vivenciando uma nova etapa em sua história. Nos primeiros anos da década de 1970, o MR-8 (como passou a ser conhecida a DI-GB) viu seu prestígio aumentar, mas ao mesmo tempo, teve de enfrentar – junto com as demais organizações – a intensificação da repressão ditatorial. Logo 237 Izabel Priscila Pimentel da Silva após a ação da captura do embaixador, o governo editou dois novos atos institucionais (nº 13 e nº 14), que decretavam, respectivamente, a pena de banimento para os presos políticos trocados pelo embaixador e a adoção da pena de morte para crimes de “guerra subversiva”. A repressão tornou-se ainda mais feroz. Em pouco tempo, a prisão, a tortura, a morte ou o exílio tornaram-se destinos quase certos para os participantes da luta armada no Brasil. Nesse contexto, o Oito, como se apelidara a organização, “cercado nas cidades, e, nas cidades, cercado”21, agonizava. 22 A organização, que então contava com a militância “ilustre” do Capitão Carlos Lamarca, procurou fugir do cerco da repressão nas cidades e tentou esboçar a tão sonhada guerrilha rural no sertão da Bahia. A tentativa fracassou. O sertão não virou mar. Morte do capitão guerrilheiro. Morte de um projeto revolucionário. Ainda havia saída? O exterior. O Chile de Salvador Allende e da Unidade Popular enchiam os corações das esquerdas sul-americanas de esperanças revolucionárias. Um novo fracasso. Um novo golpe. Brasil, 1964. Chile, 1973. Concomitantemente à derrocada da via chilena de construção do socialismo, a organização enfrentava um amplo processo de redefinição de rumos. Autocrítica. Polêmicas. Abandonar a luta armada? Novas formas de luta? Que caminho seguir? 238 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” No desenrolar destes debates, o Oito “rachou” em duas partes: de um lado, o MR-8 Direção Geral (MR-8/DG), que reunia o núcleo dirigente que abandonara o Brasil (como Sergio Rubens, João Salgado e Juca Oliveira) e mais alguns dirigentes já no exílio (como Franklin Martins e Carlos Alberto Muniz), que criticavam a luta armada empreendida até então e inspiravam-se nas teses da “Política Operária” (PO) – uma espécie de refundação da ORM-POLOP – que, “situando-se numa perspectiva leninista ortodoxa, criticava sem reservas as ações armadas em curso, consideradas vanguardistas e esquerdistas, defendendo a centralidade da classe operária e a necessidade de concentrar esforços políticos no trabalho junto ao proletariado” 23 ; e de outro lado, o MR-8 Construção Partidária (MR-8/CP), que reunia alguns militantes exilados, entre eles Vladimir Palmeira e Daniel Aarão Reis, que também faziam a autocrítica da luta armada, mas recusavam-se a se aproximar das propostas da PO. O MR-8/CP teve vida curta: após o golpe militar no Chile em setembro de 1973, liderado pelo general Augusto Pinochet, seus militantes espalharam-se por diversos países e não foi possível manter os vínculos políticos. Já o MR-8/DG chegou a realizar, antes do golpe, uma conferência onde decidiu encerrar as ações armadas e concentrar seus esforços nos trabalhos em sindicatos operários e 239 Izabel Priscila Pimentel da Silva associações populares no Brasil. A partir de então, reativou contatos e conseguiu articular um trabalho político no interior do país. Junto com a “Ação Popular Marxista-Leninista” (APML) e a “Política Operária”, o MR-8 editou no exterior a revista Brasil Socialista, que circulou clandestinamente no Brasil. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, este “novo” MR-8 participou ativamente da reorganização dos movimentos sociais e do processo eleitoral, apoiando candidatos “progressistas” do MDB (atual PMDB), partido ao qual acabou integrando-se, e onde ainda hoje forma um pequeno núcleo.24 Assim sendo, o ano de 1973, marcado pelo golpe militar no Chile, também representa mais um importante marco temporal na trajetória do MR-8 – e, dessa vez, um marco final, pelo menos para esse MR-8 que estamos analisando. Em 1969, como vimos, a Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB), já empenhada nas ações armadas, adotou o nome de Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). A mudança de nome, entretanto, não representou uma ruptura em suas táticas e estratégias revolucionárias. DI-GB e MR-8 eram a mesma organização. No entanto, o mesmo não se pode dizer das guinadas empreendidas pela organização a partir de 1973, após os “rachas” sofridos no exterior. Os poucos militantes que restaram do antigo MR-8, após acirradas divergências com seus 240 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” outrora camaradas, condenaram as ações armadas e iniciaram um novo capítulo na história da organização. Anos mais tarde, o MR-8 seria reorganizado no Brasil, assumindo, porém, uma orientação política bastante diferente da anterior. Nesse caso, ao contrário do que ocorrera em 1969, o nome ainda era o mesmo: Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Contudo, consideramos que por suas novas formulações e práticas políticas tratava-se, na verdade, de uma nova organização, que se afastou cada vez mais de seu passado revolucionário. Com outra inspiração, novas palavras de ordem e novas formas de luta, entre este MR-8 e seu predecessor medeia um verdadeiro abismo. Notas de Referência 1 2 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: [email protected] Para uma análise mais aprofundada acerca do programa político defendido pelo PCB no período que antecedeu o golpe de 1964 e o papel exercido por ele no seio das esquerdas no início da década de 1960, cf: AARÃO REIS, Daniel. “Entre reforma e revolução: a trajetória do Partido Comunista no Brasil entre 1943 e 1964”. In: RIDENTI, Marcelo & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). História do marxismo no Brasil: partidos e organizações dos anos 20 aos 60. volume 5. São Paulo: Ed. UNICAMP, 2002. Para maiores informações sobre as organizações de esquerda que atuavam no Brasil às vésperas do golpe de 1964 e sua contestação ao PCB, ver, entre muitos outros: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (Coleção As esquerdas no Brasil, volume 3); 241 Izabel Priscila Pimentel da Silva RIDENTI, Marcelo & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). História do marxismo no Brasil: partidos e organizações dos anos 20 aos 60. volume 5. São Paulo: Ed. UNICAMP, 2002. 3 RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Ed. UNESP, 1993, p. 28. 4 Vale destacar que, no imediato pós-golpe, pouco se questionou sobre porque as alternativas de esquerda ao PCB, como a AP, a ORM-POLOP, o PCdoB e os nacionalistas de esquerda, identificados com o “brizolismo”, também não foram capazes de evitar ou amenizar os efeitos devastadores da intervenção militar. 5 A Corrente Revolucionária era encabeçada por Carlos Mariguella, de São Paulo; Jacob Gorender, no Rio Grande do Sul; Mário Alves, em Minas Gerais; e Apolônio de Carvalho, no antigo Estado do Rio de Janeiro. A luta interna no PCB se intensificou a partir de maio de 1965, quando o Comitê Central reuniu-se pela primeira vez após o golpe de 1964 e reafirmou a linha política de 1960, atribuindo a derrota aos chamados desvios de esquerda. Em 1967, os principais membros da Corrente Revolucionária foram formalmente expulsos do “Partidão” e, junto com as levas de militantes que os seguiram na saída do PCB, dariam origem, posteriormente, ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e à Ação Libertadora Nacional (ALN). Sobre a trajetória destas organizações, ver, entre muitos outros, GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1999. 6 CAMURÇA, Marcelo Ayres & AARÃO REIS, Daniel. “O Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Da luta armada contra a ditadura à luta eleitoral no PMDB”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 145 (Coleção As esquerdas no Brasil, v. 3) 7 Em 1965, a Universidade do Brasil teve sua denominação alterada para Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas o novo nome não “pegou” de imediato. Além disso, as faculdades da antiga Universidade do Brasil eram chamadas de “nacionais” e assim continuaram a ser conhecidas ao longo da década de 1960. 8 Alguns militantes da organização defendiam a integração na Corrente Revolucionária, que ainda estava travando a luta interna dentro do PCB; outros propunham a adesão ao PCdoB e, por fim, figuravam os que almejavam consolidar a nova organização, na expectativa de formar uma organização nacional, com as demais dissidências. Dessa forma, cerca de um ano após o “racha” com o PCB, foi a vez da própria Dissidência 242 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” 9 10 11 12 13 rachar-se nestas três vertentes, além da criação um pouco mais tarde, por alguns militantes, da Dissidência da Dissidência da Guanabara (DDD). Os que debandaram para a Corrente Revolucionária posteriormente ingressariam no Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e/ou no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Por sua vez, os que fundaram a DDD, defensores do “foquismo” e, em grande parte, presentes no movimento estudantil secundarista, integrariam, posteriormente, os Comandos de Libertação Nacional (COLINA). Para uma análise detalhada da atuação e consolidação da DI-GB no cenário estudantil e político nacional ao longo da década de 1960, cf: SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Os filhos rebeldes de um velho camarada: a Dissidência Comunista da Guanabara (1964-1969). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. A opção pelas armas por parte das esquerdas brasileiras não foi uma inovação da década de 1960. Ademais, já na década de 1960, as propostas e tentativas – fracassadas – de luta armada surgiram antes mesmo do golpe civil-militar de 1964. Trata-se de um amplo projeto, organizado pela Arquidiocese de São Paulo, que procurou recuperar as regras do sistema jurídico que vigorou no Brasil a partir de 1964, quando da implantação da ditadura civilmilitar, elegendo como fonte básica os autos dos processos judiciais instaurados durante o regime autoritário para apuração dos crimes de natureza política. A partir de mais de 700 processos completos reunidos pela equipe do projeto, localizados, sobretudo, no Superior Tribunal Militar, foi possível analisar as instituições jurídico-políticas no regime militar, a estrutura do aparelho repressivo, a legislação de segurança nacional, o perfil dos atingidos e as práticas de tortura sistemática. Para um breve painel das organizações da esquerda armada brasileira e sua atuação política ao longo das décadas de 1960 e 1970, cf: RIDENTI, Marcelo. “Esquerdas revolucionárias armadas nos anos 1960-1970”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (Coleção As esquerdas no Brasil, volume 3) e RIDENTI, Marcelo. “Esquerdas armadas urbanas (1964-1974)”. In: RIDENTI, Marcelo & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). História do marxismo no Brasil: partidos e movimentos após os anos 60. volume 6. São Paulo: UNICAMP, 2007. AARÃO REIS, Daniel & SÁ, Jair Ferreira de (orgs.). Imagens da revolução – documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda, 1961-1971. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 440. 243 Izabel Priscila Pimentel da Silva 14 Organizações esquerdistas militaristas eram aquelas que adotavam formas de luta e de propaganda armada e desprezavam as formas de luta de massas. A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e a Ação Libertadora Nacional (ALN) são consideradas as organizações que mais extremaram o militarismo em sua prática revolucionária. 15 Em troca do embaixador, os guerrilheiros conseguiram, além da publicação de um manifesto revolucionário nos principais veículos de comunicação do país, a libertação de 15 presos políticos, banidos – esta foi a figura jurídica “inventada” pela ditadura para legalizar a saída dos presos do país – e levados ao México, a bordo do avião Hércules 56 da FAB. Para um relato detalhado da ação de captura do embaixador e seu desfecho, cf.: BERQUÓ, Alberto. O seqüestro dia-a-dia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. 16 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1999, p.182. 17 BERQUÓ, Alberto. O seqüestro dia-a-dia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. 18 Tratava-se da Dissidência Estudantil do Rio de Janeiro (DI-RJ), surgida em Niterói e que, desde o final de 1968, tinha optado pelo afastamento das cidades, transferindo seus militantes para duas fazendas em Cascavel e Montelândia, no Paraná, onde organizariam um foco guerrilheiro, que deveria atuar na região de Foz do Iguaçu. 19 O nome “Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)” fazia referência à data da morte do líder revolucionário Ernesto “Che” Guevara, em 08 de outubro de 1967, na Bolívia. No entanto, hoje se sabe que “Che” foi capturado no dia 8 de outubro, mas só foi assassinado no dia seguinte, em 9 de outubro de 1967. 20 GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 96. 21 CAMURÇA, Marcelo Ayres & AARÃO REIS, Daniel. “O Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Da luta armada contra a ditadura à luta eleitoral no PMDB”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 137 (Coleção As esquerdas no Brasil, v. 3) 22 Referência à expressão, empregada na época, de autoria de Carlos Vainer, então militante da direção do MR-8. 23 CAMURÇA, Marcelo Ayres & AARÃO REIS, Daniel. “O Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Da luta armada contra a ditadura à luta eleitoral no PMDB”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: 244 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Éramos “Oito” 24 Civilização Brasileira, 2007, p. 138 (Coleção As esquerdas no Brasil, v. 3) Idem, p. 138-145. Para maiores informações sobre a trajetória do MR-8 nas décadas de 1970 e 1980, cf. CAMURÇA, Marcelo Ayres. Os “melhores filhos do povo”: um estudo do ritual e do simbólico numa organização comunista – o caso MR-8. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1994. 