UMA BREVÍSSIMA HISTÓRIA DO PENSAMENTO EVOLUTIVO
Prof. Carlos Guerra Schrago
Departamento de Genética, Universidade Federal do Rio de Janeiro
[email protected]
www.edarwin.net
Introdução
Discorrer sobre a história do pensamento evolutivo não é uma tarefa simples,
pois a definição do que consiste o pensamento evolutivo em si é tema de discussão entre
os autores. Por exemplo, é comum considerar que apenas após a publicação do Origem
das Espécies em 1859 observa-se uma discussão científica significativamente
semelhante ao que hoje denominamos como biologia evolutiva. Esta abordagem,
entretanto, ignora as influências intelectuais de Darwin. Charles Darwin não
desenvolveu a sua teoria a partir uma ciência completamente ignorante da evolução das
espécies. Na verdade, o fato de Darwin citar amplamente outros autores e de ter
incluído uma síntese histórica sobre a evolução das espécies na abertura do Origem das
Espécies evidencia que o autor tinha plena noção da contribuição de outros
pesquisadores para o pensamento evolutivo. Portanto, devemos recuar no tempo
anterior a 1859 para identificar algumas linhas de influência intelectual e como ocorreu
o desdobramento dessas ideias ao longo dos anos.
Imediatamente, portanto, nos impomos o problema de identificar qual é
momento de origem dessas ideias que resultariam na biologia evolutiva moderna. Além
disso, histórias de ideias científicas podem ser desenvolvidas sob um ótica internalista
ou externalista. Na abordagem internalista, a história das ideias científicas é avaliada
desconsiderando uma ação significativa das condições sociológicas, culturais e
econômicas em que as ideias foram desenvolvidas. Em outras palavras, a dinâmica da
história da ciência é independente da dinâmica da história social que a circunda. Na
análise externalista, os acontecimentos externos à ciência possuem uma influência
significativa no desenvolvimento das ideias científicas. As duas abordagens possuem
pontos positivos e negativos e o ideal é que o historiador consiga combinar as duas
linhas de análise, pois obviamente as ideias científicas não surgem num vácuo
sociológico mas, em contrapartida, a ciência de fato possui idiossincrasias que impedem
que sua dinâmica seja uma consequência direta da história socioeconômica dos povos.
1 Finalmente, a história da ciência não pode ser interpretada numa lógica progressista ou,
conforme denominado pelos historiadores de origem anglo-saxônica, whig history. Uma
análise whig interpreta a história como um sequência progressista cuja finalidade é
chegar até a configuração atual do mundo. Nesta lógica, a interpretação dos cientistas
do passado é sempre realizada de forma comparativa aos cientistas de hoje. Assim, por
exemplo, a relevância da obra de Jean Baptiste Lamarck não é avaliada considerando o
que exista anteriormente, mas a partir do que foi desenvolvido posteriormente. As
teorias de Lamarck são, então, tornadas menores e interpretadas como simples tentativas
de serem equivalentes ao darwinismo; algo que Lamarck nunca conheceu.
Em história da ciência, o problema da historiografia progressista é
particularmente difícil de ser evitado, pois a ciência como atividade intelectual possui
características progressistas. Afinal, as novas hipóteses e teorias são construídas para
aprimorar ou corrigir aqueles existentes. Sabendo dessas dificuldades inerentes ao
estudo do desenvolvimento de qualquer disciplina científica, apresentaremos a seguir
uma breve história do desenvolvimento do pensamento evolutivo. Iniciaremos nossa
jornada na Antiguidade Clássica, mais especificamente, na antiga civilização grega. Ao
faze-lo estaremos replicando uma estratégia amplamente utilizada por historiadores da
ciência e da filosofia e é muito provável que em livros de física, química e matemática
você já tenha encontrado a afirmação de que “tudo começou na Grécia”. A afirmação é
tão comum que corremos o perigo de cair num clichê e deixarmos de nos perguntar,
afinal, por que a abordagem científica da natureza foi iniciada na Grécia Antiga. A
razão é simples. Foi de fato na Grécia antiga que pensadores começaram a tentar
explicar a natureza apenas por meios materiais, sem a invocação de entidades ou forças
sobrenaturais. Mais que isso, os gregos antigos também se preocuparam em criar um
método de análise para o estudo da natureza.
Após investigarmos a contribuição dos antigos, daremos sequência com os
desenvolvimentos intelectuais relevantes do final do império romano, ascensão do
cristianismo, período medieval, era moderna e, particularmente, os séculos 18 e 19.
Estes dois séculos foram, sem dúvida, cruciais para o surgimento da biologia evolutiva
moderna. Finalizaremos nossa jornada com a rápida transformação que o pensamento
evolutivo passou nos anos do século 20 e com atuais desafios da biologia evolutiva.
A contribuição dos gregos antigos
Costumeiramente, é dito que a análise racional e sistemática da natureza
material começou na Jônia, uma região localizada na atual Turquia, no século 6 a.C.
2 Mais precisamente, é atribuída à Tales, nascido na cidade de Mileto, a formalização das
primeiras abordagens intelectuais que poderiam ser caracterizadas como pensamento
científico primitivo. Tales, assim como boa parte dos filósofos da escola jônica, se
preocupou em compreender a natureza física do mundo. Alguns registros históricos
mostram, por exemplo, que Tales foi capaz de prever um eclipse solar no ano de 585
a.C. Embora não exista uma contribuição direta dos jônios ao pensamento evolutivo,
obviamente a inovação intelectual destes pensadores deve ser reconhecida como
fundamental para toda a ciência moderna.
Diferentemente dos jônios, por volta do século 4 a.C., nas obras de Platão e
Aristóteles, identificamos componentes que influenciaram diretamente o pensamento
evolutivo. Curiosamente, essa influencia não é considerada como positiva por muitos
historiadores, de forma que as abordagens filosóficas das escolas de atenienses
possivelmente apresentaram entraves ao desenvolvimento do pensamento evolutivo.
Começando por Platão, a parte de sua obra que é frequentemente identificada como uma
influencia negativa diz respeito à teoria das ideias, um componente da epistemologia
platônica. Platão, assim como seu mentor Sócrates, estava interessado na compreensão
não apenas do mundo material, mas principalmente por questões fundamentais como a
origem do conhecimento em si. Portanto, para compreender como é possível o
conhecimento das coisas concretas e abstratas num mundo repleto de diversidade,
Platão propôs que tudo deveria possuir uma essência, um tipo, um eidos (είδος)
imutável e eterno. Desta forma, conseguimos identificar um gato doméstico, apesar da
grande diversidade de gatos existentes, pois reconhecemos a essência do gato
doméstico. E reconhecemos esta essência, pois nós humanos fomos expostos ao mundo
das ideias, habitado apenas pelas essências ou tipos imutáveis, antes de nosso
nascimento. Após nascermos, guardamos vagas lembranças desse mundo, que nos
permite reconhecer superficialmente as coisas. O filósofo deve, portanto, tentar
compreender as essências em si e ignorar a diversidade, que apenas atrapalha no
processo de entendimento real do mundo.
A biologia que se desenvolve a partir do platonismo é, desta forma, uma
biologia que procura identificar a essência das espécies. O próprio termo ‘espécie’
possui uma raiz associada aos termos essência e tipo, pois a palavra vem do latim
species, que significa justamente tipo. Além disso, species é uma palavra que se origina
do verbo latino specio, ou seja, ver. Não é coincidência que, em grego moderno,
‘espécie’ seja traduzido como είδος. Assim, é claro que o pensamento tipológico de
Platão teve uma influência considerável para a biologia. Especialmente para o
3 desenvolvimento de uma ciência que estuda justamente a transformação das espécies
(είδος) ao longo do tempo. Ora, como é possível haver transformação dos tipos se esses
são imutáveis? Mais que isso, se as diversidade que encontramos no mundo é apenas
uma anomalia que afasta os nossos sentidos do entendimento da realidade das essências,
não é possível o desenvolvimento do conceito moderno de espécie biológica, que
considera as espécies como uma população. Ou seja, a entidade central do discurso
evolutivo, a espécie, possui na diversidade populacional, e não na essência, um dos seus
principais e definidores atributos. Talvez por isso que o famoso evolucionista Ernst
Mayr tenha considerado Platão como o maior anti-herói da história do pensamento
evolutivo.
