I
PERPLEXIDADE
U
m membro fundador de uma igreja reclama:
— Acabaram com a santidade da comunhão. Antes ela era um
rito solene, quando nos lembrávamos de nossos pecados e dos sofrimentos do Senhor. Agora parece uma festa!
Em outra igreja, alguém comenta:
— Não entendo nossa pastora. Ela diz que não é liberal, e muitas
vezes critica o liberalismo e o modernismo. Mas tampouco é fundamentalista, e às vezes diz algumas coisas estranhas.
De vários milhares de quilômetros de distância, um velho amigo
me escreve:
— Andei lendo alguns dos livros escritos por teólogos do
Terceiro Mundo. Como você sabe, sempre fui bastante conservador
em assuntos de teologia. Mas há algo nesses livros que me atrai,
ainda que na realidade eu não entenda o que é.
Enquanto isso, em uma aula de seminário, um estudante desafia
a professora:
— Se você acredita de verdade que Isaías 53 se refere aos sofrimentos de Israel nos tempos de Isaías, por que leu a passagem na
igreja, na Sexta-Feira Santa, como se ela se referisse a Jesus? Se a
profecia diz respeito a Israel, não pode ser sobre Jesus.
E, num hospital, um médico profundamente cristão diz ao capelão:
— Quando menino, frequentei a escola dominical de uma
pequena igreja em minha cidadezinha, onde me ensinaram uma
teologia muito conservadora e me puseram medo com o inferno e
suas torturas. Depois, na universidade, tive um professor que me
causou um grande impacto e abriu meus olhos para muitas coisas
com seus ensinamentos bem liberais sobre questões doutrinais e
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teológicas. Mas agora que tenho de tomar decisões sobre o uso de
novos recursos médicos, nem minha escola dominical nem aquele
professor universitário me ajudam muito.
O denominador comum em todos esses comentários é a perplexidade. Existe hoje entre o povo cristão uma dupla perplexidade:
em primeiro lugar, muitas pessoas não sabem o que fazer ou o que
pensar em relação a práticas litúrgicas e posições teológicas que não
se encaixem nas polaridades tradicionais entre liberais e conservadores ou entre católicos e protestantes. Em segundo lugar, causa-nos
perplexidade um mundo em que as situações novas e sem precedentes ocorrem com uma frequência cada vez mais surpreendente,
e onde o “progresso” nos abre esperanças que vão além dos mais
belos sonhos de nossos avós e ameaças mais horripilantes do que
seus mais terríveis pesadelos.
As teologias tradicionais que muitos aprendemos, sejam elas
liberais ou fundamentalistas, não nos ajudam muito em face de
tais perplexidades. As teologias mais conservadoras diriam simplesmente que nosso problema é falta de fé; e as mais liberais
diriam que é falta de entendimento. Mas nenhuma delas nos abre
caminhos de esperança e de obediência nestes dias aparentemente
sem precedentes.
O que pretendo mostrar neste livro é que na igreja antiga existia,
além dos antepassados longínquos de nossos fundamentalismos e
liberalismos, outro tipo de teologia; que esse terceiro tipo nos leva
a uma leitura diferente da Bíblia e de sua mensagem; e que essa leitura diferente é muito pertinente para nossas perplexidades de hoje.
Portanto, este ensaio se dirige principalmente àqueles crentes que,
em meio às perplexidades da atual transição para o terceiro milênio,
buscam uma compreensão de sua fé que possa guiá-los ao futuro na
esperança e obediência.
Há pouco mais de quarenta anos, quando comecei a lecionar cursos
sobre a história do pensamento cristão, meu propósito principal era
apresentar a meus estudantes uma história e uma tradição que para mim
se mostravam estimulantes e inspiradoras. O resultado foi um livro
com o título bastante tradicional de História do pensamento cristão.
O caráter tradicional desse título era intencional. Meu propósito
não era apresentar minha própria interpretação da história que eu
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narrava, mas sim oferecer a meus leitores e leitoras um resumo
das interpretações que desfrutavam de aceitação geral entre os
estudiosos, com tanta imparcialidade quanto me fosse possível.
Com o correr dos anos, fui incluindo em cada nova edição algumas
correções e acréscimos, de acordo com o que outros estudos pareciam aconselhar. Mas, apesar disso, a intenção desse livro sempre
foi apresentar o consenso entre os intérpretes, mais do que minhas
próprias ideias ou interpretações.
Por outro lado, visto que a história é sempre interpretação, sei
que o “consenso” dos pesquisadores que procurei expor não passa de
um conjunto de interpretações e que tais interpretações, ao mesmo
tempo em que se baseiam em documentos antigos e outros restos do
passado, também refletem os preconceitos e os propósitos dos intérpretes. Logo, como historiador, não posso evitar interpretar, e é por
isso que ofereço o presente ensaio, que bem poderia ser considerado
uma nota de rodapé daquela História do pensamento cristão.
Escrevo, portanto, esta “nota de rodapé” em meio às perplexidades teológicas que se nos apresentam justamente no início do
terceiro milênio, com a firme convicção de que nosso passado teológico tem ainda muito a oferecer, mesmo nesta era de comunicações
cibernéticas e engenharia genética.
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