245 Izabel Priscila Pimentel da Silva 246 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Polícia Política em Minas Gerais: Fabricação de crimes políticos e imaginário anticomunista no regime militar de 1964 Júlia Lettícia Camargos (...) Basta uma testemunha / (verdadeira ou falsa) basta um simples indício / para torná-lo – o indiciado Os verdugos farão tudo / conforme leis e tratados Infâmias não proferidas / ideais de fé frustrados sonhos um dia sonhados / serão crimes sem saída (...) (Lara de Lemos – Inventário do Medo) 1 Polícia Política e Anticomunismo, algumas considerações O golpe que inaugurou o regime militar no Brasil em 1964 gerou significativas mudanças na ordem política econômica e social do país, colocando fim ao curto período democrático experimentado pela sociedade desde o fim do Estado Novo em 1946. O arranjo governamental elaborado pelos militares a partir de 1964 caracterizou-se pela imposição de um Estado de exceção fundamentado na Doutrina de Segurança Nacional que atrelava a legitimação do Estado ao desenvolvimento econômico e, sobretudo à segurança interna. Um vasto esquema de informação e segurança destinado ao Júlia Lettícia Camargos controle social e político foi criado transformando-se num dos sustentáculos da estruturação deste sistema ditatorial. A militarização do Estado implicou na institucionalização de um aparato repressivo atuando constantemente na manutenção da ordem social com a função de coibir quaisquer manifestações antagônicas à ordem instalada. A polícia política teve papel fundamental na execução da segurança interna do país. Num estudo sobre Polícia e Polícia a socióloga Martha K. Huggins salienta que toda “ação policial é política” Segundo a autora, mesmo em situações em que a polícia não está diretamente ligada à repressão política, ou seja, em suas atividades “normais” ela se configura como tal porque se encontra sustentada pelo Estado no exercício de manutenção do poder. 2 De fato todas as ações policiais estão ligadas à política do Estado, todavia, há distinções que separam a polícia política de outras modalidades convencionais de polícia, primeiramente, trata-se de um corpo especializado treinado para prevenir e combater crimes contra o Estado. René Rémond elucida que a política é uma atividade relacionada ao exercício, conquista e prática do poder sendo assim, as funções da polícia política estão vinculadas a estes níveis próprios das relações de poder, todas e quaisquer atividades que possam vir a comprometer o 248 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Polícia Política em Minas Gerais exercício de autoridade do Estado são da competência da polícia política. Em segundo lugar, a especificidade do treinamento, a especialização em crimes de natureza política incluía itens como espionagem, vigilância, técnicas de interrogatório, sabotagem, em alguns casos técnicas de tortura dentre outros. A profissionalização policial era requisito fundamental para a solidificação da instituição, segundo Max Weber este tipo de organização burocraticamente estruturada exige alto grau de especialização de seus funcionários, a competência técnica está ligada ao treinamento especializado para o exercício das atividades, pois somente o pessoal qualificado vincula-se ao quadro administrativo dessas organizações.3 A formação de um corpo burocrático especializado responsável pela segurança do Estado e manutenção da ordem política e social implicou não só na estruturação racional de um sistema de regras e padrões de operações, mas também na utilização de dispositivos mentais capazes de assegurar o comprometimento e lealdade dos funcionários. Sustentamos, em sintonia com as ideias de Bronislaw Baczko, que qualquer instituição social ou política faz parte de um universo simbólico que a envolve e constitui seu quadro de funcionamento orientando a adesão a um sistema de valores 249 Júlia Lettícia Camargos capazes de intervir nos processos de interiorização pelos indivíduos e de modelar comportamentos coletivos. 4 A legitimação do poder representado pelos militares dependeu não só de normas burocraticamente fundadas, mas também na utilização de dispositivos mentais, o anticomunismo foi um forte elemento ideológico que moldou comportamentos, sustentou ações coercitivas e definiu os contornos da práxis da polícia política no Brasil. Chamamos a atenção para o fato de que mesmo fora dos limites burocráticos os funcionários militares propalavam o ideário engendrado no interior da corporação, tamanha a assimilação dos valores recebidos dentro da instituição. Nota-se isto claramente na formação de organizações clandestinas oriundas do aparelho policial formal, os chamados Esquadrões da Morte grupos de extermínio que utilizavam de meios violentos contra criminosos comuns e políticos no intuito de “limpar” as cidades ilegalmente. Em vários estados da federação houve ações destes grupos, Huggins em sua pesquisa sobre o treinamento de polícias estrangeiras pelos Estados Unidos revelou que este tipo de instrução especializada contribuiu para a degenerescência da polícia brasileira e favoreceu a formação de organizações paralelas. Neste caso ressalta-se a intercessão entre 250 racionalidade sistemática e imaginário social, a Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Polícia Política em Minas Gerais especialização profissional aliada aos valores anticomunistas favoreceu ações hediondas por parte do corpo de policiais. Em estudo sobre a polícia política em Minas Gerais de 1935 a 1964, Rosângela Assunção ao analisar a trajetória desta instituição nos mostra que esta sofreu inúmeras alterações estruturais ao longo do tempo tendo como finalidade maior controle político/social, ao passo que o anticomunismo permaneceu como elemento norteador das ações policiais e subterfúgio para “justificar e legitimar as ações de cunho autoritário sob a sociedade civil.” 5 Assunção argumenta que em diferentes conjunturas políticas as funções da polícia política permaneceram inalteradas e mesmo em períodos democráticos suas atribuições estavam voltadas, não só, mas, fundamentalmente para a supressão do comunismo, o Partido Comunista era considerado o único merecedor de intensa vigilância, a manutenção da ordem pública estava estritamente ligada à eliminação dos comunistas. As atividades de polícia política em Minas Gerais iniciaram-se em 1922 com a criação do “Gabinete de Investigações e Capturas” para o combate de desordens sociais geradas pelo anarquismo ou comunismo sua profissionalização iniciou-se nos anos 1930 num esforço do governo estadual em aprimorar a estrutura funcional da polícia frente consolidação da 251 Júlia Lettícia Camargos esquerda no Brasil como o Partido Comunista e a Aliança Libertadora Nacional (ALN). Nos anos do governo Vargas de 1935 a 1940 o anticomunismo se firmou na polícia mineira determinando os contornos da ação da polícia contra os inimigos da ordem e do Estado6. Quando sobreveio o golpe da coalizão civil-militar de 1964 a polícia política mineira já se encontrava consolidada e estruturada e tinha como base ideológica o anticomunismo componente essencial da cultura política que envolveu o Estado autoritário brasileiro durante o regime militar. O fenômeno do anticomunismo surgiu após a Revolução de Outubro de 1917, quando o comunismo concretizou-se como movimento político organizado configurando-se como uma possível alternativa aos sistemas políticos tradicionais. Entretanto, não se trata de uma simples oposição ao comunismo, mas um fenômeno político e ideológico estimulado por conjunturas, valores e interesses variados, no plano ideológico é entendido como corrente de pensamento que agrega valores e representações, no plano político traduz a sistemática organização da oposição comunista. É importante frisar que o anticomunismo não é necessariamente um movimento de direita, foi incorporado por diversas correntes como as de cunho 252 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Polícia Política em Minas Gerais clerical, reacionário, fascista, de princípios liberais ou da socialdemocracia. 7 No Brasil, como aponta Rodrigo Patto Sá Motta8, houve a construção de uma tradição anticomunista apropriada por diferentes setores da sociedade que se empenharam para sua consolidação e difusão, o que levou à constituição de um verdadeiro imaginário anticomunista, três matrizes ideológicas sustentaram as bases do anticomunismo no Brasil: o catolicismo, o nacionalismo e o liberalismo. A matriz católica via o comunismo como uma ameaça à moral cristã, pois agregava valores contrários aos preceitos do catolicismo, negava a existência de Deus preconizando o materialismo ateu, e objetivava a destruição da instituição da família, o comunismo concorria com a religião apresentando outras vias de percepção sobre mundo. O nacionalismo, por sua vez, estigmatizava o comunismo como inimigo estrangeiro, agente desagregador da coesão e centralização nacional, uma ameaça internacionalista que não poderia ter espaço na sociedade brasileira. Por fim, o liberalismo defendia os princípios da propriedade privada, reverberava o autoritarismo político dos regimes comunistas criticando o intervencionismo estatal e supressão de liberdades individuais. O anticomunismo 253 Júlia Lettícia Camargos foi reproduzido e apropriado pela polícia política mineira de maneira expressiva. Em relatório sobre as atividades da Aliança Libertadora Nacional (ALN) de 1971 em Minas Gerais o encarregado do Inquérito Policial Militar faz uma “incursão no terreno ideológico” como ele mesmo menciona, explicitando algumas dessas vertentes anticomunistas. Vejamos como de fato estas correntes estavam presentes no ideário político. Lança mão do modelo básico da lógica do marxismo para criticar as organizações de esquerda, fala em uma tese uma antítese e uma síntese, examinemos as palavras do Capitão Osmar Vaz de Mello da Fonseca, encarregado do IPM: A certeza de nossa tese democrática é um obstáculo instransponível à antítese de nossos contrários, que continuam lutando, teimosamente, em busca do “momento histórico”, a síntese, que Karl Marx sonhou e Lenine vem perseguindo através de seus seguidores, utilizando-se para isto, da covardia, do assassinato e de tantos outros atos abomináveis. Partimos, fundamentalmente, da teoria do “ser e do vir a ser”, do materialismo versus espiritualismo; partimos dos princípios que regem os direitos fundamentais do homem e da imortalidade da alma humana sem o que estaríamos sendo, por 254 conveniência, submissos aos ideais dos outros e Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Polícia Política em Minas Gerais não conscientes das tradições democráticas e cristãs na Nação brasileira. 9 Primeiramente, critica o comunismo como “o momento histórico” pelo qual seus adeptos lutam em vão, expõe a face autoritária dos regimes comunistas caracterizando seus atos como “atos de covardia” e “abomináveis”, neste caso a crítica ao autoritarismo demonstra seus limites, uma vez que no Brasil ocorreram atos que violaram e violentaram os indivíduos privando-os de suas liberdades individuais e coletivas. E por fim os últimos argumentos expressam claramente a tradição cristã e a defesa da Nação brasileira. Assunção evidencia que estes valores anticomunistas estavam presentes no imaginário da polícia política mineira, onde as vertentes católica, nacionalista e liberal se misturavam e combinavam e nos discursos policiais havia predominância especialmente dos argumentos nacionalistas de defesa da ordem contra o inimigo10. Nossa pesquisa revela alguns estratagemas utilizados pelos policias no processo de investigação e reunião de provas contra os suspeitos, utilizamos a expressão de “fabricação de crimes políticos”, como um dispositivo coerente com a lógica da suspeição que revela o processo de construção de um arcabouço de evidências com a intenção de incriminar 255 Júlia Lettícia Camargos elementos ou segmentos hostis ao regime de forma tendenciosa. Motta lança mão do termo “Indústria do anticomunismo” para demonstrar o uso oportunista do “perigo vermelho” na legitimação das ações coercitivas 11, a fabricação dos crimes está relacionada à utilização do anticomunismo como princípio norteador da manipulação das provas contra os indiciados. A Fabricação de crimes políticos dentro do quadro ideológico do anticomunismo O policiamento das atividades ditas “subversivas” em Minas Gerais ficou sob a alçada do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) responsável pela execução da segurança interna do estado. Este órgão atuou no sentido de apurar movimentações suspeitas no território mineiro, identificou células de organizações e partidos clandestinos no Estado, investigou segmentos da sociedade civil; esteve atento ao movimento estudantil ao clero e a todos aqueles assinalados como elementos que representavam “periculosidade subversiva”. 256 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Polícia Política em Minas Gerais Os Inquéritos Policiais Militares - IPMs foram mecanismos implantados em 27 de abril de 1964 para identificar, a princípio, funcionários civis e militares envolvidos em atividades “subversivas” em toda a esfera pública, com o endurecimento do regime constituíram-se num mecanismo legal para busca sistemática de segurança absoluta. Um IPM era aberto para averiguar denúncias e suspeitas, envolvia o recolhimento de materiais comprobatórios de crimes políticos, prisões de elementos chave e de mentores intelectuais de organizações clandestinas, identificação de células dessas organizações, interrogatório de suspeitos. Após a conclusão o inquérito era remetido ao procurador do Ministério Público Militar que denunciava o crime ao juiz, caso fosse aceita a denúncia iniciava-se o processo na Justiça Militar 12. O crime político tomou grandes dimensões durante o regime militar, principalmente após o Ato Institucional número dois (AI2) em 1965 que criou a Justiça Militar para o julgamento de crimes de natureza política contra o Estado. Leis subseqüentes como os decretos nº 314 e nº 510 de 1967 e 1969 respectivamente, definiram os crimes contra a Segurança Nacional incluindo na esfera dos crimes políticos os crimes comuns. 