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REVIST
A JURÍDICA
REVISTA
MA
TER DEI
MATER
ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE
BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI
ISSN 1676-1278
Volume 4 - Número 4 - jan./dez 2003 - Anual
PATO BRANCO - PARANÁ
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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REVISTA JURÍDICA MATER DEI - COMPOSIÇÃO
DIRETOR GERAL DA
FACULDADE MATER DEI:
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
EDITOR:
PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA
SUPERVISOR EDITORIAL:
PROF. DR. DIRCEU ANTONIO RUARO
CONSELHO EDITORIAL:
PROF. ALCIONE PARZIANELLO
PROF. ANDREY HERGET
PROFª. ANGÉLICA SOCCA CESAR RECUERO
PROF. ANTONIO GERALDO SCUPINARI
PROF. CÁSSIO LISANDRO TELLES
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PROF. CELSO SOUZA GUERRA JÚNIOR
PROF. DÉVON DEFACI
PROF. ERLON ANTONIO DE MEDEIROS
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PROFª. FERNANDA KARAM DE CHEURI SANCHES
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PROF. GENÍRIO JOÃO FÁVERO
PROF. GÉRI NATALINO DUTRA
PROF. JÂNIO LUIZ PEREIRA
PROF. JEDERSON SUZIN
PROFª. JOCIANE TRICHES SILVESTRI
PROF. JORGE DA SILVA GIULIAN
PROF. JOSÉ EDUARDO FERREIRA RAMOS
PROF. LUIZ FERNANDEO BALDI
PROFª. MAGDA DEMARTINI TASCA
PROF. NILSON DE FARIAS
PROF. RAMÃO MARQUES NETO
PROF. RODRIGO CORONA MENEGASSI
PROF. RODRIGO SIMIONATTO
PROFª. SILVANA DE MELLO GUZZO
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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PROF. VALMIR CHIOQUETTA JÚNIOR
PROF. VANDERLEI SCHNEIDER DE LIMA
CONSELHO CONSULTIVO:
PROF. DR. ABILI LÁZARO CASTRO DE LIMA - UFPR
PROF. DR. ALFREDO DE ASSIS GONÇALVES NETO - UFPR
PROF. MSc. ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA - UEPG
PROF. DR. ALVACIR ALFREDO NICZ - UFPR
PROF. DR. ALVACIR CORREA DOS SANTOS
PROF. DR. CLAYTON REIS - UEM
PROF. DR. EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE - UFPR
PROF. DR. ELIMAR SZANIAWSKI - UFPR
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PROF. DR. JOSÉ ANTONIO PERES GEDIEL - UFPR
PROF. DR. JOSÉ MANOEL DE ARRUDAALVIM NETO - PUC-SP
PROF. DR. JOSÉ ROBSON DA SILVA - UEPG
PROF. MSc. JÚLIO CESAR BACOVIS - CAMPO REAL
PROF. DR. LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT
PROF. DR. LUIZ EDSON FACHIN - UFPR
PROF. DR. LUIZ GUILHERME BITTENCOURT MARINONI - UFPR
PROF. DR. LUIZ RODRIGUES WAMBIER - UEPG
PROF. DR. MANOEL EDUARDO ALVES DE CAMARGO E
GOMES - UFPR
PROF. MSc. MIGUEL KFOURI NETO - ESCOLA DA
MAGISTRATURA DO PARANÁ
PROFª. DRª. SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO - UEPG
PROFª. DRAª. TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER - PUC-SP
SECRETÁRIA EDITORIAL:
MARISOL TOMASINI DUTRA
REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA:
PROFª. SETEMBRINA ZUCCHI NUNES
RESUMOS:
PROF. RODRIGO SIMIONATO
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VERSÃO DOS RESUMOS PARA A LÍNGUA INGLESA:
PROFª. LOCILEI DE NEGRI BORTOT
DIAGRAMAÇÃO E CAPA:
LILYANE HELENA SARTORI
EQUIPE DA FACULDADE MATER DEI
DIRETOR GERAL
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
VICE-DIRETORA GERAL
PROFª. IVONE MARIA PRETTO GUERRA
DIRETOR EXECUTIVO
PROF. RUBENS FAVA
ASSESSORES PEDAGÓGICOS
PROF. DR. DIRCEU ANTONIO RUARO e
PROFª. VANESSA PRETTO GUERRA
COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO
PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA
COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
PROF. ANDREY HERGET
COORDENADOR DO NÚCLEO DE PESQUISAS JURÍDICAS MATER DEI
PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA
COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM ADMINISTRAÇÃO
PROF. VOLMAR BRUNETO
COORDENADOR DO CURSO DE SISTEMAS DE INFORMAÇÃO
PROF. GÉRI NATALINO DUTRA
SECRETÁRIA ACADÊMICA
PROFª. WAINÊS SALLETE BASSO
SECRETÁRIO FINANCEIRO
PEDRINHO DE BORTOLI
BIBLIOTECÁRIA
BERENICE DE LIMA RODRIGUES
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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APRESENTAÇÃO
A pesquisa é a mola propulsora da educação, e aliada aos
métodos de ensino, permite muito mais do que a simples transmissão
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do conhecimento, criando e renovando constantemente o saber, alçando o pesquisador (estudante) à condição de sujeito ativo desse processo.
Ao editar o quarto volume da Revista Jurídica Mater Dei, a Faculdade Mater Dei afirma continuar colaborando para a difusão do
conhecimento produzido pelos Docentes de seu Curso de Bacharelado
em Direito e de Professores e Juristas de outras instituições públicas e
particulares.
Vinte e um artigos científicos abordando o Direito, a Filosofia
Jurídica, a Educação, a Ciência Política e outras Ciências Sociais,
sustentam a presente edição. Fica registrado o agradecimento da
Faculdade Mater Dei aos Professores e aos Juristas que colaboraram
para a presente publicação.
A Faculdade Mater Dei afirma ser a pesquisa relevante para a
formação completa, até porque é sabido que o exercício das profissões
jurídicas (Advocacia, Magistratura, Ministério Público, Procuradorias,
e outras) exige o constante recurso à pesquisa como “ferramenta de
trabalho”.
Assim, tanto em nível acadêmico quanto profissional, impõese ressaltar a importância da pesquisa para a educação. A Faculdade
Mater Dei apresenta mais esta edição de sua Revista Jurídica, com a
satisfação de dever cumprido, desejando que ela seja útil a todos
quantos com ela tomem contato.
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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EDITORIAL
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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A Educação se confunde com o próprio processo de humanização, pois é a
capacitação do indivíduo tanto para viver civilizadamente e produtivamente,
quanto para formar seu próprio código de comportamento e para agir
coerentemente com seus princípios e valores, com a abertura para revisá-los
e modificar seu comportamento quando mudanças se fizerem necessárias.
ELIAS DE OLIVEIRA MOTTA. Direito Educacional e educação no século
XXI. Brasília: Unesco, 1997, p. 75.
A Educação pretendida pela Faculdade Mater Dei dirige-se
à formação integral das pessoas, pois, mesmo considerando a formação acadêmica e a qualificação profissional decisivos para os futuros
Bacharéis, cumpre à Educação, ainda, despertar-lhes a consciência
para a Cidadania e seu exercício.
Com o quarto volume da Revista Jurídica Mater Dei (primeiro
semestre de 2003) o Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade
Mater Dei ratifica o compromisso com a construção do conhecimento.
O caráter interdisciplinar da publicação proporciona ampla
visão das transformações ocorridas na Ciência do Direito, neste início
de milênio. Os artigos abordam várias temáticas jurídicas e de ciências
afins. A contribuição de renomados Professores e Juristas brasileiros
firma a credibilidade científica da Revista Jurídica Mater Dei.
Com a presente publicação pretende o Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei continuar colaborando para o
aperfeiçoamento da Ciência do Direito e a difusão do conhecimento
jurídico e de outras ciências.
Espera-se que a Revista Jurídica Mater Dei contribua para
enriquecer a formação dos Discentes de Cursos de Bacharelado em
Direito e de Programas de Pós-Graduação e de outros profissionais
que encontrem nela amparo para solucionar dúvidas e questões sobre
o conhecimento.
PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA
COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO
COORDENADOR DO NÚCLEO DE PESQUISAS JURÍDICAS MATER DEI
EDITOR DA REVISTA JURÍDICA MATER DEI e dos CADERNOS DE ESTUDOS JURÍDICOS MATER DEI
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SUMÁRIO
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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A EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL : REFLEXÃO E CRÍTICA - FLORI ANTONIO TASCA
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ORDEM CONSTITUCIONAL - ALVACIR ALFREDO NICZ
TEORIA DAS JANELAS QUEBRADAS : E SE A PEDRA VEM
DE DENTRO? - JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO e
EDWARD ROCHA DE CARVALHO
O NUMERUS CLAUSUS E A TIPICIDADE DOS DIREITOS
REAIS EM LIGAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA RESERVA DA LEI - JOSÉ
ROBSON DA SILVA
A NORMA FUNDAMENTAL - HOMAR PACZKOWSKI
ANTUNES PINTO
TRABALHO TERCEIRIZADO E FRAUDE NA LEGISLAÇÃO
TRABALHISTA - VANDERLEI SCHNEIDER DE LIMA
AS NORMAIS CONSTITUCIONAIS QUE TRATAM DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO FRENTE À GARANTIA DO
ACESSO À JUSTIÇA - JOSÉ EDUARDO FERREIRA RAMOS
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
DO ATO PROCESSUAL - ANDREY HERGET
RECURSO EXTRAORDINÁRIO RETIDO E A AUSÊNCIA DE
EFEITO SUSPENSIVO - ADRIANA TIMÓTEO DOS SANTOS
ANOTAÇÕES SOBRE O LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO CÉLIO ARMANDO JANCZESKI
AS MÚLTIPLAS FUNÇÕES DO BEM JURÍDICO NO DIREITO
PENAL - PEDRO LUCIANO EVANGELISTA FERREIRA
TÓXICOS – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DAS
LEIS 6.368/76 E 10.409/02 - IRIO JOSÉ TABELA KRUNN
A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 28: ANÁLISE DOS LIMITES DA EXPRESSÃO “DIREITOS E
GARANTIAS INDIVIDUAIS” CONSTANTE NAS CLÁUSULAS
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PÉTREAS - MARCIUS NADAL MATOS
AS DIVERSAS FACES DA INCONSTITUCIONALIDADE DA
LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. KLEBER CAZZARO
A INCONSTITUCIONALIDADE DO FORO PRIVILEGIADO
PARA EX-AUTORIDADES EM AÇÕES CIVIS DE IMPROBIDADE: UM
RETROCESSO NA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO - JOÃO CONRADO BLUM JÚNIOR
DEMOCRACIA E SISTEMA REPRESENTATIVO : A QUESTÃO DOS PARTIDOS - FABIO ANIBAL GOIRIS
RESPONSABILIDADE SOCIAL: A EVOLUÇÃO DAS EMPRESAS E O NOVO PERFIL EMPRESARIAL BRASILEIRO - MAGDA
DEMARTINI TASCA
AS DIFICULDADES DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA NO
BRASIL E NO PARANÁ - RAFAEL AUGUSTUS SÊGA
ÉTICA NA MAGISTRATURA - VALTER MARTINS DE TOLEDO
FAMÍLIA : CONCEITO EM TRANSFORMAÇÃO - JULIANE
GRIGOLETO MAYER
APONTAMENTOS SOBRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - GUSTAVO SIQUEIRA SILVEIRA
===============================================================
A EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL: REFLEXÃO E
CRÍTICA
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FLORI ANTONIO TASCA
PROFESSOR TITULAR & COORDENADOR DO CURSO DE
BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI. MESTRE
EM DIREITO PRIVADO & DOUTOR EM DIREITO DAS RELAÇÕES
SOCIAIS PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. ADVOGADO &
CONSULTOR.
RESUMO
O texto analisa a educação jurídica brasileira sob vários aspectos, destacando
o trabalho desenvolvido pela Ordem dos Advogados do Brasil em prol da
melhoria da qualidade do ensino do Direito. O trabalho evidencia a importância
da educação jurídica para a construção da cidadania. Aborda o projeto
pedagógico e o currículo pleno dos cursos jurídicos, enfatizando a importância
da interdisciplinaridade e de sua prática. Trata também da trilogia ensino,
pesquisa e extensão. Traça o perfil do corpo docente e do corpo discente de
cursos jurídicos nacionais.
ABSTRACT
The text analyses the Juridical Education in Brazil under several aspects,
pointing to the work developed by Bar Association from Brazil to improve the
quality of teaching in Law courses. The work shows the importance of juridical education to the construction of citizenship. It talks about the pedagogical project and the full curriculum of the juridic courses, pointing to the importance of intersubjects and its pratic. It also talks about the teaching trilogy,
research and expansion. It brings characteristics of professors and students
from national juridic courses.
PALAVRAS CHAVE - Educação; Direito; cursos jurídicos; educação
jurídica.
KEY WORDS INTRODUÇÃO
A comunidade jurídica nacional ficou perplexa diante da homologação pelo Ministério da Educação (MEC) do parecer nº 146/2002
do Conselho Nacional de Educação (CNE), publicado no Diário Oficial
da União em 13/05/2002, flexibilizando as diretrizes curriculares dos
cursos jurídicos no Brasil, situação que enseja séria reflexão das pessoas de fato comprometidas com a boa qualidade da educação jurídica
brasileira.
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Pelo referido parecer, os cursos jurídicos foram equiparados
aos cursos de graduação em ciências econômicas, administração, contabilidade, turismo, hotelaria, secretariado executivo, música, dança, teatro e design, o que representou duro golpe contra as diretrizes
curriculares dos cursos de Bacharelado em Direito brasileiro.
O parecer previa a possibilidade de conclusão de curso jurídico em apenas três anos; dispensava a obrigatoriedade de elaboração
e defesa pública da monografia de conclusão de curso (também chamado TCC - trabalho de conclusão de curso); minimizava os critérios
para a qualidade do currículo pleno, não exigindo (sequer) biblioteca
adequada ao funcionamento do curso.
Ao homologar o parecer, as autoridades de ensino olvidaramse do sólido trabalho de setores organizados da sociedade civil - em
especial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - em prol da melhoria
da educação jurídica ofertada pelas Instituições de Ensino Superior
(IES) públicas e particulares em território brasileiro.
Nada obstante, o labor de outras entidades classistas (da magistratura, do ministério público) e de diversas IES (públicas e privadas), merece ser destacada a intensa atividade da OAB em prol da
educação jurídica nacional.
Há muito a OAB cuida do ensino jurídico,1 realizando encontros
destinados ao debate sobre o tema, organizando e publicando textos para
compartilhar com a sociedade o compromisso de zelar pela boa qualidade dos serviços educacionais (de educação jurídica) no Brasil.
A relevância social do estudo do Direito e as crescentes exigências do mercado de trabalho impostas aos egressos dos cursos
jurídicos brasileiros são incompatíveis com a flexibilização proposta
pelo CNE, o que enseja reflexão e crítica.
Impõe-se que os segmentos promoventes da formação jurídica
(em especial as IES) e as entidades responsáveis pelas profissões jurídicas (OAB, Associações de Magistrados, do Ministério Público e outras)
questionem a oportunidade e a relevância de iniciativas como essa. 2
1
O autor prefere educação jurídica a ensino jurídico, pois o primeiro termo é mais amplo, abrangendo
as atividades de ensino, pesquisa e extensão, ressaltando o caráter educativo (além do profissionalizante)
dos cursos jurídicos.
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Pioneira e louvável foi o Mandado de Segurança nº 8592 (09/
09/2002), impetrado pelo Conselho Federal da OAB no Superior Tribunal de Justiça para impugnar o parecer do CNE. 3
No dia 14/05/2003, a Primeira Seção do STJ, unânime, concedeu a segurança conforme o voto do Ministro Franciuli Netto (relator),
decisão que merece elogios.
Em tal contexto foi produzido este texto, destinado a oferecer
alguns elementos que favoreçam a reflexão e o debate sobre a educação jurídica, nos dias presentes, mediante a análise da trilogia ensino,
pesquisa e extensão.
É pretensão deste trabalho fomentar a discussão sobre o futuro
da educação jurídica brasileira, a partir da idéia de que a mesma deve
transpor os limites do paradigma tecnicista profissionalizante, devendo,
o Bacharel em Direito estar habilitado ao efetivo exercício da cidadania.
Iniciando a reflexão sobre a realidade da educação jurídica brasileira, o texto destaca a relevante contribuição da OAB para a qualidade
dos cursos jurídicos brasileiros, passando a analisar a importância da
educação jurídica para a construção e o exercício da cidadania.
Busca-se traçar um perfil geral dos cursos jurídicos, desde a
concepção em projeto pedagógico e o currículo pleno, passando pela
2
Antes mesmo da homologação do indigitado parecer, o Conselho Federal da OAB condenava com
veemência a pretensão do CNE, concluindo em nota oficial que “tamanho retrocesso não pode deixar de
receber a mais candente repulsa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. O órgão
supremo da OAB, cioso da sua atribuição legal de ‘colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos’,
apela para o bom senso e o patriotismo do Senhor Ministro da Educação, no sentido de que não homologue
o nefasto parecer em rela’;cão ao curso jurídico, poupando-o, assim, do golpe que contra ele se intenta
desferir”. MACHADO, Rubens Approbato. Conselho Federal condena a nova proposta de Diretrizes
Curriculares. In: Jornal da Ordem. Brasilía: OAB, maio de 2002, p. 10.
3
“O ministro Franciulli Netto, da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), concedeu o pedido
de liminar em mandado de segurança impetrado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil contra ato do Ministro de Estado de Educação. Com a concessão da liminar, ficaram suspensos os
efeitos da homologação do Parecer n. 146/2002 e das minutas de resolução que o acompanham, no que
concerne ao curso de Direito [...] O ministro Franciulli Netto concedeu a liminar considerando que é evidente
a plausibilidade do direito invocado pelo Conselho Federal da OAB, uma vez que tanto a legislação
infraconstitucional como as determinações da Constituição Federal caminham no sentido de garantir a
qualidade dos cursos jurídicos, diante da sua indispensabilidade para a proteção dos direitos individuais
e sociais do povo brasileiro.
‘Nunca se pode olvidar, pois, da importância da figura do advogado e dos demais profissionais da área
jurídica na sociedade contemporânea, circunstância que acarreta, necessariamente, sensível aumento
na demanda por cursos jurídicos, mas que não pode servir de mote para se prestigiar a quantidade em
lugar da qualidade’, destacou Franciulli Netto.” STJ. Franciulli Netto defere pedido da OAB contra redução do currículo do curso de Direito. In: Notícias do Superior Tribunal de Justiça. www.stj.gov.br
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interdisciplinaridade como requisito essencial para a excelência da educação jurídica.
A partir dessas reflexões a educação jurídica é analisada iniciando-se por seus três pilares : o ensino, a pesquisa e a extensão. Quanto ao ensino, o trabalho trata da aula (teórica e prática) em ensino superior, apontando ser necessária a superação do modelo tradicional e
dogmático do ensino do Direito. Quanto à pesquisa, o texto cuida da
importância dela para a construção do conhecimento. Quanto à extensão, afirma-se ser em atividades de interação com a comunidade que,
sendo esta acadêmica contribui para a construção e o exercício da cidadania.
Em seguida, o trabalho traça o perfil do corpo docente e do corpo
discente dos cursos jurídicos, enfocando alguns aspectos sobre o papel
dos partícipes da educação jurídica brasileira (docentes e discentes).
Como opção metodológica, dada a natureza e a destinação
deste texto, optou-se por não incluir questões pertinentes à avaliação
dos cursos jurídicos, seja a avaliação dos corpos discente e docente, ou
a avaliação das IES.
De todo modo, a avaliação dos cursos jurídicos será sempre
satisfatória se as IES estiverem, efetivamente, comprometidas com a construção e a efetivação de um projeto pedagógico de boa qualidade.
OS CURSOS JURÍDICOS NACIONAIS E O TRABALHO DA OAB
A educação jurídica, como parte da educação em geral, encontra seu fundamento no texto constitucional, pelo qual “a educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovido e incentivado com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho” (artigo 205 da Constituição Federal).
No âmbito da legislação infraconstitucional, a educação jurídica é
sustentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
Lei nº 9.394, de 20/12/1996, elaborada por mandamento constitucional
que atribui competência à União para legislar sobre “diretrizes e bases
da educação nacional” (artigo 22, XXIV, da Constituição Federal).
Em 30/12/1994 o MEC editou a portaria nº 1.886, traçando “as
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diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo do curso jurídico” :
a) integralização do curso entre cinco anos (3.300 horas) no mínimo
e sete anos no máximo (artigo 1), exigindo do curso noturno a mesma qualidade do curso diurno (artigo 2);
b) integração entre atividades de ensino, pesquisa e extensão, visando a formação fundamental, sócio-política, técnico-jurídico e prática do futuro Bacharel (artigo 3);
c) destinação de carga horária (cinco a dez por cento do total) às
atividades complementares, incluindo pesquisa, extensão, seminários, simpósios, congressos, conferências, monitoria, iniciação científica e disciplinas não previstas no currículo pleno (artigo 4);
d) composição de acervo bibliográfico atualizado com (no mínimo)
dez mil volumes de obras jurídicas e de referências às matérias do
curso, além de periódicos de legislação, de doutrina e de jurisprudência (artigo 5);
e) construção de currículo pleno compreendendo a formação fundamental, profissional (artigo 6) e prática, inclusive com estágio obrigatório (artigo 10);
f) elaboração e defesa pública de Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC), considerado atividade obrigatória para a obtenção do grau
de Bacharel (artigo 9). 4
A normativa leva em consideração os estudos científicos e os
diversos encontros (seminários, congressos) realizados para discussões sobre a matéria, além de várias publicações sobre a educação
jurídica no Brasil, para tudo contribuindo o Conselho Federal da OAB,
por sua Comissão de Ensino Jurídico (CEJ). 5
É fato que o Conselho Federal da OAB tem fomentado ativamente a melhoria da educação jurídica nacional, inclusive publicando
4
Nos dias 13 e 14 de julho de 2000, em Brasília-DF, a Comissão de Especialistas de Ensino de Direito da
Secretaria de Educação Superior do MEC editou diretrizes curriculares para o curso de Graduação em
Direito, “elaboradas por força da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20
de dezembro de 1996), a partir das indicações fornecidas pelo Parecer n. 776/97 da Câmara de
Educação Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CNE) e pelo Edital n. 4/97 da SESu/
MEC, sistematizam, com base na Portaria n. 1.886, de 30 de dezembro de 1994, com a preocupação
de preservar o seu conteúdo, as sugestões enviadas pelos membros da comunidade acadêmica
jurídica de forma prévia para a Comissão de Especialistas de Ensino de Direito”.
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várias obras a respeito, contendo a síntese dos debates promovidos.
Basta ver a série “OAB Ensino Jurídico”, com três livros em 1996: a)
“Diagnóstico, Perspectivas e Propostas”; b) “Novas Diretrizes
Curriculares”; c) “Parâmetros para Elaboração de Qualidade e Avaliação”. Destaque-se ainda o livro “Ensino Jurídico OAB – 170 anos de
cursos jurídicos no Brasil”, publicado pelo Conselho Federal em 1997.
O Conselho Federal da OAB tem cumprido seu dever de “colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos, e opinar, previamente, nos pedidos apresentados aos órgãos competentes para criação, reconhecimento ou credenciamento desses cursos”, a teor do artigo 54, XV, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB). 6
A importância do trabalho da OAB para a boa qualidade da
educação jurídica é assinalada por Paulo Luiz Neto Lôbo, jurista que
contribuiu na gênese do Estatuto:
Reconhecendo legitimidade da OAB para manifestar-se sobre a formação do profissional do direito, porque ela é quem mais sofre as
conseqüências do mau ensino, o Estatuto atribuiu-lhe a competência para opinar previamente nos pedidos de criação, reconhecimento ou credenciamento dos cursos jurídicos. Assim, antes da decisão
da autoridade educacional competente (Conselho Federal e Estaduais de Educação, MEC e Secretarias Estaduais de Educação),
caberá ao Conselho Federal emitir parecer prévio.
A proliferação descriteriosa de cursos jurídicos, sem as mínimas
condições de qualidade, tem contribuído para a preocupante queda
5
“COMISSÃO DE ENSINO JURÍDICO. Compete à Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal
opinar previamente nos pedidos para criação, reconhecimen to e credenciamento dos cursos jurídicos referidos no Art. 54, XV, do Estatuto da Advocacia e da OAB. Membros : - Presidente: PAULO
ROBERTO DE GOUVEA MEDINA; - Vice-Presidente: FRANCISCO OTÁVIO DE MIRANDA BEZERRA; - Secretário: MILTON PAULO DE CARVALHO; - Membro Efetivo: ANTONIO JOSÉ FERREIRA
ABIKAIR; - Membro Efetivo: MARILIA MURICY; - Membro Consultor: IGNÁCIO POVEDA VELASCO; Membro Consultor: MARCELO GUIMARÃES DA ROCHA E SILVA; - Membro Consultor: ROBERTONIO
SANTOS PESSOA.” Informação obtida no site do Conselho Federal da OAB (www.oab.org.br).
6
“O vigente Estatudo da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/93) confere à OAB
papel de relevo no campo do ensino jurídico. Entre os fins institucionais da entidade, insere-se aquele que
importa em ‘pugnar pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas” (art. 44, I, in fine). Na
esteira desse desiderato, a citada lei atribui ao Conselho Federal da Ordem competência no sentido de
‘colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos, e opinar, previamente, nos pedidos apresentados
aos órgãos competentes para criação, reconhecimento ou credenciamento desses cursos”. MEDINA,
Paulo Roberto de Gouvea. A OAB e o ensino jurídico. (www.oab.org.br).
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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do nível profissional dos advogados. Atualmente, o Brasil detém mais
cursos jurídicos que os Estados Unidos (credenciados pela American
Bar Association).
Caberá à OAB definir critérios razoáveis, para que possa colaborar
com as autoridades educacionais neste objetivo, especialmente
mediante a atuação de sua Comissão de Ensino Jurídico. 7 8
A instrução normativa nº 01 (19/08/97) do Conselho Federal
da OAB (CEJ), fixa as diretrizes para a “alta qualificação dos cursos
jurídicos”:
a) corpo docente, no todo ou em parte (considerável) com pós-graduação ou titulação stricto sensu (mestrado ou doutorado), trabalhando em regime de tempo integral ou parcial, mediante remuneração condigna, evitando-se a contratação de “professores horistas”;
b) qualidade e atualização do acervo bibliográfico disponível;
c) qualidade da estrutura curricular;
d) implementação de núcleos de pesquisa e de extensão;
e) vagas adequadas à demanda populacional na região;
f) instalações e equipamentos (laboratórios de informática) adequados ao funcionamento do curso.
No âmbito dos Estados, os Conselhos Seccionais da OAB têm
procurado pautar conduta em consonância com as orientações do Con7
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Comentários ao novo Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. Brasília: Brasília Jurídica, 1994, p. 173.
8
Em outro comentário ao Estatuto, lê-se sob o título aperfeiçoamento dos cursos jurídicos:
“O Conselho Federal tem o dever de colaborar com as Universidades, as Faculdades de Direito e o Ministério
da Educação, no sentido de melhorar o ensino jurídico no país, pois seus inscritos advêm de cursos de
Direito. Para tal, criou o Conselho, no Estatuto anterior, uma Comissão de Aperfeiçoamento do Ensino
Jurídico, que se tem manifestado, sempre, buscando aperfeiçoar este ensino.
O Conselho deve ser, ainda, consultado previamente sobre pedidos ao Ministério da Educação para a
criação de novos cursos jurídicos no país, ou para seu credenciamento, quando em funcionamento.
A nosso ver, a Comissão acima mencionada devia ser muito rigorosa, ao recomendar a criação ou o
credenciamento dos cursos jurídicos, que proliferando indiscriminadamente no território brasileiro se
multiplicam também desordenadamente, seja pela criação de ‘extensões’ de universidades, seja pela criação
desmesurada de vagas noturnas e diurnas, rebaixando o nível do ensino.
Com a necessidade de prestação de Exame de Ordem, pensamos que o assunto vai melhorar, pois mesmo
com grande número de bacharéis, o número de advogados não crescerá tanto, já que se exigirá não só
maior conhecimento do Direito, mas, na medida do possível, observar-se-á a vocação e a possibilidade de
o interessado exercer a profissão”. CORRÊA, Orlando de Assis (org.). Comentários ao Estatuto da
Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB. Rio de Janeiro: Aíde, 1995, p. 178.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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selho Federal, como exemplifica a Carta de Curitiba, fruto do Primeiro
Encontro de Presidentes das Subseções e Conselheiros Estaduais:
O Colégio de Presidentes das Subseções da Ordem dos Advogados do Brasil, Secional do Paraná, reunido em Curitiba, nos dias 22
a 24 de junho de 2001, em sua versão número 1, da Gestão 2001/
2003, resolve proclmar a seguinte carta:
1 - Desaprova a criação de Cursos de Direito sem atender a excelência de qualidade indispensável à formação profissional, nem cumprir o princípio da efetiva necessidade regional de novas faculdades;
2 - Ressalta a imperiosidade de alteração das normas alusivas à
criação de novos cursos de Direito, no sentido de que o respectivo
pronunciamento da OAB no processo administrativo junto ao MEC
não seja apenas opinativo, mas tenha caráter deliberativo;
3 - Sugere ao Conselho Estadual que transmita ao Conselho Federal para que seja encetada pela OAB ampla campanha de esclarecimento da sua posição, objetivando a garantia de permanente qualidade de ensino, nos cursos de Direito;
4 - Pugna pela unificação dos Exames de Ordem para habilitar os
Bacharéis ao exercício profissional, em todo o Brasil, quer no tocante a data, quer no que respeita ao conteúdo, assegurando-se ampla
correção e efetivo respeito no tocante à comprovação da inequívoca capacidade dos candidatos. 9
O Conselho Federal informa que em 2001 “os 273 cursos
jurídicos que participaram do Exame Nacional de Cursos (o Provão,
do MEC) lançaram no mercado 50.933 bacharéis de Direito”, sendo tal
número “seis vezes a quantidade de médicos e está no topo das carreiras do ensino superior”. 10
Em 06/2001, o MEC suspendeu os pedidos de autorização para
funcionamento de cursos jurídicos, reabrindo-os em 01/02/2002. Para a
9
OAB. Colégio de Presidentes quer rigor na aprovação de novos cursos de Direito. In: Jornal da OABPR. Curitiba : julho de 2001, p. 09.
10
“O curioso, no levantamento, é que o número de faculdades de Direito no Brasil está abaixo de outras
carreiras. Pedagogia, por exemplo, possui 498 cursos (225 a mais do que Direito), mas formou no ano
passado um número menor de alunos: 47.870. Em terceiro lugar está o curso de administração, que com
suas 497 faculdades formou 46.300 alunos.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
21
OAB, a reabertura viria “na contramão das denúncias sobre a má qualidade decorrente da proliferação dos cursos superiores no Brasil, comprometendo carreiras históricas, como o Direito”. 11
Em 11/2001, a OAB enviou ofício à titular da Secretaria de Ensino Superior, protestando contra a portaria nº 2.402, “cujos efeitos na
qualidade do ensino de Direito poderão ser desastrosos” :
A Portaria estabelece as novas condições para o aumento de vagas
nas faculdades sem autorização prévia e, pela primeira vez, o Direito não é preservado da lista dos cursos cuja expansão de vagas,
para se manter a qualidade, passa pelo crivo de seus respectivos
conselhos, como Medicina, Odontologia e Psicologia. Mais grave:
pela Portaria, a prerrogativa de aumentar as vagas sem autorização
prévia, antes exclusiva das instituições com autonomia universitária
(universidades, centros universitários) é estendida às faculdades sem
autonomia universitária (faculdades integradas, faculdades, institutos superiores ou escolas superiores). Elas ficam autorizadas a aumentar em até 50% o número de vagas. 12
Ainda em 2001, realizou-se a 1a Reunião da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB com os representantes das
CEJ’s de Seccionais, d’onde foi consenso que devem ser promovidas
novas ações em prol da educação jurídica nacional, dentre as quais a
criação de um cadastro de professores de Direito.