Além de Platão, outro gigante da filosofia grega foi Aristóteles. Entretanto, em
Aristóteles temos algo completamente distinto. Primeiramente, dos pensadores da
antiguidade clássica, Aristóteles foi o único que deixou uma obra biológica
significativa. A biologia de Aristóteles foi tão importante que seus livros permaneceram
como referencia por mais de mil e quinhentos anos. Alguns filósofos contemporâneos
chegaram a sugerir que toda a filosofia aristotélica teria sido influenciada pelos estudos
que Aristóteles realizou sobre os seres vivos. A biologia de Aristóteles é descrita em
quatro tratados principais: História dos Animais, Partes dos Animais, Geração dos
Animais e Movimento dos Animais. No conjunto, Aristóteles apresenta, além de uma
extensa classificação dos animais, um corpo teórico para a ciência que viria a ser
denominada de biologia mais de 2000 anos depois. Por exemplo, Aristóteles se pergunta
como é possível o desenvolvimento dos animais. Ele propõe que, na natureza viva,
existe um princípio telos (τέλος) de finalidade. Afinal, se não existisse esse princípio, o
próprio desenvolvimento de um embrião animal em um adulto seria impossível. A
teleologia aristotélica talvez tenha tido como consequência a organização linear da
diversidade da vida em uma escala de complexidade. É atribuído à Aristóteles, portanto,
a proposição de uma classificação biológica que remete a uma escala, que
posteriormente seria denominada de grande cadeia dos seres.
Do Império Romano ao período medieval
Muitos consideram que após os tratados aristotélicos, nenhum desenvolvimento
intelectual teve relevância para o pensamento evolutivo até a época posterior a
Revolução Científica nos séculos 16 e 17. Assim sendo, por mais de 1600 anos,
nenhuma contribuição significativa teria sido feita. Essa afirmação talvez seja
exagerada, pois diversas linhas de pesquisa hoje caracterizadas como biologia
4 continuaram o seu desenvolvimento neste período. Entretanto, é fato que uma parte
considerável deste desenvolvimento ocorreu nas ciências médicas, onde a obra do
romano Claudio Galeno (século 2), assim como os tratados de Aristóteles,
influenciaram profundamente os diversos estudiosos que surgiram entre os séculos 8 e
13, o período conhecido como Idade de Ouro Islâmica. Neste período, a rápida
expansão do islamismo e a consolidação de califados foi associada ao financiamento de
estudiosos que traduziram e comentaram as obras da antiguidade clássica,
principalmente de Aristóteles. O processo de tradução foi tão intensamente conduzido,
em centros como Damasco e, principalmente, Bagdá (durante o califado dos Abássidas),
que uma quantidade considerável de textos gregos chegaram ao conhecimento dos
europeus medievais em árabe e não em sua língua original. Dos grandes estudiosos
deste período, o persa Avicena (ibn Sīnā) é mais relevante para as ciências biológicas.
Ele escreveu um tratado médico e anatômico, o Cânone da Medicina, que foi usado nas
universidades europeias até o século 17.
Além dos desenvolvimentos da pesquisa médica, a botânica e zoologia também
apresentaram algum crescimento durante o Império Romano e o período medieval. Na
História Natural do romano Gaius Plínio Segundo, também conhecido como Plínio o
Velho (século 1), verificamos uma tentativa de organizar todo o conhecimento sobre o
mundo natural de forma sistemática, assim como Aristóteles havia proposto cerca de
300 anos antes. A frequência de publicação de tratados que descreviam a diversidade
zoológica aumentou durante o período medieval. Nesta época, os bestiários, livros que
apresentavam e caracterizavam os animais conhecidos, eram comuns. Entretanto, os
bestiários medievais não faziam distinção entre os animais imaginários e os animais
reais. A descrição de um unicórnio, por exemplo, tinha o mesmo status que descrição
do cavalo. Desta forma, o conceito de espécie biológica para um pensador medieval,
que considerava o unicórnio uma espécie válida, era evidentemente pouco útil para fins
científicos. Uma rara exceção à estrutura literária dos bestiários foi De Arte Venandi
cum Avibus, a arte de caçar com pássaros, escrito pelo imperador germânico Frederico
II no século 13. Esta obra possui uma descrição da morfologia, biologia e
comportamento das aves com uma abordagem experimental que era praticamente
ausente na biologia medieval. Conforme observado por Ernst Mayr, se um estudioso
medieval quisesse saber quantos dentes um cavalo possui, ele consultaria a obra
Aristóteles ao invés de contar efetivamente o número de dentes presentes no animal.
Assim como na antiguidade clássica, as correntes filosóficas do período de cerca
de 1500 anos que vai do início do Império Romano (27 a.C.) até o final da Idade Média
5 (1453) são geralmente vistas como um impedimento ao desenvolvimento do
pensamento evolutivo. Neste período, um dos fatores mais relevantes para a história
intelectual do ocidente foi a ascensão da filosofia cristã. Em teoria, a filosofia cristã
apresentou poucos elementos novos que se apresentaram como contrários a qualquer
interpretação não-fixista da diversidade da vida. Na prática, entretanto, a incorporação
do platonismo e do aristotelismo, assim como sua associação com a narrativa
cosmogônica dos judeus, fez que a expansão do cristianismo no ocidente fosse
considerada como uma limitação ao desenvolvimento do pensamento evolutivo. Na
filosofia cristã, a ideia platônica de essência imutável foi intimamente associada ao
divino e a teleologia aristotélica foi ampliada para incluir inclusive hierarquias
angelicais, consistindo numa lógica consideravelmente antropocêntrica, onde o homem
só estaria abaixo dos anjos e de Deus. Estava consolidada então a grande cadeia dos
seres. Um conceito que, ainda hoje, está presente mesmo em representações populares
do processo evolutivo.
Revolução Científica
Nos séculos 16 e 17 diversas transformações sociais, filosóficas e tecnológicas
fomentaram o interesse dos pensadores europeus por questões que estavam esquecidas
desde a antiguidade clássica. Neste período, o experimentalismo e a quantificação dos
fenômenos naturais ganharam uma importância crescente. Logo no século 16, o belga
Andreas Vesalius publicou seu De humani corporis fabrica, sobre a organização do
corpo humano, um tratado de anatomia que continha observações experimentais obtidas
por diversas dissecções realizadas pelo próprio autor. Essa abordagem experimental foi
significativamente diferente daquela encontrada nas obras anatômicas de Galeno ou de
polímatas muçulmanos como Avicena. O leitor é convidado a comparar as figuras que
representam o corpo humano em De humani corporis de Vesalius (1543) e no Cânone
da Medicina de Avicena (1025). A diferença é admirável.
No século 17, com a expansão marítima europeia, o conhecimento da
diversidade biológica ao redor do globo cresceu como em nenhum outro momento da
história da Europa. Evidentemente, essa diversidade necessitava de uma ordenação.
Neste sentido, a ciência da taxonomia tornou-se progressivamente relevante. As
descrições sem rigor científico encontrada nos bestiários medievais não eram mais
suficientes para uma sociedade em que o conhecimento da biodiversidade possuía
importância econômica. Uma descrição científica das espécies era necessária.