257 Júlia Lettícia Camargos A fabricação do crime político consistia na produção, por parte dos policiais, de indícios e evidências que pudessem comprovar a existência do crime político, ancorados não só na legislação repressiva, mas também no plano ideológico do anticomunismo. Como sugere Carlos Fico o anticomunismo definiu os contornos da ação da polícia: (...) tomados sistemática, inteiramente os pela desconfiança de informações agentes desenvolveram algumas técnicas de trabalho capazes de gerar culpados em quantidade compatível com o forte sentimento anticomunista de que estavam tomados.13 Fabricar, no sentido literal denota a produção de algo a partir de matérias-primas a construção de alguma coisa, o termo também figura ideação, ou seja, imaginação de maneira ideal, inventar ou forjar. Em nossa perspectiva de análise estes dois sentidos estão imbricados. Encaramos a elaboração dos argumentos e a reunião de provas contra os indiciados como construções feitas a partir de escolhas tendenciosas largamente influenciadas pelos valores e referenciais da cultura política autoritária. Ao reunir um arcabouço de provas para fundamentação das acusações os agentes aglomeravam variados 258 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Polícia Política em Minas Gerais indícios, faziam o entrelaçamento de informações no intento de traçar uma rede de significados que incriminasse o indiciado. Às vezes o indivíduo era apontado como criminoso antes mesmo de cometer o crime. A produção da suspeita era um mecanismo frequentemente utilizado na construção dos argumentos contra os investigados, sob a lógica da suspeição os indiciados eram tratados com desconfiança como podemos constatar no relatório do inquérito sobre a Ação Popular (AP), “a militância da AP não visa imediatamente um movimento armado, todavia não fugirá dele no momento oportuno”.14 Podemos notar também que o inquérito tinha um caráter preventivo que procurava assegurar o controle de segmentos que pudessem vir a se tornar futuras ameaças, como por exemplo, a vigilância sob parte do clero da diocese de Itabira por incitar a “subversão” em suas paróquias, neste inquérito as acusações segundo o encarregado, são baseadas em depoimentos de testemunhas que “sentiam o clima gerado pelas atividades dos padres”, além de matérias da imprensa católica conservadora que criticava posturas políticas e sociais dentro da Igreja como o jornal “Catolicismo” órgão oficial da Defesa da Tradição Família e Propriedade, extrema direita fascistizante da Igreja no Brasil, o que mostra o recolhimento de provas selecionadas de acordo com a intenção e motivação do agente. Em outra 259 Júlia Lettícia Camargos passagem deste relatório podemos observar a produção de suspeitas, vejamos: Observa-se que no presente e particularmente após iniciado o Inquérito Policial Militar, está o referido clero em clima de tranquilidade, seja por precaução, seja por acomodação, seja porque a maioria dos implicados deixou o ministério, seja ainda por ter sido modificada a orientação atual do Bispo da Diocese, o fato é que nem por isso devam ser considerados elementos dignos de confiança. Estão como que aguardando o resultado do julgamento da justiça para medirem a capacidade do combate à subversão e verificarem se devem ou não continuar ostensivamente no apoio a elementos que se contrapõem ao governo, identificados, atualmente, dentre os que militam na subversão.15(grifo nosso) Ao fabricar o crime político, os encarregados atrelavam a construção de seus argumentos às tendências psicológicas e à afinidade do criminoso com seu delito; como aponta Michel Foucault16 em sua análise sobre o conceito de delinqüência elaborado pelas instituições penais no século XIX, a existência do criminoso pressupõe a existência do crime. O crime não é 260 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Polícia Política em Minas Gerais somente um ato ou um fato, mas um conjunto de tendências e intenções relacionadas à trajetória do indivíduo. Distribuir panfletos, ou participar de reuniões a princípio não se configuram como ações criminosas, mas quando a intenção dessas ações é desvelada como parte de um projeto “revolucionário” de tomada do Poder por organizações clandestinas elas são concebidas crimes de natureza política. O inquérito aberto para averiguar as atividades do Partido comunista (POC) na cidade de Montes Claros relata a prisão de alguns membros, apreensão de material subversivo e desarticulação da Secretaria Regional do POC naquela cidade. Entre os indiciados estava o estudante da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG Nilmário de Miranda, foi enquadrado pelos seguintes crimes: Pertencer ao Partido Operário Comunista, organização clandestina e revolucionária de caráter marxista- leninista que visa a tomada do poder e implantação do regime socialista através da greve geral e da guerra de guerrilhas. Ocupar cargo de coordenador geral da Secretaria Regional do POC, promovendo reuniões e doutrinando outros indivíduos. Aliciar indivíduos para militar no POC visando a ampliação dos quadros do partido. Distribuir material doutrinário do POC. Participar de 261 Júlia Lettícia Camargos reuniões fora de BH, tendo viajado especialmente para este fim. Participar de greve proibida.17 Veja que os crimes arrolados partem da premissa da clandestinidade da organização e qualquer atividade vinculada a ela consequentemente é de caráter ilegal. O cerceamento das organizações de caráter marxista-leninista pode ser considerado um exemplo do uso oportunista do anticomunismo para a repressão da oposição, o que dá margens para atuação deliberada da polícia em relação aos crimes dos opositores. Neste mesmo IPM no momento em que relata a desarticulação da célula do Partido Operário Comunista em Montes Claros, verificamos o forte sentimento anticomunista dos agentes e o juízo de valor a respeito dos investigados. (...) O POC teve identificado todos os seus elementos-chave responsáveis pela orientação e direção da organização em nosso estado. Alguns se acham presos. Outros de importância se encontram foragidos, pois assim como os ratos são os primeiros a abandonar o barco que naufraga, nas organizações marxistas, normalmente, são os chefes os primeiros a debandar ao menor sinal de perigo18 (grifo nosso) Observa-se que os textos dos relatórios são construídos a partir de uma narrativa bastante subjetiva os encarregados dos 262 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Polícia Política em Minas Gerais IPMs emitem opiniões e juízos de valor, exprimindo referentes que caracterizam a ideologia difundida pelo Estado autoritário, o que nos leva ao conhecimento ao tipo de apropriação de significados feita pelos agentes. No campo político o imaginário social funciona como controlador da vida social principalmente quando relacionados ao exercício e prática do poder tornado-se objeto de conflitos sociais. A legitimação do poder está estritamente ligada ao imaginário social, no Brasil a legitimação do Estado autoritário e as práticas coercitivas estão ligadas à difusão e apropriação do anticomunismo. Notas de Referência 1 2 3 4 5 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), orientada pelo Professor Ivan de Andrade Vellasco. Contato: [email protected] “Da Tortura” poema escrito pela poetisa e jornalista Lara de Lemos presa durante o regime militar. In: LEMOS, Lara de. Inventário do Medo. São Paulo: Massao Ohno editor,1997. HUGGINGS. Martha K. Polícia e Polícia: Relações Estados Unidos/ América Latina. Tradução: Lólio Lourenço Ferreira.São Paulo: Cortez Editora.1998 pp.10-11 WEBER, Max. “Os fundamentos da organização burocrática: uma construção do tipo ideal”. In: Edmundo. (org) Sociologia da Burocracia. Op cit.p.17. BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social”. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da Moeda: Ed. Portuguesa,11985.v.5.Antroppos Homen. ASSUNÇÃO, Rosângela. p. 53 263 Júlia Lettícia Camargos 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 264 Para entendimento mais detalhado sobre a trajetória da policia em Minas Gerais ver MOTTA, Rodrigo. et. al. República, política e direito à informação: os arquivos do DOPS/MG. In: Varia história, Belo Horizonte: UFMG / Departamento de História, v 29,p.126-153, 2003. BONET, Luciano. “Anticomunismo”. In: BOBBIO, Norberto. et .al. Dicionário de Política. 4ª edição. Brasília: Editora Unb,1992.p.34. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2002. Arquivo Público Mineiro (APM) - Fundo DOPS/MG – Rolo 0043 {1} 004 ASSUNÇÃO, Rosângela. Op cit.p.114 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: Op.cit. JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). 2008. Tese (Doutorado em História). Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.p.96 FICO, Carlos. Como eles agiam, os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record. 2001.p.100 APM - Fundo DOPS/MG, Rolo 0038 pasta 004. APM- Fundo DOPS/MG, Pasta 0041, Rolo 004. FOUCAUT, Michel. Vigiar e Punir.Petrópolis: Vozes, 1986 p.224. APM – Fundo DOPS/MG, Pasta 0038, Rolo 004. APM- fundo DOPS/MG Pasta 0038 rolo 004. Outubro de 1969. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute: a cultura como via única para o progresso Samantha Cintra Magnanini Os atentados terroristas aos Estados Unidos no dia onze de setembro de dois mil e um deixaram o mundo estarrecido. As cenas de ataque ao território norte-americano que tanto divertiam no cinema hollywoodiano tornavam-se realidade e desconcertavam cientistas sociais do mundo todo. O discurso proferido pelo presidente George W. Bush, horas após os atentados, apontava qual seriam os rumos adotados para a política externa do país: uma vez que a democracia e a liberdade foram atacadas, os Estados Unidos iniciavam uma guerra contra o terror a partir do que nomearam como ataque preventivo. A enigmática frase de George W. Bush em seu discurso após os atentados, afirmando que “os ataques terroristas podem estremecer as fundações de nossas construções, mas elas não podem tocar nas fundações da América” 1, demonstra a crença de que existe um bem característico da sociedade norteamericana que não pode ser destruído, que é um bem moral, oriundo da formação identitária norte-americana, um traço cultural característico dos Estados Unidos que provoca, neste Samantha Cintra Magnanini contexto com ainda mais potencialidade, orgulho e nacionalismo. Existe um debate historiográfico muito intenso sobre a questão da formação da identidade nacional norte-americana. Embora não seja consensual que o mito da excepcionalidade é um fator constitutivo da identidade nacional dos Estados Unidos, alguns estudiosos, como Mary Ann Junqueira, acreditam que esse mito é utilizado nos momentos de crise para reforçar a coesão entre os integrantes da nação. Para a autora, existiram vários momentos históricos em que os chefes de Estado utilizaram referenciais que remetem à fundação da nação norte-americana com este objetivo. Através do resgate da memória coletiva e do imaginário, construídos a partir de símbolos e mitos específicos, George W. Bush em seu inflamado discurso relembra aos norte-americanos que eles fazem parte de uma comunidade excepcional. 2 Convém pontuar, contudo, que a presente análise não defende a hipótese de que existe um consenso dentro do universo político norte-americano, lembrando que o campo político, sob a ótica de Pierre Bourdieu, é um lugar de luta onde os atores sociais disputam lugar hegemônico através do capital simbólico que possuem em determinado momento histórico.3 Desta forma, o projeto entende e reforça a fluidez do campo 266 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute político, mas chama atenção um momento muito particular da história dos Estados Unidos, o momento posterior aos ataques terroristas, onde o resgate da formação nacional é utilizado pelo Estado para legitimar um novo rumo para a política do país. Através do discurso de que os Estados Unidos representam a liberdade e a democracia, George W. Bush preconiza uma política externa que reforce o poder dos Estados Unidos no contexto global, adotando medidas unilaterais que muitas vezes rejeitam as resoluções dos órgãos internacionais para travar uma luta contra o “terror” e o “eixo do mal”. Por este motivo, a conjuntura histórica criada a partir dos ataques terroristas serve como pano de fundo para a análise do instituto escolhido visto que é neste momento em que o setor neoconservador exerce maior influência no governo de George W. Bush, com seu programa para a política externa possível através do impacto dos ataques terroristas. É neste momento de mudança do quadro político da nação que é possível identificar uma alteração no espaço do discurso neoconservador, tanto no âmbito stricto senso da política quanto no âmbito intelectual, que ganham força e legitimidade nesta época, apesar da participação dos neoconservadores não ser exatamente nova dentro dos quadros políticos. 267 Samantha Cintra Magnanini É importante pontuar que os neoconservadores integram o universo político dos Estados Unidos há algumas décadas e sua origem é datada pela grande maioria dos intelectuais na década de cinqüenta do século XX, onde se formam seus primeiros postulados teóricos. Inicialmente sem expressão política significativa, os neoconservadores começam a ganhar espaço através dos consecutivos fracassos dos governos democratas e da crescente adesão do setor privado, que coadunava com a proposta de redução da interferência do Estado na economia. O governo de Reagan é tido como o momento de maior influência desta cultura política que entra em declínio durante os mandatos de Bill Clinton para retornar com toda a força no momento imediatamente posterior aos ataques terroristas de dois mil e um. 4 Da mesma forma com que os ataques possibilitam aos neoconservadores revisitar o argumento de que os Estados Unidos garantiriam seu poder hegemônico através da exportação dos valores norte-americanos para o resto do mundo, os argumentos de viés culturalistas também ganham amplo destaque após os atentados terroristas. A mídia, de maneira geral, tende a construir o “eixo do mal” a partir dos argumentos de que existe um abismo entre o “Ocidente”, categoria amplamente utilizada na época, e o “mundo islâmico”, que 268 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute dentro desta perspectiva configura-se como uma cultura atrasada, injusta e autoritária. O que ocorre, precisamente, é a junção destas duas correntes originando um tipo de pensamento que coaduna os postulados neoconservadores com os argumentos culturalistas. O princípio norteador desta vertente neoconservadora culturalista é a idéia de que a cultura é determinante para o sucesso ou fracasso das nações e os valores norte-americanos de cidadania, democracia e liberdade podem ser transplantados para as sociedades que eles consideram atrasadas como forma de acelerar o progresso das mesmas. É importante pontuar que este tipo de argumento não é exatamente novo e esteve presente em outros momentos da história da relação entre Estados Unidos e outras regiões do mundo, em especial, a América latina 5, expressas, por exemplo, na Aliança para o Progresso e nos movimentos sanitaristas das décadas de trinta e quarenta. No entanto, o discurso culturalista neoconservador se destaca pelo peso que coloca na cultura, como esfera determinante e único ponto a observar, para o desenvolvimento das nações em detrimento de análises históricas e sociológicas como o impacto causado pelo colonialismo e imperialismo nas regiões analisadas. É baseado neste argumento, reforçado pela forma com que os ataques aos Estados Unidos em onze de setembro de dois 269 Samantha Cintra Magnanini mil e um foram apropriados pela mídia e pela opinião pública de maneira geral é que o Cultural Change Institute foi criado, em dois mil e sete. Chefiado pelo expressivo intelectual norteamericano Lawrence E. Harrison, este think tank 6 vem produzindo teoria e prática