Segundo noticiado no Jornal da Ordem,
além dos critérios já definidos para a elaboração do cadastro, foi
sugerido que se acrescente a carga horária e o regime de trabalho
do docente para que se possa avaliar a existência de efetivas condições para o exercício de docência. O ofício a ser encaminhado às
instituições de ensino superior pelas CEJs Seccionais deverão conter uma breve exposição de motivo, destacando que os dados soliA OAB estima que atualmente existam mais de 450 cursos jurídicos funcionando no Brasil, mas como
muitos deles foram criados recentemente, a estatística se refere apenas aos 273 que já estão formando turmas e participam do Provão.” OAB. Direito formou mais de 50 mil bacharéis em 2001. In: Jornal da
Ordem. Brasília - www.oab.org.br
11
OAB. Faculdades: MEC acha pouco e abre novos registros. In: Jornal da Ordem. Brasília www.oab.org.br
12
OAB. Portaria do MEC pode agravar crise no ensino jurídico. In: Jornal da Ordem. Brasília www.oab.org.br
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
22
citados servirão como subsídios na apreciação dos novos processos de criação de cursos de Direito.
Os critérios estabelecidos na Instrução Normativa 1/97, da CEJ/CJ
também foram discutidos. Foi sugerido que se acrescentasse o requisito da vocação econômica da região onde o curso se instalará
para complementar os requisitos que possibilitem a apreciação do
pedido. 13
Eis alguns exemplos de como a OAB tem contribuído para a
melhoria da qualidade da educação jurídica brasileira, propondo critérios para assegurar que as IES primem pela excelência dos serviços
educacionais prestados.
Destaque-se ainda a importante participação do Conselho Federal e dos Conselhos Estaduais da OAB nos pedidos de autorização
e/ou reconhecimento dos cursos jurídicos.
A análise da conduta da OAB permite concluir que a entidade
está de fato comprometida com a alta qualificação dos cursos jurídicos, combatendo cursos sem qualidade e trabalhando pelo contínuo
aperfeiçoamento da educação jurídica nacional.
Nada obstante merecedora de elogios, a postura da OAB frente à educação jurídica nacional, deve-se ter muita cautela quanto à
disseminação de opinião generalizada e negativista acerca da abertura de novos cursos jurídicos no Brasil.
Se é necessário combater a autorização e o reconhecimento
de cursos que não oferecem as condições indispensáveis para o bom
funcionamento, certo é também que a CEJ do Conselho Federal, bem
como as CEJ’s dos Conselhos Estaduais, devam agir com prudência e
considerar cuidadosamente os diversos aspectos ligados ao curso que
esteja (eventualmente) sendo analisado.
Infelizmente, há casos de incoerência em algumas atitudes de
CEJ’s (Federal e Estaduais) diante de pedidos de autorização de alguns cursos jurídicos, pois os pareceres (pura e simplesmente) negativos deixam de considerar o projeto pedagógico, em especial (parado13
OAB. Cadastro de professores de Direito. In: Jornal da Ordem. Brasília - www.oab.org.br
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
23
xalmente) para ver se estão presentes os requisitos da instrução
normativa 01/97.
Muitas vezes o parecer negativo é fruto de uma idéia preconcebida de que há muitos cursos jurídicos no Brasil, de que o mercado
não necessita de tantos Bacharéis, de que todo e qualquer curso jurídico novo é (necessariamente) ruim para a comunidade, quando é
sabido que nem sempre isso é verdade.
Seria ideal que ao menos o relator da CEJ, encarregado de
oferecer opinião sobre determinado curso em análise, comparecesse à
sede da IES, para verificar in loco quais as condições de oferta do curso.
Se durante a tramitação do pedido de autorização de novos
cursos o MEC nomeia comissão verificadora (composta por dois consultores, especialistas) para conhecer a IES e estabelecer contato pessoal com seus dirigentes, empregados, professores que participem do
projeto pedagógico, é porque isso é indispensável para a formação de
um correto juízo de valor acerca da viabilidade ou não da pretensão
sobre o curso jurídico.
Se a comissão de especialistas do MEC dá parecer favorável à
instalação de um novo curso jurídico, é porque (em tese) foi constatada
a presença das condições necessárias para o adequado funcionamento do curso. Até porque tais comissões são rigorosas na verificação in
loco das condições institucionais.
Ao visitar a sede de IES que pretende instalar ou manter curso
jurídico, a comissão de consultores ad hoc oriundos do MEC para verificar as condições institucionais, analisa rigorosamente diversos aspectos, dentre eles:
a) características e administração da IES;
b) políticas de pessoal, incentivos e benefícios;
c) organização didático-pedagógica (projeto) do curso pretendido;
d) corpo docente indicado para o curso;
e) instalações e laboratórios destinados ao curso;
f) acervo bibliográfico mínimo.
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24
A seriedade do trabalho dos consultores do MEC passa pelo
respeito a princípios éticos e orientações de conduta editados pelas
autoridades de ensino. Os avaliadores nomeados pelo MEC para as
verificações das condições de oferta, autorização e reconhecimento
de cursos superiores (inclusive jurídicos), devem observar o seguinte:
As regras de conduta funcionam como um caminho prático para fazer valer os princípios éticos já estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, as regras de conduta estabelecidas pelo Decreto 1171/
94, que visam a estimular um comportamento ético na Administração Pública.
Considerando a natureza da tarefa avaliativa e tendo em vista os
princípios que estão conduzindo o processo de avaliação dos cursos de graduação (qualidade da avaliação, credibilidade do processo e respeito à legislação em vigor), preconiza-se que o avaliador,
na verificação in loco, deva estar imbuído de uma conduta ética que
o oriente na sua missão oficial.
Suas posições e decisões deverão estar pautadas na legislação em
vigor. A consideração aos requisitos legais implica, também, em respeitar a identidade institucional. As instituições devem ser analisadas pelas suas características, natureza de suas finalidades e estágio de desenvolvimento. A diversidade não é contrária à qualidade.
As diferenças entre cursos podem ser manifestações de qualidade
em busca de atendimento ao desenvolvimento científico-teconológico
e sociocultural.
Fundamentados eticamente na imparcialidade e na isenção os avaliadores deverão manter conduta a mais uniforme possível. 14 15
14
Ainda segundo os princípios éticos e orientações de conduta para os avaliadores do MEC, interessante observar os deveres que assumem os consultores ad hoc, objetivando a atender aos princípios
preconizados e buscar harmonia nos procedimentos e conduta para a verificação in loco:
Cumprir rigorosamente o cronograma de verificação in loco, não aceitando redução dos dias programados;
Estar atento para que as reuniões, conversas informais, visitas e leitura de documentos não sejam
superdimensionados em detrimento de outras atividades previstas no cronograma da avaliação;
Evitar ênfase em algum aspecto de interesse específico ou da especialidade do avaliador;
Evitar que conversas particulares com o corpo docente, discente e técnico-administrativo comprometam o
andamento da avaliação;
Dimensionar o tempo das atividades de modo a não prejudicar o andamento do trabalho;
Evitar entrevistas ou exposição à mídia;
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25
Se a despeito das rígidas regras de conduta impostas aos consultores do MEC, as CEJ’s (Conselho Federal ou Conselhos Estaduais)
não formem juízo de convencimento com base no parecer dos
verificadores, deveriam então designar ao menos algum membro
(relator) para que visite a IES e tire suas próprias conclusões.
Após esgotar os quesitos avaliados pela comissão verificadora
do MEC, a OAB poderia avaliar outros aspectos pertinentes, tudo para
que o parecer fosse calcado em análise realista e sincera sobre as reais condições objetivas e subjetivas para a instalação de um novo curso
jurídico.
O que se deve evitar é a “política da negação”, pela qual parte-se
do pressuposto que qualquer novo curso jurídico seja maléfico para a comunidade (dada a quantidade de cursos já existentes), pois ocorre exatamente o contrário quando o projeto for bem estruturado e a IES também
for comprometida com a boa qualidade dos serviços educacionais.
Aceita-se que as CEJ’s guardem autonomia na formação do
juízo de valor quanto à recomendação de cursos jurídicos, e nem podeNa reunião final, com a coordenação do curso, ater-se somente a discutir aspectos relacionados à
avaliação, sem entregar documentos nem manifestar opinião que antecipe o resultado final;
Não aceitar a oferta para transporte em aviões particulares, ou seja, nos deslocamentos somente utilizar
passagens aéreas do INEP;
Não ter vínculo com a IES avaliada, seja administrativo ou técnico;
Não indicar nem se comprometer a realizar serviços de assessoria ou de consultoria para o curso e a IES
visitados;
Estar atento para não confundir sua tarefa na IES com a eventual coincidência de ser também dirigente de
IES, de Conselho Profissional ou de Associação;
Estar atento para não emitir opiniões e orientações sobre as atividades desenvolvidas ou sobre a IES
como um todo;
Não externar opiniões sobre outras IES;
Não solicitar serviços da IES paa qualquer trabalho de caráter pessoal;
Não aceitar ofertas, hospedagem e presentes;
Evitar envolver-se em discussões que possam comprometer a credibilidade da avaliação;
Não aceitar solicitação de intercessão, de apoio ou de informações com relação a outras áreas do MEC,
orientando, quando for o caso, para que a IES procure diretamente o setor respnsável;
Evitar a participação em recepções e em ambientes festivos, que comprometam os princípios da avaliação;
Não realizar e nem agendar atividades de caráter pessoal, como palestras, cursos, promoção de livros,
etc., até a homologação oficial dos resultados da avaliação;
Não aceitar convites da IES para passeios turísticos;
Não aceitar qualquer tipo de complementação de diárias por parte da IES;
As informações coletadas, só devem ser utilizadas para a finalidade da avaliação do curso.
15
Ainda Sobre os requisitos dos avaliadores e impedimentos éticos veja-se : RODRIGUES, Horário
Wanderlei & JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Ensino do Direito no Brasil: diretrizes curriculares e
avaliação das condições de ensino. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 161 e ss.
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26
ria ser diferente. No entanto, para lançar parecer desfavorável em pedido e autorização, contrariando opinião favorável dos consultores ad hoc,
é imperioso que a OAB conheça bem o projeto pedagógico do pretendido curso (estude-o).
E mais, para um julgamento mais imparcial, é de todo conveniente que a OAB verifique in loco se a IES oferece condições para
a implantação de um curso jurídico que atenda as exigências legais e
as recomendações emanadas da própria Ordem.
Assim, exalta-se o bom trabalho desenvolvido pela OAB para
a melhoria contínua da qualidade dos cursos jurídicos brasileiros, ao
tempo em que se adverte sobre a necessidade de análise criteriosa e
embasada dos pedidos de autorização de novos cursos, porque preenchidos os requisitos de lei e as regras das própria Ordem, não há
porque recorrer à “política da negação”.
EDUCAÇÃO JURÍDICA PARA A CIDADANIA 16
O Direito é uma realidade social decorrente da natureza
gregária do ser humano e a civilização não existe sem normas, pois ao
Direito é conferida a prerrogativa de assegurar interesses e estabelecer limites e sanções, revelando-se essencial conhecer o Direito para
bem viver em sociedade.
Direito e coexistência social são indissociáveis,
exteriorizando o homem “suas relações com os seus semelhantes, ou
de sua ação sobre os bens, materiais ou imateriais, que lhe proporcionem os meios de conservação e desenvolvimento”, 17 diz Vicente Ráo
no clássico “o Direito e a vida dos direitos”.
16
O conceito de cidadania é multifacetado e transforma-se no tempo e no espaço, não se tratando de
idéia unívoca. Para tanto, basta dizer, amparada em Maria de Lourdes Manzini Covre, que a cidadania é
o “resultado não de uma apreensão estanque, mas de um processo dialético em incessante percurso em
nossa sociedade ... ser cidadão significa ter direitos e deveres, ser súdito e soberano”. COVRE, Maria de
Lourdes Manzine. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 8-9.
O tema é tratado em muitos outros trabalhos, como por exemplo :
DEMO, Pedro. Cidadania pequena. Campinas, Autores Associados, 2001.
MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
VAIDERGORN, José. O direito a ter direitos: polêmicas do nosso tempo. Campinas: Autores
Associados, 2000.
17
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos, 5 ed. São Paulo: RT, 1999, p. 51 ss.
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27
A existência do ser humano é pressuposto do Direito, sendo
o convívio social seu estado de natureza: “à proteção e ao aperfeiçoamento do homem, o direito tende. Mas, para realizar este fim, não o
considera isoladamente; considera-o, sim, em estado de comunhão
com os seus semelhantes, isto é, sempre como parte do todo social a
que pertence”. 18
Esse estado de comunhão consuma-se em relações sociais ocorridas nos diferentes campos de interação humana, como nos
grupamentos sociais, familiares, estudantis, religiosos, científicos, políticos, societários ou outros.
A lição de Vicente Ráo é simples, mas exemplar, pois o Direito acompanha o homem, desde antes de seu nascimento até depois
de sua morte, sendo inegável a origem, a essência e a finalidade social do Direito:
O direito ampara o ser humano desde o momento em que é concebido e enquanto ainda vive no ventre materno. E depois o segue e
acompanha em todos os passos e contingências de sua vida, contemplando o seu nascimento e, com o seu nascimento, o início de
sua personalidade. Protege-lhe, com a liberdade, a integridade física e moral. Prevê e segue, de grau em grau, seu desenvolvimento
físico e mental, dispondo sobre sua capacidade progressiva ou sobre sua incapacidade. Regula suas relações de família, como filho,
parente, nubente, esposo e pai, bem assim suas relações
patrimoniais, quer tenham por objeto bens corpóreos, quer recaiam
sobre outras pessoas, obrigadas a uma prestação de dar, fazer, ou
não fazer alguma coisa. Prevê e disciplina as conseqüências
patrimonais e penais da violação de seus direitos. Define sua atividade profissional. Contempla sua qualidade de membro de grupos
sociais e de membro da comunhão política, inclusive suas relações
com o Estado, que ele, o direito, também cria, ordena e enquadra na
ordem da comunhão universal. E, por fim, dispõe sobre a sua morte, perpetuando-o através de seus sucessores. 19
Regulando condutas sociais, o Direito tutela, igualmente inte18
19
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
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28
resses individuais e coletivos, fomentando e fortalecendo o sentimento
de agregação ínsito à natureza humana.
O estudo e a compreensão do Direito são importantes para a
construção de uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social”, como enuncia a Constituição da República Federativa do Brasil.
No dizer de Elias de Oliveira Motta (considerado o pai do Direito Educacional) “o século XXI será o século da educação”. Em entrevista concedida à Editora Consulex, afirmou : “precisamos mobilizar o
povo brasileiro para a luta em favor do respeito ao direito à educação
em todos os níveis e para a formação de um consenso nacional de que
a educação deve ter tratamento prioritário”. 20 21
No alvorecer do terceiro milênio vive-se a era do conhecimento, na qual as pessoas buscam na educação sua emancipação intelectual e profissional, caminho seguro para a construção de uma vida
(individual e social) melhor.
Ainda Oliveira Motta, na consagrada obra “Direito Educacional
e educação no século XXI”, ressaltando a importância da educação
para a civilização, assinala que “a Educação se confunde com o próprio processo de humanização, pois é a capacitação do indivíduo tanto
para viver civilizadamente e produtivamente, quanto para formar seu
próprio código de comportamento e para agir coerentemente com seus
princípios e valores, com a abertura para revisá-los e modificar seu
comportamento quando mudanças se fizerem necessárias”. 22 23
20
OLIVEIRA MOTTA, Elias de. Século XXI será o século da educação. In: CD-ROOM Revista Jurídica
Consulex – O mundo jurídico em cores. Entrevista realizada por Daine Côrtes, da Editora Consulex,
com Elias de Oliveira Motta, Consultor Legislativo do Senado Federal, Advogado e Historiador com
Doutorado em Sociologia da Educação pela Universidade de Sorbonne, conhecido como o pai do Direito
Educacional.
21
Mostrando a importância da educação durante a história da humanidade, Mario Alighiero Manacorda
escreveu a excelente obra “história da educação: da antigüidade aos nossos dias”, na qual pretende
“perseguir o processo educativo pelo qual a humanidade elabora a si mesma, em todos os seus vários
aspectos”. MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação: da antigüidade aos nossos dias,
9 ed. Trad. Gaetano Lo Monaco. São Paulo: Cortez, 2001.
22
MOTTA, Elias de Oliveira. Direito Educacional e educação no século XXI : com comentários à
nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Unesco, 1997, p.75.
23
Ainda sobre o Direito Educacional, destaca-se o livro de Edivaldo Boaventura, “intitulado a educação
a
a
brasileira e o Direito”, dividido em três partes : 1 ) do direito à educação ao direito educacional; 2 ) o
a
regime constitucional da educação; 3 ) os sistemas e a descentralização do ensino. BOAVENTURA,
Edivaldo. A educação brasileira e o Direito. Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997.
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29
Arnoldo Wald, em texto intitulado “a crise e o primado do Direito”,
salienta com lucidez a necessidade do progresso humano no plano jurídico-cultural:
Ao que parece, o homem contemporâneo, como o aprendiz de feiticeiro, conseguiu desenvolver uma tecnologia adiantada e realizar
progressos materiais relevantes, sem cuidar, todavia, da formação
intelectual e moral, esquecendo-se da necessidade de um constante equilíbrio entre a estrutura econômica e técnica e a superestrutura cultural e jurídica. [...]
Durante algum tempo advogou-se um progresso econômico a qualquer preço, entregando-se aos economistas a função de legislar e
concentrando-se o esforço nacional no aumento quantitativo da produção. Olvidou-se, naquela época, a distinção básica entre o progresso e o desenvolvimento, o primeiro meramente quantitativo e o
segundo essencialmente qualitativo, aquele simplesmente material
e este profundamente humano e ético, envolvendo a qualidade de
vida, a boa legislação e a adequada distribuição da Justiça.24
Norbert Rouland, contribuindo para as jornadas temáticas idealizadas e dirigidas por Edgar Morin, escreveu capítulo para a sétima
jornada (as culturas adolescentes), intitulado “iniciação jurídica dos
alunos do segundo grau”, evidenciando a relevância da educação jurídica para a evolução da humanidade. Colhem-se do texto (dentre outras) as seguintes lições:
A educação para o Direito deve aparecer a priori como uma das
tarefas mais difíceis propostas a professores que devem dirigir-se a
adolescentes, na medida em que as regras jurídicas são
freqüentemente sentidas pelos jovens como exteriores às suas vidas, impostas pela “sociedade”. É justamente por isso que a aprendizagem de um mínimo dessas regras parece indispensável, com a
condição de fazer com que os jovens apreendam seu verdadeiro
caráter, que não é - diga-se antes de mais nada - repressivo. Parece necessário partir de valores que são amplamente comuns aos
adolescentes: ... em primeiro lugar, a liberdade ... em segundo lugar,
24
WALD, Arnoldo. A crise e o primado do Direito. Oração proferida em 01.02.83 no TJSP ao receber o Colar
do Mérito Judiciário. In: Revista dos Tribunais nº 617. São Paulo: RT, março de 1987, p. 254-255.
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30
a solidariedade ... em terceiro lugar, a injustiça ... 25
Nada obstante, Rouland sugerir a educação jurídica para os adolescentes, é para os jovens e os adultos que o conhecimento jurídico
adquire mais “utilidade”, dadas as inúmeras situações da vida que exigem conhecimentos jurídicos.
A relevância da educação jurídica para as pessoas em geral é
também ressaltada por Plauto Faraco de Azevedo:
O papel dos cursos jurídicos é de fundamental importância. Neles
formam-se pessoas, cuja atuação tem importância sensível não só
no mundo jurídico, em qualquer de seus setores, como na política,
eis que, dentre os que a ela se dedicam, muitos são egressos dos
cursos jurídicos. A formação jurídica espraia sua influência pelos
três poderes em que se estrutura o Estado. De sua maior ou menor
abertura, derivarão resultados diversos, decisivos à vida social. 26
Em que pese o caráter elitista evidenciado na educação jurídica, no século XIX e na primeira metade do século XX, fato é que desde
os primórdios do Direito lusitano vigente no Brasil até os presentes
dias, os bacharéis em Direito têm ocupado destacadas posições na
vida pública e nas profissões jurídicas.
Logo, vale a lição de Aurélio Wander Bastos, para quem o curso jurídico “é um curso que se explica e se justifica em qualquer sociedade democrática”. Para ele, “o processo de crescimento e expansão
do curso de direito é pouco relevante, guardada a sua qualidade, é
importante para que se resguarde as instituições democráticas, mesmo porque nem todos que se formam em direito vão ser juízes/promotores ou vão ser advogados”. 27
25
Quanto às matérias jurídicas, esclarece Norbert Rouland, será preciso fazer escolhas. O autor sugere
como disciplina fundamental o Direito Constitucional, pois ele determina as regras que delimitam o
comportamento dos homens políticos, geralmente vistos pelos jovens como personagens totalmente
livres de leis. Noções de organização judiciária seriam valiosas para que os jovens entendam a importância da função jurisdicional. Direito penal, direito processual, direito civil (família), direitos humanos,
seriam outras disciplinas cujo estudo. ROULAND, Norbert. Iniciação jurídica dos alunos do segundo
grau. In: MORIN, Edgar. Jornadas Temáticas. A religação dos saberes: o desafio do século XXI.
Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 481-484.
26
AZEVEDO, Plauto Faraco de. OAB – Ensino Jurídico. In: OAB Ensino jurídico. Diagnóstico, perspectivas e propostas. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996, p. 239.
27
BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas – Uma
recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro. In: Ensino jurídico OAB – 170 anos de
cursos jurídicos no Brasil. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1997, p. 52.
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31
Com efeito, o curso jurídico, para além de formar profissionais
habilitados ao exercício dos vários ofícios jurídicos, deve trabalhar para
a conscientização dos cidadãos do papel ativo que devem exercer em
prol da transformação social, disseminando e fortalecendo valores éticos, jurídicos e culturais hauridos e consolidados na vida acadêmica.
A importância da educação jurídica para todos é destacada
por João Baptista Herkenhoff:
Uma visão panorâmica do jurídico é indispensável a uma boa cultura geral. Toda pessoa precisa conhecer seus direitos e deveres, nas
mais diversas situações que o cotidiano oferece. Na vida social,
podemos ser atores nos mais diversos papéis: eleitor, contribuinte,
jurado, inquilino, mutuário do Sistema Financeiro da Habitação,
empregado de uma empresa, membro de um sindicato, titular de
uma caderneta de poupança, consumidor etc. Em todas essas posições somos, de uma forma ou de outra, envolvidos nas teias do
jurídico [...] Pessoas outras, que não estudantes, precisam também
de uma visão geral do Direito, seja por necessidade profissional,
seja como decorrência de uma justa aspiração de crescimento humano e cultural. 28
Assim, pode-se afirmar que (de regra) a oferta de cursos jurídicos (com qualidade) gera benefícios sociais e culturais para a comunidade, pois além de formar bacharéis (futuros profissionais) com perfil
definido em projeto pedagógico, deve fomentar a conscientização das
pessoas sobre os direitos fundamentais e o exercício da cidadania.
Além disso, o curso jurídico deve ser produtor de conhecimentos, como diz José Wilson Ferreira Sobrinho:
A função da universidade não é exclusivamente a de transmitir o
conhecimento existente, como se isto, por si só, justificasse a existência de uma estrutura universitária. Não.
A produção do conhecimento é que deveria ser a preocupação central da universidade. Afinal, é problemático entender uma universidade que não gera conhecimento. Existe, então, apenas para possibilitar a repetição do saber estabilizado? É muito pouco.
28
HERKENHOFF, João Baptista. Direito, caminho para democracia. In: Ética, Educação e democracia.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 47.
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32
O ensino jurídico deveria ser uma fonte de produção de conhecimentos atualizados, sintonizados com o tempo presente.29
A elevação do padrão de escolaridade da população brasileira
(também na educação superior) é questão estratégica, pois como conseqüência há progresso na ciência e na tecnologia, ensejando condições para um progresso libertador (não subordinado). A educação superior deve ensejar qualidade de vida, contribuindo para amenizar a
exclusão social e cultural.
Os desafios da sociedade contemporânea exigem (constante
e crescente) qualificação, para a qual contribui decisivamente a educação superior. Portanto, a responsabilidade das IES não deve ser
limitada à formação, meramente técnica, apenas profissional, como se
isto fosse suficiente para integrar as pessoas ao mundo do trabalho. A
educação hodierna deve produzir novos conhecimentos, fomentando
a capacidade de adaptação a mudanças.
Impõe-se, então, uma abordagem nova para os cursos jurídicos, que propicie aos egressos a capacidade de investigação (aprender a aprender) e o domínio dos modos de produção do saber,
ensejando permanente e contínuo progresso educacional.
O curso jurídico deve educar, o que significa, para Cosme
Damião Bastos Massi & Oswaldo Giacóia Júnior, “cultivar, adestrar, habilitar, ensinar, instruir, formar e elevar o indivíduo e o gênero humano”,
ou ainda:
Educar é, pois, o esforço solidário das gerações humanas, uma atividade por meio da qual o indivíduo é elevado no nível do desenvolvimento cultural coletivo do gênero humano, de modo a poder
integrar como membro a sociedade cosmopolita dos seres racionais, com pleno acesso e disposição sobre o patrimônio cultura da
espécie humana. Já no plano do gênero humano, em seu conjunto,
educar significa desenvolver cada vez mais as disposições naturais
para a humanidade, um processo indefinidamente em aberto, conduzindo o homem progressivamente para um ideal de perfeição que
29
FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Didática e aula em direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 2000, p. 53.
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33
corresponda ao ideal da humanidade. 30
A verdadeira educação decorre da aprendizagem cidadã, ou,
no dizer de Edgar Morin, “a Educação deve contribuir para a
autoformação da pessoa (ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se tornar cidadão. Um cidadão é definido,
em uma democracia, por sua solidariedade e responsabilidade em relação à sua pátria. O que supõe nele o enraizamento de sua identidade nacional”. 31 32
Luis Alberto Warat, em excelente texto, assinala que o aperfeiçoamento sócio-cultural conduz a humanidade rumo a um mundo melhor:
Particularmente penso que o fundamental, na tentativa de superação da crise civilizatória, passa pelo esforço de superação das trivialidades, pelo aprofundamento dos afetos. Nisto reside o amor como
força política.
Apoiando-me nesta dimensão política do amor, é que venho trabalhando, atualmente, a questão da crise do ensino do Direito, porque
penso que a partir da compreensão do amor podem ver-se o fator
desencadeante para a reconstituição do espaço político da sociedade, e recomposição ética dos vínculos sociais, os caminhos da consolidação da democracia e uma integração regional baseada nos
afetos: a formação de uma cidadania regional e de uma prática política dos direitos humanos, condizente com as novas formas de
sensibilidade que nos podem ajudar a crescer ou a destruir-nos.
Sempre pensei que aprender era algo muito maior do que o domínio
30
MASSI, Cosme Damião Bastos e GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Ética e educação. In: SERBINO, Raquel
Volpato [et al] (org.) Formação de professores. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p.
351-355.
31
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. Repensar a reforma. Reformar o pensamento. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2000, p. 65.
32
Como escrevem Gilberto Cotrim & Mário Parisi, a função das instituições de ensino (as escolas) “não se
restringe mais, como antigamente, à modesta tarefa de ensinar a ler, escrever e contar. Seu papel, no
panorama complexo da vida social moderna, é mais amplo e profundo. Suas responsabilidades atuais
são bem maiores. Além de instrumento de formação física, intelectual e moral, cabe-lhe a missão de
promover a integração harmoniosa do educando no seio da comunidade, fornecendo-lhe todos os elementos
para que se possa tornar um fator de progresso individual e social [...] Na opinião dos maiores pedagogos
contemporâneos, os fins da educação não podem se resumir numa preparação mecânica e conformista,
através de um processo de aprendizagem passivo. Ao contrário, esse processo deve ser dinâmico, ativo,
progressivo, isto é, em constante ascenção, como a própria vida.” COTRIM, Gilberto & PARISI, Mário.
Fundamentos da educação: história e filosofia da educação. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 327-328.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
34
de uma informação técnica-legal. A aprendizagem do Direito, como
algo vinculado à dignidade, à solidariedade, à autonomia, à justiça
social. Por certo que para aprender isto é preciso que se estimule
aos alunos para o amadurecimento dos afetos. Assim, ajudando-os
a amadurecer emocionalmente estarão mais abertos para a aceitação das diferenças, a recepção do novo e a produção criativa do
mundo. Porque isto é aprender Direito: ser criativo, aberto ao novo e
predisposto à solidariedade. O resto é crise. 33
Logo, os cursos jurídicos devem comprometer-se com a formação de bacharéis aptos ao exercício de qualquer profissão jurídica,
mas com perfil diferenciado, ultrapassando o limite de meros intérpretes e reprodutores de dogmas (leis).
A educação jurídica deve abarcar as dimensões social, política e econômica dos processos e das transformações a que se submete a sociedade, capacitando os acadêmicos à solução (equacionamento)
de problemas, habilitando-os profissionalmente e preparando-os ao
exercício consciente da cidadania.
A história registra que outrora a educação jurídica foi fundamental para a estruturação do Estado brasileiro, como mostra Mozart
Linhares da Silva no livro “o império dos bacharéis - o pensamento
jurídico e a organização do Estado-Nação no Brasil”, tratando da formação da cultura jurídica no Brasil, a partir da herança portuguesa e da
instalação dos cursos jurídicos brasileiros. O trabalho ressalta a preponderância da educação jurídica para a formação de gerações de
intelectuais estadistas que participaram do processo de estruturação
do Estado-Nação brasileiro.34
De fato, o bacharelismo brasileiro foi fundamental para o progresso nacional, como demonstra Pedro Paulo Filho na obra “o
bacharelismo brasileiro: da colônia à república”, na qual trata da participação dos bacharéis nos episódios decisivos da história do Brasil.35
33
WARAT, Luis Alberto. Confissões pedagógicas diante da crise do ensino jurídico. In : OAB Ensino
jurídico. Diagnóstico, perspectivas e propostas. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996, p. 221.
34
SILVA, Mozart Linhares da. O império dos bacharéis - o pensamento jurídico e a organização
do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003.
35
O livro trata dos seguintes temas : a) o bacharelismo brasileiro; b) fundação dos cursos jurídicos;
c) Ordem dos Advogados do Brasil; d) A inconfidência mineira e os bacharéis; e) a independência
e os bacharéis; f) o império e os bacharéis; g) a abolição e os bacharéis; h) a república e os
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
35
Se ontem os bacharéis contribuíram para a construção do Estado
brasileiro, hoje ainda perdura nobre missão, qual seja, a de implementar os
valores de cidadania afirmados nos textos legais, para que (efetivamente) a
nação brasileira seja de fato justa, livre e soberana.