Lentamente, os naturalistas começaram a se debruçar sobre o problema da proposição
6 uma abordagem científica em história natural. Era necessário, inicialmente, o
reconhecimento da espécie como entidade biológica. Naturalistas como Andreas
Cesalpino e John Ray foram importantes na formalização de uma taxonomia
fundamentada num conceito de espécie cientificamente mais embasado. Além da
diversidade zoológica e botânica, no século 17 o mundo microbiológico começou a ser
desvendado. Com o desenvolvimento da microscopia, capitaneado principalmente por
construtores holandeses, naturalistas vislumbraram pela primeira vez a microestrutura
dos seres vivos. Robert Hooke publicou ilustrações detalhadas de suas observações no
livro Micrographia (1665), Marcelo Malpighi realizou microdissecções em insetos e
Antonie van Leeuwenhoek descobriu as hemácias e o espermatozoide.
Embora os desenvolvimentos científicos dos séculos 16 e 17 tenham sido
significativos, a história natural foi majoritariamente dominada pela lógica analítica da
teologia natural. A maioria dos naturalistas usavam a diversidade da vida como uma
evidência da existência de um criador sobrenatural. Este argumento será novamente
usado no início do século 19 por William Paley na analogia do relojoeiro e é popular
ainda nos dias atuais, com os proponentes do desenho inteligente. Foi também no século
17 que os fósseis passaram a ser investigados de forma científica. Até este momento, os
fósseis eram entendidos como manifestações raras de forças sobrenaturais
desconhecidas na rochas. Eles não eram entendidos como remanescentes de seres vivos.
Além disso, após a expansão marítima europeia, a descoberta de novos povos, novas
culturas trouxe novos questionamentos sobre a origem da humanidade.
A realidade da extinção começou a ser seriamente considerada apenas a partir
desse período. A Revolução Científica deve ser interpretada com cautela. A concepção
de que, a partir deste período, a ciência moderna e a profissão do cientista estavam
plenamente formadas é completamente incorreta. Um dos maiores nomes do período,
Isaac Newton, por exemplo, pouco se assemelha a um cientista profissional do século
21. Nos séculos 16 e 17, a delimitação das disciplinas científicas não bem determinada e
comumente um matemático era versado em direito e história natural. Além disso,
diversas áreas do conhecimento que posteriormente seriam denominados de “ocultas”
foram abertamente investigadas pelos cientistas. Portanto, não devemos ficar surpresos
ao saber que Newton dedicou uma parte considerável de sua vida à alquimia e que
Copérnico e Kepler também tenham escrito sobre astrologia.
O pensamento evolutivo no século 18
7 Ao contrário dos períodos anteriores, os historiadores da biologia são unânimes
em admitir que os desenvolvimentos científicos do século 18 foram fundamentais para o
surgimento da biologia evolutiva. É neste século que encontramos a proposição do
sistema de classificação biológica de Lineu, as primeiras tentativas do entendimento
moderno do que é espécie com Buffon, o início da descoberta do tempo profundo (o
deep time) com James Hutton, a formalização dos fósseis como remanescentes de seres
vivos com Cuvier e, ao final do século 18, a concepção da teoria evolutiva de Lamarck
e os escritos evolucionistas de Erasmus Darwin. Além disso, é neste século que um
número significativo de pesquisadores tentam propor teorias não sobrenaturais sobre a
origem da vida, como os franceses Benoit de Maillet, o enciclopedista Denis Diderot e
Pierre Louis Maupertuis. De fato, problemas centrais para o desenvolvimento do
pensamento evolutivo como a hereditariedade e a geração foram intensamente
investigados pelos naturalistas. Ao final do século 18, a investigação sistemática da
diversidade biológica no espaço também ganhou prominência com as primeiras viagens
exploratórias de Humboldt e outros naturalistas.
Na primeira metade do século 18, todas as áreas do conhecimento científico
estavam influenciadas pelo sucesso do sistema do mundo de Newton. Os pensadores do
século 18 tinham como principal objetivo entender a ordem da natureza e a mecânica
do funcionamento. Neste sentido, o sueco Carl Lineu e o francês Georges-Louis
Leclerc, Comte de Buffon, eram homens em sintonia com seu tempo. Ainda antes de
1750, ambos publicaram obras que influenciariam profundamente a biologia nos séculos
seguintes. A primeira edição do Systema Naturae de Lineu data de 1735. Neste pequeno
livro, Lineu propõe uma ordenação hierárquica para a diversidade biológica e o nome
específico passa a ser composto por um biônomio que indica as características gerais
(gênero) e específicas. Assim como o terceiro livro do Principia de Newton (O Sistema
do Mundo), Lineu também usa a palavra “sistema” para definir sua proposta de
ordenação da diversidade. Conforme exposto na aula anterior, o sucesso da classificação
hierárquica lineana motivou a procura por sua vera causa. O primeiro dos 36 volumes
da Histoire Naturelle de Buffon foi publicado em 1749. Nesta obra, Buffon propõe
expor teorias gerais descrições particulares de todos os domínios da história natural,
incluindo portanto mineralogia, geologia, astronomia, zoologia e botânica. Devido às
suas discussões gerais sobre os temas, Buffon é constante associado à teorias que vão
desde a formação do planeta Terra até a origem das espécies. Ao contrário de Lineu, em
algumas edições de Histoire Naturelle Buffon se apresenta como um pensador
supreendentemente contemporâneo. Encontramos nesta obra exposições sobre a
8 importância da reprodução para coesão da espécie (o conceito biológico de espécie),
uma preocupação em explicar a distribuição dos animais e a formação de raças.
Infelizmente a obra de Buffon é bastante inconsistente e o autor frequentemente
expunha ideias contraditórias. Talvez isso seja uma consequência dos volumes terem
sido escritos ao longo de quase 40 anos. É importante ressaltar que Buffon é citado por
Darwin no Origem das Espécies como um dos primeiros evolucionistas.
A história da Terra e do universo também foram temas recorrentemente
estudados pelos pensadores do século 18. O acúmulo das evidências empíricas já era
demasiadamente grande para ser ignorado. Alternativas à cronologia de criação do
mundo, exposta na narrativa abraâmica, começaram a aparecer. Até o século anterior, a
cronologia do Genesis tinha sido considerada de forma literal, seguindo os cálculos do
Arcebispo irlandês James Ussher que estimou que o planeta havia sido criado 4004 a.C.
No século 17, propostas não estritamente fiéis ao Genesis estavam ainda limitadas à
narrativa bíblica, como, por exemplo, a exposta em Telluris Theoria Sacra, teoria
sagrada da Terra, de Thomas Burnett (1681). Na segunda metade do século 18, o
geólogo escocês James Hutton se dedicou a este problema e iniciou um enfoque
metodológico
para
as
ciências
históricas
posteriormente
denominado
de
uniformitarismo. A partir de observações de processos geológicos contemporâneos,
Hutton concluiu que a Terra deveria ser infinitamente antiga: “[...] no vestige of a
beginning,–no prospect of an end.”, nenhum vestígio de início, - nenhum prospecto de
fim, foi sua principal conclusão. Buffon, por sua vez, também confrontou a cronologia
bíblica ao realizar experimentos com o tempo de resfriamento de esferas de metal,
propondo que a Terra deveria ter no mínimo 75 mil anos.
Ao final dos anos de 1700, portanto, as fronteiras do tempo antigo (o deep time)
já estavam sendo exploradas. A realidade das extinções também era evidente. O planeta
Terra, além de antigo, havia sido habitado por espécies diferentes daquelas encontradas
hoje. Coube ao grande naturalista francês Georges Cuvier iniciar formalização, através
da anatomia comparada, uma disciplina que ele mesmo havia criado, as relações
taxonômicas entre os fósseis e os seres viventes. Cuvier mostrou que grandes animais,
semelhantes aos elefantes, já haviam caminhado pela área de Paris em tempos remotos.
