2 agosto de 2000 – edição 1660
Claudio de Moura Castro
O frágil império da ciência
"Não podemos usar a ciência para testar a existência de Deus, mas a biologia
moderna, descendente direta de Darwin, cria os remédios que salvarão vidas,
mesmo a de seus descrentes"
Ilustração Ale Setti
Metade dos prêmios Nobel e um terço da produção
científica mundial estão nos Estados Unidos. De lá veio
a liderança para o mapeamento do genoma humano.
Muitos de nós estamos vivos graças aos recentes
avanços na medicina americana. Os computadores já
falam (inglês) e um deles ganha dos melhores
enxadristas.
Vem de longa data a liderança científica e tecnológica
de nosso vizinho e daí seu poder. Poderia parecer então
que lá a ciência está solidamente estabelecida e os paradigmas do pensamento
científico são inabaláveis. Ledo engano.
A teoria da evolução das espécies tem 140 anos. Nela, Darwin mostrou que as
espécies mudam, vão se transformando, umas competindo com as outras e
sobrevivendo as mais aptas. Nessa teoria, o homem descende de primatas e é primo
do macaco. É o alicerce de toda a biologia moderna, cujos êxitos nos salvam a vida e
alimentam uma população para a qual a Terra pareceria pequena demais. Nenhum
professor titular de biologia de qualquer uma das cinqüenta melhores universidades
americanas admite explicação alternativa. Hoje, nenhuma das religiões ocidentais
importantes tem pinimba com a teoria da evolução. Não obstante, em 1925 o Estado
americano do Tennessee, depois da batalha legal de Monkey Trial, aprovou uma lei
que proibia o ensino da teoria da evolução. Somente em 1968 essa lei foi revogada.
Poderíamos pensar que se trata de um episódio triste, obscurantista, mas encerrado.
Contudo, pesquisa de opinião recente demonstrou que 47% dos americanos acreditam
que Deus criou os homens tais como são, enquanto 49% aceitam a evolução como
explicação correta. Pesquisa com alunos de cursos superiores mostrou a falta de bases
científicas de 45% daqueles que duvidam da teoria da evolução. Pior: alguns Estados
vêm aprovando leis que obrigam a ensinar o "criacionismo científico" (cuja
cientificidade é negada pelos biólogos sérios) lado a lado com a teoria da evolução. O
Kansas eliminou o assunto do currículo.
Stephen Jay Gould, o conhecido paleontólogo da Harvard, atribui isso à fragilidade da
educação científica americana, que varia entre a melhor e as mais catastróficas do
mundo. Mas há o outro lado da questão: a pouca penetração da ciência na sociedade,
mesmo diante das próprias questões científicas. Metade da população pontifica sem
saber do assunto e sem respeitar a autoridade de quem sabe. Isso mostra a pouca fé
no método científico, que é a grande ferramenta ou motor do conhecimento.
Um dos grandes avanços de nossa civilização é o processo metódico e sistemático de
fazer progredir o conhecimento: o teste empírico das teorias. Cada teoria é
confrontada com a realidade, de forma rigorosa e perfeitamente explicitada, de modo
que qualquer um que faça o mesmo experimento chegue às mesmas conclusões. A
teoria conflita com os resultados? Então, lata de lixo para ela. Se a observação não
nega a teoria, ela sobrevive, até que alguém encontre uma massa suficiente de casos
em que a teoria não concorda com a realidade. Assim, a ciência vai desbastando a
ciência boa do mito, do palpite, da superstição. O que sobra é sólido.
Como a observação não nega as idéias de Darwin (com os retoques e ajustes
esperados), a teoria da evolução é aceita. De fato, hoje sabemos que o homem
compartilha 98% de seu DNA com o chimpanzé. Então, qual a autoridade intelectual
de quase metade da população americana para negar uma teoria que resistiu a 140
anos de ataques por aqueles que sabem do assunto?
É perigoso ter uma população basbaque, que acredita em tudo. Mas o extremo oposto
não é menos perigoso, pois isso significa a descrença no engenho mais possante que
temos para verificar se alguma teoria que descreve a realidade é verdadeira ou falsa.
Não podemos usar a ciência para testar a existência de Deus ou seus mandamentos.
Esses são atos de fé ou juízos de valor. Mas a biologia moderna, descendente direta de
Darwin, cria os remédios que salvarão vidas, mesmo a de seus descrentes. É triste
reconhecer, mas, no país mais poderoso do mundo, a ciência não chegou ao povão.
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2 agosto de 2000 – edição 1660