neste sentido. Harrison tem longa caminhada política e intelectual dentro dos Estados Unidos e desde o início de sua trajetória acadêmica produz pesquisas que colocam a cultura como assunto principal dentro de seu foco de investigação, os assuntos externos aos Estados Unidos. Associado da Academy for International and Area Studies, em Harvard, Harrison publica títulos como “O subdesenvolvimento é um estado de espírito: o caso da América Latina” 7 em 1985, onde afirma que o principal empecilho para o progresso na America Latina estava em sua cultura, e The Pan-American Dream Do Latin America's Cultural Values Discourage True Partnership With The United States And Canada?8, publicado em 1996, analisando sempre a impossibilidade de construção de uma parceria entre Estados Unidos e o resto do continente americano por incompatibilidade cultural entre os mesmos. Harrison defende o argumento de que a democracia e livre mercado são traços culturais positivos para todos, porém não se apresentam como valores suficientes para ultrapassar as diferenças culturais que separam Estados Unidos e América 270 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute Latina. Harrison busca rejeitar a idéia da teoria da dependência, tratando o embate cultural entre “América anglo-saxã” e “América ibérica”, que seria toda a América central e do sul, independente de seus diferentes processos históricos de colonização. Segundo ele, a tradição “ibero-católica” é particularmente inclinada ao autoritarismo, à injustiça e contrária ao livre mercado. Em contraponto, Harrison destaca os valores culturais que, afirma, levaram os países do primeiro mundo ao sucesso: ética do trabalho, educação e senso de comunidade. É importante pontuar, entretanto, que embora Harrison tenha se estabelecido como um intelectual de expressão considerável no meio acadêmico norte-americano, suas formulações estão longe de ser consenso dentro e fora dos Estados Unidos, sofrendo duras críticas de pesquisadores reconhecidamente dedicados ao estudo dos países lationoamericanos, como por exemplo, Kenneth Maxwell, que rejeita por inteiro a teoria de Harrison9. No entanto, o autor consegue seu espaço no cenário político, como diretor de alguns programas de assistência no USAID10, e espaço no campo intelectual, construindo uma parceria crucial com Samuel P. Huntington, que origina o livro “A cultura importa: os valores que definem o progresso humano”, livro paradigma da fusão 271 Samantha Cintra Magnanini dos argumentos culturalistas e neoconservadores. As teses, embora controversas, ganham amplo destaque com os ataques terroristas e justificam a criação do Cultural Change Institute, que carrega em seu nome a proposta que defende: transformar a cultura dos países subdesenvolvidos para que eles não mais sejam ameaça latente à segurança dos Estados Unidos. Esse impulso, no entanto, consiste em inserir nas culturas que estudam características que julgam serem precisamente aquelas que fomentaram o progresso dentro do cenário norte-americano. A partir desta lógica, o Cultural Change Institute se define em sua página eletrônica como um instituto de pesquisa criado para produzir conhecimento acerca da importância da cultura para o desenvolvimento das nações, chefiando, por isso, pesquisas ao redor do mundo na tentativa de comprovar a preponderância da esfera cultural em detrimento de outras variantes dos processos sociais. Filiado a Fletcher School, uma das mais prestigiadas escolas de graduação em assuntos internacionais localizada na Tufts University, em Massachussetts, o instituto lidera de seu escritório estudos de caso no mundo todo, em parceria com intelectuais que tem sua origem geralmente no país estudado. Como pontuado em seu endereço eletrônico, o Cultural Change Institute se apresenta da seguinte maneira, em termos de propostas e objetivos: 272 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute O Instituto de mudança cultural trabalha para promover uma consciência da importância da cultura e da mudança da cultura em sociedades atrasadas através de estudos de casos em países, estudos dos instrumentos e instituições responsáveis pela transmissão da cultura (ex: histórias infantis, sistema educacional, religião, mídia), projetos pilotos, 11 pesquisas sobre valores e atitudes e conferências. Harrison explica que o impacto das teorias criadas e publicadas em A cultura importa não foram suficientes para responder a todas as questões propostas no simpósio que originou o livro.12 A partir das lacunas criadas pelo simpósio é que ao autor cria o CCI, explicando que a pesquisa, dentro do instituto, tem como objetivo estudar casos de fracasso e sucesso das nações bem como implementar projetos pilotos de mudança cultural. O Cultural Change Institute possui atualmente um comitê executivo composto por dez intelectuais filiados as principais universidades dos Estados Unidos e possui uma rede de cento e seis intelectuais filiados ao instituto que provem de várias regiões do mundo, inclusive do Brasil. O instituto já possui três publicações significativas sobre o argumento proposto. Duas delas são coletâneas de artigos produzidos pelos intelectuais filiados ao instituto que levam o nome de Developing Cultures: case studies13 e Developing cultures: essays on cultural change14. A terceira obra é de 273 Samantha Cintra Magnanini autoria de Lawrence E. Harrison e foi publicada, em 2008, pela Oxford University Press, com o nome de The central liberal truth: how politics can change a culture and save it form itself.15 A primeira coletânea publicada com o nome de Developing Cultures: essays on cultural change reúne vinte e um artigos produzidos com o intuito de analisar os principais veículos eleitos pelo instituto como propagadores e modeladores de cultura. São eles: histórias infantis, educação, religião, mídia e políticas públicas. São analisados, a partir destes blocos temáticos, conjunturas que não se restringem a Estados transbordando, por isso, as fronteiras físicas, tratando, por exemplo, da “America anglo-saxã”, ou de judeus, budistas, protestantes, islâmicos, etc. A segunda coletânea, Developing cultures: case studies, é composta por vinte e sete artigos que trabalham os estudos de caso produzidos pelo CCI, divididos nas seguintes categorias: África, Países Confucianos, Índia, Islã, América Latina, Ortodoxo/Leste Europeu e O Oeste. Neste livro, são discutidos os valores culturais que permitiram o progresso de algumas nações bem como os valores culturais que trouxeram o subdesenvolvimento para outras, com destaque ao artigo de Vera Lucia Victor Barbosa denominado “The Importance Of Culture: The Brazilian Case”, onde é atribuído aos brasileiros 274 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute uma atitude cultural passiva oriunda de uma visão personalista do poder que foi construída pela dependência que os escravos e a população geral tinham em relação ao senhor, atitude que, segundo a autora, permanece até hoje. Vera Lucia Barbosa elenca as principais características do brasileiro da seguinte forma: pessoas pobres geralmente esperam resolver suas necessidades baseadas na esperteza ou com a ajuda paternalista das autoridades. Os governos, federais ou municipais, são paternalistas e clientelistas em sua grande maioria, o pode político é exercido para beneficiar o próprio poder e não o bem comum de forma que a maioria dos políticos enxergam no populismo a forma de ganhar as eleições e no nepotismo a principal forma de conseguir empregos. Além disso, a autora segue afirmando que a corrupção reina não só nos governos mas em toda a sociedade, as pessoas não confiam nelas mesmas, não possuem idéia precisa de cidadania e que atrás da cordialidade dos brasileiros existe uma sociedade com grande potencial de violência. Estes, segundo a autora, seriam os principais empecilhos para o desenvolvimento e progresso do Brasil, não sendo discutidos nenhum outro aspecto que não os valores culturais que foram atribuídos ao brasileiro no artigo da pesquisadora brasileira. 275 Samantha Cintra Magnanini O terceiro livro, The Central Liberal Truth, também é vinculado ao Cultural Change Institute, mas é escrito inteiramente por Lawrence E. Harrison. O primeiro capítulo intitulado “o enigma da Hispaniola” 16, tem como objetivo comparar o Haiti com a República Dominicana para entender como a cultura explica o fracasso de um e o sucesso da outra. O livro segue tratando dos seguintes temas, divididos em partes assim denominadas: “Cultura desagregadora”, “modelos e instrumentos de transmissão e mudança cultural”, “religião e progresso”, “padrões de mudança cultural”, entre outros. A parte mais curiosa, porém, reside na implantação dos projetos pilotos que buscam alterar a cultura de alguns países para confirmar a teoria de que a cultura pode fomentar o progresso. Para isso, o Cultural Change Institute planeja implementar projetos pilotos de mudança cultural ao redor do mundo, iniciando dois modelos principais até o momento. Os principais projetos pilotos estão localizados no México e Costa Rica, com o objetivo de alterar hábitos e costumes como, por exemplo, a forma com que as histórias infantis são contadas e a mudança do currículo educacional destas regiões. No México, o estudo vai analisar o impacto de duas abordagens diferentes de ensino do conhecimento, com o objetivo, segundo o instituto, de fomentar as habilidades para 276 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute construção de uma cidadania democrática entre jovens de baixa renda em duas cidades: Nuevo Leon e Guerrero. A intervenção cultural vai dividir grupos de estudantes, oferecendo acesso a duas modalidades diferentes de ensino da cidadania: para o primeiro grupo será oferecido somente a educação acadêmica e para o segundo, a integração da educação acadêmica com a aprendizagem de serviços. Esses dois tipos de ensino estão sendo implementados em sessenta escolas secundárias na área de Monterrey e em outras sessenta escolas secundárias na área de Acapulco. O estudo no México é dirigido por Fernando Reimers, que também integra o Cultural Change Institute e é professor de educação internacional do departamento de educação de Harvard. Além dele, existe uma parceria com colegas 17de duas instituições locais do México além da chamada “VIA educacion”, uma organização sem fins lucrativos situada em Monterrey especializada em desenvolvimento profissional do professor, na Universidade Iberoamericana no México. Existe também uma firma especializada em pesquisa que está responsável pelo desenvolvimento e administração questionários, sob a direção de uma equipe de pesquisa. dos 18 Em Costa Rica, o objetivo do estudo é medir o impacto de uma recente intervenção cultural implementada pelo CCI nas 277 Samantha Cintra Magnanini famílias Costa Riquenhas. A intervenção é um currículo dirigido de valores a serem incutidos nas histórias contadas para as crianças e tem como objetivo aguçar as habilidades que os pais precisam para criar crianças que possam posteriormente apresentar progressivos atributos culturais, como por exemplo, a crença na importância da educação, empreendedorismo, democracia e justiça social. O projeto está acontecendo em centros de puericultura no vale central de San José, na Costa Rica. O estudo foi criado por Jerry Kagan, um professor emérito de psicologia de Harvard em parceria com Martha Julia GarcíaSellers, professora de desenvolvimento infantil da própria Tufts University e é dirigido por Luis Diego Herrera Amighetti, um psiquiatra costa-riquenho. A grande crítica que atua hoje no campo acadêmico em relação a estas teses é o reducionismo destas formulações, que tendem a ignorar fatores importantes como a dinâmica e a pluralidade existente em cada uma destas categorias culturais e as disputas e as diferenças que o campo da cultura carrega em si. Não é possível, no entanto, entender estas teorias apenas como mero exercício intelectual visto que trata-se, no caso, da transformação de argumentos teóricos em prática e por isso os usos políticos deste tipo de argumento aparecem de forma mais explícita. A própria lógica dos chamados think tanks nos 278 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute Estados Unidos, como mostra Tatiana Teixeira em seu estudo sobre a importância destes institutos no cenário político norteamericano, passa pela formulação de teorias que busquem corroborar políticas de governo.19 Outra crítica bastante coerente é entender que ao tratar a cultura como uma segunda natureza imutável em sua essência, o discurso que se produz hoje através desta percepção se iguala muito ao discurso utilizado no século XIX, este munido, porém, do conceito de raça para justificar as práticas de dominação da época. Ao utilizar o racismo como justificativa ideológica de que era necessário aos povos não-europeus, sistematicamente tidos como selvagens, atrasados e desorganizados, a inserção de valores europeus como progresso econômico, política liberal, e outros é que o discurso do colonialismo se legitimou e assim a subjugação da África e Ásia neste período.20 Ou seja, o que se observa é que o termo cultura dentro desta perspectiva opera com muito sucesso, substituído pelo termo raça de outrora, já que a idéia de que a raça delimita o futuro de um sujeito ou um grupo social está mais do que ultrapassada entre o meio intelectual. Através desta nova reformulação, o processo remonta à antiga questão do fardo do homem branco e à questão civilizadora do século XIX, na medida em que a cultura também se caracteriza, na perspectiva destes neoconservadores, como 279 Samantha Cintra Magnanini algo que pode ser recortado, excluindo o que não serviria e colado o que estaria de acordo com a busca do desenvolvimento e da prosperidade. Cabendo lembrar, obviamente, que esta prosperidade é alcançada via Ocidente ou representantes deste. Assim, a justificativa atual para explicar a natureza da desigualdade entre os povos e a inevitabilidade da intervenção do Ocidente em áreas como o Oriente Médio, por exemplo, é construída através de um recurso a um culturalismo descomprometido com as demais questões inerentes aos processos e as conjunturas nos campos de disputas de força.21 Não é possível, até o presente momento da pesquisa, fornecer análises mais consistentes relativas ao conteúdo dos artigos publicados pelo Cultural Change Institute visto que o trabalho com as fontes está muito recente, porém, a proposta do artigo está na identificação do instituto enquanto instrumento político, formulando teorias com propósitos específicos para a conjuntura pós onze de setembro. Ao eleger como tema os Estados Unidos, a pesquisa busca produzir um tipo de investigação que rejeite a idéia do senso comum de que existe uma intenção de dominação mundial por parte dos Estados Unidos visto que esse tipo de análise reducionista não acrescenta em nada a produção de conhecimento sobre o tema. É interessante, contudo, analisar como um momento ou uma 280 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute condição extrema dentro da história dos Estados Unidos, e considerando o impacto dos atentados de onze de setembro, até mesmo dentro da história mundial, pode revelar aspectos importantes de relações de poder, ideologia, identidade e muitos outros traços das relações sociais que estavam latentes e que se manifestam de forma mais contundente quando uma existe uma situação de confronto direto. O Cultural Change Institute, dentro desta perspectiva, mais do que um órgão de investigação, demonstra-se um produtor de políticas governamentais com o poder simbólico necessário para fazer valer suas teorias não de forma pontual, mas alcançando objetivos em escala global. Notas de Referência 1 2 3 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Professora Doutora Eliane Garcindo de Sá. Contato: [email protected] Retirado do site que reúne todos os discursos do presidente George W. Bush, traduzido por mim. O original pode ser encontrado na página eletrônica http://www.presidentialrhetoric.com/speeches/bushpresidency.html. Acesso em 20/05/2010. JUNQUEIRA, Mary Anne . "Os discursos de George W. Bush e o excepcionalismo norte-americano". Margem (PUCSP), São Paulo, v. n 17, p. 163-171, 2004 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de janeiro, Bertrand Brasil, 2009. DEMANT, Peter. Exportação da democracia: hegemonia do modelo neoconservador na política estadunidense para o oriente médio? In: Cena Internacional, Ano 7, número 2, 2005. Pág. 37. 