Sua anatomia comparada foi definitiva para comprovar a relação entre a diversidade
fóssil e a vivente. Entretanto Cuvier não considerava possível a transformação das
espécies ao longo do tempo, pois segundo ele as estruturas morfológicas dos animais
são tão intimamente dependentes que seria impossível a criação de uma forma nova sem
o comprometimento do bom funcionamento do corpo. Cuvier, então, sugeriu a
9 ocorrência de sucessivos eventos de extinção em massa e criação da diversidade. Uma
lógica que passou a ser denominada de catastrofismo.
Em síntese, a ideia de que a Terra e os seres vivos, incluindo o homem, são
resultados de um processo histórico estava completamente concretizada ao fim do
século 18. Seguindo a tradição dos iluministas franceses, Erasmo Darwin, avô de
Charles Darwin, publicou uma série de trabalhos, muitos escritos em linguagem poética,
sobre essa nova perspectiva histórica para o universo e os seres vivos. Seu livro
Zoonomia de 1792 é o mais relevante. Foi também por volta dos anos de 1790 que o
naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck concebeu aquela que seria considerada a
primeira teoria evolutiva completa. Lamarck foi um pupilo de Buffon e era também um
pesquisador do Museu de História Natural de Paris, a instituição comandada por Cuvier.
Botânico de formação, mas responsável pela curadoria do setor de invertebrados do
Museu de Paris, Lamarck questionou a imutabilidade das espécies biológicas após anos
de estudos de anatomia comparada. Em contraste agudo com Cuvier, ele não
considerava que existiam quatro planos de corpo completamente independentes no
Reino Animal (Radiata, Mollusca, Articulata e Vertebrata).
O sistema evolutivo elaborado por Lamarck era composto de dois componentes
principais. O primeiro, le pouvoir de la vie, o poder da vida, descrevia uma linha de
transmutação linear dos seres microscópicos até o ser humano, numa forma muito
similar à grande cadeia dos seres. Essa série linear finalista demostrava que a evolução
dos seres vivos consistia de um desdobramento de um plano maior, direcional. É claro
que uma série linear de transformação não poderia gerar toda diversidade presente no
planeta pois, uma vez transmutado em outro ser vivo, o ancestral deixaria de existir.
Lamarck portanto admitiu que esta série linear ocorreria recorrentemente, com vários
episódios de geração espontânea ocorrendo nos mares e gerando seres microscópicos.
Cada ser vivo no presente seria, então, oriundo de uma série linear evolutiva, mas com
idade relativa à sua complexidade. Por exemplo, o ser humano seria a linha evolutiva
mais antiga, enquanto uma ameba pertenceria a uma linha muito recente.
O segundo componente da teoria evolutiva lamarckista é l’influence des
circonstances, a influência das circunstancias, onde os organismos se aperfeiçoam aos
ambientes através do uso de desuso dos órgãos. É o componente da teoria de Lamarck
comumente apresentado aos estudantes da escola média, através do título ‘herança dos
caracteres adquiridos’. Conforme vimos esta é uma simplificação da teoria lamarckista
e reduz a importância da apresentação de uma ideia inovadora em ciência biológicas: o
reconhecimento do problema da adaptação. Até Lamarck, a adaptação dos seres vivos
10 era tida como 1) uma evidência de que os seres vivos haviam sido projetados por uma
entidade sobrenatural inteligente ou 2) era ignorada e tida como puro encontro fortuito
de matéria. A primeira linha era defendida pelos naturalistas proponentes da teologia
natural e a segunda era uma linha oriunda do materialismo radical dos iluministas
franceses como Denis Diderot. Nenhuma das duas levariam a abordagens
cientificamente frutíferas. Veremos adiante que a explicação da adaptações é também
um componente central da teoria evolutiva de Darwin.
Embora a importância histórica e influência científica da teoria de Lamarck,
descrita em detalhes no seu Philosophie Zoologique de 1809, sejam significativas, ela
ainda possui características problemáticas. Inicialmente, a proposição de vários
episódios de geração espontânea seguidos de uma série linear de transformação carece
de respaldo experimental e ainda mostra claramente como a influência da grande cadeia
dos seres estava fortemente presente em biologia até a transição dos séculos 18 e 19. A
teoria da herança dos caracteres adquiridos, entretanto, foi apenas abandonada
formalmente no início do século 20, pois foi necessário o entendimento dos
mecanismos da hereditariedade para verificar que este conceito, além de
majoritariamente incorreto, era insuficiente para explicar as adaptações. Hoje sabemos
existem algumas modificações do material genético que podem ser de fato devidas à
ação do ambiente. Entretanto, essas modificações epigenéticas, geralmente associadas à
metilação de moléculas de DNA, não persistem por muitas gerações. Além disso, a
variação epigenética não é direcionada, conforme necessário ao lamarckismo original.
Assim, hoje sabemos que a teoria de Lamarck é fundamentalmente incorreta, apesar de
sua importância histórica.
Século 19
Durante o século 19, a biologia passou por diversas transformações que afetaram
diretamente as teorias existentes sobre a evolução biológica. Ao fim do século, além da
seleção natural, os fundamentos da hereditariedade estavam sendo compreendidos, a
noção de que os seres vivos são compostos por células e que estas seriam a unidade
básica da vida, a teoria celular de Schleiden e Schwamm, já havia sido proposta. Além
disso, a fisiologia animal ganhara um aspecto moderno com os estudos de Claude
Bernard, a embriologia fez grandes avanços e a bioquímica tornou-se uma ciência
independente. De fato, o próprio nascimento da biologia como ciência ocorreu no
século 19 e processo de profissionalização da ciência foi consolidado, associado à
formação de novas universidades e centros de pesquisa, principalmente na Alemanha e
11 nos Estados Unidos. Enquanto, no início do século, trabalhos que ainda possuíam
associação com o conceito romântico de história natural eram comuns, no ano de 1900,
a figura do biólogo profissional estava dissociada das aspirações líricas da ciência de
Humboldt.
Podemos dizer que Charles Darwin é um cientista inserido nesta transição da
ciência feita por naturalistas para uma ciência profissional e institucionalizada. Nascido
em 1809, o ano da publicação da Filosofia Zoológica de Lamarck, Darwin não recebeu
uma educação formal de biologia e seus estudos de história natural ocorreram de forma
paralela à sua formação, inicialmente como médico, e posteriormente como bacharel em
artes por Cambridge, com objetivo de se dedicar a uma carreira clerical. Esta formação
ocorreu no primeiro quarto do século 19, quando o conceito de transmutação das
espécies já era plenamente conhecido pelos naturalistas, embora não considerado
universalmente válido. Neste início de século, as teoria evolutivas eram principalmente
estudadas por cientistas franceses, notavelmente Lamarck e Geoffroy St. Hilaire, ambos
do Museu de História Natural de Paris. Na Alemanha, o conceito de evolução ficou
associado aos estudos de anatomia comparada, realizados com objetivo primário de
identificar a unidade da forma dos organismos. Cientistas como Lorenz Oken, Johan
Meckel e até mesmo o poeta Goethe vislumbravam entender a estrutura básica dos
organismos, principalmente de vertebrados. Os naturalistas germânicos consideraram a
hipótese de Geothe de que as estruturas de um vegetal eram modificações das folhas
como um exemplo do sucesso na compreensão dos Baupläne, os planos de corpo, dos
organismos. Para o entendimento desta unidade da forma, cientistas alemães
desenvolveram novas técnicas de observação embriológica e fizeram associações
recorrentes entre o desenvolvimento e a evolução das espécies. Não é coincidência que
evolutio em latim significa desenvolvimento.