A educação jurídica, dadas as suas particularidades, pode
cumprir fielmente o desiderato de fomentar os ideais de cidadania,
trabalhando para que os mesmos sejam concretizados na vida diária,
com o respeito aos direitos fundamentais e outros consagrados pela
ordem jurídica.
O PROJETO PEDAGÓGICO E O CURRÍCULO PLENO
Todo curso superior deve estruturar-se em projeto pedagógico,
o qual é submetido ao MEC e devidamente analisado por comissão
verificadora quando da autorização e/ou reconhecimento dos cursos.
Quanto aos cursos de bacharelado em Direito, consta das diretrizes curriculares do MEC que “na composição de seus projetos pedagógicos, os cursos jurídicos devem definir os seguintes elementos”:
a) objetivos gerais do curso, contextualizados em relação às suas
inserções institucional, geográfica e social;
b) condições objetivas de oferta (perfil, titulação e nominata do corpo docente, infra-estrutura) e vocação do curso;
c) modos de desenvolvimento das habilidades de seus alunos para
alcance do perfil de formando desejado;
d) currículo pleno;
e) cargas horárias das atividades didáticas e da integralização do
curso;
f) formas de realização da interdisciplinaridade;
g) modos de integração entre teoria e prática das atividades didáticas;
h) formas de avaliação do ensino e da aprendizagem;
i) modos de integração entre graduação e pós-graduação, quando houver;
bacharéis; i) bacharéis que ampliaram fronteiras; j) bacharéis e advogados na política; k) bacharéis e advogados nas letras; l) bacharéis e advogados no Estado Novo; m) bacharéis e advogados na revolução de 1964.
PAULO FILHO, Pedro. O bacharelismo brasileiro: da colônia à república. Campinas: Bookseller, 1997.
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36
j) modos de incentivo à pesquisa, como necessário prolongamento
da atividade de ensino e como instrumento para a realização da iniciação científica;
k) concepção e composição das atividades do estágio de prática
jurídica;
l) formas de avaliação interna permanente do curso;
m) concepção e composição do programa de extensão;
n) concepção e composição das atividades complementares;
o) regulamento da monografia final;
p) sistema de acompanhamento de egressos;
q) formações diferenciadas, em áreas de concentração, quando
necessárias ou recomendadas; e
r) oferta de cursos seqüências, quando for o caso.
Sobre o currículo pleno, as diretrizes permitem que os cursos
jurídicos definam, “com autonomia, em seus projetos pedagógicos - os
quais, recomenda-se, sejam fruto de uma reflexão e de um esforço
coletivos no âmbito da instituição -, o conteúdo curricular de modo a
atender a três eixos interligados de formação: fundamental, profissional e prática”.
No dizer de Horácio Wanderlei Rodrigues & Eliane Botelho
Junqueira, “um currículo deve ser orgânico, sistematicamente integrado
na organização de seus componentes. O conjunto de disciplinas deve
estar distribuído de forma a propiciar uma visão integrada e integral do
fenômeno jurídico e ao mesmo tempo uma formação profissional voltada ao mercado de trabalho e às necessidades locais e regionais”. 36
Deve o currículo proporcionar formação profissional e humanista
aos acadêmicos, conduzindo-os à compreensão (visão) crítica do fenômeno jurídico, adestrando-os e incentivando-os à incessante e renovada busca pelo conhecimento.
Além da formação profissional, a educação jurídica deve conduzir os educandos ao exercício da cidadania, como enuncia o artigo
36
RODRIGUES, Horário Wanderlei & JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Ob. cit., p. 53.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
37
205 da Constituição Federal. Logo, os cursos jurídicos devem formar
cidadãos (bacharéis) técnica (cientificamente) capacitados para o
enfrentamento das exigências do mundo globalizado, conscientes do
contexto em que vão atuar e da importância de suas ações para o
progresso social.
Nada obstante, o impugnado parecer nº 146/2002 do MEC, o
currículo pleno dos cursos jurídicos deve ser construído de conformidade com as regras contidas na Portaria MEC 1.886/94, compreendendo as matérias fundamentais, as profissionalizantes e as práticas.
Como dito, o currículo pleno deve atender as diretrizes
curriculares do MEC, as quais traçam linhas gerais “para os cursos
jurídicos estruturarem seus projetos pedagógicos de forma autônoma
e criativa, segundo suas vocações, demandas sociais e mercado de
trabalho, objetivando a formação de recursos humanos com elevado
preparo intelectual e aptos para o exercício técnico e profissional do
Direito”. 37
Ainda segundo as diretrizes,
A educação jurídica tem sido excessivamente centrada no fornecimento do maior contingente possível de informações. Todavia, esse
modelo informativo de ensino não capacita o operador técnico do
Direito a manusear um material jurídico cambiante, em permanente
transformação, nem a desenvolver um adequado raciocínio jurídico.
Os cursos deverão, portanto, privilegiar o que é essencial e estrutural na formação dos alunos, tomando-os os currículos como totalidades vivas de uma ampla e sólida formação que expressem o núcleo epistemológico de cada um. E, nesse sentido, as diretrizes
curriculares sinalizam para a necessária flexibilização que permita o
favorecimento à elevação da qualidade.
De início trabalha-se o eixo de formação fundamental, com as
seguintes matérias, dentre outras: Ciência Política (com Teoria do Estado); Economia; Filosofia (geral e jurídica; ética); Introdução ao Direito;
37
As diretrizes “não constituem prescrições fechadas e imutáveis, mas parâmetros a partir dos quais os
cursos criarão seus currículos em definitiva ruptura com a concepção de que são compostos de uma
extensa e variada relação de disciplinas e conteúdos como saberes justapostos ou superpostos e que
não passam de repetição do já pensado”.
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38
Sociologia (geral e jurídica).
Segundo as diretrizes curriculares, “o eixo fundamental tem
por objetivo integrar o estudante no campo do Direito, sob a perspectiva de seu objeto, apontando ainda para as relações do Direito com
outras áreas do saber, pertinentes à compreensão de seu método e
finalidades”, podendo incorporar ainda outras disciplinas, como, p.ex.,
Hermenêutica Jurídica; História do Direito; Metodologia da Pesquisa e
do Trabalho Jurídicos.
A importância da formação fundamental é destacada por Álvaro Melo Filho:
Estas matérias fundamentais conglobam as pré-noções indispensáveis à inteligência das leis e do genuíno sentido delas, configurando-se como pré-requisitos para que os discentes ingressem no ciclo
profissional, porquanto visam a preparar o aluno para o estudo do
Direito, facultando-lhe conhecer seus pressuposos sócio-econômico-político-filosóficos, ensejando-lhe o domínio terminológico da ciência jurídica, a par de colocar o Direito a um tempo, como causa e
efeito das transformações da sociedade. 38
Segue-se o eixo de formação profissional, com, no mínimo, as
seguintes matérias: Direito Administrativo; Direito Civil; Direito Comercial; Direito Constitucional; Direito Internacional; Direito Penal; Direito
Processual; Direito do Trabalho; e Direito Tributário.
Conforme as diretrizes curriculares, “os conteúdos mínimos do
eixo de formação profissional, ao preparem o estudante para aprender
sempre mais, deverão, para além do enfoque dogmático, preocuparse em estimular o discente a conhecer e aplicar o Direito, com
rigorosidade metódica e adequada interlocução com os conteúdos de
formação fundamental”.
Às disciplinas arroladas nas diretrizes como de formação profissional, podem (devem) ser agregadas outras, como p.ex., Direito do
Consumidor; Direito Previdenciário; Direito Agrário; Direito Ambiental;
e Direito Urbanístico.
38
MELO FILHO, Álvaro. Currículos jurídicos: novas diretrizes e perspectivas. In: OAB Ensino jurídico.
Novas diretrizes curriculares. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996, p. 27-28.
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39
As matérias profissionalizantes, diz Álvaro Melo Filho,
“cogentemente estarão ‘contidas em uma ou mais disciplinas do currículo pleno de cada curso’, as quais devem ser ofertadas em quantidade e extensão requeridas pela realidade jurídica do País, constituíndo
o núcleo homogêneo de conhecimentos essenciais e indispensáveis à
adequada formação do futuro bacharel em Direito, nominadas de
‘materias troncales’ nos currículos jurídicos espanhóis”. 39
De acordo com as diretrizes, as matérias de formação fundamental e de formação profissional “podem ser desdobradas ou agrupadas em uma ou mais disciplinas, na forma como dispuserem os currículos plenos dos cursos”.
Ainda conforme as diretrizes, “a oferta das demais matérias,
em disciplinas obrigatórias ou optativas, deve ocupar uma parcela significativa do remanescente da carga horária total do curso, assegurando-se plena liberdade para cada instituição de ensino, tanto na composição de seu elenco quanto na escolha do regime acadêmico (seriado, créditos) adotado”.
Finalmente, trabalha-se o eixo de formação prática, o qual, de
conformidade com as diretrizes, “deve almejar a integração entre a
prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais eixos, além
da implementação, no âmbito da iniciação profissional, das atividades
relacionadas ao estágio de prática jurídica”.
O eixo de formação prática proporcionará aos acadêmicos
integração entre teoria e prática das atividades didáticas e desenvolvimento das atividades do estágio de prática jurídica.
A formação prática objetiva prepara os acadêmicos para o exercício dos ofícios jurídicos nas jurisdições civil, criminal, trabalhista (e outras), com estágio de prática congregando atividades (simuladas e reais) dos vários ofícios jurídicos.
Logo, as matérias práticas devem proporcionar aos acadêmicos condições técnicas para o exercício de qualquer profissão jurídica,
uma vez que, os bacharéis cumpram as exigências de lei (exame de
ordem, concurso público, etc.).
39
Idem, p. 28-29.
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40
Na formação prática destaca-se o estágio de prática jurídica:
As atividades simuladas e reais do estágio de prática jurídica, supervisionadas pelo curso, são obrigatórias e devem ser diversificadas,
para treinamento das atividades profissionais de advocacia, ministério público, magistratura e demais profissões jurídicas, bem como
para atendimento ao público [...] Essas atividades, simuladas e reais, devem ser exclusivamente práticas, sem utilização de aulas
expositivas, compreendendo, entre outras, redação de atos jurídicos e profissionais, peças e rotinas processuais, assistência e atuação em audiências e sessões, visitas relatadas a órgãos judiciários,
treinamento de negociação, mediação, arbitragem e conciliação,
resolução de questões de deontologia e legislação profissional [...]
A finalidade do estágio curricular é proporcionar ao aluno formação
prática, com desenvolvimento das habilidades necessárias à atuação profissional. A concepção e organização das atividades práticas
devem se adequar aos conteúdos dos eixos de formação fundamental, profissional e concentrada, quando houver, trazendo ao discente uma perspectiva integrada da formação teórica e prática. (diretrizes curriculares)
Em síntese, os cursos jurídicos devem contemplar currículo
pleno que ultrapasse o conteúdo mínimo exigido, construído para atender a recomendação de Paulo Luiz Neto Lôbo:
O curso jurídico, para bem desempenhar suas finalidades, deve atingir, de modo interdependente, a tríplice função de: a) formação fundamental e sócio-política, que forneça ao aluno uma sólida base
humanista e de capacitação crítica; b) formação técnico-jurídica, que
o capacite ao exercício competente de sua profissão, reconhecendo
que as disciplinas dogmáticas admitem espaço à reflexão crítica; c)
formação prática, oferecendo-lhes os meios para aplicar os conhecimentos obtidos.40
Além das matérias do currículo pleno, os acadêmicos dos cursos jurídicos devem realizar atividades complementares, as quais “têm
por finalidade propiciar ao aluno a oportunidade de realizar, em prolon40
NETO LÔBO, Paulo Luiz. O novo conteúdo mínimo dos Cursos Jurídicos. In: OAB Ensino jurídico.
Novas diretrizes curriculares. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996, p.11.
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41
gamento ao currículo pleno, uma trajetória autônoma e particular, com
conteúdos extracurriculares que lhe permitam enriquecer o conhecimento jurídico propiciado pelo curso”. 41
Mediante as atividades complementares, os acadêmicos terão
acesso à informações provenientes de fontes diversas (conferências,
cursos, workshops, estágios, monitoria, pesquisa, etc), fortelecendo a
base de conhecimentos jurídicos e sociais.
A INTERDISCIPLINARIDADE E SUA PRÁTICA
Ao tratar dos desafios atuais da educação, escreve Edgar Morin:
Há inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os
saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais
polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários.
Em tal situação, tornam-se invisíveis:
os conjuntos complexos;
as interações e retroações entre partes e todo;
as entidades multidimensionais;
os problemas essenciais.
De fato, a hiperespecialização impede de ver o global (que ela fragmenta em parcelas), bem como o essencial (que ela dilui). Ora, os
problemas essenciais nunca são parceláveis, e os problemas globais são cada vez mais essenciais. Além disso, todos os problemas
particulares só podem ser posicionados e pensados corretamente
em seus contextos; e o próprio contexto desses problemas deve ser
posicionado, cada vez mais, no contexto planetário.
41
As diretrizes curriculares dispõem ainda que as atividades complementares “devem observar o limite
mínimo de 5% (cinco por cento) e máximo de 10% (dez por cento) da carga horária total do curso, devendo
ser ajustadas entre o corpo discente e a direção ou coordenação do curso, a qual tornará público as
modalidades admitidas, de sorte a permitir a sua livre escolha pelo aluno. Atividades podem incluir projetos
de pesquisa, monitoria, iniciação científica, projetos de extensão, módulos temáticos (com ou sem
avaliação), seminários, simpósios, congressos, conferências, cursos livres (como, por exemplo, informática
e idiomas), além de disciplinas oferecidas por outras unidades de ensino e não previstas no currículo
pleno do curso jurídico, não se permitindo o cômputo de mais de 50% (cinqüenta por cento) da carga
horária exigida em uma única modalidade.”
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42
Ao mesmo tempo, o retalhamento das disciplinas torna impossível
aprender ‘o que é tecido junto’, isto é, o complexo, segundo o sentido original do termo.
Portanto, o desafio da globalidade é também o desafio de complexidade. 42
A construção do conhecimento interdisciplinar é orientada por
pressupostos e métodos que se diferenciam diametralmente daqueles
que orientam a construção do conhecimento disciplinar especializado.
Ivani Fazenda, tratando do tema, esclarece que “um projeto
interdisciplinar de trabalho ou de ensino consegue captar a profundidade das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas”:
No projeto interdisciplinar não se ensina, nem se aprende: vive-se,
exerce-se. A responsabilidade individual é a marca do projeto
interdisciplinar, mas essa responsabilidade interdisciplinar, mas essa
resposabilidade está imbuída do envolvimento – envolvimento esse
que diz respeito ao projeto em si, às pessoas e às instituições a ele
pertencentes [...]
O que caracteriza a atitude interdisciplinar é a ousadia da busca, da
pesquisa: é a transformação da insegurança num exercício do pensar, num construir. 43
Para o curso jurídico, a visão ampla e o trabalho
interdisciplinar devem andar juntos para a boa formação acadêmica,
sendo a interdisciplinaridade “de rigor”, como escreve o renomado
educador Paulo Luiz Neto Lôbo:
A interdisciplinaridade é de rigor. Na dimensão interna ela é alcançada
com a integração efetiva das matérias constantes do currículo pleno
e, principalmente, com pesquisa e extensão. É inadmissível que os
professores desenvolvam suas atividades pedagócias com inteiro
desconhecimento ao que realizam seus colegas e aos avanços da
ciência jurídica. A tendência do Direito, inclusive legislado, é a
interdependência multidisciplinar nas matérias legais [...]
A interdisciplinaridade, na dimensão externa ao saber dogmáticojurídico, enlaça-se com matérias que contribuem para a formação
42
43
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. Repensar a reforma. Reformar o pensamento, cit., p. 13-14.
FAZENDA, Ivani C. Práticas interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez, 1991, p. 17-18.
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43
do profissional do Direito, notadamente estimuladores da reflexão
crítica e da atuação político institucional, que a sociedade cada vez
mais dele reclama.44
Na mesma direção aponta José Eduardo Faria:
Os fatos nos mostram que não mais se deve confinar a cultura jurídica aos limites estreitos e formalistas de uma estrutura curricular
excessivamente dogmática, na qual a autoridade do professor representa a autoridade da lei e o tom da aula magistral permite ao
aluno adaptar-se à linguagem da autoridade. Não se trata de desprezar o conhecimento jurídico especializado. Trata-se, isto sim, de
conciliá-lo com um saber genético sobre a produção, a função e as
condições de aplicação do direito positivo.
Como solução alternativa à cultura jurídica vigente, tal conciliação
exige uma reflexão multidisciplinar capaz de desvendar as relações
sociais subjacentes às normas e às relações jurídicas, e de fornecer
aos juristas não apenas novos métodos de trabalho mas, igualmente, informações novas e/ou reformuladas.45
O curso jurídico deve atentar, especialmente, para a integração
e o engajamento dos professores num trabalho conjunto de interação
das disciplinas curriculares, e destas com a realidade social. Tudo visando a superação do ensino fragmentado, propiciando-se formação
integral para os acadêmicos.
No plano docente deve-se valorizar o trabalho em equipe, incentivar a interlocução entre os professores e ensejar o questionando
a respeito do próprio conhecimento e da forma como ele é produzido e
trabalhado.
Do ponto de vista metodológico, os cursos jurídicos devem estar, permanentemente fundados na interdisciplinaridade, com
metodologia pluralista para: a) estabelecer ligação de disciplinas entre
si; b) estabelecer linguagem e orientação comuns; c) integrar o ensino à
realidade; d) superar a fragmentação do ensino promovendo a formação global e crítica dos acadêmicos.
44
NETO LÔBO, Paulo Luiz. Ob. cit., p. 09-10.
FARIA, José Eduardo. A cultura e as profissões jurídicas numa sociedade em transformação. In:
NALINI, José Renato (org.) Formação jurídica. São Paulo: RT, 1994, p. 15-16.
45
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
44
A concretização da interdisciplinaridade pode ocorrer também
nas disciplinas práticas, mediante o estágio curricular de prática jurídica
ou de estágios extracurriculares. A interdisciplinaridade também se estabelece a partir de uma contínua interinfluência de teoria e prática, visando o recíproco enriquecimento.
Pensar e agir pela interdisciplinaridade revela que nenhuma fonte
de conhecimento é completa em si mesma. O diálogo entre os conhecimentos manifestam desdobramentos na compreensão da realidade e
da representação.
Para tanto, os cursos jurídicos devem promover atividades
(como, p.ex., seminários temáticos) a fim de que um mesmo tema seja
tratado sob o enfoque de duas ou mais disciplinas, possibilitando a
instauração de diálogo entre várias disciplinas, buscando a unidade do
saber.
A interdisciplinaridade deve estar presente ainda em projetos
de pesquisa e/ou de extensão, permitindo aos acadêmicos a percepção dos nexos existentes entre as áreas do conhecimento e entre vários ramos do saber jurídico. Propicia-se, assim, amplo entendimento
da realidade social e jurídica, de maneira integral, holística.
Portanto, a interdisciplinaridade deve ocorrer nos cursos jurídicos a partir de uma ótica pluralista das concepções de ensino e de pesquisa, com o confronto entre pontos de vista, em permanente e construtivo diálogo.
O ENSINO DO DIREITO - AULAS TEÓRICAS E PRÁTICAS
A educação jurídica ofertada pelas IES (públicas e privadas)
ocorre (geralmente) mediante aulas teóricas e práticas, seminários,
palestras, debates, estudos em grupo, pesquisas.
Mediante os mais variados recursos metodológicos, pretendese conduzir os acadêmicos à reflexão crítica dos conhecimentos adquiridos e à participação ativa no processo de construção do saber.
A lição de San Tiago Dantas, invocada por Aurélio Wander Bastos, é exemplar, pois “o importante para o estudante de Direito não é
aprender a pensar com o Código, mas é aprender a pensar o Código”:
Modernamente, a reflexão jurídica não pode restrigir-se ao Código,
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
45
à correlação de normas entre si, é preciso pensá-las também em
função da lógica jurídica, da hermenêutica, dos recursos sociológicos e de dinâmica da própria sociedade. A compreensão dogmática
da norma oferece um resultado e a sua compreensão sociológica ou
história ou mesmo sistemática outro efeito de conhecimento do fato
juridicamente relevante. 46
Nos cursos jurídicos, as aulas teóricas devem primar pela
interlocução entre docentes e discentes, afastando-se do monólogo
no qual o professor muitas vezes repete lições pinçadas em doutrina
cristalizada, expondo teorias desfocadas das grandes questões atuais
do ordenamento jurídico.
Maria Isabel da Cunha, em texto intitulado “aula universitária:
inovação e pesquisa”, refere-se à aula universitária como a tradutora
das ambigüidades e dos desafios do ensino superior:
A aula universitária é sempre síntese. Não pode ser vista apenas
numa perspectiva fracionada, própria da visão tecnicista. Quando
nos propomos a estudar a aula universitária estamos entendendo
que ela é o espaço revelador de intencionalidades, carregada de
valores e contradições. Nela é que se materializam os conflitos entre expectativas sociais e projeto de cada universidade, sonhos individuais e compromissos coletivos, transmissão e produção do conhecimento, ser e vir-a-ser. 47
Ao preparar sua aula, o professor deve buscar o despertar do
interesse dos acadêmicos a respeito da disciplina ministrada, vista não
só em si mesma, mas em relação com as demais, presente a
interdisciplinaridade.
José Wilson Ferreira Sobrinho, dissertando sobre “a aula em
Direito”, afirma ser necessário “que se faça a junção da teoria com a
prática sob pena de se plantar confortavelmente nas alturas teóricas,
sem conhecimento de como a teoria funciona na prática”. 48
46
BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas – Uma
recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro. In: Ensino jurídico OAB – 170 anos de
cursos jurídicos no Brasil. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1997, p. 48-49.
47
CUNHA, Maria Isabel da. Aula universitária: inovações e pesquisas. In: MOROSINI, Marília (org.)
Universidade futurante. Campinas: Papirus, s/d, p. 81.
48
FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Didática e aula em direito, cit., p. 65.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
46
Aliás, sobre a aula prática, assinala o autor:
Aula prática, portanto, será aquela que, direta ou indiretamente, utilizar o conhecimento transmitido pela aula teórica, como ponto de
partida ou, se se quiser, como material de trabalho.
Uma aula prática não precisa necessariamente consistir em copiar
uma petição inicial qualquer, de um livro de formulários forense qualquer. Poderá ser uma visita ao Fórum para assistir uma audiência,
por exemplo.49
As aulas práticas (bem como o estágio de prática jurídica) devem pautar-se pela dialética (teoria x prática), ensejando que os acadêmicos percebam a realidade social e jurídica e suas condicionantes.
As aulas práticas e de estágio devem ser realizadas em ambientes próprios (as salas de aula, os laboratórios, os auditórios, as bibliotecas), e também em espaços que extrapolam os muros da IES. Aulas tais proporcionariam aos acadêmicos a aplicação e a transferência
dos saberes adquiridos (construídos) nos bancos escolares.
As aulas representam momentos, nos quais os acadêmicos (futuros bacharéis) terão a oportunidade de (com efetiva supervisão e
orientação docente), experimentar, verificar, comprovar, analisar,
reformular, treinar, praticar, refletir e repensar o papel que lhe caberá
na sociedade.
A relação teoria-prática deve ocorrer em processo contínuo,
para que a teoria fundamente a prática e esta, por sua vez, igualmente
informe e subsidie a teoria, numa dinâmica de construção e constante
reconstrução do conhecimento.
Entretanto, a despeito de os melhores esforços serem empreendidos pelos professores para que as aulas sejam produtivas, a verdade é que nem sempre os estudantes tiram o melhor proveito dos
trabalhos, porque, de regra, não dominam a “arte de estudar”. 50
49
Idem, p. 69.
A advertência é feita por Henrique Cristiano José Matos, para quem “nem sempre o estudante mesmo em nível de pós-graduação! - colhe frutos maduros e satisfatórios de seus anos acadêmicos,
apesar dos consideráveis investimentos financeiros (estudar entre nós é caro e ainda um privilégio de
poucos) e dos esforços pessoais empreendidos. Não são poucos os que, uma vez concluído o curso,
nem querem se lembrar mais daqueles livros, provas, professores exigentes e salas de aula abarrotadas. Consideram o fim dos anos escolares como uma verdadeira libertação. Temos aqui as reações
50
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47
Para Henrique Cristiano José Matos,
Estudar é ir à procura da verdade. Trata-se de um processo dinâmico de ‘saber, buscar, saber de novo e recomeçar para buscar ainda
mais’. A meta é chegar a aprender, a ver com os próprios olhos, e
não por ouvir dizer; a expressar-se com as próprias palavras e a
pensar com a própria cabeça. Forma-se, assim, um sadio espírito
crítico, que sabe ponderar as coisas e avaliá-las em seu verdadeiro
sentido. A pessoa liberta-se paulatinamente das opiniões vultares,
das bazófias, dos simples modismos e de todo posicionamento
inverídico. Um estudo qualificado leva a fundamentar as próprias
sentenças e pareceres - sempre que possível - em ‘fatos’ e ‘evidências’, conhecidas de primeira mão e comunicáveis a outros. Estudar
seriamente faz com que alguém se torne uma pessoa ponderada,
aberta, respeitosa frente a outras opiniões e expressões. O estudo
apresenta-se, deste modo, como um fator significativo de aproximação dos homens e das culturas. 51
Portanto, impõe-se que os acadêmicos contribuam para que
as aulas nos cursos jurídicos (teóricas ou práticas) sejam produtivas, o
que será possível com dedicação e criatividade dos docentes, e pelo
empenho e seriedade dos discentes.
Freqüentemente, observa-se que muitos discentes têm uma visão equivocada da educação jurídica, nomeadamente das aulas, pois
imaginam que é função do professor transmitir-lhes um saber pronto e
acabado, preferencialmente, de tal maneira que o esforço para a apreensão do conhecimento seja o mínimo possível.
No seio acadêmico sempre há os que preferem pautar sua
conduta pela lei do menor esforço, pela qual o mínimo é o máximo que
dão de si em prol dos estudos. Impõe-se a vigilância para que esses
não exerçam influência sobre os acadêmicos realmente interessados e
comprometidos com a educação séria e produtiva.
Mais do que impedir que os despreocupados exerçam influência sobre os interessados, impõe-se uma política de motivação dos acade um estudo mal feito, normalmente porque faltaram uma boa introdução e um correto acompanhamento na ‘arte de estudar’”. MATOS, Henrique Cristiano José. Aprenda a estudar, 3 ed. Petrópolis:
Vozes, 1996, p. 13.
51
Idem, p. 14.
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48
dêmicos, bem assim de nivelamento, a fim de que todos possam usufruir (mais ou menos) os benefícios da educação.
É necessário que tanto discentes quanto docentes saibam
desempenhar seus papéis no cenário educativo. Os docentes ensinando a partir do exemplo. Os discentes aprendendo pelo esforço (individual e coletivo). Todos devem estar comprometidos com a boa qualidade da educação.
Para tanto, o ensino ministrado por intermédio das aulas (teóricas e práticas) revela-se importante, mas a boa educação deve emanar ainda de outras fontes, especialmente da pesquisa e da extensão.
A PESQUISA E O CONHECIMENTO EM CONSTRUÇÃO
“O estudo orienta-se para a pesquisa, ou seja, uma atividade
voltada para a solução de ‘problemas’ através do emprego de processos científicos e procedimentos metodológicos”, lembra Henrique
Cristiano José Matos.52
Tratando dos desafios do ensino superior, Pedro Demo ressalta a pesquisa como fator essencial para a boa formação superior. Para
o educador, “pesquisa significa diálogo crítico e criativo com a realidade, culminando na elaboração própria e na capacidade de intervenção. Em tese, pesquisa é a atitude do ‘aprender a aprender’, e, como
tal, faz parte de todo processo educativo emancipatório”.53
A clareza e a precisão do autor merecem destaque:
Pesquisa funda o ensino e evita que este seja simples repasse copiado. Ensinar continua função importante da escola e da universidade, mas não se pode mais tomar como ação auto-suficiente. Quem
pesquisa, tem o que ensinar; deve, pois, ensinar, porque ‘ensina’ a
produzir, não a copiar. Quem não pesquisa, nada tem a ensinar,
pois apenas ensina a copiar [...]
Pesquisa acolhe, na mesma dignidade, teoria e prática, desde que
se trate de dialogar com a realidade. Cada processo concreto de
pesquisa pode acentuar mais teoria, ou prática; pode interessar-se
mais pelo conhecimento ou pela intervenção; pode insistir mais em
52
53
Idem, ibidem.
DEMO, Pedro. Desafios modernos da educação, 6 ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 128.
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49
forma ou em política. Todavia, como processo completo, toda teoria
precisa confrontar-se com a prática, e toda prática precisa retornar
à teoria.54
Vale lembrar ainda de Ivani Fazenda : “fazer pesquisa significa, numa perspectiva interdisciplinar, a busca da construção coletiva
de um novo conhecimento, onde este não é, em nenhuma hipótese,
privilégio de alguns, ou seja, apenas dos doutores ou livres-docentes
na universidade”.55
Na educação superior, a pesquisa deve ser o instrumento para
a emancipação intelectual dos acadêmicos. Para além de um conhecimento pronto e acabado, tornam-se os pesquisadores (professores e
acadêmicos) sujeitos na construção e na contínua reconstrução do
conhecimento, o qual não pode ser rotulado como verdade absoluta
(eterna e imutável), um saber contingente, maleável.
O destacado educador paranaense, Dirceu Antonio Ruaro,
estuda “os sete saberes necessários à educação do futuro de Edgar
Morin”, em pesquisa produzida no Curso de Doutoramento em Educação na Unicamp, demonstrando a relevância das interrogações para a
construção do conhecimento. Reportando-se ao pensamento do notável pensador francês, escreve Ruaro:
Pôr em prática as interrogações é o grande oxigênio de qualquer
proposta de conhecimento, pois a incerteza mata o conhecimento
simplista e desintoxica o conhecimento complexo. A educação deve
ser a ferramenta capaz de fornecer o apoio indispensável para se
inquirir o conhecimento do conhecimento que se torna, assim, para
a própria educação, um princípio e uma realidade.
[...]
“O dever principal da educação é de armar cada um para o combate
vital para a lucidez” (p. 33). Traça, assim, o grande ponto de discussão: preparar o ser humano para a lucidez. Reside aí o grande problema para a educação do século XXI. Para isso, muitas coisas
precisam mudar. Concepções, paradigmas, idéias, mitos, ideologi54
55
Idem, p. 128-129.
FAZENDA, Ivani C.A . Ob. cit., p. 18.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
50
as. É o papel reservado aos educadores do novo tempo. 56
Também questionando o papel da pesquisa como geradora de
certezas, Maria Isabel da Cunha trata da “relação entre ensino e pesquisa”, asseverando que “pesquisar é trabalhar com a dúvida, que é o
seu pressuposto básico”:
O erro e a incerteza é que gabaritam os caminhos da investigação.
Os conhecimentos construídos são sempre provisórios, não há certezas permanentes. A repetição é punida, mesmo que simbolicamente. O pensamento divergente qualifica e enriquece os processos de trabalho e a emancipação é o que torna um investigador
qualificado.