281 Samantha Cintra Magnanini 5 É importante considerar que o próprio termo “América Latina” deve ser desnaturalizado, considerando grandes estudos sobre as implicações políticas do termo como é o caso do estudo de Feres Jr, A história do conceito de "Latin America" nos EUA , Bauru SP, EDUSC, 2005. 6 Think tanks que são institutos de pesquisa muito consultados pelo governo norte-americano em suas decisões. Para melhor contemplar a grande importância destes órgãos dentro do cenário norte-americano, consultar a pesquisa de Tatiana Teixeria, Os think tanks e sua influência na política externa dos EUA: a arte de pensar o indispensável. Rio de Janeiro, Revan, 2007. 7 HARRISON, Lawrence E. Underdevelopment is a state of mind: the latin american case. University Press of America, 1985. 8 O título traduzido significa: “O sonho panamericano: os valores culturais lationamericanos desencorajam a verdadeira parceria com Estados Unidos e Canadá?”. Tradução minha. 9 A resenha pode ser encontrada em sua forma integral no site do periódico da Foreign Affairs através do link http://www.foreignaffairs.com/articles/52971/kenneth-maxwell/the-panamerican-dream-do-latin-americas-cultural-values-discour Acesso em 10/08/2010. 10 A partir da constatação da importância geopolítica que o USAID teve para os Estados Unidos no momento posterior à Revolução Cubana, estabelecendo relações com diversos governos latino-americanos da década de sessenta, o projeto busca investigar melhor essa relação, atentando, inclusive, para o alcance desta agência no Brasil, a partir da aliança MEC-USAID, amplamente criticada pela esquerda da época. 11 Tradução minha de um trecho do texto encontrado na página eletrônica do CCI, através do link http://fletcher.tufts.edu/cci/studies.shtml Acesso em 10/08/2010. 12 HARRISON, Lawrence. Introduction. In: HARRISON, Lawrence e BERGER, Peter. Developing cultures: case studies. Routledge, 2006. Pág. XIV. 13 HARRISON, Lawrence e BERGER, Peter. Developing cultures: case studies. Routledge, 2006. 14 HARRISON, Lawrence e KAGAN, Jeorme. Developing cultures: essays on cultural change. Routledge, 2006. 15 Harrison, Lawrence. The central liberal truth: how politics can change a culture and save it from itself. Oxford University Press, 2006. 16 Neste capítulo, Harrison descreve a região onde se encontra Haiti e República Dominicana como “the island of hispaniola”, a ilha de Hispaniola, afirmando que as diferenças de clima, geografia e meio 282 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 O Cultural Change Institute 17 18 19 20 21 ambiente são neutralizadas em sua explicação que busca provar que a diferença de desenvolvimento entre as duas é apenas de caráter cultural. Embora cite a participação destes “colegas”, o site não informa nomes nem cita quais seriam estas instituições. Também não é citado o nome da empresa responsável pela pesquisa. TEIXEIRA, Tatiana. Os think tanks e sua influência na política externa dos EUA: a arte de pensar o indispensável. Rio de Janeiro, Revan, 2007. FACINA, Adriana. De volta ao fardo do homem branco: o novo imperialismo e suas justificativas culturalistas. In: História e luta de classes. Ano 1. Edição n°2. 2006. Pág. 66. Idem. Pág. 72. 283 Samantha Cintra Magnanini 284 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial entre Pará e Mato Grosso (1790-1820) Siméia de Nazaré Lopes Introdução Entre o final do século XVIII e princípio do XIX, a praça mercantil de Belém articulava diferentes circuitos comerciais. Os negociantes da capitania do Pará entretinham relações comerciais com as vilas próximas à cidade de Belém. As relações comerciais com outros comerciantes para o interior do Estado do Grão-Pará abrangiam também a capitania do Rio Negro, que se configurava em uma das áreas abastecedoras dos gêneros que eram comercializados e remetidos para a Europa. O porto da cidade de Belém também funcionava como um entreposto comercial interligando as capitanias de Mato Grosso e Goiás aos portos da Europa, como Lisboa e Londres. A proposta desse artigo é discutir como se estruturou esse circuito mercantil em que Belém se apresenta como o eixo de ligação entre as vilas do interior do Estado do Grão-Pará e as capitanias de Mato Grosso e Goiás. Assim como, investigar a configuração de uma comunidade mercantil e a sua articulação com outros sujeitos, os quais não se restringiam a Belém, mas estabeleciam redes de negociação com outras áreas comerciais. Siméia de Nazaré Lopes Os estudos recentes sobre a temática relativa à América colonial visam analisar as especificidades presentes na articulação entre as diferentes economias coloniais, relativizando as discussões cristalizadas nas ações da Metrópole e do sistema colonial. Os estudos voltados para as relações de poder e de governação para o contexto hispano-americano têm contribuído para a renovação dessas abordagens para as diferentes áreas da América ibérica. Repensar as relações de tensão e de conflito e atentar para a importância que os “governos locais haviam contribuído para a formação [do] complexo imperial nas Américas” tem sido valorizado nas novas abordagens historiográficas sobre sociedades coloniais. 1 Para tanto, essas análises propõem a importância de articular as práticas comerciais nas colônias da América portuguesa, com as outras possessões européias e com as capitanias do Império português.2 Em análise sobre a praça mercantil do Rio de Janeiro entre fins do século XVIII e início do XIX, João Fragoso investigou as conexões de negociantes e as rotas comerciais existentes entre o Rio de Janeiro e os circuitos mercantis internos, assim como entre as outras margens do Império português, como o Oriente e a África, que seriam possibilitadas por práticas do Antigo Regime, como o sistema de mercês, “as 286 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial redes de reciprocidades e a formação de clientelas que cruzaram e uniram as diferentes searas do mar lusitano.” 3 Para o autor, a praça do Rio de Janeiro articulava as rotas transoceânicas aos “mercados consumidores do interior” da América portuguesa. Essas relações comerciais, sustentadas a partir do mercado interno, assumem uma maior complexidade, não se constituindo apenas numa colônia com práticas determinada pelas demandas no mercado externo. Fragoso elabora uma perspectiva de análise sobre a existência das conexões imperiais entre as redes comerciais e os seus negociantes para além da América portuguesa, atentando para as rotas comerciais que se estabelecem entre esses circuitos, assim como para outros mercados do interior do Império português. As indicações apresentadas pelo autor favorecem a elaboração de um estudo sobre essas conexões para a capitania do Pará, atentando para as relações mercantis entre a praça comercial de Belém e as vilas do interior. Pode-se considerar também as redes de comercialização que os negociantes de Belém constituíram com outras áreas como Maranhão, Mato Grosso e Goiás. Além disso, é possível visualizar as práticas comerciais dos circuitos estabelecidos entre o porto do Pará e os outros portos do Atlântico, como Lisboa e Londres. 287 Siméia de Nazaré Lopes Essas abordagens são possíveis com base na documentação notarial pesquisada. Nesse artigo serão utilizadas as Escrituras de Sociedade e as Procurações contidas no Livro de Notas do Tabelião Perdigão,4 assim como os documentos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino (Projeto Resgate) para as capitanias do Pará, Mato Grosso e Goiás. Os códices dos comboios e de passaportes da Província do Pará serão utilizados por conterem as descrições das pessoas que transitavam pelas províncias do Maranhão, Mato Grosso e Goiás, os quais complementam as informações apresentadas nos Livros de Notas selecionados para a presente análise. A praça de Belém e as relações com os negociantes das vilas do interior Para o porto de Belém escoava a produção das vilas situadas na região dos altos rios (Santarém, Gurupá, Cametá, Barra do Rio Negro). O porto de Belém desempenhava o papel de abastecer de produtos as canoas que seguiam em direção a outros pontos do Pará, assim como Rio Negro, Mato Grosso e Goiás.5 O comércio realizado em canoas ou em embarcações maiores conectava essas regiões e permitia a circulação de gêneros negociados em diferentes áreas da capitania do Pará e capitanias vizinhas. Esse movimento comercial foi descrito por 288 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial diversos viajantes que passaram por Belém, onde a própria topografia condicionava essa grande circulação de embarcações nos rios da região.6 As casas comerciais estabelecidas em Belém possuíam as suas embarcações para negociar os produtos que importavam dos portos estrangeiros para as vilas do interior. Os caixeiros das casas comerciais seguiam para os altos rios de onde traziam as drogas do sertão para serem remetidas para o porto de Belém, porém não havia garantias de que os caixeiros trariam em suas canoas os gêneros suficientes para assegurar o lucro de uma viagem para áreas tão distantes. Uma das formas de garantir esse comércio era o contrato com os comerciantes dessas vilas, permitindo ter exclusividade na compra de todos os gêneros arrecadados nos altos rios, o que passou a ser realizado por meio dos contratos de sociedades mercantis firmados entre os negociantes de Belém de outras vilas. Fernando Braudel afirma que a partir do estudo das sociedades e companhias é possível ver “o conjunto da vida econômica e do jogo capitalista”. 7 Nesse sentido, pretende-se analisar as sociedades mercantis como um indicador da vida comercial na capitania do Pará e das relações entre os sujeitos envolvidos no comércio. O estabelecimento de sociedades comerciais garantiria a compra e venda de mercadorias nessas 289 Siméia de Nazaré Lopes áreas afastadas de Belém. Em outras situações, os negociantes de Belém firmavam sociedades com negociantes já estabelecidos nos Sertões do Pará ou na capitania do Rio Negro para ampliar a sua atuação naquelas áreas e diversificar as suas relações econômicas. Em 1808, os negociantes8 João Pedro Ardasse e Francisco Ricardo Zani estabeleceram sociedade comercial de uma canoa denominada “Águia do mar” com carregamento de fazendas para negociar na capitania do Rio Negro.9 O negociante Ardasse entrava para sociedade com a quantia de 2:665$854 reis, enquanto o negociante Zani, “que costuma negociar na capitania do Rio Negro,” entrava para a sociedade apenas com a sua “argúcia,” entretanto os lucros seriam divididos em partes iguais. A sociedade funcionaria da seguinte forma: o sócio Ardasse enviaria da cidade de Belém para o sócio Zani as fazendas secas e molhadas para serem vendidas nos Sertões e de lá seriam remetidos os “gêneros do Pais” (as drogas do sertão) para que o sócio Ardasse as comercializasse na casa comercial que possuía em Belém. A sociedade mercantil firmada entre os negociantes Ardasse e Zani é representativa das relações comerciais que se estabeleceram na cidade de Belém. A partir dela foi possível construir uma trajetória 10 da atuação deles na praça mercantil de Belém, o que lhes permitiu usufruir de prestígios nas áreas em 290 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial que se fixaram. Nesse caso, destacar-se-á a atuação do negociante Francisco Ricardo Zani na capitania do Rio Negro, como também a sua ascensão política por meio dessas relações comerciais. A identificação de Francisco Ricardo Zani no contrato da sociedade é reveladora da sua atuação no Rio Negro. Em 1819, o negociante Francisco Ricardo Zani foi descrito pelos viajantes Spix e Martius como “capitão de milícias hoje chefe do Estado Maior, oriundo de Livorno, domiciliado havia 14 anos no Rio Negro, que, por feliz encadeamento de circunstancias, foi meu companheiro (por 7 meses) na maior parte da viagem ao interior do Pará e Rio Negro.”11 O que permite inferir que o negociante Zani já estava no Rio Negro desde o início do século XIX. O “capitão Zani” possuía uma embarcação grande com a qual transportava salsaparrilha e cacau da região do Rio Negro para a cidade de Belém, mas não eram apenas essas informações que os viajantes ofereciam. 12 Zani também foi encarregado pelo Imperador de organizar 2 regimentos na capitania do Rio Negro, o que foi efetivado no início da década de 1820, quando as capitanias do Pará e Rio Negro passaram por “tempestades políticas,” e concluem afirmando que Zani havia estabelecido no Amazonas, diversas “posições fortificadas, (...) e, contribuiu grandemente para a pacificação daquelas regiões, valor que lhe 291 Siméia de Nazaré Lopes mereceu uma Comenda da Ordem de Cristo e a confiança do Imperador D. Pedro que o encarregou agora, como coronel, da formação dos regimentos de milícias.”13 Diante dessas informações, pode-se pensar a trajetória de ascensão política que o negociante Zani teve, na região do Rio Negro, no decorrer dessas duas décadas. Estabelecendo redes de relações que não perpassavam apenas pela esfera do comércio, mas se apoiou na conquista de cargos políticos relevantes para a administração daquela capitania. 