Na França, a discussão sobre a evolução das espécies era ativa entre os
pesquisadores do Museu de Paris após a publicação do livro de Lamarck. Entretanto,
suas ideias não foram bem recebidas, principalmente por Cuvier. Goffroy St. Hilare
seria um dos poucos pesquisadores a considerar seriamente a hipótese da transmutação
e unidade da forma e seus debates com Cuvier ficaram famosos. Na Inglaterra, Richard
Owen seria o principal cientista a desenvolver o conceito de unidade da forma. Ele
cunhou o termo homologia e sua pesquisa sobre o arquétipo dos vertebrados é
referenciada ao longo do século 19. O lamarckismo chegou às Ilhas Britânicas como
uma teoria de radicais, de forma que foi defendida principalmente pelos jovens médicos
que tinham o intuito de destituir o establishment britânico. Robert Grant, mentor de
12 Darwin em Edimburgo, foi um dos principais nomes. O evolucionismo estava em voga,
a ponto de em 1844, um livro publicado de forma anônima, o Vestígios da História
Natural da Criação, de Robert Chambers, tenha se tornado um sucesso vendas.
Chambers era um editor escocês entusiasta da nova visão do mundo promulgada na
Europa Continental, Vestígios continha um sumario de algumas das teorias sobre a
origem do universo, da Terra e dos seres vivos, incluindo o homem.
Desta forma, portanto, quando a teoria de Darwin foi desenvolvida, sem dúvida
alguma o transmutacionismo era conhecido por todos os pesquisadores e possivelmente
cada um deles possuía sua própria teoria pessoal sobre a origem da diversidade
biológica. Era necessário que alguém propusesse um corpo teórico consistente, que
explicasse todas as observações isoladamente coletadas nos campos da biogeografia,
morfologia, hereditariedade, variação, taxonomia e comportamento. Após sua viagem
de quase cinco anos a bordo do HMS Beagle, Darwin retornara à Inglaterra convencido
de que a criação especial das espécies, conforme a narrada pelo livro do Genesis,
consistia apenas de um história mítica. Suas observações científicas ao longo do
planeta, principalmente na América do Sul, evidenciaram que a distribuição das
espécies no espaço e no tempo não são aleatórias. Existe uma ordem na diversidade
biológica e, por trás desta ordem, estava guardado o “mistério dos mistérios”, as causas
da evolução biológica. Ao contrário do que é comumente pensado, Darwin não teve a
ideia do funcionamento da seleção natural ao longo de sua viagem no Beagle. Suas
anotações mostram sim que ele estava convencido da evolução das espécies. Além
disso, Darwin ficou bastante impressionado com a abordagem analítica usada por
Charles Lyell em seu Princípios de Geologia. Lyell deu continuidade à lógica de
pesquisa iniciada por James Hutton, o uniformitarismo, e sistematicamente descreveu
exemplos de sua aplicação. Darwin desejava usar o mesmo princípio em biologia.
Após seu retorno à Inglaterra, em 1836, Charles Darwin finalizou e publicou
diversos estudos sobre a história natural das regiões onde o HMS Beagle havia passado.
Enquanto isso, ele se dedicou ao problema da origem das espécies de maneira
reservada. Apenas poucos amigos sabiam deste seu empenho. Nos anos de 1840,
Darwin já possuía um esboço da teoria da seleção natural. Entretanto, foi extremamente
comedido em divulgar seus resultados, pois queria ter o número máximo de evidências
para embasar suas afirmações. Segundo seu diário, o conceito de seleção natural surgiu
após a leitura de An Essay on the Principle of Population de Thomas Malthus.
Coincidentemente, este mesmo livro inspiraria o naturalista Alfred Russell Wallace,
então em trabalho nas ilhas da Malásia, a propor uma ideia similar a seleção natural
13 darwiniana. Em 1858, Darwin recebeu a correspondência de Wallace que continha um
manuscrito com uma exposição do mecanismo da seleção natural que ele próprio havia
independentemente descoberto há mais de uma década, embora tenha revelado a poucos
amigos. Os manuscritos de Darwin e Wallace foram lidos conjuntamente em julho de
1858 para a Sociedade Lieneana. Em 24 novembro de 1859, o Origem das Espécies
chegou às livrarias inglesas.
Historiadores concordam que o Origem das Espécies teve no mínimo seis
grandes contribuições fundamentais para a biologia evolutiva. Inicialmente, o livro foi
crucial para que a evolução das espécies se tornasse um assunto válido de ser discutido
pela comunidade científica. Em segundo, Darwin destituía a noção da transformação
linear dos seres vivos, mostrando que o processo evolutivo é um processo de
ramificação. Em terceiro, a espécie não deveria ser compreendida de forma tipológica e
sim como uma entidade populacional onde a variabilidade é uma propriedade central
para a evolução. Quarto, a diferenciação entre as espécies ocorre principalmente pela
ação da seleção natural, que consiste do principal mecanismo evolutivo. Quinto, as
adaptações são explicadas pela ação da seleção natural. Por último, o processo de
diferenciação das espécies é um processo gradual e não ocorre em saltos. Esta
característica evidenciava o componente uniformitarista da teoria Darwinista. Desta
forma, o processo de seleção artificial poderia ser usado como exemplo para o
entendimento da seleção natural.
A recepção do darwinismo aconteceu de forma diferenciada nos diversos países
e motivou o desenvolvimento de tradições de pesquisa diversificadas. Na Inglaterra,
linhas de pesquisa associadas ao estudo da variação intraespecífica foram capitaneadas
por Francis Galton e W.F.R. Weldon, enquanto na Alemanha, estudos de morfologia
evolutiva e embriologia foram liderados por Ernst Haeckel. Ao final do século 19, a
biologia experimental apresentou uma grande expansão, biólogos como August
Weissmann e William Bateson se interessaram pelo entendimento da origem e leis da
variação intraespecífica. Embora a evolução das espécies de forma ramificada tenha
sido incorporada em todas as linhas de pesquisa, alguns componentes da teoria de
Darwin não foram prontamente assimilados pela comunidade científica. Em especial, a
premência da seleção natural como força de diferenciação das espécies e a evolução
gradual foram apenas inteiramente incorporadas à teoria evolutiva nos anos 40 do
século 20. No período entre o final do século 19 e início do século 20, alternativas a
esses componentes do darwinismo foram propostas. A hipótese da herança dos
caracteres adquiridos ainda persistia em biologia e diversos pesquisadores adotaram
14 explicações lamarckistas em seus estudos. Outra alternativa à seleção natural foi o
mutacionismo. Biólogos que estudavam a variação intraespecífica como Bateson e
Thomas Morgan achavam que as principais características responsáveis pela origem de
novas espécies eram características discretas, que não podem ser compreendidas na
lógica da evolução gradual. Portanto, além de reduzir a importância da atuação da
seleção natural, o mutacionismo é uma teoria saltacionista. Paleontólogos como Henry
F. Osborn também adotaram explicações fora do domínio do darwinismo ao afirmarem
que diversas linhagens representadas no registro fóssil haviam sofrido uma forma de
evolução direcional denominada de ortogênese. Em síntese, o processo evolutivo
direcional da ortogênese também era uma forma de lamarckismo, consistindo do
componente le pouvoir de la vie de Lamarck.
As críticas a alguns dos componentes da teoria de Darwin eram certamente
oriundas da falta de entendimento sobre as leis da hereditariedade. Somente no início do
século 20, as leis de Mendel seriam redescobertas por Hugo de Vries e outros
pesquisadores. O século 19 presenciou o desenvolvimento da figura do biólogo
profissional, trabalhando nas universidades, estações de pesquisa e museus. A pesquisa
experimental, em embriologia, genética e fisiologia foi conduzida principalmente nas
universidades, enquanto que museus foram responsáveis por expedições exploratórias.
Diversos museus foram fundados neste período. O Museu de História Natural de
Londres, concebido por Richard Owen; o Museu de Zoologia Comparada de Harvard,
liderado por Louis Agassiz e, no Brasil, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro; o Museu
Paulista, fundado por Hermann von Ihering, e o Museu Emilio Goeldi, Pará. A
institucionalização da biologia talvez seja em grande parte responsável pelo surgimento
da ciência da genética ao final do século 19.