A indissociabilidade do ensino e da pesquisa terá de ter esta tensão
analisada, sob pena de não tornar-se real. Para pensar o ensino
com pesquisa será preciso reverter a lógica do ensino tradicional e
tentar formulá-lo com base na lógica da pesquisa.57
Confira-se ainda o pensamento de Maria Francisca Carneiro,
para quem “a cidadania gestada na universidade tem como característica mais notável a de poder instrumentalizar-se mais que outras, no
manejo e na produção do conhecimento. Esse tipo de competência
alimenta-se crucialmente da pesquisa”.58
É em tal contexto que se afirma ser a pesquisa fundamental
para os cursos jurídicos, impondo-se que as IES reconheçam que a
educação jurídica deve aliar, em caráter contínuo e permanente, a
pesquisa ao ensino.
Ademais, segundo as diretrizes curriculares,
o curso jurídico deve incentivar as atividades de pesquisa jurídica,
própria ou interdisciplinar. Nesse sentido, a instituição deve propiciar, de forma direta ou mediante intercâmbio: a formação de grupos
de pesquisa com participação discente em programas de iniciação
científica; a integração da atividade de pesquisa com o ensino; e a
56
RUARO, Dirceu Antonio. Os sete saberes necessários à educação do futuro de Edgar Morin:
apontamentos para uma possível reflexão. Texto produzido para o Curso de Doutoramento em
Educação da Unicamp. São Paulo: Unicamp, sem publicação. 2001, p. 07-08.
57
CUNHA, Maria Isabel da. Ob. cit., p. 83.
58
CARNEIRO, Maria Francisca. Metodologia da aprendizagem e pesquisa jurídica. Curitiba: Juruá,
1999, p. 85.
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51
manutenção de periódicos para publicação da produção intelectual
de seus corpos docente e discente.
Também como atividade de pesquisa a ser desenvolvida, obrigatoriamente, pelos acadêmicos dos cursos jurídicos, destaque-se a
monografia final, também chamada trabalho de conclusão de curso
(TCC), a qual, pelas diretrizes, deverá ser realizada por cada acadêmico (individualmente), “sustentada perante banca examinadora, com
tema e orientador escolhidos pelo aluno”.59
Não basta, entretanto, ressaltar a importância da pesquisa sem
efetivá-la na prática diária do processo educativo. Nas atividades docentes, é comum que os professores exijam de seus discentes atividades de pesquisa, com a entrega dos resultados por escrito: os chamados trabalhos.
Sabe-se que muitas vezes tais trabalhos são adquiridos por
encomenda dos discentes, havendo até quem ofereça tais serviços
(escrever trabalhos) em murais de IES públicas e particulares.
Na internet (fonte inesgotável para o plágio de trabalhos acadêmicos) encontram-se sites especializados em disponibilizar (às vezes gratuitamente) monografias sobre os mais variados temas.
Logo, nem sempre a entrega de um trabalho escrito por parte
do acadêmico significa que tenha sido ele o pesquisador, o que pode
passar incólume pelo professor, pois é possível (e acontece) que o
docente (assoberbado) sequer dispense aos trabalhos (dezenas ou
centenas) a devida atenção.
O ideal seria aferir se o discente realmente pesquisou, inquirindo-o sobre os métodos utilizados e questionando-o acerca da
temática pesquisada.
Afirma-se a importância da pesquisa, inclusive por trabalhos
acadêmicos de avaliação parcial das disciplinas dos cursos jurídicos.
Nada obstante, recomenda-se que a pesquisa seja conduzida com responsabilidade e seriedade, a fim de que os acadêmicos tirem o melhor
proveito. Impõe-se que o docente avalie com atenção a atividade de
59
Ainda conforme as diretrizes curriculares, “a instituição deve regulamentar os critérios e procedimentos exigíveis para o projeto, a orientação, a elaboração e a defesa da monografia final, podendo admitir
a orientação e a participação na banca de profissional não docente”.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
52
pesquisa que solicitou.
Atualmente é corrente a reclamação de falta de tempo para
dedicação aos estudos. Nada obstante, convém lembrar que parte da
carga horária das disciplinas dos cursos jurídicos pode ser dedicada a
atividades de pesquisa.
A sala de aula pode servir não só como espaço de lições orais
transmitidas pelos docentes, senão como ambiente propício para a
pesquisa e a construção do conhecimento. P.ex., poderiam os professores (com criatividade e bom senso) incentivar atividades de pesquisa bibliográfica ou jurisprudencial, com posterior apresentação dos
resultados por escrito ou oralmente.
Para tanto, além da sala de aula, podem ser utilizados outros
espaços da IES, em especial a biblioteca, ambiente visitado por muitos acadêmicos somente em épocas de avaliações periódicas (provas
bimestrais, exames finais). A biblioteca guarda tesouros que merecem
a exploração e a descoberta pelos acadêmicos. Deve-se incentivar a
pesquisa como meio de libertação intelectual das pessoas.
Além da pesquisa desenvolvida pelos acadêmicos impõe-se
que os professores fundamentem sua docência na pesquisa, pois assim, muito mais do que a mera reprodução do conhecimento, o saber
transmitido é constantemente construído e reconstruído.
Para tanto, é indispensável que as IES criem e mantenham
Núcleo de Pesquisa congregando seus docentes e discentes, incentivando projetos de pesquisa a respeito de temas previamente eleitos,
conforme linhas institucionais de pesquisa.
Por igual, é fundamental que os cursos jurídicos mantenham
instrumentos de divulgação dos resultados da pesquisa, destacandose revistas especializadas (impressas e/ou eletrônicas) para a publicação de artigos dos docentes e outros profissionais e para a divulgação
de textos de autoria de acadêmicos.
Enfim, mediante o ensino os discentes conhecem os fundamentos
das disciplinas ministradas. Mediante a pesquisa os acadêmicos fortalecem a base de conhecimentos e emancipam-se intelectualmente. Mediante a extensão os cidadãos contribuem para melhorar o meio social.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
53
AS ATIVIDADES DE EXTENSÃO E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
Uma educação jurídica, contextualizada socialmente, deve promover e incentivar atividades de extensão, indispensáveis ao despertar
da consciência social dos acadêmicos, futuros bacharéis em Direito.
As atividades de extensão podem ser as mais diversificadas,
como p.ex.:
a) a prestação de assistência judiciária à população carente, mediante o Núcleo de Prática Jurídica (NPJ);
b) a promoção de eventos (palestras, congressos, seminários,
workshops) destinados à difusão do conhecimento jurídico;
c) a participação em promoções de outras entidades (governamentais e não governamentais) em benefício da comunidade.
Inicialmente, ressalte-se a importância de os corpos docente e
discente participarem da vida comunitária, pois é certo que os cursos
jurídicos devem cumprir uma função social.
O conhecimento criado e reproduzido no âmbito do curso jurídico deve extrapolar os muros das IES, para beneficiar as pessoas
que vivem na localidade onde esteja funcionando o curso.
Ao mesmo tempo em que as atividades de extensão geram
benefícios para a comunidade, os acadêmicos que delas participam
despertam consciência sobre a importância dessa interação social, não
só na perspectiva de aplicação ou aperfeiçoamento do conhecimento
jurídico, mas pela possibilidade de ser socialmente útil.
Segundo as diretrizes curriculares,
A extensão, cuja finalidade consiste em propiciar à comunidade o
estabelecimento de uma relação de reciprocidade com a instituição,
não se confunde com o estágio de prática jurídica e pode ser integrada nas atividades complementares. Ela deve ser promovida de
forma permanente, proporcionando um efetivo envolvimento de seus
docentes e discentes com a comunidade, por meio de programas de
assessoria jurídica, convênios, atividades de formação continuada
e eventos extracurriculares periódicos.
Segundo João Ribeiro Júnior, “o exercício da extensão é a
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
54
manifestação mais concreta do compromisso da universidade com o
contexto social, não apenas como devolução do investimento nela feito, mas como expressão da consciência do destino social do conhecimento que produz”. 60
Dentre as diversas atividades de extensão possíveis em um
curso jurídico, destaque-se a atuação dos docentes e dos discentes
que participam da formação prática mediante os trabalhos do NPJ.
Para as diretrizes a extensão “não se confunde com o estágio
de prática jurídica”, porém, logo em seguida, o mesmo documento oficial refere-se a “programas de assessoria jurídica” como atividade de
extensão.
Em geral, os cursos jurídicos mantêm assistência judiciária gratuita em favor de pessoas carentes, beneficiando os jurisdicionados e
proporcionando condições de os acadêmicos melhorarem sua formação prática.
A contribuição oferecida pelos cursos jurídicos em prol da prestação jurisdicional deve ser ressaltada, pois há localidades, nas quais a
única assistência judiciária gratuita possível é ofertada por IES públicas ou particulares.
Sabe-se que o povo brasileiro está carente (também) de justiça, dado que o acesso ao Poder Judiciário é ainda bastante elitizado,
nada obstante as iniciativas valiosas para a democratização da Justiça, como ocorre com os Juizados Especiais (Civis e Criminais), por
exemplo.
A assistência jurídica às pessoas necessitadas é dever do
Estado, como emana do artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal,
mas a omissão (ausência) estatal deixa à margem do Poder Judiciário
grande parte da população brasileira.
É para suprir tais lacunas que a prestação de assistência judiciária gratuita revela-se com importante atividade de extensão para que
os cursos jurídicos atuem em prol da comunidade, ajudando a construir
uma sociedade melhor.
60
RIBEIRO JÚNIOR, João. A formação pedagógica do professor de Direito. São Paulo : Papirus,
2000, p. 14.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
55
Logo ao ser instalado o NPJ de um dado curso jurídico, a oferta
de serviços poderia restringir-se a uma determinada área do Direito,
com o atendimento, por exemplo, só de casos envolvendo Direito de
Família, ampliando-se depois para outras áreas (defesas criminais, e
outras), havendo disponibilidade de recursos materiais e humanos.
Mas além dessa assessoria jurídica, muitas outras atividades
de extensão podem ser realizadas em prol da comunidade acadêmica
e da sociedade em geral, promovidas pela IES ou por outras entidades
(públicas ou privadas).
O importante é, que durante o curso sejam oferecidas aos acadêmicos condições de participação em atividades de extensão, como
complemento indispensável a uma formação jurídica e humanística
integral.
Desta forma, com a participação ativa na comunidade, os acadêmicos e os professores estarão sendo agentes construtores da cidadania.
O PERFIL DO CORPO DOCENTE
Nilda Teves Ferreira, no excelente livro “cidadania: uma questão
para a educação”, escreve que a atividade profissional do professor,
envolve aspectos políticos, econômicos e sociais e, mais do que
isso, tem uma dimensão ética, cuja legitimidade está ligada a esses
fins. A prática educativa traz em si uma filosofia política, tenha o
educador consciência disso ou não. Trata-se de um problema filosófico de imensa importância, que remete para a necessidade de
se buscar o significado individual e coletivo do próprio trabalho. Na
luta pela efetivação desses fins, educando e educador aprendem a
superar dificuldades reais e a resolver problemas cotidianos que ultrapassam os muros da escola. Elaboram projetos, traçam estratégias de trabalho. A consciência dos fins que orientam sua atividade
coloca o homem diante da possibilidade de identificar em outros
homens os seus próprios propósitos, colocando-os todos em condições de comunhão, no melhor sentido do termo. A partir daí é possível pensar em uma causa comum, como por exemplo tornar humano o mundo, fazer da escola um espaço de construção coletiva de
conhecimento - um espaço de encontros e disputas, mas sempre
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56
de crescimento das pessoas.
61
Ao tratar do perfil do professor de ensino superior, Pedro Demo
salienta a necessidade de o ensino ser fundado na pesquisa, afirmando que o docente deve assumir a “postura de um orientador, definindose como alguém que, tendo produção própria qualitativa, motiva o aluno a produzir também”.62
João Ribeiro Júnior, após constatar que muitas vezes o corpo
docente dos cursos jurídicos é formado por profissionais horistas e
“sem o devido preparo para o exercício do magistério”, aduz,
Já é tempo de mudar essa forma de simplesmente transmitir
conhecimenos ou pretendidas verdades, que torna ilusória a realização dos valores. O ensino do Direito é algo mais do que proferir
lições em torno das suas várias disciplinas. É, sobretudo, despertar
a consciência jurídica, mas não pelo conhecimento do Direito abstrato, dogmático, a-histórico, ineficiente, desconectado da realidade
social na qual vai ser utilizado, e sim pelo conhecimento de um novo
Direito, contextualizado, em consonância com a sociedade concretamente existente. Em suma, um saber jurídico que viabilize as novas práticas exigidas pela modernidade.63
Questionado sobre “que sugestões daria aos professores dos
cursos de Direito a fim de melhorarem a qualidade do ensino jurídico
no Brasil”, respondeu Elias de Oliveira Motta:
Creio que cada professor sabe muito bem que deveria ser melhor a
cada dia e ensinar tanto com suas aulas quanto com seu exemplo
como profissional do Direito. A atualização permanente é indispensável e questão de honestidade intelectual, de postura profissional, pois
o professor não é só um transmissor do conhecimento dos estudantes. Deveria ser formador não só de profissionais competentes, mas
também de seres humanos responsáveis e cidadãos atuantes.64
As IES devem conceder atenção especial ao corpo docente de
seus cursos, pois “há de se repensar o papel do educador”, como afir61
FERREIRA, Nilda Teves. Cidadania: uma questão para a educação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1993, p. 05-06.
62
DEMO, Pedro. Obra citada, p. 130.
63
RIBEIRO JÚNIOR, João. Ob. cit., p. 23-24.
64
OLIVEIRA MOTTA, Elias de. “Século XXI será o século da educação”. Entrevista cit..
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
57
ma o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira ao tratar da postura do educador e do universitário:
Há, em suma, de se repensar o papel do educador. A transmissão
dele reclamada já não se centra no repositório do conhecimento
técnico, senão na experiência de vida. O educador há de ser sobretudo um estimulador, para que o estudante saiba não só se valer do
conteúdo de informações postas à sua disposição, mas também
selecionar dentre elas as mais úteis, uma vez que a multiplicação
de informações, como se tem alertado, pode até ser prejudicial à
inexperiência da juventude.
Muito mais importante, ainda, será a capacidade de o educador transmitir emoções e caráter. Essa, a sua missão primeira e mais relevante, quando se sabe que a estrutura do nosso conhecimento clássico está alicerçada na razão. Nós, os educadores, em regra, somos formados e continuamos fiéis aos esquemas do racionalismo.
Precisamos descobrir, agora, a ‘epistemologia da existência’, o existir
como condição para ver o mundo, que inclui, em primeiro lugar, a
emoção, a cultura do coração. Porque se a razão reduz a força de
descobrir, é a emoção que nos leva a ser originais. 65
Essa reclamada postura do professor de cursos superiores, a
de ensinar pelo exemplo, de estimular o interesse dos acadêmicos
para a vida de estudos, liga-se à ética na educação e à responsabilidade dos docentes em relação aos acadêmicos, como escreve Nestor
Luiz João Beck:
Se eu partir da compreensão de que a vida, o futuro dos meus alunos
é minha responsabilidade, e eu sou responsável por eles, então eu
tenho que me colocar nas suas chinelas, eu tenho que ver as coisas a
partir da perspectiva deles. Eu tenho que ver como é que estão percebendo ou não aquilo que estou apresentando, se estão ou não compreendendo a minha linguagem, se o conhecimento que os desafio a
consquistar, está ou não está nas suas possibilidades, neste momento da história, neste momento da sua evolução pessoal. 66
65
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A universidade: compromisso com a excelência e instrumento de
transformação. In: Revista Forense nº 354. Rio de Janeiro: Forense, março e abril de 2001, p. 415.
66
BECK, Nestor Luiz João. Educar para a vida em sociedade. Estudos em ciência de educação.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 102.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
58
José Wilson Ferreira Sobrinho, após cuidadoso diagnóstico dos
problemas que afligem a docência jurídica traça um tríplice perfil para
um bom professor de direito, levando em conta a qualidade técnica, didática e ética, afirmando que “estes três momentos do docente não
são estanques e não podem ser compreendidos isoladamente”:
Um Professor de Direito deverá ter preparo técnico, didático e indiscutível padrão ético. De nada adiantará ser um excelente técnico se
for um ignorante das coisas da didática e um desqualificado ético.
Tampouco terá valia um professor que saiba tudo sobre didática,
mas não saiba nada de Direito. Como ele ensinará aquilo que não
sabe? Tarefa inviável, sem dúvida. [...]
O que se revela importante é a presença desses três momentos, de
forma conjugada. Eles é que, verdadeiramente, darão suporte para
o professor. 67
Luiz Flávio Gomes, em ensaio sobre a crise no ensino do direito, assim se manifesta:
Professores e faculdades, na atualidade, se querem sobreviver, têm
que saber desenvolver competência, que “é a capacidade do sujeito
de mobilizar recursos cognitivos visando a abordar uma situação
complexa” [...] O novo método de ensino deve partir da situação
complexa para em seguida escolher os meios (os conteúdos, as
teorias, as leis, os princípios etc) adequados para sua abordagem e
solução. Como se vê, é preciso inverter a crença convencional de
que devemos primeiro adquirir conhecimentos para depois usá-los
[...] A distância (abismal) entre a provecta metodologia do ensino
jurídico e a realidade fica mais do que evidenciada quando vemos a
artificialidade de muitos dos problemas jurídicos enfocados em salas de aula ou em concursos públicos [...] Bom professor hoje (especialmente em cursos de graduação ou de extensão universitária) é o
que parte da definição de um problema concreto, reúne tudo quanto
existe sobre ele (doutrina, jurisprudência, estatísticas etc.) e transmite esses seus conhecimentos com habilidade (que requer muito
treinamento), em linguagem clara, direta, objetiva e contextualizada,
direcionando-a (adequadamente) a cada público ouvinte. Além de
67
FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Metodologia do ensino jurídico e avaliação em direito, cit., p. 39-40.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
59
tudo isso, ainda é fundamental administrar o controle emocional (leiase: deve estar motivado para transmitir tudo que sabe, e um aluno
que deve ser motivado para aprender).68
Enfim, a lição de Maria Francisca Carneiro:
Cabe lembrar que qualquer professor, ao executar a sua tarefa de
educar, tem sempre um conjunto de expectativas - e deve realmente
ter e mantê-las - que transcendem a mera transmissão de informações acadêmicas e didáticas. Além do aprendizado puro e simples,
o professor e a escola estimam que os alunos sejam interessados,
disciplinados, que estejam aptos a trabalhar em grupos, que sejam
sociáveis e cooperativos entre si, para com o professor e para com
a escola; enfim, que apresentem prontidão cognitiva, afetiva e
psicomotora.
Quanto à absorção dos conhecimentos, uma das expectativas mais
comuns do professor em relação aos alunos, é a transferência dos
conteúdos para outras situações, em termos de aplicação prática e/
ou associações teóricas. Como se vê, essas expectativas são bastante amplas e seu significado é impregnado de axiomas. Na verdade, o que as instituições e os professores podem almejar dos alunos
é a internalização desses valores e o compromisso com eles, ou
seja, uma postura ética, uma maneira de estar no mundo, advinda
da percepção que os próprios educandos têm, elaborada a partir da
parcitipação e vivência na cultura, acrescida da capacidade de promover transformações. 69
Nada obstante, essas valiosas lições, a realidade que se verifica nos cursos jurídicos é a de que os professores, de regra, não têm
formação para a docência. São advogados, magistrados, promotores
e outros profissionais do Direito, pinçados de seus ofícios e submetidos à docência jurídica, por vezes sem o menor preparo didático-pedagógico.
Obviamente o exercício das profissões jurídicas representa experiência profissional importante para o exercício da docência, dado
68
GOMES, Luiz Flávio. Crise no ensino: ser diplomado não significa ser capacitado. In: Revista Consultor Jurídico, 08/07/2002. http://par.ad.uol.com.br
69
CARNEIRO, Maria Francisca. Reflexões sobre a cultura, educação e currículo (ou um resgate idealista). In: Ob. cit., anexo 1, p. 95.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
60
que os conhecimentos dos docentes, neste caso, não se limitam à teoria, senão são exercitados na prática diuturna da advocacia, da magistratura ou de outra função jurídica.
Quanto à formação acadêmica, é certo que os programas de
pós-graduação em Direito, geralmente, têm disciplinas voltadas para o
ensino jurídico. Mas é verdade, também, que o acesso dos profissionais
em programas dessa natureza ainda é bastante restrito, em especial
em cursos stricto sensu (mestrado e doutoramento).
Destarte, sem embargo da boa vontade dos professores em
desenvolver uma docência séria e responsável, o fato é que a ausência
de conhecimentos didáticos e pedagógicos é fator que limita o desempenho docente.
A lacuna deve ser preenchida pelas IES, as quais devem manter política de capacitação docente, inclusive com treinamento didático-pedagógico mediante cursos, seminários, conferências, e outros
eventos voltados à boa qualidade dos serviços ofertados.
Os professores, por seu turno, além de sólido conhecimento
jurídico, em especial na(s) disciplina(s) ministrada(a), devem buscar
no saber pedagógico o indispensável apoio para a docência responsável e produtiva.
O trabalho dos docentes deve estar voltado para a integral formação dos discentes, impondo-se aliar o ensino à pesquisa e à extensão. O ensino, por seu turno, deve romper com o modelo tradicional da
aula expositiva, ainda que esta tenha seu intrínsico valor.
Além da exposição em sala de aula, que se constitui no fundamento do ensino jurídico no Brasil, são válidos outros métodos de
estudos, os quais devem ser fomentados pelos docentes. Para as disciplinas, propriamente jurídicas, um bom exemplo é o estudo de casos,
podendo o professor incentivar a análise jurisprudencial acerca dos
temas objeto das disciplinas.
Enfim, é importante que os docentes tenham consciência da
importante função que desempenham, buscando desenvolver seu trabalho com responsabilidade e criatividade, ensinando pelo exemplo,
como ressaltam os estudiosos antes citados.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
61
Mais do que um repetidor de lições cristalizadas, o professor
deve ser um orientador dos estudos dos acadêmicos, e estes, por sua
vez, devem contribuir para que o trabalho dos docentes seja, de fato,
profícuo.
O PERFIL DO CORPO DISCENTE
O educador e magistrado Sálvio de Figueiredo Teixeira, formulando a questão “o que se espera do universitário?”, escreve:
Consciência universitária, uma vez que a parcela dos privilegiados
que alcança os bancos da Universidade tem um compromisso com
aqueles que ficaram à beira do caminho [...]
Participação, na medida em que a Pátria é uma construção diuturna,
a cada dia subtraída pelas defecções, omissões, descaso ou desalento, mas também das ações positivas individuais e coletivas. Cada
gesto positivo acrescenta um saldo à sua edificação.
Cobrança, porque o envolvimento em um projeto nacional legitima o
estudante a cobrar de seus dirigentes uma postura compatível com
as exigências da nacionalidade. 70
As novas demandas da sociedade contemporânea exigem profissionais que saibam articular com organicidade competências científicas e técnicas, inserindo-se politicamente e agindo eticamente na vida
pessoal e no mundo negociável.
A formação dos operadores do Direito deve integrar-se em visão holística da realidade atual, emanando sólida formação técnicocientífica, capacidade de análise, interpretação e reflexão crítica sobre
a essência multidisciplinar do Direito.
Os egressos dos cursos jurídicos devem desenvolver habilidades de manipulação dos referenciais teóricos básicos, amealhados
pela familiaridade com os fundamentos que sustentam cada área do
conhecimento.
Deverão estar aptos a transitar em múltiplas direções e habilitados a gerar e a superar desafios, aperfeiçoando aptidões para o exercício profissional qualificado e polivalente, comprometido com a socie70
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Ob. cit., p. 417.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
62
dade em construção, procurando fazê-la mais justa e fraterna.
Assim, o curso jurídico não pode ser visto só como uma instância de transmissão e aquisição de informações, senão deve ser encarado como um locus de construção e produção de conhecimentos, tendo
por meta a formação global (holística) dos acadêmicos, sujeitos ativos
do processo educacional.
O aprender e o recriar (aprender a aprender) impõe-se como
ideal pedagógico diante dos desafios da sociedade contemporânea. A
educação não deve esgotar-se nos métodos tradicionais de reprodução do saber.
Para tanto, o curso jurídico deve transpor os estreitos limites
da mera profissionalização, propiciando a aquisição de competências
de longo prazo, com o domínio de métodos analíticos, de códigos e de
linguagens.
Toda atividade (profissional) humana ocorre em uma dada realidade social, impondo-se a educadores e educandos (em cursos jurídicos) compreender as condicionantes socio-econômicos e técnicocientíficos do exercício das profissões jurídicas.
A necessária dimensão política e humanística no processo de
formação dos operadores do Direito deve propiciar posturas éticas,
dirigidas à concretização do princípio dignidade da pessoa humana,
direito natural e fundamento da cidadania.
No tocante à formação profissional, as atividades de ensino,
de pesquisa e de extensão devem ser indissociáveis, pois o ensino
com pesquisa dá o domínio dos instrumentos mediante os quais as
profissões jurídicas são exercidas, e o ensino com extensão oportuniza
que a comunidade acadêmica interaja com a sociedade civil.
O curso jurídico deve, pois, preparar os futuros operadores do
Direito para o exercício de profissões jurídicas que exijam dos profissionais capacidade de análise, de interpretação, de reflexão e de crítica sobre a essência multidisciplinar do Direito e suas conseqüências sociais.
Os cursos jurídicos devem almejar que seus egressos estejam aptos ao exercício de qualquer profissão jurídica, uma vez preenchidos os requisitos legais específicos (exame de ordem para a advocacia e concurso público para a magistratura).
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63
Ainda que os bacharéis não exerçam ofícios jurídicos, o estudo
do Direito propicia a profissionais de outras áreas conhecimento amplo
sobre a engrenagem social moldada e movida pelo ordenamento jurídico.
Sabe-se que o valor do conhecimento jurídico é valioso em algumas carreiras, sendo inegável a importância que teve o bacharelismo
brasileiro, isto é, “a influência do Bacharel na organização política, econômica e social”. 71
Ainda que, atualmente, o cunho profissionalizante tenha sido
acentuado nos cursos jurídicos, estes devem almejar de seus discentes
as seguintes características em sua futura vida profissional:
a) permanente formação humanística, técnico-jurídica e prática, indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do Direito e
da sociedade;
b) conduta ética de responsabilidade profissional e de responsabilidade social, compreendendo a causalidade e finalidade das normas
jurídicas, lutando pela dignidade humana e em prol do aprimoramento social;
c) capacidade de apreensão, transmissão crítica e produção criativa do Direito mediante a pesquisa e a reflexão;
d) capacidade para equacionar problemas e buscar soluções harmônicas com as demandas individuais e sociais;
e) capacidade de desenvolver formas judiciais e extrajudiciais de
prevenção e de solução de conflitos individuais e coletivos;
f) capacidade de atuação individual, associada e coletiva no processo comunicativo próprio ao seu exercício profissional;
g) domínio da gênese, dos fundamentos, da evolução e do conteúdo do ordenamento jurídico vigente;
h) consciência dos problemas de seu tempo e de seu espaço. 72
Para que os egressos dos cursos jurídicos possam atingir tais
71
Para Pedro Paulo Filho, “sem o Direito, sem o jurista, sem o advogado, não há desenvolvimento”.
PAULO FILHO, Pedro. O bacharelismo brasileiro: da Colônia à República. Campinas: Bookseller,
1997, p. 12-15.
72
Segundo as Diretrizes Curriculares do Curso de Bacharelado em Direito - MEC.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
64
desideratos, impõe-se fomentar nos discentes o desenvolvimento às seguintes habilidades:
a) leitura, compreensão e elaboração de textos e documentos;
b) interpretação e aplicação do Direito;
c) pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina
e de outras fontes do Direito;
d) utilização escorreita da linguagem, com clareza, precisão e propriedade, fluência verbal e escrita, riqueza de vocabulário;
e) desenvolvimento do raciocínio jurídico, da argumentação, da persuasão e da reflexão crítica;
f) fortalecimento do senso de julgamento e de tomada de decisões;
g) domínio de tecnologias e métodos para melhor compreensão e
aplicação do Direito. 73
Nada obstante a enunciação desses ideais e propósitos, a realidade que se apresenta, muitas vezes, é de boa parcela de acadêmicos desinteressados da vida de estudos, desejando tão só concluir o
curso da maneira mais fácil possível, sem um efetivo comprometimento
com a apreensão e a construção do conhecimento.
Ainda que tal realidade não se apresente absoluta, pois há
acadêmicos realmente dedicados, o fato é que por vezes aqueles que
prestam processo seletivo (vestibular ou outro) nem sempre sabem
realmente o que desejam, principalmente os acadêmicos com pouca
idade e parca experiência.
Muitas vezes as pessoas têm uma visão equivocada do estudo do Direito, pois não sabem que para o bom aproveitamento do curso é imperiosa a dedicação verdadeira, a disposição e a disciplina em
prol de uma vida de estudos, a postura ética e comprometida com o
crescimento (intelectual, cultural) individual e coletivo.
Atualmente, vive-se um paradoxo: jamais a humanidade teve
tanto acesso ao conhecimento, pelos mais diversos meios, impressos,
televisivos, radiofônicos, eletrônicos (internet), e outros. Entretanto, o nível
73
Conforme as Diretrizes Curriculares do Curso de Bacharelado em Direito - MEC.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
65
cultural da juventude encontra-se em descompasso com a evolução
tecnológica e a profusão do saber.
A mídia, nomeadamente por meio da televisão (dos canais abertos), incute nos jovens os superficiais e descartáveis valores do capitalismo: o modismo e o consumismo desenfreado; o afrouxamento da ética e a deturpação dos costumes; dentre outros.
É comum que os jovens iniciem na educação superior com
fraca base cultural e ausência de um projeto de vida. Por vezes os acadêmicos adentram no curso jurídico por simples imposição de familiares, e por outras imaginam que a educação jurídica é caminho fácil para
um futuro sucesso profissional, principalmente no tocante ao desempenho financeiro.
No mais das vezes, as pessoas ignoram os desafios que irão
enfrentar para concluir com êxito seu curso de Direito, olvidando-se de
desafios ainda maiores, como a inseração e a afirmação profissional
no mercado de trabalho que lhes espera após a formatura.
Impõe-se a transformação dessa realidade. É preciso que as IES
busquem conscientizar a comunidade acadêmica (tanto discente quanto
docente) acerca dos verdadeiros desideratos da educação jurídica.
É imperioso que se faça um trabalho de esclarecimento, até
mesmo vocacional, a fim de que os pretendentes à educação jurídica
saibam (ou ao menos tenham uma noção) dos possíveis desafios que
lhes reserva a trajetória entre o ingresso e a conclusão do curso.
Enfim, é indispensável que os acadêmicos, para além de formação técnica- profissionalizante, sejam preparados para o
enfrentamento da vida, despertando-se-lhes valores éticos, sociológicos, filosóficos, tudo ensejando que sejam agentes de transformação
social, verdadeiros construtores da cidadania.