14 Isso é um indicativo da ascensão dele dentro daquela sociedade e igualmente um reconhecimento público de sua atuação na capitania do Rio Negro. Outro negociante que também teve ascensão política por meio das suas relações comerciais foi o capitão João Lopes da Cunha,15 nesse caso, ele era estabelecido em Belém, mas possuía sociedades mercantis na vila de Santarém (Pará) e em Cuiabá (Mato Grosso). Em 1820, ainda para a área do interior da capitania do Pará, os negociantes da cidade de Belém, o capitão João Lopes da Cunha e Manoel de Almeida Oliveira, contrataram uma sociedade mercantil para a venda de fazendas secas e molhadas. O sócio Oliveira recebeu do sócio Cunha, que ficaria estabelecido na cidade de Belém, as fazendas, a canoa, escravos e demais utensílios de que viesse precisar para o seu 292 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial deslocamento para a vila de Santarém. Mesmo sem entrar com capital algum, o negociante Oliveira receberia metade dos lucros da sociedade, mas ficava obrigado a “ir residir na vila de Santarém desta comarca pondo aí uma loja de fazendas secas e molhadas para vender por conta da sociedade entrando em iguais ganhos ou prejuízos sem levar comissão alguma ou salário pela sua administração.”16 Nesse período, a vila de Santarém era considerada, nas palavras dos viajantes Spix e Martius, “o empório do comércio entre a parte ocidental da Província do Pará e a capital” (Belém). Continuam afirmando que das margens do rio Tapajós, “trazem cacau, salsaparrilha, cravo-do-Maranhão, algum café, algodão e borracha,”17 produtos que eram comercializados na cidade de Belém e exportados para a Europa. A vila de Santarém também servia de entreposto comercial para a capitania de Mato Grosso, sendo mais viável a negociação das mercadorias que saíam de Belém para aquela área e vice-versa. A relação comercial que se estreitava entre os negociantes de Santarém se realizava a partir da “navegação do (rio) Tapajós até a província de Mato Grosso.”18 Ainda como cláusula dessa sociedade, o negociante Cunha afirmava que havia contratado outra sociedade para a cidade de Cuiabá com o tenente Antonio Peixoto de Azevedo. 19 293 Siméia de Nazaré Lopes Para incrementar o comércio com aquela cidade, Cunha precisava “fazer em Santarém um depósito de fazendas secas e molhadas para que de Cuiabá, ou sua parte superior, do Rio Santarém ali as vierem buscar e ter prontas em Armazéns.” Nesse caso, o negociante Oliveira ficaria responsável de receber as mercadorias e as guardaria em separada das suas “para as entregar quando de cima lhes pedirem e receber os gêneros e dinheiros que devem lhe entregarem para as fazer regressar para esta cidade do Pará a ele sócio Cunha,” para tanto receberia um livro em separado para fazer nota das despesas e ganhos da sociedade de Cuiabá.20 Mas para realizar essa transação em nome do negociante Cunha, Oliveira não receberia ganho algum por isso, ao tenente Antonio Peixoto de Azevedo cabia fazer o pagamento das despesas com “armazém, canoas, índios e mais precisos para a referida sociedade do sócio Cunha.”21 Em 1821, o capitão João Lopes da Cunha continuou diversificando a sua atuação comercial para o Sertão da província, firmando outra sociedade com outro negociante da vila de Santarém. Ressaltando-se que ainda estava em vigor o contrato assinado em agosto de 1820 com o negociante Manoel Joze de Oliveira, a nova sociedade que firmava com o negociante Francisco Xavier da Silva era de um engenho. Nesse estabelecimento, deveriam “fazer aguardente, mel e mais 294 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial plantações de arroz.” Nessa sociedade, “o gêneros provenientes do mesmo engenho e lavoura serão vendidos em Santarém e o seu produto poderá vir para esta cidade (Belém), empregado em cacau ou em outro gênero do Sertão.” Entretanto, nesse novo estabelecimento que abria ficava firmado que “não se poderão fiar para o Rio Negro e o sócio que o fizer, o fará por sua conta particular e não da sociedade,” caso precisasse fiar os produtos, que o fizesse para “pessoas que tenham bens de raiz, (...) porque querendo executar o devedor, se ele não tem estabelecimento de bens está a dívida perdida.”22 No Estado do Pará, a prática de aviar mercadorias através da permuta era muito comum, visto que na região havia escassez de moeda. O negociante João Lopes da Cunha continuou estabelecendo as suas atividades comerciais entre as duas regiões. Em 1822, ele também aparece exercendo cargos políticos na capitania do Rio Negro, a qual ele representaria como “deputado substituto às Cortes Constituintes” em Lisboa, para onde se dirigia.23 Em junho do mesmo ano, solicitava “confirmação de carta patente no posto de tenente-coronel do Corpo de Tropa de Milícias da vila de Cametá, na província do Pará.24 Outro registro desse negociante é uma requerimento “solicitando passaporte para seguir viagem para a província do Pará,” no qual foi possível conhecer um pouco da trajetória dele. 295 Siméia de Nazaré Lopes Na solicitação consta que João Lopes da Cunha é “Cavaleiro da Ordem de Cristo, Negociante e Lavrador no Pará, solteiro de idade de 51 anos, natural de Lisboa e morador.” 25 Diante disso, pode-se inferir que as redes de relações tecidas pelos negociantes de Belém foram estabelecidas em diferentes pontos e portos da região, não se limitando apenas à praça de Belém. Nesse caso, a diversificação das relações econômicas desses sujeitos estendeu-se às capitanias vizinhas ao Pará, como a de Mato Grosso, onde o porto de Belém representava um entreposto comercial para a cidade de Lisboa. Além disso, esse comércio possibilita uma ascensão política nos locais em que esses negociantes atuavam, seja através do reconhecimento por serviços prestados, seja através das alianças familiares que se firmavam. Pará e as redes de comercialização com o Maranhão, Mato Grosso e Goiás As práticas comerciais desenvolvidas no Pará também se articulavam com outras áreas da América portuguesa, onde Maranhão, Goiás e Mato Grosso, configuraram-se em vetores de dinamização para as trocas comerciais e ocupação da região. As providências26 para a comunicação entre as capitanias do Pará, do Mato Grosso (pelo rio Madeira) e de Goiás (pelo rio 296 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial Tocantins) ocuparam ponto importante no planejamento dos governadores da capitania do Pará. As autoridades viam nessas rotas os mais adequados caminhos para promover a integração comercial e administrativa da capitania ao resto do império português na América. Entretanto, essas demandas para dinamizar as trocas comerciais entre Pará, Mato Grosso e Goiás também foram ponto de discussão entre os governadores das capitanias acima citadas. 27 Ainda em 1799, o governador da capitania de Mato Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, trocou correspondências com o governador do Pará, Francisco de Souza Coutinho, discutindo a importância de incrementar o comércio entre as duas capitanias, mas também o cuidado que deveria ter com os negociantes de Mato Grosso na hora de cobrar o frete das fazendas secas e molhadas, 28 a bem da Alfândega. Alertava que a proposta de Francisco Souza Coutinho em cobrar pela importação o valor de 30%, compreendendo o “valor, o peso, e o volume de cada gênero. Será preciso fixar-se primeiro o valor das fazendas o qual é diverso no Reino, nessa cidade (Belém) e nesta vila, sendo também diverso nas Alfândegas e nas praças, pois nestas ultimas todos os dias esta variando.”29 297 Siméia de Nazaré Lopes O cuidado em definir um valor para a cobrança do frete das importações que se fizesse do Mato Grosso para Belém consistia em não causar embaraços ao comércio ou “constranger os negociantes a mostrarem as suas carregações ou facturas,” pois disso dependeria a boa arrecadação dos fretes. Para tanto, enviava um cálculo que o negociante de Mato Grosso, capitão Joze Antonio Gonçalves Prego,30 havia feito por ser ele “o único negociante que nesta capitania tem arranjo e método no seu negócio.” A partir do cálculo enviado pelo governador, seguia a sugestão para se fazer com que as fazendas que seriam importadas para Belém “venham a ficar agora a melhor preço do que quando eram conduzidas pelos particulares, e que não venham a exceder o preço do Rio de Janeiro, porque de outra sorte seria impossível virar o comércio para essa praça como requer a felicidade das duas capitanias.”31 Em 1805, o governador do Estado do Pará e Rio Negro, Conde dos Arcos, enviou um ofício para o secretário de estado da Marinha e Ultramar, Visconde de Anadia, no qual informava a saída de um comboio do porto de Belém com destino à Vila Bela (no Mato Grosso). O comboio seguia composto por 4 embarcações pertencentes aos negociantes da praça de Belém, estas eram acompanhadas por outras 3 canoas, mas tripuladas por oficiais, “com o objetivo de criar a nova Junta de Comércio 298 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial na capitania do Mato Grosso a fim de por termo às dificuldades de circulação de bens e pessoas entre essas capitanias e a evitar o perigoso caminho terrestre entre o Rio de Janeiro e a Bahia.” 32 Nota-se que o comércio realizado nessas áreas acima citadas apresenta especificidades dos gêneros e produtos negociados, sendo viável tanto o comércio com o Pará, por Santarém, como também pelas capitanias do Rio de Janeiro e Bahia. Sendo negociados com a capitania do Pará outros artigos como: “objetos de ferro, aço e latão, pólvora e chumbo miúdo, vinho, aguardente, medicamentos.”33 Para o Mato Grosso era remetido: breu do reino e da terra, sal, ferro, aço, machados, enxadas, pregos, remédios de botica, varas de pano, linha, linho, frasqueiras de aguardente de uva, vinho, azeite de oliva, vinagre e material para a secretaria do governo.34 Em 1807, em ofício do governador de Goiás, Francisco de Assis Mascarenhas, ao Visconde de Anadia informava sobre as contínuas “expedições mercantis com a capitania do Pará.” Para animar essa atividade, o governador havia auxiliado os negociantes daquela praça “com embarcações, que (mandou) construir e equipar por conta da Real Fazenda, a quem pagam frete” e carregavam nas embarcações “um número considerável de arrobas de açúcar e algodão, e também outros gêneros de menor importância.” Sendo a produção do algodão muito 299 Siméia de Nazaré Lopes próspera, resultado do grande incentivo que fez aos lavradores que se estabelecessem nas margens dos rios Maranhão, Araguaia e Tocantins. Entretanto, toda essa produção pouco era enviada para os portos de Lisboa. Para otimizar esse transporte dos gêneros produzidos naquela capitania, voltava a solicitar que mandassem organizar em Belém uma sociedade mercantil “destinada a começar metodicamente o comércio desta capitania pelos rios. Conceda-lhes S. A. R. os privilégios que julgar a propósito animem-se os negociantes que eu da minha parte prometo aprontar sempre os gêneros que me forem pedidos.” 35 A capitania do Pará se tornava a saída mais viável para os produtos de Goiás, como também para os de Mato Grosso.36 O incremento das relações comerciais com as capitanias de Goiás e Mato Grosso fora colocado desde a criação da Companhia de Comércio do Pará e Maranhão 37. Na virada do século XVIII para o XIX, essa questão torna a ser presente nos debates entre os representantes dessas capitanias. Enquanto as ações administrativas para o desenvolvimento dessas trocas mercantis eram discutidas pelas autoridades administrativas, a ação de negociantes dessas capitanias era sempre incentivada e para ela concorriam todos os esforços para que nada causasse embaraços a “um objeto de tanta 300 importância.” Essas solicitações de auxílios às Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial embarcações comerciais eram reforçadas nos passaportes de negociantes que saíam de Belém para as suas cidades de destino. Quando saiu de Belém em direção à capitania de Mato Grosso, Antonio Roiz do Amaral, “que dali havia descido a tratar de suas negociações mercantis, retornava com “2 botes, equipados com 20 índios” e ordens expressas recomendando “positivamente toda a proteção para promover e facilitar este comércio tão interessante ao bem das duas capitanias.” 38 Tratava-se de um comércio de grandes dimensões para aquelas áreas, visto serem as 2 embarcações que contavam com um equipagem bastante numerosa, 20 índios. As relações comerciais que se teceram entre essas duas capitanias foram pautadas por incentivos das autoridades administrativas, mas também muito concorreu para a sua implementação a atuação dos negociantes estabelecidos tanto na praça de Belém (Pará), como na praça de Vila Bela (Mato Grosso). O que se percebe são as ações de negociantes de Belém se articulando com outras praças mercantis da América portuguesa, onde a localização de seu porto permitia que esses negociantes de Belém pudessem sustentar redes de relações comerciais com os portos de Lisboa. As escrituras de contrato de sociedades mercantis são reveladoras das áreas onde o trato comercial se mostrava 301 Siméia de Nazaré Lopes relevante para os negociantes estabelecidos em Belém. As sociedades firmadas na vila de Santarém garantiam além o contato com o interior de Mato Grosso, o abastecimento de gêneros e mercadorias para o porto de Belém, como também o estreitamento das relações dos comerciantes fixados nessas áreas com os negociantes de Belém. Notas de Referência 1 2 3 4 302 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), orientada pelo Professor Doutor Antônio Carlos de Jucá Sampaio. Contato: [email protected] GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. “Diálogos historiográficos e cultura política na formação da América Ibérica”. In: SOIHET, Raquel, BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 68. FRAGOSO, João. “A noção de economia colonial tardia no Rio de Janeiro e as conexões econômicas do Império português: 1790-1820”. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 319-338. Idem, p. 329. O Livro de Notas do Tabelião Perdigão (LNTP) é composto de Procuração Bastante e Geral, de Escrituras de Venda, de Escrituras de Sociedade, de Escrituras de Obrigação de Dívida e de Escrituras de Doação. Serão utilizados os livros que compreendem os anos de 1803 a 1834, privilegiando para a discussão proposta apenas as procurações e as escrituras de Sociedade. Os Livros de Notas do Tabelião Perdigão estão contidos na documentação do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Ressalta-se que para alguns anos a documentação está completamente ilegível ou danificada. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981, p. 32. LOPES, Siméia de Nazaré Lopes. “O „reflorescimento‟ da economia pós-Cabanagem”. In: COELHO, Mauro; GOMES, Flávio dos Santos; MARIN, Rosa Acevedo (orgs.). Meandros da História: trabalho, e poder no Pará e Maranhão, séculos XVIII e XIX. Belém: UNAMAZ, 2005. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo (séculos XV-XVIII): os jogos das trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 383. O termo “negociante” é utilizado tal como esses sujeitos são apresentados na documentação utilizada. Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, n. 1187, d. 46, (18071808). De acordo com Revel, as indicações de trajetórias individuais possibilitam pensar a articulação entre os sujeitos e, a partir de diferentes informações sobre eles, “tentar compreender de que maneira esse detalhe individual, aqueles retalhos de experiências dão acesso a lógicas sociais e simbólicas que são as lógicas do grupo, ou mesmo de conjuntos muito maiores”. REVEL, Jacques (org.),”Apresentação”, Jogos de escalas: a experiência da microanális, Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 13. Spix e Martius. Op Cit, p. 38 Idem. Idem. p. 252. Em 1827, o viajante inglês, Henry Lister Maw, quando passou pela capitania do Rio Negro, também fez referência à atuação do negociante Francisco Ricardo Zani naquela região. Segundo suas informações, Zani havia alcançado o posto de coronel por ter, entre outras coisas, ajudado os doutores Spix e Martius na viagem que realizaram para o Rio Negro, em 1819. MAW, Henry Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico, através dos Andes nas províncias do norte do Peru, e descendo pelo rio Amazonas, até ao Pará. Manaus: Associação Comercial do Amazonas/Fundo Editorial, 1989, p. 209. Em 1800, consta que o negociante João Lopes da Cunha solicitou uma licença para viajar à cidade de Lisboa onde iria tratar de seus negócios. No documento se afirmava que ele vinha “comerciando até agora nesta cidade (de Belém) e nos Sertões deste Estado e conservando ainda o mesmo negócio para benefício e precisão do mesmo negócio necessita ir à Lisboa”. O que pode se inferir que a atuação dele na cidade de Belém e nos sertões da capitania ocorria desde fins do século XVIII, sendo o 303 Siméia de Nazaré Lopes contrato que ora assinava uma confirmação dessas atividades. AHU_ACL_CU_013, Cx. 117, d. 9029. Pará, 14/05/1800. 16 Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, n. 1152, d. 359, (18201821). 17 Op Cit, p. 99. 18 Spix e Martius, Op Cit, p. 100. 19 Em junho de 1821, o capitão João Lopes da Cunha e o tenente Antonio Peixoto de Azevedo passaram procuração para a cidade de Cuiabá para o brigadeiro Gabriel da Fonseca de Souza, para João Gonçalves dos Santos Crus e para o tenente Joze da Costa Leite. Procuração Bastante e Geral, APEP, LNTP, n. 1152, (1820-1821). Infere-se que esse comércio para Mato Grosso tenha persistido por toda a década de 1820, visto que em 1830, o negociante Cunha, agora “Ilustríssimo Coronel”, passava procuração ao “Ilustríssimo Comendador” Joaquim Joze Lopes, para representá-lo naquela província. Procuração Bastante e Geral, APEP, LNTP, n. 1183, (1833-1834). 20 Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, n. 1152, d. 359, (18201821). 21 Idem. 22 Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, s/n, d. 98, (1816). 23 AHU_CU_013_Cx.154, d. 11855 e 11861. Pará, 22/06/1822. 24 AHU_CU_013_Cx.154, d. 11938. Pará, 20/09/1822. 25 AHU_CU_013_Cx.154, d. 12311. Pará, 10/12/1823. 26 A respeito dessas providências, o governador Francisco de Sousa Coutinho informava sobre as implementações que seriam adotadas para tornar regular a comunicação entre as capitanias, através das rotas de navegação, do estabelecimento de povoações nas margens do rio e de fazendas de gado. Estabelecendo-se assim, algumas relações comerciais de negociantes de Belém com as praças daquelas capitanias. AHU_ACL_CU_013, Cx. 116, d. 8955, Pará, 22/11/1799. 27 Cf: AMARAL LAPA. J. R. “Do comércio em área de mineração”. In: Economia Colonial. Série Debates, Ed. Perspectiva: São Paulo, 1973, pp. 28-30; Spix e Martius. Op. Cit., p. 107. 28 O próprio governador de Mato Grosso explica a diferenciação que faz entre secos e molhados para poder cobrar os direitos, visto não haver lá Alfândega e pessoas capacitadas para fazer tais cálculos e arrecadações. “Fazenda seca vai a balança, e cada arroba para 1:125 reis, ou esta arroba seja de cambraias finíssimas, ou de estopa a mais grossa, ou de metais preciosos ou de ferro. E dos molhados, que segundo se declara nas condições do contrato das entradas, é tudo o que se consome ou bebe, paga cada carga, por exemplo, cada frasqueira de líquidos, cada 304 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 saco de sal, 750 reis”. AHU_ACL_CU, Cx. 37, d. 1862. Vila Bela, 23/06/1799. Idem. O capitão Joze Antonio Gonçalves Prego era negociante que costuma seguir para Belém em comboio com outros negociantes de Mato Grosso. Segundo o registro dos comboios, Gonçalves Prego realizou 3 viagens para Belém nos anos de 1775, 1778 e 1781. APEP, Códice 297. AHU_ACL_CU, Cx. 37, d. 1862. Vila Bela, 23/06/1799 AHU_ACL_CU_013, cx. 133, d. 10130. Pará, 18/03/1805. Um ano antes, O conde dos Arcos e o visconde de Anadia trocaram ofício se reportando às “novas possibilidades de relações comerciais entre a capitania do Mato Grosso e o Estado do Pará, e o socorro militar oferecido ao governo daquela capitania”. AHU_ACL_CU_013, cx. 133, d. 10065. Pará, 02/12/1804. Idem, Ibdem. AHU_ACL_CU, Cx. 39, d. 1964. Vila Bela, 09/04/1802. AHU_ACL_CU_008, Cx. 52, d. 2917. Em 1804, o Conde dos Arcos, governador do Pará, remeteu ofício ao Visconde de Anadia informando sobre o “destacamento de pessoas para aquele território (Mato Grosso), com o objetivo de ali criar uma Junta da Fazenda Real.” Pará, 07/08/1804. Cf: CARREIRA, Antonio. A companhia geral do Pará e Maranhão. São Paulo:Editora Nacional, 1988. APEP, códice 297, Pará, 25/06/1808. 305 Siméia de Nazaré Lopes 306 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Resumos | Abstracts Eduardo Prado: um monarquista em tempos republicanos Amanda Muzzi Gomes Resumo: Eduardo Prado foi um dos mais líderes monarquistas na década de 1890. Filho de aristocratas cafeeiros paulistas, ele teve vários familiares influentes na política imperial, mas não chegou a ocupar cargos políticos, tendo iniciado sua militância política como reação à proclamação da República. Nesse artigo, abordamos suas inserções sociais e trajetória monarquista. Por fim, analisamos sua interpretação para a mudança de regime e como, em textos de combate à política republicana, ele avaliou, por vezes até criticamente, o Segundo Reinado. Palavras-chave: Eduardo Prado – monarquistas – primeira década republicana Abstract: Eduardo Prado was one of the leading monarchists in the 1890s. As he was born in a family of coffee aristocrats, he had several influential relatives in imperial policy. However, he does not occupied positions politicians. He started his political activism as reaction the announcement of the Republic. In this article, we approach his social insertions and monarchist trajectory. We also analyze his interpretation for political transition from monarchy to republic. Finally, we analyze his evaluations about D. Pedro II government, in texts of antiRepublican politics. Keywords: Eduardo Prado monarchists the first decade of Brazilian Republic 307 Resumos | Abstracts Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão Anderson da Silva Almeida Resumo: O presente artigo explora o uso da carta pessoal como fonte para o historiador. 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Keywords: Individual, Epistolary writing, Historical sources 308 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Resumos | Abstracts Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta André Inácio de Assunção Neto Resumo: Em um setor da cena editorial na Espanha da década de 1970 incursões, por um lado, pelo terreno da sátira caricaturesca realista, construindo duras críticas à sociedade espanhola ou, por outro lado, as abordagens mais esteticistas e fantásticas, constituem as principais configurações de uma novidade: os quadrinhos para adultos. Quais são os processos sociais (portanto históricos) particulares, as diversas práticas, sejam editoriais, artísticas ou políticas, que explicam a especificidade desse segmento de na década de 1970 no território espanhol? Palavras-chave: Quadrinhos para adultos, Espanha, Práticas Abstract: In a section of the scene editorial in Spain of the decade of 1970 incursions, on one side, for the land of the realistic caricatural satire, building hard critics to the Spanish society or, on the other hand, the approaches more beauticians and fantastic, they constitute the main configurations of an innovation: the comics for adults. Which are the social processes (therefore historical) matters, the several practices, be editorials, artistic or political, what do explain the specificity of that segment of in the decade of 1970 in the Spanish territory? Keywords: Adult Comics, Spain, Practice 309 Resumos | Abstracts Modelo Político de Alexandre, O Grande na Roma doSéculo II d. C.: Perspectivas Teóricas na Anábase de Alexandre Magno de Arriano de Nicomédia André Luiz Leme Resumo: Enquanto proposta historiográfica, a obra Anábase de Alexandre Magno trouxe aos contemporâneos de seu autor, Arriano de Nicomédia (90 – após 145 d.C.), um modelo idealizado e exemplar de governante através do resgate da memória de Alexandre Magno (356 – 323 a.C.). Destarte, da inevitável comparação passado/presente que a obra oferece, indicando uma análise reflexiva do autor acerca do comportamento do rei macedônio, poderíamos também entrever perspectivas teóricas em relação ao poder no ambiente do Império Romano do século II d.C. Palavras-chave: Arriano de Nicomédia, Império Romano, Anábase de Alexandre Magno Abstract: While a historiographical proposal, the Anabasis of Alexander the Great brought to the contemporaries of the author, Arrian of Nicomedia (90 - after 145 AD), an idealized and exemplary model of ruler through the retrieval of the memory of Alexander the Great (356-323 BC). Thus, from the inevitable comparison past/present that the work offers, indicating a reflective analysis of the author about the behavior of the Macedonian king, we could also glimpse theoretical perspectives in relation to the power of the Roman Empire in the environment of the second century AD. Keywords: Arrian of Nicomedia, Roman Empire, Anabasis of Alexander the Great 310 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Resumos | Abstracts A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira: um exemplo de biografia moderna em terras brasileiras Andréa Camila de Faria Resumo: Como sintoma de uma época em que os pressupostos da chamada biografia moderna se disseminavam em solo brasileiro, A vida de Gonçalves Dias, publicada por Lúcia Miguel Pereira em 1943, apresenta-se para nós como fonte rica não apenas para a investigação de um novo tipo de escrita biográfica, mas também como fonte de uma construção de uma imagem de Gonçalves Dias pautada, sobretudo, em sua condição humana e muito influenciada pelas teorias psicanalíticas e sociais do século XX. Palavras-chave: Gonçalves Dias, biografia, história. Abstract: As a symptom of a time when the assumptions of the nominated modern biography disseminated in Brazilian soil, The life of Gonçalves Dias, published by Lúcia Miguel Pereira in 1943, presents us itself as a rich source not only for the investigation of a new type of biographical writing, but also as a source of building an image of Gonçalves Dias guided mainly in his human condition and very influenced by social and psychoanalytic theories of the twentieth century. Keywords: Gonçalves Dias, biography, history. 311 Resumos | Abstracts Academia dos Renascidos: O Saber como Poder na Bahia Setecentista Bruno Casseb Pessoti Resumo: Esse trabalho analisa a produção intelectual da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos, instituição fundada na Bahia, em 1759, cujo principal objetivo era escrever a história geográfica e natural, política e militar, eclesiástica e secular da América portuguesa. Através da produção intelectual destes indivíduos identificamos a defesa da legitimidade da soberania portuguesa em suas terras do continente americano e a busca por mercês, como alguns dos principais usos do discurso histórico durante o século XVIII luso-brasileiro. Palavras-chave: Academia dos Renascidos, história da América Portuguesa, século XVIII Abstract: This work is detained in the intellectual production of the Academia Brasílica dos Renascidos. This institution was founded in Bahia, in 1759 and its principal objective was to write the geographical and natural, political and military, ecclesiastical and secular history of Portuguese America. Through the intellectual production of these individuals, we identify the defense of the legitimacy of the Portuguese sovereignty in its possession of the American continent and the search of mercy as some of the main uses of the historical speech during the Luso-Brazilian century XVIII. Keywords: Academia dos Renascidos, history of Portuguese America, eighteen century 312 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Resumos | Abstracts Os perigosos Domínios de Hespanha: contatos e tensões na fronteira luso-espanhola da Capitania do Rio Negro (17801808) Carlos Augusto de Castro Bastos Resumo: A partir da década de 1780, Portugal e Espanha organizaram comissões demarcadoras para definir as fronteiras de suas possessões americanas. Embora as demarcações estreitassem o intercâmbio de informações entre autoridades, essa aproximação também gerou desconfianças. Em relação à Capitania do Rio Negro, as autoridades temiam o avanço militar dos espanhóis e a perda territorial. Nesse artigo serão discutidas as leituras e ações políticas das autoridades portuguesas quanto às possíveis ameaças representadas pela aproximação com os domínios espanhóis no continente. Palavras-chave: Rio Negro, fronteira, América Espanhola Abstract: From the 1780s, Portugal and Spain have organized expeditions to delimit the boundaries of their American dominions. Although theses commissions had straitened the exchange of information between authorities, this contact had also generated distrust. Regarding the Capitania do Rio Negro, the authorities feared a Spanish military attack and the loss of territory. This paper discusses the actions and political readings of the Portuguese authorities about the possible threats posed by the proximity to the Spanish dominions on the continent. Keywords: Rio Negro, boundary, Spanish America. 