Século 20
Poucas ciências tiverem um desenvolvimento tão intenso ao longo do século 20
como a biologia. Os avanços nas diversas áreas das ciências biológicas influenciaram
consideravelmente o pensamento evolutivo. Uma síntese da biologia evolutiva no
século 20, portanto, será necessariamente incompleta. De forma geral, podemos
classificar a história do pensamento evolutivo no século 20 em quatro períodos. O
primeiro período se estende desde a descoberta das leis de Mendel até o consolidação
do neodarwinismo na década de 1930. O segundo período é a síntese evolutiva, que vai
de 1937 até 1950. O terceiro período, pós-síntese, é caracterizado pela descoberta da
estrutura do DNA, em 1953, e o desenvolvimento da evolução molecular e teoria
15 macroevolutiva. Por fim, o período moderno, após os anos da década de 1980, é
marcado pelo avanço sem precedentes das técnicas de biologia molecular, notavelmente
a genômica, para o estudo dos processos evolutivos e genética do desenvolvimento.
Na literatura, o neodarwinismo é comumente caracterizado como a síntese da
seleção natural darwiniana com a herança mendeliana. Essa caracterização é correta,
embora ela seja simplista por desconsiderar a dimensão científica que isto significou
para o pensamento evolutivo. Conforme mencionado anteriormente, no período entre o
final do século 19 e início do século 20, diversas alternativas a alguns dos componentes
do darwinismo foram propostos. Esse período foi denominado por Julian Huxley de
‘eclipse do darwinismo’ em alusão ao crescente descrédito que a seleção natural e a
evolução gradual sofreram. Cabe analisarmos aqui as razões destes componentes da
teoria de Darwin terem sido desacreditados. Incialmente, na ausência do entendimento
das leis da hereditariedade, muitos acreditavam que a herança dos caracteres ocorria por
simples mistura entre as características parentais. Se isso fosse verdade, ao longo das
gerações, a variabilidade das populações iria consequentemente diminuir e, portanto, a
matéria prima da seleção natural iria se extinguir. Essa observação, formulada
incialmente pelo engenheiro Fleeming Jenkin, preocupou Darwin e ocupou uma parte
considerável dos seus estudos após o Origem das Espécies. Além do desconhecimento
das bases da hereditariedade, acreditava-se que a evolução gradual darwiniana por
seleção natural era um processo muito lento e não poderia ser responsável por toda
variação geográfica das populações naturais. Para piorar a situação, no início do século
20, os estudos sobre a hereditariedade estavam sendo conduzidos segundo duas lógicas
diferentes de pesquisa. Um grupo de pesquisadores da escola da biometria se dedicou a
herança das características contínuas, como peso e altura. Enquanto que um segundo
grupo, os mendelistas, estudavam a herança das características discretas. Não estava
claro qual dos dois tipos de caracteres era mais relevante para o processo de origem de
novas espécies.
Foi neste cenário de considerável confusão intelectual que, nos anos de 1920, o
estatístico inglês Ronald A. Fisher se interessou pelo problema da interação entre a
seleção natural e as leis da hereditariedade. No ano de 1908, dois pesquisadores haviam,
independentemente, aplicado um desdobramento das então redescobertas leis de Mendel
em populações. G.H. Hardy e W. Weinberg verificaram que a frequência dos genes e
dos genótipos tenderiam a um equilíbrio nas populações panmíticas. Foi a partir desta
abordagem inovadora que Fisher começou a desenvolver sua análise quantitativa da
ação da seleção natural. Ele também contribuiu para terminar com a disputa entre as
16 escolas da biometria e do mendelismo, pois mostrou que características contínuas são
resultado da ação de vários loci e, portanto, não precisavam de uma teoria da
hereditariedade diferente do mendelismo. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos,
geneticistas estavam interessados em quantificar a ação do endocruzamento em
populações artificiais e, consequentemente, extrapola-la para populações naturais. Neste
contexto, Sewall Wright se destacou, utilizando a abordagem quantitativa recém
desenvolvida por Fisher. Na Inglaterra, J.B.S. Haldane, contemporâneo de Fisher,
publicou uma série de dez trabalhos dedicados, entre outras coisas, a calcular o tempo
necessário para a seleção natural causar diferenças genéticas significativas.
Em conjunto, os trabalhos de Fisher, Wright e Haldane fundaram a genética de
populações e resgataram a importância da seleção natural e incorporaram
quantitativamente o seu estudo à genética mendeliana. Além disso, eles mostraram que
a seleção natural é uma força suficientemente capaz de explicar as diferenças
encontradas dentro das populações e entre as espécies e, portanto, a herança dos
caracteres adquiridos não era necessária para acelerar a taxa de evolução de
características adaptativas. Embora as demonstrações sobre a dinâmica das forças
evolutivas nas populações naturais existissem, elas não alcançaram imediatamente todos
os biólogos, pois foram feitas de forma puramente matemática e ainda existiam poucas
aplicações em populações naturais. No ano de 1937, entretanto, Teodosius Dobzhansky,
um russo que emigrou para os Estados Unidos, publicou um livro, o Genética e Origem
das Espécies, que sumarizava os principais achados de Fisher, Wright e Haldane e fazia
relações frequentes com estudos realizados em populações naturais. Em síntese,
Dobzhansky explicava os resultados obtidos em populações naturais por zoólogos e
botânicos sob a luz da genética de populações.
A obra de Dobzhansky foi seminal e outros pesquisadores tentaram abordagens
similares, tentando explicar os resultados obtidos baseados no corpo teórico
desenvolvido pelos geneticistas. Em especial, Ernst Mayr, um ornitólogo alemão
radicado nos Estados Unidos, sumarizou seus estudos sobre especiação em populações
naturais em Sistemática e a Origem das Espécies, de 1942. O ambiente intelectual da
biologia próximo ao meio do século 20 era distinto daquele encontrado nos 50 anos
anteriores. Biólogos de diversas áreas pareciam estar conversando numa mesma língua
e concordando, ao menos, com a existência de princípios gerais pela primeira vez.
Também em 1942, Julian Huxley, neto de Thomas Huxley – o buldogue de Darwin,
sintetizou este momento de unificação das ciências biológicas em Evolution, the
Modern Synthesis. Em 1944, em Tempo and Mode of Evolution, o paleontólogo
17 americano G.G. Simpson decidiu testar se os achados teóricos e empíricos da genética
de populações poderiam explicar a variação encontrada no registro fóssil. Simpson
concluiu que sim e sugeriu alguns modos de evolução possíveis a partir dos dados
coletados do registro fóssil. Entre esses modos, estava a especiação quântica, um
processo de formação de novas espécies que ocorreria num intervalo de tempo muito
curto. A ideia de Simpson que, de alguma, forma aludia ao saltacionismo, seria
resgatada algumas décadas depois. Por fim, o botânico estadunidense G. Ledyard
Stebbins mostraria, em 1950, em Variation and Evolution in Plants, que alguns
processos evolutivos, raros em animais, eram importantes no entendimento da evolução
das plantas, como a hibridização e a poliploidização. Essas obras consistem nos
denominados livros canônicos da síntese evolutiva. No início dos anos de 1950, esta
estava consolidada. Entretanto, surpreendentemente, as bases últimas de hereditariedade
– a estrutura da molécula de DNA – ainda não haviam sido decifradas.
No ano de 1953, James Watson e Francis Crick publicaram o estudo que, enfim,
desvendava a estrutura da molécula informacional da vida. Os autores imediatamente
perceberam que a estrutura evidenciava um mecanismo de replicação. Da mesma forma,
os evolucionistas também notaram que a sequência linear de nucleotídeos dava uma
pista sobre a origem última da variabilidade genética. Ao longo dos anos seguintes, o
crescimento da genética molecular mostrou, por fim, que qualquer hipótese de origem
direcionada da variação ou herança dos caracteres adquiridos não tinha qualquer
respaldo bioquímico ou empírico. A chamada hard inheritance, a herança dura, um
termo cunhado Ernst Mayr para descrever que o ambiente não influencia de forma
teleológica a origem da variação, tinha vencido. Era a ruína do lamarckismo e de todas
as suas derivações – da ortogênese de Osborn à evolução criativa de Bergson e às ideias
de Teilhard de Chardin. Com isso, a seleção natural ganhou preponderância completa
entre as forças evolutivas. A consequência de fenômenos estocásticos para a evolução
das espécies foi tida progressivamente como irrelevante. O paleontólogo estadunidense
Stephen Jay Gould descreveu que neste momento do século 20, a síntese evolutiva foi
“endurecida”, pois apenas a seleção natural foi considerada como relevante.