CONCLUSÃO
Questionando o papel dos cursos jurídicos, escreve Luiz
Fernando Coelho:
A vitória da concepção dogmática do direito é também o triunfo do
ensino jurídico profissionalizante. Para que juristas, conhecedores
daquilo que outrora pretendeu ser “ciência” do direito, quando um
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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técnico em processamento de dados é muito mais útil para o acesso à legislação e à jurisprudência? Em que a leitura de Kelsen, Hart,
Clóvis ou Reale pode auxiliar o profissional do direito, seja ele advogado, magistrado, promotor ou delegado, a ser mais eficiente? A
otimização profissional, a competição em termos de resultado econômico, passa a ser o denominador comum da atividade pedagógica ligada ao direito. O repensar do ensino jurídico resgata assim a
figura algo desgastada do professor dogmático, aquele que comenta os textos legais de maneira brilhante, mas sem aprofundar-se na
mínima exigência de cultura doutrinária, esse mesmo professor cujas
aulas não passam de comentários tendo por tema sua experiência
profissional no próprio escritório de advocacia ou no cargo público
ou emprego; e as velhas e mesmo as novas faculdades de direito
tendem a privilegiar os estágios profissionais, em escritórios-modelos na sala de aula.74
É fato incontestável que se vive hoje sob a égide do mercado,
o qual impõe às IES certas demandas mercadológicas, exigindo a formação de profissionais (bacharéis) aptos ao exercício dos vários ofícios decorrentes dos cursos superiores.
Nada obstante tal realidade, a educação completa (holística) deve
transpor os limites do mero adestramento técnico, impondo-se resgatar
a formação humanística e a consolidação dos valores éticos dos acadêmicos dos cursos superiores, em especial dos cursos jurídicos.75 76
74
COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro: transmodernidade, direito, utopia. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2001, p. 58.
75
Sérgio Nogueira Reis cita conceito de holística de Pierrre Weil : “Holística vem do grego ‘holos’, que
significa ‘todo’, ‘inteiro’. Holística é, portanto, um objetivo que se refere ao conjunto, ao ‘todo’, em suas
relações com suas ‘partes’, à inteireza do mundo e dos seres”. REIS, Sérgio Neeser Nogueira. Uma
visão holística do Direito: manual prático para o jurista do terceiro milênio. Belo Horizonte:
Nova Alvorada, 1997, p. 24.
76
Ainda sobre os sete saberes necessários à educação do futuro de Edgar Morin, escreve Dirceu Antonio
Ruaro: “A educação do futuro tem a tarefa de articular, unir as realidades de forma multidisciplinar,
transversal, multidimensional, transnacional, global e planetária, o que até agora vinha sendo feito de
maneira desarticulada, disciplinar e compartamentalizada [...] Ao organizar o conhecimento é preciso
situar as informações e os dados em seu contexto para que adquiram sentido. O contexto, envolve o
global, que é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional. É
necessário entender as partes para recompor o todo. Além disso, unidades complexas como o ser
humano ou a sociedade são multidimensionais. A nova educação precisa levar em conta esse fator. O
conhecimento pertinente deve reconhecer o caráter multidimensional e perceber o processo de interretroação permanente entre as partes que compõe um todo.” RUARO, Dirceu Antonio. Ob. cit., p. 09-10.
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A educação jurídica deve ser realizada mediante atividades integradas de ensino, pesquisa e extensão. No ensino, as disciplinas devem ser ministradas em abordagem interdisciplinar, proporcionando aos
discentes visão ampla do Direito e de suas relações com as outras ciências sociais.
Além disso, é válida a proposição de uma abordagem holística
do Direito, como propõe Sérgio Nogueira Reis no excelente livro “uma
visão holística do Direito: manual prática para o jurista do terceiro milênio”, no qual o autor relaciona o Direito com a Religião, com a Arte,
com a Natureza e com a Filosofia, dentre outras possibilidades. 77
A multiplicidade de dimensões pelas quais manifesta-se o fenômeno jurídico indica que a formação dos Bacharéis deve ser necessariamente aberta. O conhecimento jurídico deve ser plural. O Direito
deve ser conhecido, a partir de disciplinas articuladas entre si, prevalecendo a interdisciplinaridade.
Valiosa a mensagem de Luiz Edson Fachin, dirigida aos calouros e acadêmicos de Direito:
É o momento de fazer subir ao palco da vida três dimensões do
exercício profissional pelo bacharel em Direito.
Numa primeira angulação emerge a dimensão ética, em face da qual
por isso mesmo esse tempo é realmente singular e sem par, porque
esta década redesenhou o estatuto ético das carreiras jurídicas e
trouxe para o primeiro plano da cena pública a função social do exercício profissional.
[...]
Precisamente desse viés é que emerge a dimensão política do exercício profissional. O operador do Direito não convive com a cegueira
social, não se cala diante das injustiças, nem pode sucumbir à desesperança.
[...]
77
Idem, p. 47-79.
FACHIN, Luiz Edson. Aos calouros e acadêmicos de Direito. In: O Estado do Paraná, Direito e
Justiça. Curitiba: O Estado do Paraná, 27/04/2003, p. 2.
78
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68
Ao lado das duas dimensões, a ética e a política, se aninha também,
num terceiro e último patamar, o horizonte jurídico do exercício profissional, o qual conjuga nos verbos ser e agir, consciência e solidariedade. O jurídico que está no sentido e na razão de ser do Direito
mostra ser imprescindível o apuro técnico do conhecimento e a atilada formação instrumental. 78
O momento exige a reflexão e a crítica (construtiva), o planejamento e a ação. Impõe-se a vigilância e o trabalho para que a qualidade
dos cursos jurídicos não seja aviltada diante de visão equivocada
(distorcida) da educação jurídica.
Os estudantes de hoje (futuros bacharéis em Direito) integrarão os quadros das profissões jurídicas, dentre elas: a) a magistratura
e a segurança pública (agentes do estado); b) o ministério público (agentes defensores da sociedade); c) a advocacia pública ou particular,
atividade indispensável à administração da justiça (artigo 133 da Constituição da República).
Ou seja, os operadores jurídicos de amanhã (atuando em qualquer dos ofícios jurídicos) necessitam de sólida formação técnica (profissional e prática), além de formação humanística e ética, pois serão
eles os administradores da justiça.
Além disso, observando o público que busca a educação jurídica na atualidade, verifica-se a presença de pessoas que não têm a
pretensão ao exercício de qualquer profissão jurídica após a conclusão do curso, pois já estão consolidados no mercado de trabalho por
outra carreira, como: a) empresarial; b) médica(s); c) de engenharia;
d) do funcionalismo público; e) da classe política; dentre outras.
79
A doutrina brasileira diverge em relação ao problema de o ordenamento jurídico nacional ter ou não
incorporado a doutrina do numerus clausus. Sem a pretensão de indicar uma extensa lista de escritores
apresentamos apenas dois expoentes do direito civil: Washington de Barros MONTEIRO afirma que:
“Outros direitos reais poderão ser ainda criados pelo legislador, ou pelas partes desde que não contrariem princípios de ordem pública”. (Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1982, p.12. v. 3: Direito
das Coisas.). A possibilidade de terceiros criarem direitos reais parece superar a doutrina do numerus
clausus e sugere que o professor adotou o numerus apertus em matéria de direitos reais. De outro lado,
Orlando GOMES, assevera: “O Proprietário da coisa pode constituir apenas os direitos reais especificados na lei. Não tem a liberdade de criá-los, devendo conformar-se com os tipos regulados legalmente e
com conteúdo que a lei lhes atribui. Outras espécies que não as definidas na lei são inadmissíveis”.
Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1991, p. 10.
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Nada obstante, mesmo aqueles que não pretendem exercer ofícios jurídicos anseiam por uma educação jurídica de boa qualidade,
sendo certo que, a despeito de voltada à formação profissional e técnica, a educação jurídica pode e deve contribuir para o melhoramento da
base cultural das pessoas, despertando-lhes os valores da cidadania.
Enfim, lembre-se que a construção de uma sociedade melhor,
pluralista e democrática, justa e fraterna, como enuncia o texto
constitucional brasileiro, é responsabilidade de todos.
Para tanto, a educação jurídica serve como instrumento fecundo
para o despertar da consciência cidadã e para fomentar o trabalho em
prol de uma sociedade melhor.
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OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ORDEM
CONSTITUCIONAL
ALVACIR ALFREDO NICZ
PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL NOS CURSOS DE
GRADUAÇÃO & PÓS-GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARANÁ & DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ.
MESTRE & DOUTOR EM DIREITO PELA FACULDADE DE DIREITO DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP).
RESUMO
O artigo trata da origem dos direitos fundamentais, a partir das revoluções
americana e francesa, ressaltando a inclusão dessa categoria em textos
constitucionais e em declarações de direitos. Ressalta o autor que atualmente
os direitos fundamentais englobam direitos de liberdade, sociais, econômicos,
culturais, os quais interessam a todos os membros da sociedade. O texto
assinala que tais direitos são direitos fundamentais por constarem na
Constituição, gozando de uma supremacia constitucional.
ABSTRACT
The article is about the origins of the fundamental rights, since the American
and French revolutions, pointing to the inclusion of this category in Constitutional texts and in Bill of Rights. The author says that, actually, the fundamental rights include the liberty, social, economic, and cultural rights, the
ones that interest to the members of a society. The text says that such rights
are fundamental rights because they are in the Constitution, which gives
them the Constitutional Supremacy.
PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; direitos fundamentais;
direitos do homem; declarações de direitos.
“O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje,
não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los”.(Norberto Bobbio).
A utilização da expressão “direitos fundamentais” é bastante
recente. Por muitos anos as expressões predominantes foram “direitos
do homem”, “direitos naturais” ou até “direitos inatos” ou também “direitos originários”.
Das revoluções americana e francesa até o início do século
XX, quando do surgimento do Estado Social, também chamado de Estado Bem Estar, Estado Intervencionista ou, como preferem alguns, EsRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
76
tado Providência, isto é, quando surgem as Constituições chamadas
sociais da 1ª Grande Guerra Mundial, a linguagem corrente dentre os
doutrinadores, bem como, no texto das Constituições da época, era a
usual utilização das expressões direitos do homem, direitos naturais ou
direitos inatos. Estes direitos eram os que o homem tinha por força da
própria natureza, daqueles que se opunham ao Estado, daqueles que
quanto menos o Estado intervisse mais respeitados seriam. Eram direitos decorrentes do próprio direito natural, produtos da razão, que a sua
inclusão em textos legais ou mesmo nas Constituições limitar-se-iam a
reconhecer e garantir.
A partir da 1ª Guerra Mundial, de 1914 a 1918, as Constituições elaboradas sob uma nova concepção estatal, as Constituições
denominadas sociais, como a do México de 1917, a alemã de Weimar
de 1919, a da Espanha de 1931, a de Portugal de 1933, a nossa de
1934 e após a 2ª Guerra Mundial com as Constituições da Itália de
1947, da Alemanha Ocidental de 1949, a da Venezuela de 1961 e outras como as mais recentes de Portugal de 1976, a da Espanha de
1978, passaram a utilizar a expressão “direitos fundamentais”. É esta
a expressão que foi adotada pelo constituinte quando da elaboração
do nosso texto vigente de 1988.
É importante salientar que a alteração ocorrida já naquela época se produziu por duas razões. A primeira, face a modificação nas
concepções filosóficas e ideológicas a respeito dos direitos do homem.
As concepções jusnaturalistas que antes se ligavam aos direitos do
homem deixaram de ser aceitas com passividade, bem como, outras
surgiram. A segunda, por decorrência de que desde o início da século
XX passou-se a visualizar e a tomar consciência que ao lado destes
direitos provenientes da própria natureza, outros direitos haviam decorrentes da vida em sociedade, da vida cultural, da vida econômica,
etc. e que sobre eles se projetavam certas condicionantes do próprio
país. Verificou-se, ainda, conscientemente, que era necessário, muitas vezes, os préstimos do Estado para que intervisse e agisse de
forma positiva de modo a atender aos anseios e desejos da sociedade
na busca de melhor proporcionar o bem-estar social. Não bastava peRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
77
dir ao Estado que nada fizesse, muitas vezes era necessário pedir ao
Estado que muito fizesse, mesmo no domínio da liberdade.
Além do mais, os documentos da época do Estado Liberal,
como as Constituições e as Declarações de Direitos limitavam-se a
enumerar um elenco pequeno de direitos, como a mais conhecida delas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da França de
1789, que continha somente 17 artigos, enumerando em regra, apenas
a liberdade, a segurança e a propriedade. As Constituições posteriores, as do século XX, muitas delas vigentes ainda nos dias de hoje, trazem uma lista de direitos, extraordinariamente, extensa que, em paralelo, aumenta também o número de artigos que tratam de tais matérias.
No século XIX, os direitos do homem eram, por definição, os
direitos do homem individual. Já no século XX e também, neste primeiro início de século, os direitos fundamentais, agora sob esta nova denominação, não são apenas direitos individuais, mas também, direitos
de grupos, de sindicatos, de instituições, dos consumidores, etc., enfim direitos da coletividade.
Desta forma, a expressão “direitos fundamentais” , que hoje, é
acolhida pela doutrina, substituindo a expressão “direitos do homem”,
não se coloca apenas diante dos princípios do direito natural, mas
alarga, amplia o seu acolhimento de modo a agasalhar as exigências
dos homens atuais, individualmente, e dos grupos, ou seja, da sociedade no seu todo perante o Estado e, porque não dizer, perante a própria sociedade civil ou ainda a comunidade internacional.
Os direitos fundamentais correspondem hoje aos direitos da
tradição liberal clássica, acrescidos dos novos direitos, os econômicos,
os sociais, os culturais, etc. Estes são direitos fundamentais por constarem na Constituição, na Lei Magna de um país. São fundamentais
por terem uma relação direta com a Constituição, por gozarem de uma
supremacia constitucional, que decorre do fato de se encontrarem
estabelecidas no âmbito do próprio texto da Lei Maior. São direitos
fundamentais por estarem, constitucionamente, consagrados dentre os
direitos dos membros da comunidade política, frente ao Estado. São
direitos que se contrapõem entre a pessoa, o indivíduo e o grupo de um
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78
lado e o Estado do outro.
Tais direitos fundamentais, somente existem, quando há distinção entre a pessoa, individual ou institucionalmente, e o Estado. Para
que existam estes direitos necessita-se que ocorra uma margem de
autonomia tanto da pessoa quanto da sociedade civil perante o Estado.
Se não há, portanto, autonomia nem da pessoa e nem da sociedade
civil perante o Estado, ou ainda se a liberdade se confundir com a autoridade, seja sob qualquer argumentação de ordem filosófica, ideológica
ou qualquer outra não haverá direitos fundamentais.
Assim, não haverá direitos fundamentais em regimes absolutista ou totalitário, onde a pessoa humana não é o ponto capital de
atenção da entidade estatal.
Os direitos fundamentais do século XIX significavam os direitos do homem, ou mais propriamente, estes últimos, traduziam os direitos de liberdade, como elementos de relação contra o Estado absoluto,
contra as formas corporativas que perduraram até a Revolução Francesa, contra enfim aos interesses que serviam a classe burguesa. Estes
direitos de liberdade (liberdade de imprensa, de reunião, de expressão
e outras) que serviam a classe burguesa tem sido tentado pelos autores
marxistas e também pelos não marxistas a associar os direitos, constitucionalmente, declarados no século XIX, com direitos ligados a determinada classe. Esses direitos de liberdade correspondentes aos interesses da burguesia se contrapunham a situação vivida à época de exploração e de opressão em que viviam os trabalhadores.
A verdade é que se tais direitos apareceram conexos com os
interesses de certa classe dominante, uma vez declarados, garantidos, eles adquiriram autonomia, vieram pois, servir não apenas aos
interesses daquela classe, como em especial a todas as classes. A
liberdade de associação não serviu apenas a burguesia, mas também
aos interesses da classe operária. Outras liberdades como a liberdade
de expressão, direito ao sufrágio, não eram somente direitos particulares ou de determinada classe, mas eram verdadeiros direitos universais, possíveis de serem invocados por todos os homens, independente
da classe a que pertencessem.
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As Constituições têm concebido, quer os direitos de liberdade,
os sociais, econômicos, culturais, como direitos de todos os homens,
que interessam a todos os membros da sociedade e não apenas como
direitos de classes ou ligados a determinada classe.
Também no plano internacional, com o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direitos Civis e Políticos,
estes são concebidos como direitos de todos os homens e não só a
certa categoria ou classe de pessoas.
Os direitos fundamentais são colocados em um dualismo, de
um lado os direitos da liberdade e de outro os direitos econômicos,
sociais e culturais. Todavia, se estamos diante de direitos de todos os
homens, com certeza seria melhor pensarmos em uma só categoria,
que interligasse os direitos de liberdade aos direitos sociais ou os direitos sociais aos direitos de liberdade.
Nestes últimos 200 anos, o Estado se concebe em três tipos
conhecidos: Estado Liberal, Estado Marxista e Estado Social.
No primeiro, no Estado Liberal, os direitos chamados sociais
não existem ou quando muito a sua existência se reconduz a direitos
de liberdade. No Estado Marxista, ao contrário, os direitos de liberdade não existem ou são reconduzidos a direitos sociais. Estes últimos
Estados, nos marxistas-lelinistas, o ponto fundamental circula em torno do primado da economia; afirmam-se ainda o direito ao trabalho, à
educação ou à proteção da saúde e outros; as liberdades, quando aparecem, são sempre condicionadas à realização dos objetivos do socialismo e do comunismo.
No Estado Social, como o previsto na Constituição alemã de
Weimar, de 1919 e nas demais mais modernas (a da Itália, da Alemanha, da Espanha, de Portugal, da Venezuela, do Peru, a nossa vigente
ou as nossas a partir de 1934) é insuprimível o contraste entre direitos
sociais e liberdade. Ambos são direitos fundamentais.
No tipo constitucional de Estado Social de Direito, direitos de
liberdade e direitos sociais são direitos fundamentais, pois constando
da Constituição não ficam mais a mera vontade do legislador ordinário. Entretanto, são direitos de estrutura diversa e de eficácia bem difeRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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rentes. Os direitos de liberdade são direitos negativos, mas não são
puros direitos negativos, uma vez que em relação a muitos desses
direitos de liberdade há consciência de que não basta ao Estado respeitar ou abster-se ao não fazer para que a liberdade possa ser exercida
ou garantida. O Estado tem uma obrigação de manutenção de ordem
pública, de dar segurança á sociedade. Esta é uma obrigação positiva
do poder público. Quando o Estado afirma que garante direitos de liberdade, deve o mesmo, garantir condições de segurança para que a liberdade seja exercida.
Em alguns dos direitos de liberdade o Estado tem obrigações
específicas de caráter positivo.
Quanto à liberdade de religião, por exemplo, não basta o Estado respeitar a liberdade de culto. Deve ainda assegurar àqueles que
pretendem utilizar-se de tal direito.
Quanto à liberdade de manifestação, o Estado não deve apenas assegurar a possibilidade dela ser exercida, juridicamente, mas deve,
isto sim, garantir, positivamente, a manifestação, de modo a impedir
fatos que não permitam a livre manifestação.
À liberdade de comunicação, é outro dos direitos que o Estado
assume a responsabilidade pelo asseguramento das condições necessárias para a seu pleno exercício.
Os direitos econômicos, sociais e culturais são, em
contrapartida, muitas vezes, direitos positivos. Positivos no sentido de
que exigem do Estado posições ativas de agir, de prestar serviços,
enfim comportamentos positivos. De certa forma esta contraposição,
entre direitos positivos e direitos negativos pode ser aceita. Ora, se os
direitos de liberdade nem sempre são, exclusivamente, direitos negativos, também os direitos sociais não são, sempre, exclusivamente, direitos positivos. Não são pura e simplesmente direitos positivos porque não dependem apenas do comportamento paternalista que o Estado possa vir a assumir.
Assim, por exemplo, os direitos à saúde, à educação, ao trabalho, etc. inserem-se no campo da competência atribuída ao Estado
de fazer, todavia, não deve ele assumir sozinho tal tarefa. É importante
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e também necessária nestas matérias a presença da participação dos
particulares, entretanto, o fazer destes não deve ser de tal porte a
ponto de comprometer a liberdade dos cidadãos.
O Estado não é o único destinatário das normas sobre direitos
fundamentais, inclusive sobre direitos sociais, uma vez que também a sociedade, os grupos, as associações, etc., têm força e poder, bem como responsabilidade, preponderante no alcance e promoção de tais direitos.
Os direitos sociais não se esgotam na mera relação entre pessoas e Estado. Eles devem vir com as pessoas, com a sociedade civil
e o Estado. Alguns para designar o papel que o Estado deve ter na
realidade dos direitos sociais mencionam a existência do “princípio da
subsidiariedade”. Parece que a expressão utilizada pode não ser das
mais felizes, porquanto o Estado poderá ter uma retração na sua atuação, levando-o a uma presença que não seja a esperada. O mais perfeito talvez seja a utilização da expressão “princípio da solidariedade”, onde
a ação deva ser solidária entre a sociedade civil e o Estado na
concretização desses direitos.
De nada ou pouco adianta dizer que o Estado não é o único
titular, o único destinatário das normas sobre direitos sociais. É importante a participação ativa da sociedade civil também neste processo,
bem como a participação de todos os interessados.
O princípio do Estado Social com o comando democrático em
sua gestão, deve ser, na medida do possível, com a participação dos
próprios interessados, na busca da concretização dos seus direitos. Assim, o Estado em vez de ter apenas uma posição estatista na
concretização dos direitos fundamentais deve ainda, promover abertura à sociedade civil para que esta possa ter um espaço de efetiva e
real participação.
Liberdade e direitos sociais têm estruturas diferentes. Os direitos de liberdade são de aplicabilidade imediata, constam de normas
preceptivas. A sua eficácia independe de quaisquer condições econômicas, sociais e culturais. São normas aplicáveis, independentemente
da lei. O princípio básico no domínio das liberdades é que a lei é que
tem de se conformar com as liberdades. A lei é que se move no âmbito
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das liberdades e não as liberdades no âmbito da lei. Quanto ao domínio
do direito das liberdades constantes da Constituição, a perfeição será
tanto maior quanto menos precisar de lei para tornar-se obrigatória e
eficaz.
Muitas vezes a exigência da lei é mais por razões de segurança e certeza jurídica do que propriamente por complementação necessária. Se assim o é, quanto aos direitos de liberdade, ao contrário pode
ocorrer quanto aos direitos sociais, isto é, os denominados direitos
fundamentais prestacionais que exigem uma conduta positiva do destinatário.
Gomes Canotilho esclarece que “os direitos a prestações significam, em sentido estrito, direito do particular a obter algo através do
Estado (saúde, educação, segurança social). É claro que se o particular tiver meios financeiros suficientes e houver resposta satisfatória do
mercado à procura destes bens sociais, ele pode obter a satisfação
das suas “pretensões prestacionais” através do comércio privado (cuidados de saúde privados, seguros privados, ensino privado)”.
Estes direitos sociais prestacionais que são de cunho
programático, não gozam da máxima efetividade, sujeitando-se, portanto, ao limite da reserva do possível, uma vez que só podem ser concretizados através de condições econômicas, sociais e culturais
que fogem a alçada do constituinte e, também do legislador ordinário.
Muitas vezes necessitam, inclusive, da presença do Executivo para sua
efetividade, em especial, indicando as fontes de recursos que irão fazer
frente às despesas decorrentes da execução de tal programa.
Assim, de nada adianta apenas haver uma lei ou uma norma
constitucional que pretenda declarar o direito ao trabalho, à educação,
para que todos possam alcançar tais direitos, para que todos possam
ter trabalho, escola, emprego. Os direitos econômicos, sociais e culturais dependem de uma realidade.
Enquanto os direitos de liberdade são direitos incondicionados,
os direitos sociais são direitos condicionados. Os direitos sociais são
de conteúdo incompleto necessitando pois de ser preenchido pelo legislador ordinário, enquanto que os direitos de liberdade já estão definiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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dos em sua essência desde logo na Constituição.
Entre os direitos no Estado Social o primeiro é o valor liberdade. Neste Estado ambos são direitos fundamentais, apenas que em primeiro lugar estão os direitos de liberdade. Não admite o sacrifício da
liberdade em prol dos direitos sociais. É o inverso do que ocorre com os
Estados marxistas.
No Estado Social o legislador não deve ser livre na confirmação
dos direitos de liberdade. Sua função é apenas regulamentadora, quando
não ampliativa. Só pode ser restrita nos termos previstos expressamente
na Constituição e de acordo com o princípio da proporcionalidade. O legislador, assim, não é livre no domínio da liberdade.
Quanto aos direitos sociais o legislador tem uma margem de
liberdade. Não tem o legislador o poder de inverter, na prática, o direito
constitucionalmente assegurado, mas deve ser ele o concretizador do
conteúdo de cada direito social.
Os direitos sociais estão, intimamente, conjugados com a organização econômica. O constituinte não pode criar uma rigidez tal quanto
aos direitos sociais, que impeça o legislador ordinário de concretizar
cada um desses direitos de diferentes formas. O excesso de rigidez
posto pelo constituinte sobre o legislador ordinário quanto aos direitos
sociais retira a opção de liberdade de ação, bem como cerceia também a liberdade do próprio povo, uma vez que este é que legitima politicamente, o legislador. Desta forma, portanto, as normas de direitos
sociais não devem ser de tal sorte vagas que não tenham nenhum sentido, mas também não devem ser normas, excessivamente, detalhadas,
minuciosas, que cortem qualquer possibilidade de escolha por parte do
legislador.
Assim, enquanto em matéria de liberdade o ideal é a precisão;
em matéria de direitos sociais é necessária a abertura, a liberdade de
conformação no quadro dos valores básicos da ordem constitucional.
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TEORIA DAS JANELAS QUEBRADAS: E SE A PEDRA
VEM DE DENTRO?
JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO
PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ &
COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO.
ADVOGADO NO ESTADO DO PARANÁ & CONSELHEIRO DA ORDEM
DOS ADVOGADOS DO BRASIL, SECCIONAL DO PARANÁ.
EDWARD ROCHA DE CARVALHO
ADVOGADO NO PARANÁ.
RESUMO
O artigo trata da “política da tolerância zero” e de sua matriz ideológica, a
“teoria das janelas quebradas”, pela qual pequenos delitos, se tolerados,
podem levar à prática de delitos maiores : “quando uma janela está quebrada
e ninguém conserta, é sinal de que ninguém liga para o local; logo, outras
janelas serão quebradas”. Os autores criticam a política de tolerância zero,
afirmando que a mesma é marcada pelo excesso do soberano e pela
desumanidade das penas, e, além disso, tal política não prega a reforma do
“desordeiro”, mas tão-só sua punição, sua exclusão.
ABSTRACT
The article is about the lack of tolerance and the “theory of broken windows”
, in which small torts, if tolerate , can lead the person to bigger torts. “When
a window is broken and nobody fixes it, it’s a sign nobody cares to the place;
soon, other windows will be broken”. The authors criticize the politic of lack
of tolerance , saying that it is marked by the excess of soberany and by
penalties without humanity, and , besides , this way of behavior doesn’t make
reformation in the person, but only his/her punishment, exclusion.
PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; criminologia; teoria das janelas
quebradas; política de tolerância zero.
“Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao
menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais.”
(Saramago, 2002, p. 119).
INTRODUÇÃO
Tem-se indagado, com seriedade, no seio do Movimento
Antiterror, as reais causas – para além dos interesses politiqueiros que
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saltam aos olhos – da insistência na construção de uma legislação de
pânico para o Brasil, denegando-se a Constituição da República. Que
são multifárias poucos duvidam mas, sem dúvida, resplandece dentre
elas a ingênua adoção de um pensamento marcado pela política da Tolerância Zero e sua matriz ideológica, a chamada Broken Windows Theory
(Teoria da Janelas Quebradas), invencionice americana vendida aos
incautos como panacéia no mercado da segurança pública mundial. Fazse, todavia, tão-só um mis-en-scène e, sendo matéria mercadológica,
alguns haverão de pagar a conta, naturalmente.
Muitos dos argumentos, porque destinados a mexer com o
imaginário, não são de hoje: “A mínima desobediência é castigada e o
melhor meio de evitar delitos graves é punir muito severamente as
mais leves faltas”. Este trecho de “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault
(1987, p. 257), não fala da Nova York do auge da Tolerância Zero,
tampouco do Brasil desejado por muitos, no futuro próximo, ou no presente corrente. É ambientada em 22 de janeiro de 1840, em Mettray, a
prisão juvenil mais rigorosa da França daqueles tempos.
Em julho de 1994, o prefeito recém-eleito de Nova York, Rudolf
Giuliani, e seu chefe de polícia, William Bratton, começaram a implantar uma estratégia de policiamento, baseada na manutenção da ordem, enfatizando o combate ativo e agressivo de pequenas infrações –
a grande maioria, quando muito, meros atos desviantes, como estudados na criminologia – contra a qualidade de vida, como pichação, urinar
nas ruas, beber em público, catar papel, mendicância e prostituição. A
política, que ficou conhecida como “a iniciativa de qualidade-de-vida”
(quality-of-life initiative), foi baseada nos escritos e estudos de James
Q. Wilson, George L. Kelling e Wesley G. Skogan. Os dois primeiros
são autores do artigo “Broken windows: the police and neighborhood
safety”, publicado na edição de março de 1982 do periódico Atlantic
Monthly. O último foi autor, em 1990, de um estudo (Disorder and decline: crime and the spiral decay in american neighborhoods) que amparou a teoria.
Já se tinha, porém, uma experiência anterior do modelo. Em
junho de 1992, a cidade de Chicago implantou um decreto de vadiagem antigangues proibindo cidadãos de se reunirem em público “sem
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nenhum propósito aparente”. Não obedecer tal disposição implicava
no pagamento de uma multa de até US$ 500,00, ou prisão por até seis
meses, ou prestação de serviços à comunidade até 120 horas, ou todas as três penas combinadas (§8-4-015 do Código Municipal de Chicago). No período de 1993 a 1995, foram expedidas mais de 89.000
ordens de dispersão e foram presas mais de 42.000 pessoas sob a
vigência do decreto. A festa discriminatória acabou quando a Suprema
Corte declarou, em 1999, inconstitucional (unconstitutionally vague)
referido decreto, no caso City of Chicago v. Morales (527 U.S. 41).
Em Nova York, a iniciativa produziu de 40 a 85 mil (dependendo da estatística) novas prisões – pelas tais infrações menores – no
período de 1994 a 1998 (Estado de Nova York, Relatório da Divisão de
Serviços de Justiça Criminal de 2000). Para lembrar o frenesi punitivo,
basta saber que na disputa para a Prefeitura da cidade em 1993 (David
Dinkins versus Rudolf Giuliani), o tema central sobre a segurança
girou em torno dos squeegeemen, aqueles “garotos perigosos” que
jogam água no vidro do carro quando estão parados, lavam-nos e,
depois, pedem dinheiro. Ora, isso é pura hipocrisia, não fosse antes
canalhice porque se sabia de antemão o que se queria ouvir.
De qualquer forma, esses dois exemplos servem para demonstrar uma política de manutenção de ordem que emergiu nos anos 80,
focada a partir do maior contato da polícia com o cidadão, tudo como
um modo de criar e manter a ordem e assim diminuir a quantidade de
crimes graves. O modelo original era o inglês community policing (polícia comunitária; polícia de proximidade).
Assim, a base de tal política é o policiamento comunitário, que
vem acrescido de fiscalização ativa e Tolerância Zero; todas idéias
que têm como mentor intelectual a Nova Escola de Chicago (que substituiu a antiga Escola, formada por Guido Calabresi, Ronald Coase,
Richard Posner e outros, nas décadas de 60 e 70), a qual se fundamenta nas normas sociais, muito próximo do pensamento de Emile
Durkheim, em especial nas significações sociais capazes de alterar a
sociedade em si.