313 Resumos | Abstracts O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval: O Poder, a Sociedade e a Erudição na Muqassimah de Ibn Khaldun (1332-1406) Elaine Cristina Senko Resumo: O historiador Ibn Khaldun (1332-1406), em sua obra Muqaddimah, desenvolveu um estudo acerca do poder, da sociedade e da erudição no ambiente islâmico medieval. Destarte, Khaldun estabeleceu reflexões acerca da politica islâmica medieval no norte da África junto a Península Ibérica e o Oriente islâmico. Através de uma análise desses tópicos, podemos entrever uma proposta historiográfica que buscava encontrar e revelar perspectivas reguladoras em torno de um certo movimento da sociedade – o qual corresponderia à uma noção de tempo cíclico. Palavras-chave: historiador Ibn Khaldun, Muqaddimah, história medieval Abstract: The historian Ibn Khaldun (1332-1406), in his work Muqaddimah, developed a study of the power, society and scholarship on medieval Islamic environment. Thus, Khaldun established ideas about the medieval Islamic politics in North Africa, as well as in the Iberian Peninsula and the Islamic East. Through an analysis of these main topics, we can glimpse a historiographical proposal that sought to find and reveal regulatory perspectives around a certain movement of society which would correspond to a notion of cyclical time. Keywords: Historian Ibn Khaldun, Muqaddimah, Medieval History 314 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Resumos | Abstracts Memória social, memória coletiva e História: um mapeamento da questão Fabio Osmar de Oliveira Maciel Resumo: A obra de Halbwachs estabeleceu um marco na década de 30, ao criar a categoria Memória Coletiva. Ainda hoje os debates sobre a memória estão presentes no âmbito acadêmico e em ações políticas. Neles, os enquadramentos são fundamentais para as construções das identidades. Cabe a história a problematização destas questões. Desta forma, é nosso objetivo traçar um breve mapeamento sobre o tema a partir da relação memória e História, procurando estabelecer o espaço de atuação dessas duas áreas. Palavras-chave: História, Memória Coletiva, Memória Social. Abstract: Halbwachs's work established a milestone in the 30s to create the category Collective Memory. Even today, debates about memory are present in the academic and political action. In them, the frameworks are fundamental to the construction of identities. It is up to the problematic history of these issues. Thus, it is our goal to provide a brief mapping on the theme from the connection memory and history, trying to establish the space of action of these two areas. Keywords: History, Collective Memory, Social Memory. 315 Resumos | Abstracts Fritzmac e o ano de 1888: A revista de ano como palco de discussões políticas na corte Flávia Ferreira de Almeida Resumo: O presente artigo tem como objetivo pensar a revista de ano Fritzmac como lugar de expressão de importantes debates políticos que ocorreram na sociedade brasileira, em fins do século XIX, particularmente no ano de 1888. Entre esses debates, destaco o fim da escravidão, a nova condição social dos negros no pós-abolição, a imigração chinesa e a implementação da república. Demonstrando que a revista de ano serviu como espaço de circulação e divulgação dessas questões na sociedade carioca. Palavras-chave: revista de ano – Rio de Janeiro – abolição. Abstract: This paper aims to reflect the year magazine Fritzmac as an expression of important political debates that took place in Brazilian society in the late nineteenth century, particularly in 1888. Among these debates, I emphasize the end of slavery, the new social status of blacks in post-abolition, the chinese immigration and the implementation of the republic. Showing that the year magazine used to be a space for circulation and dissemination of these issues in Rio society. Keywords: year Magazine - Rio de Janeiro – abolition. 316 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Resumos | Abstracts Os segredos da nação: o IHGB e a criação da “arca do sigilo” Isadora Tavares Maleval Resumo: A constituição da história como disciplina foi matéria de intensas discussões no IHGB, fundado em 1838. Entre os assuntos de destaque naquele contexto, importa-nos o (não)lugar destinado às narrativas sobre o tempo presente. A criação de uma “arca do sigilo”, onde se guardaria documentos do passado recente da nação demonstra tanto a emergência de uma concepção moderna de história, quanto questões políticas referentes ao período: a participação, por exemplo, de sócios da instituição em movimentos rebeldes do início do oitocentos. Palavras-chave: historiografia – século XIX – IHGB. Abstract: The constitution of history as discipline was subject of intense discussions in IHGB (1838). Among the issues highlighted in that context is important to us the (non-)place for their narratives about the present. The creation of an "ark of secrecy", which would keep the documents of nation's recent past shows the emergence of a modern conception of history and political issues relating to the period: the participation, for example, of partners in rebel movements at the beginning of nineteenth century. Keywords: historiography – nineteenth century – IHGB 317 Resumos | Abstracts Éramos “Oito”: A Trajetória da Dissidência Comunista da Guanabara/Movimento Revolucionário 8 de Outubro (19641973) Izabel Priscila Pimentel da Silva Resumo: Nosso objetivo principal é analisar a trajetória da Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB), posteriormente conhecida como Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), cujas origens remontam às acirradas divergências internas que cindiram o Partido Comunista Brasileiro, sobretudo após o golpe civil-militar de 1964. Esta organização exerceu liderança inconteste no movimento estudantil carioca e nacional e, a partir de 1968, converteu-se às ações armadas, alcançando grande notabilidade ao conceber e realizar a captura do embaixador dos Estados Unidos, em setembro de 1969. Palavras-Chave: Movimento Estudantil, Luta Armada, Ditadura Abstract: The main objective of this paper is to analyze the trajectory of the Dissidência Comunista da Guanabara, or DIGB (Guanabara’s Communist Dissidence), latley known as Movimento Revolucionário 8 de Outubro, or MR-8, (Revolutionary Movement 8th of October), as origins bring back the unyielding internal disagreements that originated the Brazilian Communist Party, specialy after military coup of 1964. This organization was an undisputed leader amongst the students in Rio and Brazil and, after 1968, adopted armed actions, becaming highly notable for planning and executing the capture of the United States ambassador in September 1969. Keywords: Student Activism, Armed Conflict, Dictatorship 318 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Resumos | Abstracts Polícia Política em Minas Gerais: Fabricação de crimes políticos e imaginário anticomunista no regime militar de 1964 Júlia Lettícia Camargos Resumo: O trabalho explora a atuação da polícia política de Minas Gerais – DOPS/MG- no combate aos crimes políticos durante o regime militar de 1964. Elegemos os procedimentos do DOPS a fim de explicitar mecanismos utilizados no controle de segmentos hostis à ordem instaurada, como a fabricação de crimes políticos dentro dos parâmetros anticomunistas. O anticomunismo foi um forte elemento ideológico que moldou comportamentos, sustentou ações coercitivas e definiu os contornos da práxis da polícia política no Brasil. Palavras-chave: Anticomunismo, Crime político, Polícia política Abstract: This work analyzes the political police of Minas Gerais operation – DOPS/MG – on wiping political crimes out during the military regime of 1964. We have pick DOPS proceedings in order to adduce the mechanisms used in control of antagonistic segments to the established order, like production of political crimes within the anticommunist parameters. Anticommunism was an intense ideological element which held sway over behaviors, sustained coercive actions and determined the praxis outline of political police in Brazil. Keywords: Anticommunism, Political crime, Political police 319 Resumos | Abstracts O Cultural Change Institute: a cultura como via única para o progresso Samantha Cintra Magnanini Resumo: O artigo aborda o instituto de pesquisa chefiado por Lawrence E. Harrison para entender como a cultura, sob esta ótica, aparece como único caminho para o progresso das nações. Ao tratar das teorias e práticas empreendidas pelo CCI, é possível entender como, a partir das condições criadas pelos ataques de onze de setembro, foi possível resgatar, em parte, o discurso missionário norte-americano através da exportação dos valores que defendem como seus para o resto do mundo, sob uma perspectiva cultural. Palavras-chave: Intelectuais – Neoconservadorismo – Cultura Abstract: The article discusses the research institute headed by Lawrence E. Harrison to understand how culture, on this perspective, appears as the only path to national progress. When dealing with theories and practices produced by the CCI, it is possible to understand how, from the conditions created from the attacks of September 11, it was possible to recover, in part, the american missionary discourse and the practice of exporting the american values from a cultural perspective. Keywords: Intelectuals – Neoconservatism – Culture 320 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Resumos | Abstracts Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial entre Pará e Mato Grosso (1790-1820) Siméia de Nazaré Lopes Resumo: A proposta dessa comunicação é analisar a formação de sociedades mercantis na cidade de Belém e as propostas das autoridades administrativas para estreitar as relações comerciais entre Pará e Mato Grosso de 1790 a 1820. A troca de correspondências entre os governadores das duas capitanias apresenta as discussões que pautaram e definiram a articulação comercial entre Belém e Vila Bela. Para além desse planejamento, será também discutido algumas ações concretas dessa articulação comercial entre essas duas áreas da América portuguesa. Palavras-chave: Sociedades mercantis, Pará e Mato Grosso Abstract: The purpose of this communication is analyzing the formation of commercial societies in Belem and the policy of local authorities to strengthen trade relations between Para and Mato Grosso from 1790 to 1820. The exchange of correspondence between the governors of two capitanias presents the discussions that dedfined the relationship between trade of Belém and Vila Bela. Beyond this political planning will be also discussed some concrete actions that made possible the commercial relation between these two areas of Portuguese America. Keywords: Commercial Companies, Para and Mato Grosso 321 Resumos | Abstracts 322 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Normas Editoriais 1. Só serão aceitos artigos de pós-graduandos e pósgraduados que tenham sido aceitos, apresentados e entregues de acordo com as regras estipuladas pela Semana de História Política da UERJ. 2. Será feita uma seleção entre os artigos enviados para a Semana de História Política, onde os contemplados terão seus textos publicados na Revista Dia-Logos. Os trabalhos serão apreciados por dois pareceristas, que poderão solicitar modificações nos artigos aceitos. Havendo disparidade nos pareceres, os artigos serão encaminhados a um terceiro parecerista. Será garantido o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação dos artigos. O Conselho Editorial compromete a não enviar artigos de orientandos para orientadores e direcionar os artigos de acordo com a especialidade do parecerista. 3. Os trabalhos devem ser enviados em arquivo digital para o e-mail da Semana de História Política divulgado no endereço eletrônico www.semanahistoriauerj.net, no qual deve conter título do trabalho, nome completo do autor, títulação, vínculo institucional, identificação do Normas Editoriais orientador (a), e-mail, telefone e endereço completo para correspondência. Também deve ser enviado duas cópias impressas empapel que não exibirão os dados de identificação do autor, para o endereço: Semana de História Política, Programa de Pós-Graduação em História/UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, 9º andar, bloco F, sala 9.037, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, CEP: 20550-900. 4. Os artigos devem ter a extensão máxima de dez laudas, digitados na fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 e margens de 2,5cm. As notas devem ser colocadas, numeradas, no final do texto. O arquivo deverá ser enviado no formato word. A revista não publica bibliografias. 5. Os artigos devem ser encaminhados de resumos (em português e inglês), com no máximo oitenta palavras e três palavras-chave (em português e em inglês). Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição esta deverá ser mencionada. 324 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Normas Editoriais 6. As citações com mais de três linhas deverão respeitar tabulação a 3,5cm da margem esquerdas, corpo 10, espaço simples. As citações com menos de três linhas deverão estar incorporadas, com aspas, ao texto. 7. As notas devem ser colocadas no final do artigo, com a seguinte apresentação: 7.1. SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. 7.2. SOBRENOME, Nome. “Título do capítulo ou parte do livro”. In: Título do livro em itálico. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. 7.3. SOBRENOME, Nome. “Título do artigo”. In: Título do periódico em itálico, cidade, vol. (fascículo, nº): 00-00, ano, p. 8. O número de artigos em cada edição será definido pelo Conselho Consultivo e pelo Conselho Editorial de acordo com a disponibilidade de verbas. 9. Os dados e conceitos emitidos nos artigos são de única e exclusiva responsabilidade dos autores. Os direitos 325 Normas Editoriais autorais sobre os originais publicados são automaticamente cedidos à revista, ficando a mesma autorizada a republicá-la em diferentes mídias. 10. Cada autor receberá gratuitamente três exemplares do número da revista com o seu artigo. 11. Um mesmo autor não poderá publicar em duas edições consecutivas da revista. 12. Os autores serão notificados da aceitação dos artigos. 13. Serão desclassificados automaticamente aqueles artigos que não se adequarem às normas de publicação, incluindo os artigos cujos autores não se apresentaram na Semana de História Política (proponente de comunicação faltoso). 326 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011 Esta Revista foi impressa pela Fábrica do Livro em Outubro de 2011