Nos anos de 1960, o alcance da seleção natural era tão extenso que o
entendimento que os biólogos tinham acerca da variação genética dependia intimamente
da ação desta força. Alguns achavam que nos diversos loci ao longo do genoma existiria
pouca variação alélica e encontraríamos a maior parte destes loci fixados por seleção
direcional para uma forma alélica apenas. Por outro lado, alguns evolucionistas
supunham que a variação genética seria algo positivo para as populações naturais e,
18 portanto, encontraríamos uma frequência alta de loci heterozigotos. Neste momento,
apesar da estrutura do DNA ser conhecida e do código genético também ter sido
decifrado, não existiam métodos de estudo da variação alélica em larga escala, ao longo
de vários loci. Uma tentativa bem sucedida neste sentido foi feita pelos geneticistas
Richard Lewontin e Jack Hubby em 1966. Esses autores estudaram a variação genética
de forma indireta, analisando a variação proteica através de eletroforese de isoenzimas.
Na prática, a técnica subestimava a variação genética, pois não acessava a variação do
DNA diretamente. Entretanto, supreendentemente, os autores encontraram uma
quantidade grande de polimorfismo molecular em populações de Drosophila
pseudobscura. A frequência observada de heterozigotos era muito maior do que a
esperada por qualquer uma das escolas de pensamento evolutivo existentes no final dos
anos 60.
Ainda nos anos 60, em 1962, o químico Linus Pauling e o bioquímico suíço
Emile Zuckerkandl verificaram que a comparação entre sequências de aminoácidos da
hemoglobina de diferentes espécies de mamíferos resultava num número de
substituições, ou seja, diferenças no número de aminoácidos, que era relacionado com o
tempo de separação evolutiva destas espécies. Assim, a comparação das hemoglobinas
de humanos e bois apresentava um número similar de diferenças que a comparação das
hemoglobinas de humanos e cachorros, pois tanto os bois quanto os cachorros estão
compartilham um ancestral em comum com os humanos há aproximadamente 100
milhões de anos. Em 1963, o bioquímico Emmanuel Margoliash fez uma observação
similar para o citocromo c de vertebrados. Estas observações, denominadas de relógio
molecular, eram contrárias a hipótese de que a seleção natural era a principal força
mantenedora da variação genética nas populações e espécies. Afinal, como uma
proteína como o citocromo c poderia acumular substituições a uma taxa similar em
espécies com biologias tão distintas quanto peixes e mamíferos? A observação do
relógio molecular entre espécies e as novas medidas de polimorfismo molecular nas
populações naturais inauguraram a disciplina da evolução molecular.
Desta forma, o estudo da variação molecular intra e interespecífica nos anos de
1960 levantou dados contrários às hipóteses feitas por pesquisadores que ainda seguiam
os preceitos da fase dura da síntese evolutiva. A heterozigosidade alta não poderia ser
explicada por seleção balanceada, pois isso implicaria numa alta carga genética nas
populações naturais. Por outro lado, a homogeneidade das taxas de evolução molecular
entre as espécies também não poderia ser explicada por seleção natural. Na tentativa de
elucidar estes novos problemas trazidos pelos dados moleculares, o geneticista japonês
19 Motoo Kimura estudou derivações teóricas de qual seria a dinâmica esperada da
variação molecular na ausência de seleção natural, com processos estocásticos,
notavelmente a deriva genética, sendo o fator primário na evolução de novos alelos
mutantes. Neste cenário, esses novos alelos, oriundos por mutação, não confeririam ao
indivíduo que o possuísse nenhuma vantagem ou desvantagem. Seria uma variação
neutra, invisível para os olhos da seleção natural. Kimura percebeu que, se a maioria
dos alelos observados nos diversos loci consistir de alelos neutros, os valores esperados
de heterozigosidade se aproximariam dos valores observados e, além disso, o relógio
molecular poderia ser explicado. Kimura propôs então que, ao nível molecular, a
maioria do polimorfismo observado nas populações consiste de uma etapa transitória até
a fixação alélica por deriva. A seleção natural sem dúvida continuaria a ter importância
fundamental nas populações, mas esta seria muito mais associada à eliminação de alelos
deletérios que a fixação de novos alelos vantajosos por seleção direcional ou
manutenção de heterozigotos por seleção balanceada. Ao longo dos anos da década de
1970, Kimura desenvolveu suas ideias em parceria com sua colega de trabalho, a
geneticista japonesa Tomoko Ohta. Ao final dos anos 70, a teoria neutralista da
evolução molecular estava desenvolvida.
Na década de 1970, além da teoria neutralista, novas linhas de pesquisa em
biologia evolutiva floresceram. A tradição selecionista em biologia evolutiva seria alvo
recorrente de críticas. Algumas das críticas mais importantes viriam de estudos sobre a
dinâmica macroevolutiva. Após uma série de trabalhos que analisaram a evolução da
variação dentro e entre espécies intimamente relacionadas, os paleontólogos Stephen
Jay Gould e Niles Eldrege retomariam às ideias de G.G. Simpson sobre o tempo e o
modo do processo de especiação sustentariam que boa parte do registro fóssil não
manifesta um processo gradual de diferenciação fenotípica das linhagens. Gould e
Eldrege sugerem então que o processo de especiação e consequente diferenciação
fenotípica ocorreria, em termos geológicos, de forma rápida, principalmente em
pequenos isolados populacionais localizados perifericamente na distribuição da
linhagem. Este padrão resultara numa mudança pontudada da morfologia no tempo e,
consequentemente, os autores denominariam o processo de equilíbrio pontuado.
Análises de padrões macroevolutivos também motivaram a contestação de que o
processo evolutivo seria, de alguma forma, progressista. No início dos anos 70, o
biólogo Leigh van Valen observou que o tempo de vida das espécies biológicas era
aproximadamente equivalente, independente da idade desta espécie. Poucas espécies
apresentam um tempo de existência longo. Se as espécies apresentassem algum
20 progresso ao longo do tempo evolutivo, esperaríamos que espécies mais recentes
apresentassem uma duração maior. Van Valen concluiu que seus dados sugeriam que as
espécies estão em constante processo de se aperfeiçoar às condições contemporâneas.
Assim, se alguma espécie apresenta um avanço adaptativo, uma outra espécie
geralmente reponde a esse avanço também com novidades evolutivas. Por exemplo, se
uma espécie de presa evolui características que a permite escapar da predação com
maior frequência, a espécie predadora deverá evoluir algo em resposta ou será
invariavelmente extinta. Essa dinâmica é conhecida como rainha vermelha ou rainha de
copas, em alusão ao personagem de Lewis Carroll que deveria correr mais rápido que
pudesse para permanecer no mesmo lugar.