Tolerância Zero, enfim, é “incarceration mania”, a mudança do
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welfare state (perto do qual nunca se passou no Brasil) para o penal
state (Garland, 1996 e 2001; Becket, 1997; Caplow e Simon, 1998;
Wacquant, 2001). Parafraseando os discípulos da teoria, mas agora
contra ela, faz-se hora de restabelecer a ordem nesse caos de ignorância e absurdos.
O CAMINHO DA MANUTENÇÃO DA ORDEM
A Broken Windows Theory foi articulada no artigo supracitado
de James Wilson e George Kelling, sendo baseada na premissa de
que “desordem e crime estão, em geral, inextricavelmente ligadas, num
tipo de desenvolvimento seqüencial” (Wilson e Kelling, 1982, p. 31).
Segundo eles, pequenos delitos (como vadiagem, jogar lixo nas ruas,
beber em público, catar papel e prostituição), se tolerados, podem levar a crimes maiores. A idéia não é complexa e faz adaptação do ditado popular “quem rouba um ovo, rouba um boi” (Wacquant, 2001, p.
25): se um criminoso pequeno não é punido, o criminoso maior se
sentirá seguro para atuar na região da desordem. Quando uma janela
está quebrada e ninguém conserta, é sinal de que ninguém liga para o
local; logo, outras janelas serão quebradas.
É, em suma, de se fazer prevalecer a ordem sobre a desordem; porque os desordeiros estão contra os ordeiros. As pessoas
desordeiras incluem “pessoas não respeitáveis, turbulentas ou
imprevisíveis: catadores de papel, bêbados, viciados, adolescentes
arruaceiros, prostitutas, vadios e os perturbados mentais” (1982, p.
30). São – acredite-se, se for possível – os “bêbados fedorentos” e os
“pedintes inoportunos” (1982, p. 34).
Nós contra eles, num verdadeiro labelling approach
(etiquetamento) antecipado: os desordeiros de dentro precisam ser
controlados; os de fora, excluídos. De acordo com o artigo, são os
“forasteiros” ou “estranhos” que cometem crimes (1982, p. 36). Os “regulares”, por sua vez, tendem a não causar problemas. Controlando
os desordeiros, prendendo-os, excluindo-os, o problema estará resolvido. A ordem voltará a reinar e o crime desaparecerá.
Tudo é muito ingênuo, mas é esta a idéia, sem mais.
O problema é nela crer!
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UM EMPIRISMO DE FALSAS PREMISSAS
A espetacular queda do crime em Nova York é apontada como
prova irrefutável de que a teoria funciona. Entretanto, ela diz muito
pouco, senão nada, sobre a Broken Windows Theory. Basta ver que
outras grandes cidades ao longo dos EUA experimentaram uma queda notável da criminalidade ao longo dos anos 90. Muitas delas – incluindo Boston, Houston, Los Angeles, St. Louis, San Diego, San Antonio, San Francisco e Washington, D.C. – com índices maiores que
os de Nova York, sem que tivessem implementado a mesma política.
Nova York teve uma queda de 51% na taxa de homicídios no período
de 1991 a 1996; Houston, 69%; Pittsburgh, 61%; Nova York ficou em
quinto lugar (Joanes, 1999, p. 303). O que é marcante é que nenhuma
dessas cidades implantou a política Wilson e Kelling. Algumas, aliás,
fizeram o contrário.
Entretanto, a taxa de homicídios em Nova York vem aumentando desde 1998, de 633 para 671 em 1999, um acréscimo de 6%
(Relatório Preliminar Anual Uniforme de Crimes, 1999, p. 5).
Mais importante, todavia, é notar que a política de Tolerância
Zero não foi a única implantada em Nova York, sendo que outros fatores contribuíram para a queda nos índices de crimes, no período de 1993
a 1998: a duplicação do número de policiais nas ruas; a mudança no
consumo de crack para heroína; um orçamento do NYPD de 2,6 bilhões
de dólares; condições econômicas favoráveis nos anos 90; novos sistemas computadorizados; a queda no número de jovens de 18 a 24 anos
e a prisão de grandes gangues de traficantes (Karmen, 1996; Fagan,
Zimring e Kim, 1998; Butterfield, 1998).
Por outro lado, a fundamentação empírica da teoria surge da
aceitação plena do estudo precitado de Wesley Skogan, no qual foram aplicados cinco testes, dos quais quatro não vinculam em absoluto a desordem e o crime. Estatisticamente – e só por isso –, não é apto
a fundamentar qualquer teoria, ainda mais se se considerar que no
quinto estudo (talvez o único aproveitável, vinculando desordem e roubo), foram incluídos cinco bairros de Newark (cidade objeto da pesquisa, onde quarenta foram pesquisados), que, se excluídos, a
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imprestabilidade restaria patente (Harcourt, 2003, p. 78).
Por que, então, a sedução pelas provas “irrefutáveis” de que a
teoria foi a responsável pelo que aconteceu em Nova York, se os dados
indicam o contrário?
PESSOAS DESORDEIRAS, NÃO RESPEITÁVEIS E IMPREVISÍVEIS
O que é ordem? O que é desordem? Se a linha é tão clara quanto
os mentores da Broken Windows dizem, por que a arbitrariedade – que
insistem chamar discricionariedade, embora não se amolde ao conceito usual (Giannini, 1970, vol. I, p. 485; Piras, 1964, p. 477): taking informal or extralegal steps (tomando medidas informais ou extralegais) –
policial é tão necessária? A regularidade – ordem – nas ruas depende
da prática irregular – rectius: ilegal – da polícia? Regularidade, obviamente, somente nas escolhas dos suspeitos.
O embasamento da teoria sobre as duas categorias – ordem e
desordem – também diz muito pouco. Aos criadores da Broken
Windows, a última quer dizer que o bairro perdeu as rédeas e que se
não preocupa com o crime. Ela, porém, como se sabe, pode ter muitos
significados, afora o pregado por Wilson e Kelling: uma greve, um
evento artístico, um estilo de vida alternativo, um local de vendas; ou
pode significar somente pobreza, desemprego e desespero. O bairro
pode, por outro lado, não perder as rédeas, desde que comandado por
Dom Corleone, como no Poderoso Chefão, de Mario Puzo/Francis
Ford Copolla; ou um bicheiro; ou um traficante (Dadinho/Zé Pequeno, em Cidade de Deus, de Paulo Lins/Fernando Meirelles).
Por outro lado, uma comunidade “ordeira” pode ter outros significados: presença forte da criminalidade – mais ordem que usar terno e
gravata, com colarinho branco, impossível –, da máfia, de pontos de
tráfico de drogas, de locais de prostituição, de criminosos, enfim, que
não querem chamar a atenção para si; ou, aqui também, riqueza, presença da polícia e, por óbvio, como querem eles, brutalidade policial.
A ordem, portanto, seria um conceito natural, orgânico, criando assim uma nítida separação entre ordeiros e desordeiros, seguidores da lei e criminosos.
Ora, as categorias em si podem ser produto dos mesmos proRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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cessos de punição que, pelo avesso, “legitimam a sociedade”. É desnecessário dizer que, com os esclarecimentos do labelling approach (teoria do etiquetamento), é elementar que essas punições acabem criando
as categorias (Baratta, 2002, p. 85 e ss.). Para tanto, basta ler um pouco de Juarez Cirino dos Santos, Alessandro Baratta, ou ouvir um
tanto de Racionais MC’s.
Aqui um dos problemas: a Broken Windows somente cria essas categorias para delas se utilizar. Não se preocupa, porém, com a
reabilitação, dado que propõe a punição pela punição: o homem como
objeto de demonstração exemplar (Roxin, 1997, p. 176 e ss.). Punindo o desordeiro, estar-se-ia estabelecendo um padrão, uma norma
social com o recado do que é certo e do que é errado e de que este
último não é aceitável numa sociedade “normal”. Isso poderia ter, como
argumento, alguma validade – mas não tem! – se houvesse perfeita
transmissão e, nela, recepção, o que não ocorre nos EUA e muito menos
no Brasil, onde a estatística oficial garante a presença, para começar,
de dezessete milhões de analfabetos.
A política de Tolerância Zero, símbolo maior da Broken
Windows, é marcada pelo excesso do soberano e desumanidade das
penas; um funcionalismo bipolar, um tudo ou nada; culpado ou inocente; um sistema binário, muito a gosto de uma pós-modernidade
reducionista e maniqueísta.
Basta lembrar que nos EUA, diversas cortes e Juízes têm aplicado penas mais que vexaminosas. Um jornal de Tacoma noticiou que
uma pessoa condenada por furtar carros foi obrigada a andar com
uma camisa dizendo “Sou um ladrão de carros”; um homem condenado em Ohio por importunar sua ex-mulher foi condenado a deixá-la
cuspir em sua face (Polner, 2000; Deardoff, 2000a e 2000b). Não é
de se estranhar que Dan Kahan, um dos maiores apóstolos atuais da
Tolerância Zero, apóie abertamente a idéia (Kahan, 1996 e 1998, p.
615). Afinal, para ele, lei boa é a de Talião, felizmente já superada pelo
grau de civilidade alcançado no mundo ocidental; e porque ninguém
pode atirar a primeira pedra, mormente em estruturas de hiperinflação
legislativo-penal.
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A Broken Windows Theory, assim, não prega a reforma do
“desordeiro”, mas tão-só sua punição, sua exclusão. Julga-o não somente por dar a ele um antecedente criminal, tampouco por condenálo, mas por tornar o indivíduo alguém que precisa ser controlado, removido e observado. A categoria do “desordeiro” permite a Tolerância
Zero, e esta o abuso do Estado e a barbárie do Soberano. A desordem
do Estado, enfim, garante a ordem. A violência policial é necessária;
um meio para um fim maior.
Os bêbados, os catadores de papel, os flanelinhas, entre outros, são as verdadeiras ameaças, os “projetos de Fernandinho BeiraMar” com os quais se deve dar cabo agora, antes que vier coisa pior.
Acaba-se com eles e se acaba com os estupros, com os roubos, com
os homicídios.
O perigo de tal afirmação – não fosse a ingenuidade – é evidente, na medida em que transforma o guri da esquina (que está lá ao
invés de estar na escola, maldito!) em um maníaco do parque; o mendigo que dorme sob a marquise (porque quer, obviamente!) em uma
ameaça para a sociedade (quem não dorme melhor quando não vê
um mendigo em tais condições?!). Os pedintes, então, enojam, assustam, enchem todos de medo: fazem com que se saia das ruas e se
fique trancado em casa. E o medo, como que numa osmose criminosa, é percebido pelos ladrões-desordeiros, que passam a roubar; um
círculo vicioso do apocalipse da desordem: desordem gera medo, medo
gera crime, crime gera desordem. É o reino, por evidente, da manipulação das premissas. É a filosofia Caco Antibes aplicada ao Direito!
Efetuar tal maniqueísmo é somente mais uma forma – se é que
isso é possível – de dividir e estratificar a sociedade, causando mais males
do que se tem. É, além, mais uma forma de liberar aquilo que, falando
desde o inconsciente, produz medo: dentro de nós há uma coisa que não
tem nome, essa coisa é o que somos (Saramago, 2002, p. 262).
De outra parte, a Broken Windows Theory prega uma atividade
maior do policial e o uso do seu “bom senso inerente”, que deve perceber as situações e ponderá-las, tudo para manter a ordem. De bom senso se sabe desde Descartes; inclusive sobre a sua indeterminação.
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Eis por que, v.g., um homem de terno e gravata dormindo na rua gera a
conclusão de que está doente ou estafado; um maltrapilho, por outro
lado, tende a produzir a imagem de estar criando a desordem e gerando homicídios, embora disso possa ele nada saber. Eis por que para se
manter a ordem são necessárias leis “abertas”, “generosas” (Hobbes?),
que permitam ao “bom homem” prender um grupo de negros que conversa na rua sem motivo aparente ou um bêbado cantarolando pelas
ruas da cidade. Nas palavras de um “bom” policial, a tática é: “we kick
ass” (a gente bota prá quebrar).
Quando Kelling e Wilson se referem à desordem, obviamente dizem sobre ela nas ruas; não nos distritos policiais ou nos
camburões.
A INEFICIÊNCIA DO ESTADO: TOLERÂNCIA ZERO
Ficou evidente que todas as preocupações dos corifeus e apóstolos da Broken Windows Theory se resumem à ordem e sua manutenção. Entretanto, é por demais ingênuo (embora a proposta possa
ser uma representação narcísea) pensar que ao tirar a criança do semáforo e o mendigo da rua o problema estará resolvido. O que acontece com eles depois disso – afinal, o raciocínio é simples: se eles não
estão lá, é porque não existem – não é problema dos “teóricos”. Do
ponto de vista intelectual, beira-se à fraude.
Enquanto a postura do Estado for neoliberal, assumindo o “ter”
como prioridade ao “ser”, estará o mundo fadado à proliferação de
teorias impossíveis de verificação e ineficazes desde o próprio nascimento. Basta pensar que se tem um Estado Mínimo e para fazer viva a
Tolerância Zero é preciso um Estado Máximo. Há uma contradição –
diria Aristóteles: algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo – e,
com segurança, a verdade fica fora.
De resto, a inconstitucionalidade do pregado pela Broken
Windows Theory salta aos olhos. Ora, a Constituição da República diz
que deve haver – e há – infrações de menor potencial ofensivo, demarcando, para não deixar dúvida, a legalidade. Afirmar o contrário,
como quer a dita Teoria, passando uma tábua rasa sobre todas as
infrações, para considerar a mendicância igual ao homicídio – pior: a
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
94
causa dele!, afronta os mais comezinhos princípios estabelecidos por
uma já sofrida Carta.
A saída não é tão obscura quanto parece, ou quanto querem
fazer parecer: um Direito penal mínimo, verdadeiramente subsidiário e
que atenda à Constituição (que segue e deve seguir dirigente); educação e saúde para todos: como exigir do mendigo que “seja educado,
não atrapalhe e não feda”, se não se dá a ele, sequer, ensino e saneamento básico? É hipócrita dizer, afinal, que “todo mundo tem o direito
de dormir embaixo da ponte”. Abalou-se, na estrutura, a ética, sem a
qual em perigo está a própria democracia.
Claro, tais propostas vão de encontro ao que existe de mais
sagrado na política da terra brasilis: o voto, símbolo maior da perpetuação das capitanias hereditárias e motor de arranque de quase todas
as idéias. Enquanto os apóstolos da Tolerância Zero não entenderem
que ela deve alcançar – isso sim – a corrupção, com a má-fé e o mau
uso do dinheiro público, continuar-se-á vivendo nesta terra encantada
de valores e moral em que Alice nos conduz; de imbrogli retóricos. Isso
eles não entendem, ou não querem entender. Não querem perceber
que quando alguém de dentro quebra as janelas, pouco resta a fazer
com os que estão lá fora (aliás, a pedra cai na cabeça deles!).
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
97
O “NUMERUS CLAUSUS” E A TIPICIDADE DOS
DIREITOS REAIS EM LIGAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA
RESERVA DA LEI
JOSÉ ROBSON DA SILVA
PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA &
PROFESSOR DO CURSO DE MESTRADO EM DIREITO DA PONTIFÍCIA
UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ. MESTRE & DOUTOR EM
DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARANÁ. ADVOGADO DO INSTITUTO AMBIENTAL DO PARANÁ – IAP
RESUMO
O artigo estuda a questão do numerus clausus e da tipicidade dos direitos
reais no novo Código Civil brasileiro. O autor analisa o tema à luz do princípio
da reserva legal e do princípio da tipicidade. O trabalho destaca ainda a
vinculação do numerus clausus dos direitos reais com princípios de ordem
econômica e princípios de ordem pública.
ABSTRACT
The article studies the question of numerus clausus and the vagueness doctrine of the right in rem in the new Brazilian Civil Code. The author analyses
the issue under the principle of legal reserve and the principle of vagueness
doctrine. The work also points to the relation of right in rem numerus clausus
with the principles of economics and public order.
PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; direitos reais; novo Código Civil
brasileiro.
INTRODUÇÃO
O numerus clausus é uma das características do Novo Código
Civil no que concerne ao estatuto da apropriação de bens imobiliários.
Um código fechado para vida (ainda que embebido em gotas de óleo
social), amarrado por uma doutrina que afasta as criações sociais e que
incorporou uma armadura que excluiu algumas manifestações espontâneas do povo. Recepciona o Código, uma metodologia que põe o conceito no cimo do sistema.
A técnica do numerus clausus pode ligar-se com o princípio da
reserva legal. Isso quer dizer que apenas o legislador pode criar novas
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
98
figuras com a textura de direito real.79 Dois pontos, entretanto, destacam-se e não podem ser confundidos: o primeiro, vincado pelo conceito da tipicidade, para o qual não basta a criação de lei para que cientificamente ocorra uma figura de direito real. É necessário que o instituto
criado tenha um conteúdo com as características desse direito. O segundo ponto revela que a figura do legislador não se restringe ao Parlamento, novos tipos de direito real poderão ser criados por outros centros de poder v.g., o Executivo.
É preciso considerar que, o numerus clausus, além de ser um
conjunto de direitos determinados pelo legislador, está vinculado
precipuamente a princípios de ordem econômica.80 Outros afirmam
que o atrelamento ocorre com princípios de ordem pública.
O atrelamento a princípios de ordem pública não se mostra
como a melhor forma de entender a técnica. Nesse rumo, José de
Oliveira ASCENSÃO afirma que, em sede de direito real, a principal
linha de defesa contra o numerus apertus e a favor do numerus clausus
é a contrariedade daquele e a conformidade deste à ordem pública.
Mas o que é ordem pública? “Da manipulação de princípios de extrema generalidade não se pode tirar nenhuma conclusão”.81
Reiteramos, o suporte do numerus clausus é de ordem econômica, e esta não se confunde e não preenche por inteiro da Ordem
Pública. Esta técnica serve, como afirma Oliveira ASCENSÃO, para
perpetuar situações econômicas consolidadas. Desmistificando a sua
vinculação com a ordem pública, tem-se uma determinada opção econômica a lhe sustentar. Cabe ressaltar e reafirmar que a sua predominância parece implicar uma opção sistêmica que tolhe as construções
espontâneas, o que pode desaguar em flagrantes injustiças.
Considera-se que o princípio da tipicidade pode ser utilizado
para, sem a violação do sistema, minimizar a sua rigidez e incorporar
construções sociais ao ordenamento jurídico. A doutrina e jurisprudência dominantes entendem que no Estatuto Privado, atual, prevalece o
80
Segundo Pietro TRIMARCHI: “O número fechado dos direitos reais se justifica primeiro porque a pluralidade
de direitos reais sobre uma mesma coisa reduz a possibilidade de modificar a sua destinação; segundo
porque auxilia na circulação dos bens”. Istituzioni di diritto privato. Milano : Giuffrè, 1991, p. 122-123.
81
ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. Lisboa : Petrony, 1968 p. 87.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
99
princípio do numerus clausus, e que este determina que direitos reais
apenas poderão entrar na ordem jurídica através da lei. Nada impede,
entretanto, que o intérprete com o recurso da tipicidade, busque mediante a subsunção, novas figuras de direito real que se encontram postas
na lei, de modo não muito claro.
O princípio do numerus clausus pode, desse modo, ser vazado através da tipicidade.82 Essa prática deve ser orientada para a proteção do homem e não para “revelação” de direitos reais que mais se
prestam a construir uma camisa de força que exclui e isola. Ônus reais, servidões, a tutela do meio ambiente, de bens históricos, turísticos, paisagísticos, direitos de minorias, como é o caso dos índios, apontam uma interessante vereda metodológica pela qual pode transitar o
intérprete, sem que com isso venha violentar o sistema.
Com a tipicidade orientada para a proteção do homem, e não
apenas como um método de encarceramento das relações, é possível
buscar direitos reais que estão “escondidos” no direito positivo. Essa
orientação é interessante porque, para a doutrina clássica, os direitos
reais oferecem aos seus titulares uma garantia diferenciada e mais
potente do que a que se tem nos direitos pessoais.
A tipicidade direciona-se para o conteúdo dos direitos reais,
para os elementos que lhes conferem identidade. Nessa perspectiva,
a recepção da doutrina que percebe o direito real como um tipo aberto
é fundamental: “As notas características indicados na descrição do
tipo não precisam, pelo menos algumas delas, de estar todas presentes; podem nomeadamente ocorrer em medida diversa”.83 Com a presença dessas notas fundamentais em determinadas figuras previstas
em lei, mostra-se coerente a vinculação destas ao sistema que disciplina os direitos reais. Nesse plano é necessário ter cuidado para que
não se transformem figuras de direito pessoal em direito real. Verificase a existência de determinadas categorias que se encontram na fronteira dessa forma de ordenação do direito (direito real/pessoal) como é
82
Id. ibid., p. 102.
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência Jurídica 2.ª edição, tradução José Lamego Lisboa : Calouste
Gulbenkiann, 1989, p. 260.
83
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
100
o caso das obrigações propter rem.84
Retomando os motivos que engendram o numerus clausus, é
necessário precisar o aspecto da ordem pública. Ao perfilhar a idéia de
que a orientação econômica é o substrato da técnica, não se descarta
a ordem pública, como um suporte a dar certa substância ao conceito.
Essa substância pode ser encontrada no princípio da reserva legal85
que, conectado à matéria do direito real, coloca a questão da ordem
pública, ao assimilar a idéia de que essa espécie de direito submete
terceiros com o efeito erga omnes.86 Uma tão poderosa conseqüência
afetaria a organização das relações civis se se deixasse a criação de
direitos à plena autonomia da vontade dos cidadãos.87 Interessante
destacar que o numerus clausus e a autonomia da vontade, “têm a
mesma matriz liberal que pretendem, no regime jurídico revolucionário,
franquear o tráfego jurídico, fomentando a celeridade de negócios cri84
Segundo F.C. de Santiago DANTAS, as obrigações propter rem não são direitos reais. São obrigações
que o sujeito assume pelo fato de sua posição de titular de determinado direito real. O conflito de
vizinhança e sua composição. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 117.
85
O numerus clausus, conforme doutrina aqui perfilhada, é uma técnica que se fundamenta principalmente em motivos econômicos e, em certa medida, às questões de ordem pública. A perspectiva que se
apresenta é a determinação de quem seja o Legislador. O princípio da reserva legal não se confunde
com o princípio da reserva do Parlamento: “Segundo a doutrina tradicional do duplo conceito de lei, lei em
sentido formal é todo o ato parlamentar revestido de forma de lei, independentemente do seu conteúdo.
Lei em sentido material é a regra de direito[...]. Significa isto que para a lei em sentido material a forma de
lei não é necessária nem suficiente: as leis formais podem representar leis em sentido material, mas os
regulamentos também o poderão ser”. VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva da lei : a causa da lei na
Constituição portuguesa de 1976. Porto : [s.e.], 1992, p. 17-18. Destaca-se da doutrina tradicional que
apenas o Legislador, nesse plano, referido como o Poder Legislativo poderia modificar o numerus
clausus. Ocorre que o princípio da reserva da Lei é diferente do princípio da reserva do Parlamento: “O
verdadeiro alcance da reserva da lei, como expressão do princípio da legalidade, ultrapassa a distribuição orgânico-funcional do poder legislativo e questiona as relações da lei perante outros atos estaduais
não legislativos. Trata-se não de organizar uma função estatal, mas de delimitar as funções estatais.
Reserva da lei é aqui diferente de reserva do Parlamento, do mesmo modo que conceito de lei material é
diferente do de lei formal”. VAZ, op. cit., p. 34. Não sendo pois idênticos o princípio da reserva de lei e
reserva do Parlamento, cumpre questionar se o elenco de direitos reais consignados em nosso
ordenamento poderia ser alterado por normativas que não oriundas do Parlamento. Parece que o
ordenamento jurídico brasileiro admite a idéia de que o elenco de situações jurídicas, taxativamente,
definidas em lei, possa ser alterado por dispositivos normativos oriundos de outros centros de poder,
sem ter portanto o status de lei em sentido formal. Nesse passo, normas do Executivo poderão alterar o
elenco de direitos reais acrescentando novas modalidades.
86
TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o código civil, a legislação
ordinária e a Constituição. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, p. 83-84, 1989.
87
Destaque-se que a plena autonomia não se aplica nem aos contratos, veículo por excelência da vontade
dos sujeitos de direitos. No direito agrário há um amplo complexo de normas cogentes que não podem
ser afastadas pela vontade. O mesmo se verifica nos contratos de consumo. Há, ainda, em algumas
circunstâncias, a obrigatoriedade de contratar quando se está em determinadas situações jurídicas e.g.,
proprietários de automóveis, cuja situação exige o seguro obrigatório para a proteção de terceiros.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
101
ados pelas partes e com força de lei entre elas, expressão da filosofia
individualista [...]”.88 Por outro lado, o seu contrário, que é o numerus
apertus, segundo José de Oliveira ASCENSÃO, também tem uma estrita vinculação com o princípio da autonomia da vontade.89
Evidenciada a técnica do numerus clausus, é preciso considerar que sua utilização poderá se direcionar para produzir injustiças. A
realização da leitura do numerus clausus sem considerar a tipicidade
de algumas figuras de direito real, propiciou o isolamento do sujeito de
direito e contribuiu para a manutenção de injustiças sociais. Isso ocorreu durante um bom tempo, na jurisprudência brasileira, que não considerava o contrato não registrado de promessa de compra e venda de
lotes urbanos como direito real.90
Pode-se aferir que a armadura conceitual montada no Código
Civil brasileiro, com aspirações sistêmicas de um positivismo científico
neutro, contribuiu para afastar o direito da vida, encarcerando-a em
conceitos abstratos. Nesse momento da vida nacional a Constituição
Federal,91 no que concerne ao Estatuto da apropriação de bens imóveis urbanos e rurais, desempenha um papel fundamental, isto porque, os institutos que nela foram encartados encontram-se perpassados por uma doutrina que tem o homem como o centro do sistema.
A PREEMPÇAO UM DIREITO REAL? UMA LEITURA PARA ALÉM
DO CÓDIGO CIVIL E UMA PERSPECTIVA DO ESTATUTO DA TERRA
O Novo Estatuto Civil, no seu artigo 1.225, estabelece dez tipos
diferentes de Direitos Reais. Na toada da técnica dos numerus clausus não
existem outros direitos reais para além daqueles consignados no artigo.
Sabe-se, entretanto, que o Código, como instrumento de definição sistêmica do Direito Civil, não estabeleceu com exclusividade os
88
TEPEDINO, Gustavo, op. cit., p. 83-84.
ASCENSÃO, A tipicidade ..., p. 87.
Nesse sentido, consultar a excelente monografia de Marcelo DOMANSKI. Posse : da segurança
jurídica à questão social. (Na perspectiva dos limites e possibilidades de tutela do promitente comprador
através dos embargos de terceiros). Rio de Janeiro : Renovar, 1998.
91
A posição que adotada para o vocábulo Constituição perfilha a idéia transcrita por José Joaquim
Gomes CANOTILHO: “Constituição é uma ordenação sistemática e racional da comunidade política plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se organiza, de acordo
com o princípio da divisão de poderes, o poder político”. O direito constitucional entre o moderno e o pósmoderno. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, n. 9, p. 78, 1990.
89
90
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
102
Direitos reais, ou que apenas serão considerados como tais aqueles
que se encontram no seu bojo.
Outros direitos reais campeiam no sistema jurídico. Um dos mais
relevantes está contido no Decreto-Lei 271, de 28 de fevereiro de 1967,
que dispõe sobre loteamento urbano, responsabilidade do Ioteador, concessão de uso e espaço aéreo.
Esta normativa cria um Direito real sobre bens públicos e particulares. Trata-se de um Direito real resolúvel, que pode ser instituído de
modo gratuito ou oneroso, por tempo certo ou indeterminado, e é
transmissível por atos intervivos, por sucessão legítima ou testamentária.
A concessão de uso de bens públicos e particulares é Direito
Real tanto pelo fato de constar na Lei como tal (princípio do numerus
clausus), como também por preencher os requisitos da tipicidade destes direitos e.g., seqüela, poder direto sobre a coisa, erga omnes, exclusividade, transmissibilidade mortis causa, etc.
Não restam dúvidas, portanto, de que a Concessão de Uso
prevista no Decreto-Lei 271/1967, efetivamente, é um direito real. O mesmo não ocorre com a Preempção ou Preferência92 .
De início é preciso destacar que a Preempção ou Preferência
é classicamente entendida como um direito pessoal na doutrina civilista.
Isto é correto em determinados contextos93 .
Nada obstante, quando se ultrapassa o plano civilista e se
adentra nas relações jurídicas do Direito Agrário se constata algo diferente e que proporciona uma outra leitura quanto à natureza jurídica
deste Direito.
O Estatuto da Terra, Lei 4.504, de 30 de novembro de 1934,
estabelece no § 4º, do artigo 92, que o arrendatário a quem não se notificar a venda poderá, depositando o preço, haver para si o imóvel arren92
Neste Artigo não se adentra na distinção doutrinária entre Preferência e Preempção para quem a
primeira é espécie da segunda. O novo Código Civil as colocou como sinônimo. Para maiores detalhes
acerca das diferenças cf PONTES DE MIRANDA .Tratado de Direito Privado, vol. XXXVIII, p. 383
93
O Código Civil de 2002 regula o instituto da Preferência ou Preempção é regulada entre os artigos 513
a 520. Nesta Lei o artigo 518 estabelece:
Art. 518. Responderá por perdas e danos o comprador, se alienar a coisa sem ter dado ao vendedor
ciência do preço e das vantagens que por ela lhe oferecem. Responderá solidariamente o adquirente, se
tiver procedido de má-fé.
Com isto o Código determinou que a Preferência ou Preempção é um direito pessoal e não um direito real.
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103
dado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar da transcrição do
ato de alienação no Registro de Imóveis.
A diferença desta normativa (Estatuto da Terra) para com o
Decreto-Lei 271/1967 é a de que neste a Concessão de Uso sobre
bens públicos e particulares é expressamente reconhecida como Direito Real, ao passo que no Estatuto não ocorreu tal reconhecimento.
Em razão disto diverge-se na doutrina, acerca da natureza jurídica do direito consignado no Estatuto. Para muitos é um direito pessoal com eficácia real, para outros um mero direito pessoal ou ainda
um genuíno Direito Real94 .
O busilis doutrinário pode e deve ser enfrentado com as chaves de interpretação hermenêutica propiciadas pela tipicidade. O direito posto no Estatuto da Terra contém todos os elementos dos Direitos
Reais, inclusive um dos mais relevantes que é o direito de seqüela ou
o poder de buscar a coisa aonde ela estiver e na posse de quem ela se
encontrar.
No mais o Código de Processo Civil ao estabelecer no seu
artigo 461, a tutela específica parece também oferecer subsídio e substância para o fortalecimento da tese.
CONCLUSÃO
A técnica do numerus clausus e o princípio da tipicidade
dos direitos reais são instrumentos que podem, quando manejados
com as vistas centradas na pessoa humana e nos seus direitos, propiciar uma efetiva tutela dos Direitos.
Estas duas técnicas apenas terão sentido jurídico se incorporadas ao processo de repersonalização do Direito Civil a que alude o
Professor Orlando de Carvalho.95
94
Encontra-se jurisprudência que reconhece a Preempção nos contratos agrários como Direito Real
desde que estes contratos estejam averbados no Registro de Imóveis.
95
CARVALHO, Orlando de. Teoria da Relação Jurídica Civil, Centelha, 1981.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
104
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entre o código civil, a legislação ordinária e a Constituição. Revista
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promitente comprador através dos embargos de terceiros). Rio
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moderno e o pós-moderno. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, n. 9, p. 78, 1990.