Ainda nos anos de 1970 houve a ampliação de algumas abordagens teóricas no
estudo do comportamento animal como a teoria de seleção de parentesco, de William
Hamilton, que oferecia uma explicação darwinista para a evolução do comportamento
altruísta nos animais, incluindo sociedades de insetos, e a análise de estratégias
evolutivamente estáveis, de John Maynard Smith, que utilizou a matemática da teoria
dos jogos de John Nash na análise de situações de conflito. Todas essas teorias de
alguma maneira dependiam, em algum grau, que a seleção natural atuasse
primariamente ao nível do gene. Essa visão foi popularizada pelo então etólogo Richard
Dawkins em seu livro O Gene Egoísta de 1976. A análise das bases genéticas do
comportamento foram sumarizadas e estendidas para as populações humanas no livro
Sociobiology do entomólogo americano Edward O. Wilson. Lançado em 1975, o livro
atraiu uma quantidade considerável de críticas, pois supunha-se que a linha de pesquisa
promovida por Wilson levaria a uma visão puramente determinista do comportamento
humano. Em reposta, biólogos Richard Lewontin e Stephen Jay Gould, ambos da
Universidade de Harvard, a mesma instituição de Wilson, rebateram suas ideias em
publicações, muitas delas voltadas para o público leigo.
Os anos da década de 1980 começaram marcados pelo debate da validade da
teoria neutralista de Kimura. A universalidade do relógio molecular foi empiricamente
destituída e a discrepância entre medidas observadas de heterozigosidade nas
populações naturais e aquelas esperadas pela teoria de Kimura aumentou conforme
novos estudos foram realizados. O seleção natural não parecia ser tão irrelevante ao
nível molecular quanto Kimura afirmava. Teóricos mostraram que os valores
observados poderiam também ser explicados com a variação do coeficiente de seleção
ao longo do tempo e do espaço. A teoria neutralista parecia estar desacreditada. Em
1983, entretanto, a descoberta da reação em cadeia da polimerase (PCR) possibilitou o
21 estudo da variabilidade genética primária, ou seja, aquela que existe nas moléculas de
DNA em si. Entretanto, o sequenciamento de nucleotídeos ainda era um processo
excessivamente custoso e técnicas alternativas baseadas em digestão por endonocleases
seguidas de eletroforese de ácidos nucleicos tornaram-se progressivamente comuns.
Embora a teoria neutralista e o relógio molecular não fossem estritamente observados
nos dados empíricos, evolucionistas perceberam que as derivações matemáticas de
Kimura consistiam de um conjunto bem organizados de hipótese nulas para o estudo da
seleção natural ao nível molecular. Desta forma, paradoxalmente, a teoria neutralista
forneceu uma arcabouço fundamental para a análise de hipóteses alternativas,
frequentemente associadas à ação da seleção natural. A biologia molecular cresceu de
forma exponencial e, pela primeira vez, biólogos começaram a compreender as bases
genéticas do fenótipo. A descoberta dos genes homeóticos abriu uma enorme fronteira
na biologia. Agora, a unidade da forma, investigada intensamente pelos naturalistas no
início do século 19 poderia ser compreendida em sua natureza mais íntima – o DNA. A
constatação de que os genes homeóticos são homólogos em todos os animais e que a
determinação dos planos de corpo dos metazoários é feita pelos mesmos mecanismos
em organismos tão distantes quanto uma mosca e um camundongo ruiu com todas as
hipóteses sobre a heterogeneidade molecular do desenvolvimento animal. Nas décadas
anteriores, cientistas como Ernst Mayr conjecturavam que o desenvolvimento dos
animais deveria ter evoluído independentemente nos diferentes filos. Nada poderia estar
mais incorreto. Surpreendentemente, a vida funciona como peças de Lego, criando
formas novas com o mesmo material básico. Era a genética evolutiva do
desenvolvimento, uma área que seria posteriormente cunhada de evo-devo.
A década de 1990 assistiu a expansão das tecnologias de sequenciamento de
nucleotídeos. A disponibilidade do sequenciamento automático de moléculas de DNA
produzia uma quantidade crescente de sequências. Bancos de dados públicos foram
criados para armazenar estas sequências para a comunidade científica. Enfim, o sonho
de cientistas do século 19 como Ernst Haeckel e E. Ray Lankaster era tangível – a
Árvore da Vida, a filogenia dos vários domínios da Vida na Terra poderia ser
conhecida. Uma sequencia sem precedentes de trabalhos de filogenia molecular de
metazoários, plantas, fungos, procariontes e literalmente todas as outras grandes
linhagens de seres vivos apareceu em revistas científicas. As ideias sobre as relações
evolutivas dos filos animais seriam intensamente abaladas. Questões centenárias como,
por exemplo, o monofiletismo dos artrópodes, que tanto intrigou cientistas como a
zoóloga britânica Sidnei Manton, agora poderiam ser resolvidas. O aumento da
22 disponibilidade de sequencias foi acompanhado pelo desenvolvimento de novos
métodos de reconstrução filogenética.
Os anos noventa do século 20 também foram marcados por um dos maiores
projetos de colaboração científica multinacional da história humana – o Projeto Genoma
Humano. Logo no início da década, um consórcio internacional, que incluiu cientistas
brasileiros, fora estabelecido com o objetivo audacioso de obter toda a sequência de
nucleotídeos dos cromossomos humanos. Em 1999, o primeiro rascunho do genoma
humano já era conhecido. A biologia comparada agora poderia ser feita não apenas com
dados obtidos do fenótipo e de poucos genes, a comparação de todo o genoma era uma
realidade. Era o início da era ‘ômica’. Antigas disciplinas vestiriam agora a nova
roupagem da genômica.
Século 21 e desafios contemporâneos
Após décadas de grande desenvolvimento independente das subdisciplinas da
biologia evolutiva, como a filogenética, a genética de populações, a paleontologia, a
biogeografia, a ecologia evolutiva, a genética evolutiva do desenvolvimento, entre
outras; no século 21, os biólogos voltaram a pensar na necessidade de unificação dessas
ciência num único corpo teórico. Evidentemente, o cerne do darwinismo ainda
permanece relativamente intacto, mas os novos desafios trazidos pela imensa
quantidade de dados expandiu consideravelmente a teoria evolutiva. Podemos pensar a
biologia evolutiva como uma árvore, com raízes ainda fortes no darwinismo e com
muitos ramos nas suas derivações. O século 21 vem se consolidando como a era da
informação, a big data, onde servidores computacionais agora armazenam não apenas
genomas completos de indivíduos, mas também dados comportamentais, biogeográficos
e ecológicos. Essa inundação de informação tem motivado a procura por macro padrões
na diversidade, associado a frequentes testes de hipóteses em larga escala. Por exemplo,
quase todas as espécies de mamíferos possuem ao menos de um a dois genes já
sequenciados. Essa mega filogenia molecular de Mammalia pode ser comparada com
dados paleontológicos e biogeográficos para testarmos a hipótese da radiação adaptativa
dos mamíferos após a extinção dos dinossauros não-avianos na fronteira entre o
Cretáceo e o Paleogeno. Estudos genômicos populacionais, inclusive de regiões não
codificadoras, estão permitindo que os biólogos entendam com precisão os mecanismos
da genética da especiação. Novas linhas de análise, como os estudos de
biocomplexidade, tem elucidado a dinâmica de cadeias de interação ecológica e também
permitido a modelagem de epidemias. As possibilidades são impossíveis de enumerar
neste texto. Vivemos numa época instigante para estudar biologia.
23 Conforme vimos, a teoria da evolução das espécies demorou bastante para ser
desenvolvida. Esse longo caminho mostra a dificuldade intelectual e até mesmo
cognitiva que caracteriza o entendimento da evolução biológica. É uma história que
definitivamente desbanca a interpretação simplista e heroica encontrada comumente em
livros didáticos. Lamarck nunca conheceu Darwin e Darwin não tinha noção dos
princípios básicos da hereditariedade. A repetição de uma histórias simplistas e
incorretas, como aqueles que caracterizam o darwinismo como uma teoria onde “tudo
ocorreu ao acaso” é tão absurda quanto dizer que Isaac Newton estabeleceu a
relatividade geral. Entender a história intrincada do pensamento evolutivo e a série de
percalços que foram vencidos ao longo dos séculos é fundamental para ensinar biologia
evolutiva, pois muitas das dúvidas e críticas que surgem nos estudantes já foram foco de
intenso debate no passado.
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Introdução histórica à biologia evolutiva