CARVALHO, Orlando de. Teoria da Relação Jurídica Civil,
Centelha, 1981.
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
105
A NORMA FUNDAMENTAL
HOMAR PACZKOWSKI ANTUNES PINTO
PROFESSOR DE FILOSOFIA JURÍDICA NO CESCAGE. DOUTOR EM DIREITO
PÚBLICO E DIREITO PRIVADO PELA UNIVERSIDADED DE LAS ISLAS
BALEARES (PALMA DE MALLORCA, ESPANHA). ADVOGADO NO PARANÁ.
RESUMO
O artigo trata da “norma fundamental”, dimensionando-a como um princípio
frente a Filosofia do Direito, não se confundindo com o Direito Natural e
tampouco com os ordenamentos jurídicos positivos que variam de povo a
povo, de lugar a lugar. O estudo da norma fundamental é realizado em
perspectiva ampla, iniciando com a visão da “mitologia jurídica”; perpassando
a análise das “leis herméticas”; estudando a norma como idéia; tratando da
“norma racional”, da “norma divina” e da “norma como coisa em si”, para
chegar à “norma absoluta”. Enfim, o autor discorre sobre os atributos da
norma fundamental e o problema da relatividade da justiça.
ABSTRACT
The article is about the ‘Fundamental Statute”, putting it as a principle in
Philosophy of Law, not the National Law and neither the positive Legal System that varies from people to people,place to place.The study of the Fundamental Statute is made in big perspective, beginning with a vision from “Juridic Mytology”, going to the analysis of “Hermetic Law”; studying the law as
an idea; about the “racional law”, “divine right of kings” and the Law itself, to
find the “Absolute Law”. At last, the author talks about atributes of the Fundamental Satute and the problem of relatively in justice.
PALAVRAS CHAVE - Filosofia do Direito; Kelsen; norma fundamental.
O POSICIONAMENTO DA NORMA FUNDAMENTAL NA FILOSOFIA
DO DIREITO
Não se pode iniciar um discurso sobre Direito sem antes invocálo no seu aspecto mais sutil, e que, no decorrer deste artigo, usaremos
como paradigma; pois o Direito, hoje, vigente nos seus mais variados
aspectos, nada mais é que uma das expressões do que Hans Kelsen, na
sua Teoria Pura do Direito, nomeou de Norma Fundamental, a qual podemos, perfeitamente, comparar com a Coisa em Si de Immanuel Kant96.
Admitindo esta Norma Fundamental não como uma conseqüência do
96
BENTON, Willian Kant. Chicago: University of Chicago, 1984, v.42
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106
Direito Positivo, mas sim, como uma lei maior, precursora de todo o
Direito (Natural e Positivo).
A Coisa em Si é definida como “aquilo que independe de mim
ou de qualquer outra coisa”, “aquilo que subsiste em si mesmo”. A
Coisa em Si é um juízo sintético a priori, pois o seu conceito não está
contido no sujeito e não existe um juízo analítico anterior.
Tal como a Coisa em Si, é a Norma Fundamental e certamente Kant a chamaria de Norma Transcendental enquanto que os gregos a representariam por Têmis, a guardiã da ordem do cosmos e São
Tomás de Aquino97 como Lex Aeterna. Podemos assim dimensionar a
Norma Fundamental como sendo o princípio, não se confundindo com
o Direito Natural e muito menos com os Direitos Positivos que variam
de povo a povo, de lugar a lugar.
Kelsen tem a Norma fundamental como sendo de validade pressuposta, hipotética ou fictícia, o que no decorrer deste trabalho discordaremos de modo que, a ordem do cosmos, a grande lei que, indiretamente, prescreve o respeito às Constituições e dá validade a todo e
qualquer conteúdo, desde que este tenha eficácia por tempo razoável e
em determinado lugar, é uma norma posta.
Aprioristicamente, podemos analisar esta Norma Fundamental
do ponto de vista de Hans Kelsen, colocando-a como uma espécie de
subsídio para inspirar, alimentar e, principalmente, fundamentar a validade dos Direitos Nacionais de cada país, ou seja, o Direito Positivo de
cada Estado independente e, é este conjunto de direitos diferentes o
responsável pela existência do Direito Internacional, que, por outro lado,
é o que está destinado a regular as diferenças entre estes vários direitos. Assim sendo, essa subsidiariedade é recíproca, pois não existe Direito Internacional sem os Direitos Nacionais e estes últimos não podem
coexistirem sem uma mediação do primeiro.
O mesmo vem a acontecer com as outras facções dentro da
escala hierárquica das Pessoas Jurídicas (vide gráfico). Ora, os Direitos Nacionais, ou seja, os Estados, só existem em detrimento das Pessoas Jurídicas de Direito Público, através das quais exercem os seus
97
BENTON, Thomas Aquinas. Chicago: University of Chicago, 1984, v.s. 19, 20.
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107
poderes, mantêm a soberania e a ordem e, principalmente nelas se
alicerçam para fazerem a sua soberania respeitada por outros Estados Nacionais. As Pessoas Jurídicas de Direito Público existem por
que são a personificação da delegação de normas dentro de uma ordem jurídica e também pelos insumos vindos das Pessoas Jurídicas de
Direito Privado que dão a estas um determinado amparo e razão de
existir juntamente com as Pessoas Físicas. Por fim as Pessoas Jurídicas de Direito Privado só existem graças a iniciativa das Pessoas Físicas, que as idealizam e criam para servir outras Pessoas Físicas. E
qual seria a origem desta iniciativa, o desejo de dar e receber, de
servir e ser servido. Alguns responderiam que é o instinto e, o que não
é o instinto senão uma das grandes regras da natureza que é regida
por uma Lei, a qual podemos chamar de Norma Fundamental. Certamente que não aquela estabelecida por Kelsen para fundamentar a
validade de uma determinada ordem jurídica, mas uma Norma Fundamental Única.
POSICIONAMENTO DA NORMA FUNDAMENTAL
Disto podemos concluir que, toda a organização humana está
baseada num desejo de ordem, de harmonia, benesse, bondade, beleza, enfim, de perfeição. Nisto sim, podemos concordar que a Norma
Fundamental é hipotética, pois não temos um paradigma de perfeição
justamente por ela ser relativa, assim como tudo dentro do Direito. Por
outro lado, sabe-se que existe e procura-se cada vez mais acercar-se
desta perfeição, mesmo que relativa.
Assim sendo, compara-se o que afirmamos há alguns parágrafos atrás, que a Norma Fundamental Única é uma Lei Cósmica
que subsidia a qualquer desejo de organização, lei esta que por cada
qual merece uma diferente interpretação, mas que existe enquanto
conceito e enquanto coisa em si, anterior e superior a qualquer outra
lei, ou mesmo sempiterna. Em suma, é a ordem do Todo que está
presente em cada ser, cada elemento, pois o homem está em meio a
uma constante busca de que é certo, do que é “direito”. E é esta ordem
que inspira as formas de governo de cada Estado, que nada mais são
que diferentes formas de interpretação e aplicação do Direito, aplicaRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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ção esta que acontece através da delegação de competência para criar
normas estatutárias das quais as Pessoas Jurídicas são formas de personificação, e, juntamente, com os atos das Pessoas Físicas, a personificação de normas jurídicas ou leis. É aí, então que o círculo se fecha
num constante intercâmbio simbiótico
O QUE DIZ A MITOLOGIA JURÍDICA
Se faz imprescindível que antes de nos adiantarmos em qualquer análise mais profunda, façamos algumas considerações sobre o
modo que os gregos, um dos povos precursores dos estudos de direito, ubicavam a sua noção de lei. Desde há muito tempo, até os dias
atuais, o Direito tem Têmis como sua deusa, ou melhor, Têmis é a
deusa da Justiça e é até paramentada como tal. Para que não nos
enganemos sobre esta personificação, façamos uma pequena análise
em Têmis e sua filha Diké, também dita deusa da Justiça.
Têmis é uma das divindades míticas mais antigas e podemos
dizer, concordando com o nobre jurista Luís Fernando Coelho98 , que o
seu conceito é muito mais abrangente que a idéia hodierna de Lei, fundada em normas positivadas que, sem sombra de dúvida, trazem em
seu bojo algumas nuanças do Direto Natural, ou seja, elas nada mais
são do que a prudência humana transformada em paradigmas ou regras de conduta que servem como exemplo e devem ser cumpridas.
Se assim, aprioristicamente afirmássemos, estaríamos atribuindo à Têmis, alguns dos atributos de Diké.
Filha de Gaia e Urano, Têmis é irmã de Cronos e Réia, pais de
Zeus, de quem é esposa, sendo assim denominada de Titânida.
Opositora ao espírito de conquista, luta e guerra por ser feminina. Têmis também representa que a sabedoria e a ponderação é
guardada pelas mulheres, assim sendo ela personifica a vitória do espírito sobre a carne, da idéia sobre o fenômeno.
Têmis corporifica uma substância mais sutil que transcende
os conceitos de Lei e de Justiça, embora seja ela a responsável pela
criação de oráculos, ritos e leis, justamente porque estas últimas exis98
COELHO, Luis Fernando. Introdução histórica à filosofia do direito. Rio de Janeiro, Forense, 1977.
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tem para manter o equilíbrio. Têmis é aquela que alerta que os extremos são perigosos; que tudo o que é demasiado não é bom e o que
está de menos também assim o é, por isso traz na mão esquerda a
balança. Em suma ela indica o equilíbrio entre as polaridades, entre a
matéria e o espírito.
Devido à sua sabedoria, Têmis é a guardiã da ordem cósmica,
podendo ser considerada a própria ordem cósmica ou uma síntese da
ordem universal, organizadora e transformadora do caos, sendo responsável pela afinidade e sincronia, dentro das quais, todas as coisas
funcionam interagindo em prol de um Todo. Por isso Têmis personifica
também a União. Têmis tem as suas atenções voltadas para o ser
humano, que é o único elemento da natureza conhecida que põe em
risco a paz, constância e ordem cósmica devida à sua imprudência.
Se nos reportarmos a algumas linhas atrás, não precisaremos
nos esforçar para encontrarmos em Têmis um dos fulcros nos quais
nos baseamos ao teorizarmos sobre a Norma Fundamental Única.
Como Têmis é anterior a qualquer Lei positivada e a qualquer conceito, podemos nos unir a Kant e em coro afirmamos que Têmis é coisa
em si e sendo ela a responsável pela ordem do Todo, suas características se coordenam com as noções da Lex Aeterna, pregada na
Patrística e principalmente na Escolástica, por São Tomás de Aquino.
Têmis unida a Zeus teve seis filhas. As Moiras responsáveis
pelo fio do destino. Sendo Cloto a que tece, Láquesis a que distribui
e mede e Átropos que implacavelmente corta. As Moiras são irmãs de
Eunomia, a ordem legal; Eirene, a paz; e Diké, a Justa Retribuição.
Podemos assim observar que Têmis é a soma dos atributos de suas
filhas, principalmente das três últimas que espelham os objetivos da
Justiça em latu sensu. Já em strictu sensu, podemos visualizar a Justiça que os textos legais tentam garantir como a Justa Retribuição pelos atos praticados, ou seja, aquele que pratica o bem é recompensado e o que pratica o mal é punido, ou seja, aquilo que Aristóteles denominou de Justiça Distributiva e Corretiva.
É justamente neste ponto que paramos para pensar se a Justiça que se pratica hoje não recai somente nas inerências de Diké,
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110
sendo personificada por ela própria.
O nome Diké deriva dos termos Dikaion que significa o Justo e
dizakein, ato de julgar. A princípio Diké é mensageira, portando o sentimento de Aliança, emanado de sua mãe Têmis, para a Terra. Sendo a
responsável por manter este Direito entre os homens, enfrentando nesta
tarefa três forças antagônicas principais: Éris, a discórdia, mãe de todas as dores, do esquecimento e da fome; Bia, a personificação do
poder tirânico que gera a violência e Hybris, a imoderação, o exagero
que transforma o Direito em arbitrariedade carecendo de senso de
medida, por fim transformando-se em injustiça. Este antagonismo separa e nunca confunde o Direito com o poder reinante e o coloca num
patamar acima das legislações tiranas. Esta é, essencialmente, a separação do Direito em si, do Direito Positivo, e é nela que buscaremos
suporte até o fim deste trabalho.
O conceito de Diké, retira de sua mãe Têmis, seus fundamentos basilares que a definem como sendo o equilíbrio entre os extremos, algo dimanado da natureza das coisas, configurando a ordem
natural a que devem estar submetidas as ações humanas.
Para que sintamos a profundidade e a transcendência deste
quesito, definamos Diké como o germe do Direito Natural e sendo ela
filha de Têmis subentende-se que Têmis é quem inspira ou gera o
Direito Natural que dentro da sua evolução, vai mais tarde partejar o
Direito Positivo.
Segundo Hesíodo, Têmis ou ordem universal se divide em dois
setores: A ordem para a natureza irracional e a ordem para a natureza
racional que é a dos homens e portanto está imbuída de limites que
não devem ser ultrapassados. É neste momento que Têmis precisa da
interferência de Diké, que ajuda o homem a compreender que obedecer o Direito que está fundado na essência de cada um, ou seja, cada
qual tem o seu livre-arbítrio e é responsável pelos seus atos, de modo
contrário é Diké quem vai pesar e medir os atos.
Diké aliada à suas outras cinco irmãs assegura que o destino
e a Justiça constituem a ordem da racionalidade, sendo o destino
inexorável e a Justiça envolvendo a possibilidade da sua infração.
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Isto nos leva a concluir que esta submissão à lei do destino antecede a concepção romana de que o Direito Natural é descoberto
pela razão, de que ele dimana da natureza das coisas, e que, ainda
prescinde da existência de elemento metafísicos.
Enfim, nas linhas anteriores admitimos que Têmis é o princípio, o elemento primordial representando o equilíbrio que é uma das
forças basilares do universo. Têmis é um eco do Verbo pronunciado ou
do Logos, a idéia. Diké já é um efeito colateral do “verbo que se fez
carne”, ou seja Diké é Têmis posta em prática, ou, põe em prática os
preceitos de Têmis personificando o Direito Concreto na sua praxis e
especificidade cujo teor é intrínseco ao ser humano, pois viver conforme
o Direito corresponde ao ser do homem, tal qual já apregoava Verdross99 .
A NORMA HERMÉTICA
Talvez aquilo que Hans Kelsen disse, nas entrelinhas de modo tácito, mas se furtou de dizer, expressamente, negando-se de ir além na definição da Norma Fundamental, já tenha sido dito há 4.700 anos atrás, no Egito, através das Sete Leis Herméticas de Hermes Mercurius Trismegisto100 .
Estas Leis são genéricas e dizem respeito principalmente, à Harmonia
Cósmica, mas se comparadas com a Norma Fundamental podem elucidála de uma maneira bastante peculiar e ao mesmo tempo ampla.
TRANSCRIÇÃO DAS 7 LEIS HERMÉTICAS 101
O TODO É MENTAL: O UNIVERSO É MENTAL
Isto pode indicar já de início sobre o fato da Norma Fundamental se prolongar até os bastidores da mente humana assumindo o
caráter de consciência.
Por outro lado, se todo o universo é mental, a Norma Fundamental que o ordena também o é, e assim o atributo “hipotética” acaba
tendo cabimento, tão bem quanto os atributos mística e fictícia, que a
tratariam como mera criação da mente humana.
99
VERDROSS, Alfred, Abendländische Rechtsphilosophie, Viena, Springer Verlag, 1963, 2ª edição.
TRISMEGISTO, Hermes. O Kaibalion. Egito: 2700 a.c.
101
MEDRANO, Roberto. Pitágoras e seus versos dourados. São Paulo: Aduaneiras Gráfica. 1993
100
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112
O QUE ESTÁ EM CIMA, É COMO O QUE ESTÁ EMBAIXO, E O QUE
ESTÁ EMBAIXO É COMO O QUE ESTÁ EM CIMA
Iremos simplesmente dimensionar o macrocosmo e o
microcosmo, o universo e o homem. Se fizermos uma análise comparativa entre ambos, baseada em Física, notaremos as semelhanças
entre um átomo e um sistema planetário, uma molécula e uma galáxia
e aí por diante. Destarte, a mesma Norma que rege o macro, rege o
micro, simultaneamente, e com os mesmos princípios, isto demonstra
que todos os sistemas normativos são meras facetas de uma mesma
Norma Fundamental onipresente.
NADA ESTÁ PARADO, TUDO SE MOVE; TUDO VIBRA
Isso nos reporta ao fato de a Norma Fundamental estar constantemente ordenando, vibrando e inspirando, gerando assim normas
menores, dentro dos seus três aspectos, o estático, o mecânico e o
dinâmico. Ainda podemos comparar esta Lei com a Dialética Negativa
e o eterno vir-a-ser propostos por Hegel.
TUDO É DUPLO, TUDO TEM POLOS; TUDO TEM O SEU OPOSTO;
O IGUAL E O DESIGUAL SÃO A MESMA COISA, OS OPOSTOS
SÃO IDÊNTICOS EM NATUREZA MAS DIFERENTES EM GRAUS.
OS EXTREMOS SE TOCAM; TODAS AS VERDADES SÃO MEIASVERDADES; TODOS OS PARADOXOS PODEM SER
RECONCILIADOS
Sem sombra de dúvida, esta Lei, nos leva, diretamente, ao que
já falamos sobre a relatividade na maneira em que a Norma Fundamental é evocada e aplicada, gerando a relatividade da Justiça e a
insondabilidade da única verdade que é um dos atributos da Norma
Fundamental na sua natureza, onde ela é a mesma; o momento em
que os extremos se tocam e formam a esfera que representa o infinito
e que foi denominada de Mônada por Pitágoras.
Olhando-se, por outro prisma, quando a Lei diz que tudo é duplo, isto nos reporta as polaridades que são a razão de ser do Direito e
da Justiça, pois é justamente neste ponto em que a Norma Fundamental se manifesta, no mundo do fenômeno, e se dualiza, assim as morais
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já revestidas de Ética entram em conflito formando uma relação de tese
e antítese, sendo que a Justiça surge para solucionar esse conflito e
transformá-lo em síntese e posteriormente em lei.
TUDO TEM FLUXO E REFLUXO, TUDO TEM SEUS MARES; TUDO
SE MANIFESTA POR OSCILAÇÕES COMPENSADAS; A MEDIDA
DO MOVIMENTO À DIREITA É A MEDIDA DO MOVIMENTO À
ESQUERDA, O RITMO É A COMPENSAÇÃO
Onde houver uma falha que prejudique a Harmonia Natural, a
Norma Fundamental inspirará para que essa falha seja reparada. Quando houver a falta de um dos “dentes da grande engrenagem”, a Norma
Fundamental, pelo simples fato de existir, a suprirá. Para o Direito, este
é o preceito de que quem perde deverá ser compensado de alguma
maneira para que o Equilíbrio e a Harmonia sejam mantidos.
TODA CAUSA TEM SEU EFEITO, TODO EFEITO TEM SUA CAUSA;
TUDO ACONTECE DE ACORDO COM A LEI (leia-se Norma
Fundamental). ACASO É SIMPLESMENTE UM NOME DADO A UMA
LEI NÃO RECONHECIDA (Norma Fundamental); HÁ MUITOS
PLANOS DE CAUSALIDADE; PORÉM NADA ESCAPA À LEI (Norma
Fundamental)
Também já falamos, antes, sobre o fato de uma das maiores
características e um dos atributos da Norma Fundamental ser a Lei da
Causa e do Efeito que existe, justamente, em detrimento do livre-arbítrio conferido ao ser humano. Em se realizando uma análise exegética
bastante sóbria e cautelosa, poderíamos concluir que nada foge ao controle da natureza, portanto mesmo que não houvesse o Direito para
mediar, a Harmonia seria mantida a qualquer preço, justamente pela
existência da Lei de Causa e Efeito. Poderíamos dizer que o Direito só
existe para apressar as coisas e, às vezes, o faz de maneira errônea
por não saber o real significado da grande verdade contida na Norma
Fundamental, que cedo ou tarde intervirá de maneira sutil e natural. Basta que tenhamos olhos de ver e que simplesmente observemos que nada
foge aos olhos da grande Justiça, a qual podemos chamar de Norma
Fundamental.
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114
O GÊNERO ESTÁ EM TUDO; TUDO TEM SEU PRINCÍPIO
MASCULINO E SEU PRINCÍPIO FEMININO; O GÊNERO SE
MANIFESTA EM TODOS OS PLANOS
Novamente as polaridades que devem existir para que se forme o único perfeito e inteiro, a síntese. O ideal seria que esta união
acontecesse naturalmente, mas o homem ainda precisa criar leis para
preservar o curso harmônico dos acontecimentos. “Para toda tampa
existe uma panela, não importa qual seja o seu formato”. A Norma Fundamental, justamente, representa esta síntese, pois ela é completa por
deter em si ambos os gêneros, metaforicamente falando. A Norma Fundamental inspira para que haja essa união entre os elementos de modo
a sempre preservar a Harmonia.
Por outro lado, esta é uma Lei que nos leva a perceber que muitos
dos nossos sistemas normativos deveriam reavaliar os seus valores e
as suas leis para aplicá-las de maneira mais justa, principalmente no
que se refere à Moral e à conduta do ser humano. Uma norma tipificada
e transformada em lei, não pode impor à um indivíduo uma natureza diferente da sua, e é isto que vem acontecendo em muitos países de regimes ditatoriais. Fala-se aqui de discriminação racial, religiosa e, principalmente, no que diz respeito à orientação sexual. Por exemplo, se alguém é de orientação homossexual e assim nasceu, esta é a sua natureza e ela não poderá nunca ser mudada, mas sim aceita como uma
manifestação do gênero e por fim da natureza que é sempre correta e
harmônica, pois ela é a própria expressão da Norma Fundamental.
A HIPOSTASIAÇÃO DA NORMA FUNDAMENTAL
Por várias vezes já mencionamos e relacionamos a Grande
Mônada estabelecida por Pitágoras como uma alegoria da Norma
Fundamental. É claro que a numerologia de Pitágoras não era voltada
somente às leis, mas sim a todo o universo. Esta Mônada seria a premissa maior de toda a criação, assim como para Kelsen e para nós,
neste nosso trabalho é a Norma Fundamental em relação ao Direito
como um todo. Quando se fala em Mônada e em símbolo de uma
grande unidade, a primeira representação que nos vem à mente é o
número um (1); mas se levarmos em conta a Mônada como causa inicial
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e conseqüência final de todas as polaridades, concluiremos que em algum lugar, assim como professa Hermes Trismegisto, esses opostos ou
polaridades se tocarão formando então uma esfera e representando algo
cujo fim está no seu próprio início ou vice-versa. Pelo que já discorremos sobre a Norma Fundamental podemos concluir que se tivemos de
representá-la por algum símbolo, este seria também uma esfera, pois
ela desempenha a função da Grande Mônada. Os opostos da Norma
Fundamental que se tocariam, seriam o momento em que ela inspira a
Moral humana e o momento em que ela fundamenta a validade de um
sistema de Direito Internacional; do menor para o maior, fisicamente
falando.Admitindo-se como parâmetro a axiologia Pitagórica102 , podemos então elencar dez leis maiores que chamaremos de manifestações
primárias e imediatas da Norma Fundamental, ou seja, as primeiras
normas menores decorrentes da primeira vibração ou inspiração da
Norma Fundamental que caracterizam de maneira peculiar o seu momento mecânico; normas estas que concomitantemente, representam e
sustêm a Norma Fundamental como um fim em si mesma; pois estas
leis dimanam da Norma Fundamental e a completam simultaneamente.
Assim sendo, a seguir adaptaremos à realidade jurídica as dez leis que
Pitágoras estabeleceu como sendo as regentes de todas as coisas.
A LEI DA UNIDADE: É a unidade integral, ou o que acabamos
de descrever como Norma Fundamental ou Mônada Jurídica em linhas anteriores. Se assim admitirmos, poderemos afirmar que ela é a
norma que preside todas as normas menores que, participam da Unidade Suprema das Relações Naturais ou Humanas, sejam elas instintivas
ou naturais, pois aqui estamos ignorando as barreiras impostas pela
Recta Ratio ou pelo direito natural. Em suma, esta lei representa o
que já descrevemos como Norma Absoluta.
A LEI DA OPOSIÇÃO: Tudo quanto é finito – tal qual as normas menores em relação à conduta humana – é produto dessa oposição gerada no seio da Norma Fundamental que é ingênita e infinita.
Todas as condutas finitas são compostas de duas ordens de ser, no
mínimo. No momento que se desenrolam as relações humanas, se102
MEDRANO, Roberto. Pitágoras e seus versos dourados. São Paulo. Aduaneiras Gráfica. 1993
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guindo uma dialética negativa, as condutas que as compõem interagem
expressando-se através de todos os pares de contrários que constituem os pólos, não só de todo o arcabouço jurídico como também de
todas as mais primárias classificações humanas.
Esta relação, imediatamente, nos reporta a uma outra, a da
Dialética Negativa de Hegel, estabelecida pelo trinômio: TESE X ANTÍTESE = SÍNTESE (a qual não deixa de ser admitida como uma nova tese).
Esta relação representa a realidade jurídica na sua tentativa
de buscar leis cada vez mais perfeitas e capazes de atender às relações humanas cada vez mais complexas e sofisticadas.
A LEI DA RELAÇÃO: A lei da relação é, pois, aquilo que denominamos Norma Fundamental Menor(genuinamente kelseniana), ou
seja, a premissa maior de cada sistema normativo, pois as suas estruturas existem devido à correlação entre as normas que regem condutas opostas. É dessa correlação que surge um Direito Positivo e finito,
pois este se expressa de uma determinada forma, durante um determinado tempo e dentro de um determinado espaço. Esta é uma relação principal, pois sem ela o Direito Positivo não surge, assim, nenhum Direito pode ser devidamente conhecido se não for considerado
do ângulo da Unidade, das oposições intrínsecas e das relações entre
as posições que lhe dão origem, ou seja, a lei da relação complementa
a lei da oposição revelando como fruto da última, a síntese, que para
nós é o Direito representado pela Justiça.
A LEI DA RECIPROCIDADE: Em todas as condutas consideradas em sua oposição intrínseca (Ética) e extrínseca (Política), nas
relações que se formam entre os opostos, há uma interação (Justiça),
uma reciprocidade interativa. Estamos aqui no mundo das normas que
compõem o nosso Universo Jurídico, assim, se a princípio todas as
normas podem ser vistas unitariamente ainda no contexto da Norma
Fundamental, podem também ser dualmente, ternariamente (como feixe
de relações, e também como tendo um começo, meio e fim) e,
quaternariamente, como resultado da interação dos opostos. Se a lei
da relação é a que rege as condutas como séries, a lei da reciprocidade rege a evolução primária e fundamental das normas finitas.
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117
A LEI DA FORMA: Todas as normas são determinadas como
tais pela conduta que regem ou pelo Direito que dizem, mas a reciprocidade que se dá entre os opostos realiza-se dentro de uma lei de
proporcionalidade intrínseca à conduta (Moral), pois o seu atuar e o seu
sofrer são proporcionais à sua natureza (Lei da Causa e Efeito/Justiça
Proporcional de Beccaria).
Estas cinco leis, até então examinadas, regem,
concomitantemente, todo o arcabouço jurídico que nada mais é que o
“sutil material” que corporifica a Norma Fundamental, no que diz respeito à sua influência, nas relações humanas, que provocam a invocação
do Direito. Tais leis também regem-se simultaneamente, pois toda norma tem uma forma e uma reciprocidade que surgem das relações entre
os opostos, que constituem os aspectos manifestáveis da sua criação e
do seu fim último, que são a Norma Fundamental.
A LEI DA HARMONIA: Como já dantes dito, a Harmonia se
confunde com a Norma Fundamental, sendo um dos seus principais
atributos e impera também como um dos escopos do Direito, que
nada mais é do que a ferramenta utilizada para preservar esta Harmonia, e que se vale da Justiça quando é preciso restabelecê-la. Num
aspecto mais profundo afirmamos que, quando qualquer fato rompe essa
Harmonia, tal rompimento é apenas aparente, porque, propriamente, rompe a Harmonia de um conjunto, para integrar-se na Harmonia de outro,
sendo que ambos os conjuntos são manifestações da Norma Fundamental. Mas a lei da Harmonia que rege o universo jurídico, proclama
que as funções subsidiárias das normas menores componentes, são
ordenadas no conjunto das oposições que funcionam obedientes a uma
norma maior, que é dada pela totalidade da Norma Fundamental. Sendo as normas menores finitas, vigendo dentro de um determinado tempo e de um determinado espaço, há entre elas graus de ser, e graus de
Harmonia e também a própria desarmonia, que se dá quando há a quebra ou a deficiência da norma principal, pela ação contrária das funções
subsidiárias. A Harmonia, implica assim, numa espécie de assentamento
de camadas que gera uma certa desarmonia entre as normas menores,
as quais entram em atrito e passam a integrar novas e distintas harmoRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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nias dentro de uma mesma totalidade que é a Norma Fundamental.
A LEI DA MUTALIBILIDADE: A Norma Fundamental como toda
unidade, é o produto de uma reunião de pólos opostos, que em seus
relacionamentos interagem-se realizando uma forma de conduta natural, que dá a norma para as funções subsidiárias dos elementos componentes, que tendem a novas formas de conduta ou formas normativas
que evoluem. O que uma norma ou um sistema de normas são, atualmente, em sua forma, não é tudo quanto esta norma ou este sistema
de normas são na sua virtualidade. Por exemplo, uma Constituição,
este conjunto de normas tipificados em leis, não é como Constituição
tudo quanto é, pois há em seu bojo disposições prévias para ser de
outras formas, que não a desta determinada Constituição vigente em
determinado território e durante um determinado espaço de tempo.
Cumprida a sua função, esgotadas as suas possibilidades que estão
constituídas no seu processo, por dessuetude intrínseca ou por fatores extrínsecos, as leis que a compõem serão decodificadas para mais
tarde formarem uma nova Constituição(por meio de recepção), o que
caracteriza uma evolução ou uma mutação, dentro dos moldes do devir
de Hegel.
A LEI DA EVOLUÇÃO SUPERIOR: Tendo como patamar a
base estabelecida pela lei da mutabilidade, esta lei é alcançada por
um novo equilíbrio acima da anterior. Seria o que poderíamos chamar
de uma supra-norma, pois todos os direitos aspiram para atingir ao
supremo direito, totalmente perfeito e justo que é a mais pura manifestação da Norma Fundamental, estando a ela, está integrado.
A LEI DA INTEGRAÇÃO: Podemos considerá-la como a lei
de hipostasiação da Norma Fundamental, através da qual todas as
outras normas e sistemas de normas se integram na ordem cósmica
ou em Têmis, por sua trajetória teleológica rumo ao Supremo Direito.
Essa é também a lei da participação onde todas as normas com seu
inerente poder e valor formam parte da própria Norma Fundamental
que é, em última análise, uma unidade de simplicidade, pois as normas que dela dimanam e que simultaneamente a compõem não estão
separadas umas das outras porque têm a mesma fonte ou origem coRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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mum, interligando-se assim, e objetivando o mesmo escopo que nada
mais é que o retorno à origem, à Norma Fundamental.
A LEI DA SÍNTESE: Sendo dentro do universo jurídico, não só
a fonte, mas também a síntese ou unidade, a Norma Fundamental,
geradora de todas as normas e sistemas de normas é em si a própria
lei da síntese.
A NORMA FUNDAMENTAL COMO IDÉIA
Não poderíamos, nesta nossa viagem histórica, deixar de nos
determos na filosofia platônica, que através de seus métodos pode
nos dar uma visão mais simplificada do que seja a Norma Fundamental, tão bem quanto o seu papel, na vasta seara jurídica. Platão partiu
do método socrático103 , que restabelecera para a ciência o seu valor
de verdade objetiva, mediante a elaboração indutiva de conceitos,
cujas características são a universalidade, a necessidade, a
imutabilidade e a eternidade, tendo como ponto de partida a tentativa de estabelecer o elo de ligação ou o Demiurgo entre os conceitos e
a realidade.
Pois bem, é esta a grande oportunidade de trazermos para o
mundo prático, a nossa Norma Fundamental que ainda jaz no mundo
idealístico.
Se a Norma Fundamental é um conceito, este já é o primeiro
passo para que ela deixe de ser hipotética, fictícia ou até mesmo
inexistente, pois se já é provida de um conceito, ela é alguma coisa.
Acreditamos que até este ponto do nosso trabalho, não deixamos dúvidas de que a Norma Fundamental é universal existindo
onipresentemente, em todos os momentos do Direito, desde os primeiros lampejos de instintos e condutas egóisticas até os mais elaborados
sistemas de normas; portanto podemos atribuir à Norma Fundamental a característica da universalidade.
Quanto à necessidade, não há dúvidas de que a Norma Fundamental é um elemento imprescindível dentro do Direito e da própria
organização natural, pois basta que nos reportemos à sua gênese e denotaremos que existe nela uma razão de ser e uma fonte donde partem
103
COELHO, Luis Fernando. Introdução Histórica à Filosofia do Direito. Rio de Janeiro, Forense. 1977
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todos os instintos, condutas e morais, tão bem como já foi dantes afirmado. Existe um fim maior para o Direito, que é a mantença da Ordem e
da Harmonia que são atributos da Norma Fundamental. Assim sendo,
como se parte da Norma Fundamental e a ela se retorna, não há como
negarmos a necessidade da sua existência.
A Norma Fundamental vibra incursionando no mundo dos fatos e inspirando condutas e direitos, que conduzem o homem para
uma integração total com a Ordem Cósmica, destarte, podemos afirmar que ela não muda jamais, mas apenas manifesta-se através de
facetas que nada mais são do que todas as searas do Direito até
então conhecidas; portanto, está claro que, outra característica da Norma Fundamental é a imutabilidade, tal qual a energia elétrica que se
manifesta das mais variadas formas sem nunca deixar de ser a mesma energia.
A Norma Fundamental antes de estar presente em todos os
recônditos das relações humanas, ela é.
Seria uma visão conformista e obtusa se admitíssemos que a
Norma Fundamental tem a sua gênese nas teorias dos juristas de todos os tempos. Pelo contrário, estes mesmos juristas têm sempre que
dela partir e no final, a ela vão alcançar, pois a Norma Fundamental
reside justamente onde lhes faltam as respostas. Assim também não
há como deixar de lha atribuir a característica da eternidade.
Consideremos, agora, que o mundo, onde a Norma Fundamental age, através das mais variadas formas de direitos, é um mundo
individual, contingente e transitório, assim, se a verdade da Ciência do
Direito é objetiva, isto é, se o conhecimento corresponde à realidade,
deve existir “outro mundo”, dotado de características idênticas aos
conceitos. Desta forma a Norma Fundamental faria parte do mundo
das idéias ou formas, que é o ponto onde deixamos de nos preocupar com o Direito Histórico, contingente e com a realidade humana e
social que se fenomeniza na história, para nos ocuparmos com o Direito ideal, isto é, a idéia hipostosiada de que os direitos praticados
em todos os sistemas de normas, até então conhecidos não, passam
de sombras ou reflexos do Supremo Direito que a Norma Fundamental
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inspira, para que por fim o homem social funda-se à sua ordem e com
ela interaja.
Neste ponto, mister se faz que nos reportemos ao Mito da
Caverna104 onde através de uma fábula nos é retratada esta realidade.
O homem que vive na escuridão e se volta para a luz que sempre
buscou; isto nada mais representa, na seara jurídica, a busca pela
sociedade perfeita, que um dia, não mais carecerá de Direito e Justiça.
E é esta realidade perfeita que a Norma Fundamental inspira, pois
em uma sociedade, onde não mais se precisa de Direito ou Justiça,
claro está que os seus elementos estão em perfeita Harmonia com a
natureza, Harmonia e Ordem propostas pela Norma Fundamental.Por
fim, concluímos esta parte com a teoria do Direito Natural de Platão105 ,
a qual nada mais é do que uma definição muito própria para a Norma
Fundamental, pois Platão lhe dá fundamento metafísico e a Justiça é
considerada como idéia eterna, tal qual a Norma Fundamental; assim, o
Direito Natural é interpretado de maneira universalista, como Harmonia
de um todo, onde cada indivíduo e cada classe devem cumprir uma tarefa diferenciada (tal qual os “dentes da engrenagem” por nós mencionada). O Direito Natural, é pois, a ordem jurídica do Estado Ideal, implicando a identificação entre o Direito e a Moral; entretanto, essa concepção
metafísica acarreta a atribuição ao Direito Natural da condição de critério para a crítica do Direito Positivo e também de fundamento apriorístico
deste, condição esta que em nosso trabalho só poderia ser atribuída à
Norma Fundamental, pois a admitimos como precursora do Direito Natural, inspirando-o e este então, a posteriori, engendrando e fundamentando o Direito Positivo.
Ainda dentro do platonismo podemos, trazendo este conceito
para a realidade jurídica, definir a Norma Fundamental como Demiurgo
ou força criativa que origina e outorga poder a todas as demais normas
existentes, sendo o próprio elo de ligação entre o mundo fenomênico e
o mundo das idéias, por através de Diké, importar do último para o primeiro a inspiração legada por Têmis.
104
105
PLATÃO. A República. 6ª ed. Atenas. 1956 p. 287-291.
PLATÃO. A República. 6ª ed. Atenas 1956. P. 462 I.V,X.
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A NORMA RACIONAL
Continuando com a nossa viagem através da história, não poderíamos deixar de nos deter na efervescente cultura romana e observar como, com o seu modo prático de agir, eles admitiram a premissa
maior de toda a sua elaborada construção jurídica. É bem verdade que,
no campo de construções sistemáticas, a contribuição romana é pequena e singela, tendo em vista a magnitude e a profundidade do pensamento grego.
Os romanos, materialistas que eram, simplesmente se apossaram
de todo o direito pensado pelos gregos, organizaram-no e tipificaramno para que este viesse a solucionar os seus problemas do dia-a-dia.
Por um lado, esta contribuição é valiosa porque embasa o Direito
Ocidental hodierno, por outro, ela está destituída pelo ideal de Harmonia
entre o homem e a natureza, tão almejado pelos gregos. Por isso,
nada mais justo, tal como veremos mais adiante, do que atribuir aos
gregos a gênese do Direito Ocidental, tendo os romanos como
aperfeiçoadores do mesmo.
Ao contrário do que acontece hoje, quando os juristas e filósofos
não conseguem proclamar um único e comum Direito Natural, mas vários
Direitos Naturais, diversos e contraditórios entre si (levando em conta
propriedades individuais ou coletivas), os romanos, talvez pelo seu
embasamento pseudo-estóico o fizeram.
O Direito Natural era concebido então como a própria Natureza, ou
mesmo como as grandes leis que a regem com valores de princípio universal. Diante deste Direito Natural, preconizado, principalmente por
Ulpiano106 , homens e animais, se tornaram comuns e neste patamar iguais.
É essa a idéia de que todos os seres vivos estão sujeitos a uma Lei,
logos, ratio ou pnêuma, que pode muito bem ser interpretada como aquilo
que nós, neste trabalho, chamamos de Norma Fundamental Única, pois
não deixa de ser uma premissa maior, também aos moldes kelsenianos.
106
DIGESTO, I, 1-3
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O acima descrito não significa que Ulpiano e os outros jurisconsultos
reconhecessem a existência de um Direito para os animais, porém,
somente que a idéia do Direito Natural é inerente à idéia de Ordem que
governa todas as criaturas, tida para nós como Norma Fundamental Única.
Corroborando o estoicismo de Ulpiano e combinando-o com o
socratismo, Cícero107 procurou restabelecer a convicção de uma fundamentação absoluta para o Direito e a Justiça, consubstanciando esta
lei na razão e fundamentando o Jus Naturale, do Jus Gentium e do Jus
Civile, não havendo, portanto, oposição entre estas três expressões
do Jus, pois cada uma delas correspondem a nuanças ou determinações graduais do mesmo princípio, a recta ractio108 , ou, a centelha que
desperta a consciência, ou razão, responsável pela gênese do
discernimento moral, para nós, como já dantes visto, a Norma Fundamental Única. É a própria asserção de Cícero no seu De República
que corrobora o nosso discurso e assevera, indiretamente, a propriedade de Hans Kelsen e diretamente a nossa, ao elencar a Norma Fundamental como a premissa maior: “Existe uma verdadeira lei, a reta
razão, conforme a natureza, difusa em todos, imutável e sempiterna”.
Concluindo então esta breve passagem pela glória romana,
podemos, seguramente, afirmar que aquilo que Ulpiano admitiu como
um Direito Natural comum a todas as criaturas, é em essência uma
nuança da Norma Fundamental, que abrange todo o contexto
preexistente aos sistemas normativos humanos.
Assim, concluímos que a Norma Fundamental Única inspira e
permeia este Direito Natural, a principio como o próprio instinto e posteriormente, já no campo da consciência, vai revesti-lo de razão adquirindo a característica da recta ratio que enfim, inspira o homem na
criação da sua própria Moral e faz com que ele deixe de agir instintivamente. Isto nos reporta ao famoso elo perdido, momento em que a
centelha da razão brilha no ser fazendo com que ele deixe de ser animal para tornar-se um ser hominal.
107
CÍCERO, De República, III, 2
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito, trad. De Antônio José Brandão Coimbra. A.
Amado, 1959.
108
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Dentro da estrutura jurídica romana, esta Moral acima citada é a
que vai, depois de uma escalada de caráter aperfeiçoador, gerar a célebre ubicação dos direitos consagrada pela Jurisprudência romana: Jus
Naturale (já revestido de um caráter essencialmente humano), Jus
Gentium e Jus Civili. E isto nada mais é que uma representação da
refração da Norma Fundamental, tida aqui, como Direito Natural comum
a todas as criaturas, em grandes sistemas de normas, que revestidos
de razão pela própria Norma Fundamental admitida como recta ractio,
originam o Jus Gentium, o Direito comum a todos os homens e o Jus
Civile, o Direito voltado para os homens já paramentados de cidadãos.
Com a subdivisão acima denotada pode-se detectar claramente um dos momentos históricos em que mais evidente se faz o instante
em que a Norma Fundamental assume o seu aspecto mecânico, transformando-se, numa das suas vertentes em razão e, posteriormente
assumindo o seu aspecto dinâmico, quando inspira sistemas de normas tais como a Jus Gentium e o Jus Civile.
É também a partir de Roma, que mais claramente, a Norma Fundamental passa a ser compreendida de duas formas, uma filosóficareligiosa, quando admitida como Direito Natural, inerente a todas as criaturas; e outra racional e científica, quando evocada para convalidar
Direitos Positivos que têm a sua eficácia comprovada pela prática.
Esta Norma Fundamental Racional é limitada, até se fundir
com a Norma Fundamental Única, que não é observada pela maioria
dos positivistas que nunca atravessam as fronteiras do empírico e atualmente atribuem o seu embasamento a Hans Kelsen, que, ao contrário, como temos visto, referiu-se, mesmo que indiretamente, a algo
muito mais amplo que somente os aspectos racional e dinâmico da
Norma Fundamental.
A partir de Roma e com o advento do cristianismo, a compreensão da Norma Fundamental passará a se dar sob três aspectos distintos, relacionados ao tripé ciência, filosofia e religião; aspectos estes que vão dividir o pensamento jurídico ocidental, tornando-o ineficiente
na compreensão global dos fatos, pois sem a união e interligação dos
aspectos acima citados, torna-se impossível percorrer o caminho de
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descida entre o mundo das idéias e o mundo do fenômeno, entre o abstrato e o concreto. Destarte, eis também aí, o momento em que o Direito
Ocidental perde o seu fio da meada assumindo três linhas de pensamento distintas e incompletas, pois cada qual carece das outras para se
fazer entender plenamente.
Outro aspecto muito mais sutil, no que diz respeito à compreensão da Norma Fundamental é o conflito que vai surgir entre o racional e o intuitivo. O primeiro limita-se a tudo aquilo que a mente jurídica
compreende e explica tendo como plausível, refutando qualquer
asserção do intuitivo ou mesmo emocional. Algo como: “Posso sentir
ou intuir a Presença da Norma Fundamental mas não posso explicá-la
lógica ou racionalmente, portanto ela não existe”.
Neste momento os cientistas jurídicos parecem desconhecer
que todo o arcabouço jurídico surgiu do pensamento inspirado pela
Norma Fundamental, que nada mais é que a intuição a qual podemos
seguramente admitir como atributo da mesma.
A NORMA DIVINA
Na Idade Média, a Norma Fundamental deságua em três vertentes de convalidação do Direito. A primeira é a baseada na razão,
admitindo então o Direito como ciência e tornando-o falho e limitado. A
Segunda convalida o Direito como religião, tornando-o dogmático. A terceira convalida o Direito como filosofia, tornando-o teórico e abstrato.
Por se tratarem de vertentes da mesma Norma Fundamental,
as três precisam de interação e isso não acontece tornando frágeis as
bases dos estudos jurídicos e da sua conseqüente aplicação.
Certamente, um dos pivôs desta separação foi o catolicismo
que com a Teologia veio ofuscar a pura Filosofia, tida como pagã e a
ciência, mais tarde, tomada como bruxaria. As bases, os alicerces e a
lógica da argumentação humana, tão bem como a comprovação científica não foram páreo para as verdades eternas da Teologia, que
combatiam a disseminação do conhecimento por ser este obra de
Satanás a corromper os fiéis, mantendo assim ignorantes os crentes
através do medo.
Numa primeira pincelada, podemos encontrar neste momento
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histórico a Norma Fundamental personificada por um Deus
temperamental, vingativo e tirano. Um Deus que criou o homem sem
saber ou não se ele queria ser criado. Um Deus que criou as normas
de conduta que devem ser cumpridas ante a ameaça de castigos terríveis e do fogo do inferno. Um Deus que faz e desfaz sem dar maiores
explicações estando escudado por uma porção de dogmas. Um Deus
passional, seletivo e injusto que “escolhe” os melhores dentre os seus
filhos. Um Deus que desvirtua a Norma Fundamental violando três dos
seus principais atributos, a equanimidade, a harmonia e a justiça.
Certamente que estamos falando do Deus “pintado” pela Igreja Católica Medieval.
Percebendo essa disparidade, Santo Agostinho, tal como
Platão, estabelece duas cidades ou mundos, a Civitas Dei e a Civitas
Diaboli109 , correspondendo a primeira à Igreja ao mundo das almas
perfeitas e sem pecado, similar ao mundo das idéias de Platão, e a
segunda, ao mundo dos homens, o estado pagão que deve colocar o
seu poder a serviço de Deus (leia-se Papado), similar ao mundo do
fenômeno de Platão. Esta é a idéia central da Patrística.
Talvez por ter levado uma vida pagã antes de se converter,
Santo Agostinho teve uma visão mais ampla da interação existente
entre o homem e a natureza e propôs assim a união entre as duas
cidades (Civitas Dei e Civitas Diaboli), a qual caracterizaria
rearmonização entre o homem e a natureza, restituindo então à Norma Fundamental o seu atributo de Harmonia.
Com muita propriedade, Santo Agostinho estabelece uma Lex
Aeterna e atribui a esta a ordem, definida no De Civitate DeiI, 19/13
como “a disposição de coisas iguais e desiguais, dando a cada uma o
lugar que lhe corresponde”. E também estabelece a Justiça, que tal
como Cícero define no De Finibus 5, 23, 67: é “a tendência da alma
de dar a cada um o que é seu”.
Quando Santo Agostinho fala em tendência da alma, imediatamente nos reportamos à intuição que é inspirada pela Norma Fundamental e que fala para o homem através de um animus, energia ou
109
AUGUSTINE. De civitate Dei.
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suposta alma. É esta aquela centelha inspiradora da qual falamos no
início desta obra, é a presença ou extensão da Norma Fundamental
Única dentro de cada ser humano.
Indubitavelmente, pode-se aqui, tomar a ordem como Harmonia e Equanimidade e juntá-la com a Justiça para que obtenhamos a
versão agostiniana da Norma Fundamental. Mesmo assim o próprio
Santo Agostinho, dentro da sua discursiva, não consegue encontrar
uma Justiça absoluta e perfeita, tal como deve ser admitida a Norma
Fundamental, concluindo que esta Justiça só existirá se houver seres
desiguais e coisas desiguais, o que nos leva, por outro lado, a concluir
que se um dia houver igualdade e total Harmonia entre os seres, não
haverá mais a necessidade de Justiça.
Agostinho toma a Justiça como Eqüidade, e a eqüidade implica em certa igualdade que não existe na Civita Diaboli, mas sim
somente uma eqüidade que é tomada como dar a cada um o que é
seu o que implica numa certa distinção das coisas. Ora, como tal distinção não se alcança se todas as coisas forem iguais, daí conclui-se
que a Justiça não seja possível sem uma certa disparidade e
dessemelhança que se observa nas coisas110 . Assim, conclui-se que a
Justiça, seguindo este caminho será, sempre, relativa e sua forma de
virtude absoluta se encontra somente na Norma Fundamental Única.
Seguindo a esteira deixada por Santo Agostinho, oito séculos
depois, São Tomás de Aquino procura, através da Escolástica reunir
num só arcabouço a razão ou ciência, a filosofia e a religião que mais
do que nunca busca a razão.
São Tomás corrobora também os preceitos de Santo Agostinho e da própria Norma Fundamental por nós proposta, quando assevera que “nada há no intelecto que não tenha estado nos sentidos”111 .
Pois anterior à razão é a intuição que é uma inspiração ou manifestação
da Norma Fundamental.
São Tomás é bem claro quando expressa a existência de três
espécies de Leis, que podem ser claramente denotadas como verten110
111
AUGUSTINE. De Quantitate animal, 9/15
THOMÁS AQUINAS. Suma Teológica, II
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tes da Norma Fundamental estribadas no tripé Ciência, Filosofia e Religião. São elas: a Lex Aeterna, admitida como sendo de natureza divina
e conhecida parcialmente pelo homem mediante as suas manifestações
através do Direito Natural; a Lex Naturalis, conhecida pelo homem através da razão, o que representa uma tentativa de compreensão do Direito Natural e por fim da Norma Fundamental; e a Lex Humana, criada
pelo próprio homem estruturando os mais variados sistemas de Direitos Positivos.
Olhando-se por um outro prisma, pode-se também chegar à seguinte conclusão: Lex Aeterna , aspecto estático; Lex Naturalis, aspecto
mecânico e Lex Humana, aspecto dinâmico da Norma Fundamental.
Tendo em vista que estes três momentos da Norma Fundamental dependem um do outro, torna-se evidente a impossibilidade de conciliação e de retorno à Norma Fundamental, posto que os três
momentos ou Leis entram em conflito, principalmente entre a Lei Humana, a Lei Eterna, pois a obediência à primeira não pode entrar em
choque com a Segunda, tornando-a um dogmatismo. Quem deveria
conciliá-las é a Lei Natural, mas não o faz por ser mal compreendida
pelo homem.
Poder-se-ia admitir a hipótese de se considerar a Norma Fundamental como sendo a própria Lex Aeterna, mas deste modo estaríamos dogmatizando-a.
Sabiamente, baseado em Aristóteles e numa tentativa derradeira de conciliamento através dos Universais, São Tomás propõe que
de certa forma, a Norma Fundamental inspira cada indivíduo de maneira
diferente, fazendo de cada qual um microcosmo a parte, e que isto deve
ser compreendido pelos preceitos da Lex Naturalis para que a Lex
Humana reconheça essa individuação na prática e torne a convivência
harmônica, o que não acontece.
Estas diferenças se alargam ainda mais, quando Dante Alighieri
separa de vez o Estado da Igreja no seu De Monarchia. Assim, a ciência
e a religião tornam-se antíteses e a filosofia, torna-se marginalizada.
Diante do acima exposto, conclui-se que na Idade Média a
Norma Fundamental se personificou num Deus criador de uma Lei EterRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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na, não deixando de perder a sua definição kelseniana de premissa
maior e fundamento de validade de uma ordem jurídica, mesmo
não sendo isto admitido dentro de uma visão totalmente positivista.
A NORMA COMO “COISA EM SI”
Através do que temos discorrido até então, podemos perceber
que os Sistemas de Normas, aos quais, hoje, chamamos de Direitos
Positivos, derivam de um vasto conjunto de normas naturais e morais
que, por sua vez, derivam de uma Lei irrestrita.
O homem, que através da sua noção imperfeita do Justo cria o
Legal, também é parte desta normativa irrestrita, derivada desta Norma Maior que, justamente, inspira aquilo que é legal, numa tentativa de
aproximá-lo do Justo, que ainda foge da sua compreensão, devido às
suas diferenças, diversos pontos de vista e variadas maneiras de entender a seidade do Justo, que acaba por se tornar relativo. Isto nos
leva a concluir que estamos tratando de um universo normativo múltiplo e ao mesmo tempo uno, onde a lei maior e anterior a todas as
outras, fundamentando-as e convalidando-as, é o que comungando com
o termo empregado por Hans Kelsen, chamamos de Norma Fundamental.
Em bem observando estas assertivas e conclusões, iremos
perceber que entre o múltiplo e o uno existe uma relação de uma
norma para muitas normas e vice-versa. Nesta visão de norma para
norma e de norma para múltiplas normas, percebemos que o plano
geral desse desenvolvimento necessita de uma norma superior, por
nós chamada de Norma Fundamental. Mas que norma é essa, já que
passamos por uma porção de seus aspectos, atributos e características, sem ainda chegar à sua unidade?
Seria ela a Mônada Pitagórica? A Recta Ratio romana ou a Lei
Aeterna dos tomistas? Ou todas elas são manifestações da Norma
Fundamental?
Para respondermos a essa pergunta, indo diretamente à Norma em si, valemo-nos de todo o constructo kantiano que de uma maneira mais objetiva e independente de muitas analogias, leva-nos ao
limiar de uma fronteira gnoseológica.
Através do glossário kantiano podemos começar a classificar
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a Norma Fundamental, independentemente, dos seus atributos, aspectos e manifestações, tomando-a como pura, o que, na terminologia
kantiana é aquilo que independente da experiência, sendo a experiência a percepção sensível. Ora, a Norma Fundamental não pode ser
experimentada por sensações ou comprovada pela prática. Ela não é
empírica e sua constatação pode se dar de uma maneira muito mais
sutil e imperceptível aos cinco sentidos, sendo que ela pode ser sentida como uma inspiração ou uma intuição; assim a Norma Fundamental torna-se o objeto de estudo de uma estética transcendental, ou
seja, “a percepção sensível daquilo que existe em si e por si, de modo
absoluto, independente de mim”112 e de qualquer outro fator, pois qualquer que seja o modo de como um conhecimento possa relacionar-se
com os objetos, aquele em que essa relação é imediata e que serve de
meio a todo pensamento, chama-se intuição. Mas esta intuição não
tem lugar senão sob a condição de nos ser dado o sujeito, e isto só é
possível, para o homem, modificando o seu estado de espírito, de certa maneira. Quando falamos em mudança de estado de espírito, nos
referimos a uma abertura mental e perceptiva, um pouco maior, e que
abranja não só aquilo captado pela razão, mas também o que é captado pela emoção que recebe representação dos sujeitos, segundo a
maneira como eles nos afetam, denominado-se sensibilidade. Os sujeitos e os objetos de estudo nos são dados mediante a sensibilidade
e somente ela é que nos fornece intuições; mas é pelo entendimento
que elas são pensadas, sendo que dele surgem os conceitos. Concluindo, há então uma escala axiológica para a compreensão daquilo que
é transcendental, tal qual a Norma Fundamental, e ela inicia, num primeiro e principal momento na intuição, passando depois pela sensibilidade
e por último pelo crivo da razão, para que possa então ser emitido um
conceito. Evidentemente que esta intuição não é empírica, pois a Norma Fundamental não nos afeta através de sensações e portanto ela não
é um fenômeno, já que não pode ser percebida pelos sentidos, mas sim
noumeno a coisa em si, subsistindo em si mesma.
112
MEREGE, J. Rodrigues de, (Trad.). Kant, Crítica da razão pura. Rio de Janeiro. Ediouro.
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De acordo com os preceitos da estética transcendental113 , a
Norma Fundamental existe em si e por si, independente de mim e do
conhecimento do mundo externo, sendo ela um dado obtido pela experiência do espírito. É portanto um objeto da intuição mediante as duas
formas necessárias dessa intuição que são inerentes ao nosso espírito,
sendo suas características ou até modos de manifestação. Estas formas são o tempo e o espaço, que segundo a concepção kantiana não
existem na realidade externa, pois são forma do espírito humano, porque tudo o que existe, existe no espaço e se o espaço fosse uma realidade ele poderia existir nele próprio, o que não acontece.
Por outro lado, tudo quanto se passa, existe no tempo e o
tempo não pode ser concebido como existindo nele próprio, a não ser
como frações de tempo. Logo, espaço e tempo não existem no mundo
externo, porque são formas do nosso espírito, necessárias para que
possamos receber dados da sensibilidade, conformando-os com as
duas formas que já estão no nosso espírito.
A Norma Fundamental, como já foi dito em linhas anteriores é
atemporal e aespacial, ou seja não está contida nem no tempo e no
espaço, pois independe de ambos, mas é através deles que se explica, pois sendo coisa em si, tal como o tempo ela não pode existir em
si mesma, a não ser frações dela como as normas fundamentais
menores que fundamentam a validade de sistemas de normas, tal
como uma massa de espuma, que seria a Norma Fundamental, contendo em si milhões de bolhas que seriam as normas fundamentais
menores fundamentando a validade destes sistemas de normas, também bolhas; reportando-nos novamente à idéia de um universo
normativo uno e múltiplo, onde existe a relação da Norma Fundamental para com todas as outras normas menores.
Desta forma, a Norma Fundamental é noumeno, mas que não
se apresenta para nós através do fenômeno, a intuição dos objetivos
exteriores e a que o espírito tem de si mesmo, representada nas formas do espaço e do tempo, justamente pelo fato de a Norma Fundamental não poder ser representada no tempo e no espaço, sendo uma
113
BENTON, William. Kant. Chicago: University of Chicago, 1984.
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grandeza do mesmo quilate.
Seria então a Norma Fundamental um juízo sintético a priori?
Juízo, na terminologia kantiana é o ato mental pelo qual se afirma ou
se nega algo de algo. Seria tal como uma opinião verdadeira ou falsa.
Para que seja sintético, ele necessita de um atributo ou predicado que
acrescente algo à compreensão do sujeito, diferente do juízo analítico,
que prescinde da experiência, sendo independente dela ou a priori. A
pergunta então seria, como podemos atribuir à Norma Fundamental
predicados tais como a Verdade, a Justiça, a Harmonia, etc.? Através
de qual experiência chegamos a estas conclusões? Ou seriam elas
inatismos, idéias e princípios independentes da experiência, que já
pertencem à natureza das criaturas e que as intuem à busca da Verdade, da Justiça, da Harmonia etc.; e que constituem-se como atributos
da Norma Fundamental?
Sendo a Norma Fundamental a formulação de um juízo sintético desvinculado da experiência, é então possível a existência de todo
o arcabouço jurídico. Ao contrário, se impossível for tal formulação, é
impossível também a existência mesma do que chamamos de Direito.
Daí, conclui-se que a Norma Fundamental, é transcendental e
é coisa em si, mas não pode ser percebida através do tempo e do
espaço, sendo ela mesma uma forma do espírito humano. A Norma
Fundamental não está em nenhum outro lugar, mas em nós mesmos,
tal como um beep que nos direciona ao encontro da nossa própria
moral superior, ou mesmo uma força que nos impele a atingir um
estágio de consciência moral cada vez maior.
A NORMA DIALÉTICA E A SUA RESPIRAÇÃO
As bases do pensamento dialético se perdem nos tempos, pois
que todo o processo de qualquer produção filosófica ou teórica está
baseado, de certa forma, na Dialética. Temos no oriente, como seu
precursor Lao-Tse e mais tarde na Grécia, vamos encontrar em Heráclito
de Éfeso a afirmação do devir como essência das coisas, o que
acarreta numa das principais contribuições dos juniores da escola Jônica
para as construções filosóficas futuras. Heráclito preocupou-se em
descobrir o elemento básico do universo e conciliá-lo com o princípio
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da mutabilidade do ser. Assim, é possível, já de antemão, concluir que
assim como em tudo, o ser humano é mutável também no seu modo
de pensar e no seu comportamento, derivado de uma moral também
mutável por excelência. Admitindo-se então a existência de um elemento básico que seja responsável por essa mutação; a essência pois
que donde todas as diversas morais se originam, a centelha que as faz
serem expressas no mundo exterior com maior ou menor intensidade.
Eis mais uma vez a presença da Norma Fundamental como o ponto de
partida, pois este logos de Heráclito tem sentido de proporção, lei ou
princípio de medida e ordem que engendra a Harmonia das forças em
oposição. Com esta visão, Heráclito inaugurou uma concepção bastante fecunda, ligando as noções de racionalidade, vida, ordem e equilíbrio
ao princípio único do ser em perpétua mutação. O que são a Ordem e o
Equilíbrio senão atributos da Norma Fundamental que os inspira ou intui
através da racionalidade.
Na escola Eleática essa visão, de certa forma, é corroborada
por Parmênides que admite a essência do ser como idéia, o que para
nós não deixa de ser também o berço da Moral, pois é através da idéia
pensada que surgem as inclinações para isto ou aquilo, o que nada
mais são do que atitudes morais. Estas inclinações são inspiradas pela
Norma Fundamental através da idéia. Podemos parecer estar sendo
por demais abrangentes ou mesmo abstratos, mas é realmente este o
caminho que devemos tomar, pois desde o princípio desta obra temos
afirmado que a Norma Fundamental inspira o agir que gera então o
devir, que promove o confronto dos diversos agires mediante uma
argumentação racional. Segundo Armstrong114 , a lógica de Parmênides
constitui o ponto de partida da dialética platônica, da lógica aristotélica
e de toda a tradição ocidental em matéria de raciocínio filosófico, tradição esta que temos seguido até então. A doutrina de Parmênides foi
confirmada por seu discípulo Zenão de Eléia a quem se atribui hoje a
paternidade da sofística, que não deixa de ser uma forma de dialética que
sempre nos levará, ao fim das contradições e indagações a um princípio
114
AMSTRONG, A. H. Introducción a la Filosofia Antígua. Trad. De Carlos A. Fayard, Buenos Aires.
Eudeba, 1968 p.17
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intransponível, que para as ciências jurídicas é a Norma Fundamental.
Dois mil e trezentos anos depois, com a sua Fenomenologia do
115
Espírito , Georg Wilhelm Friederich Hegel, mostra-nos a dialética interna do espírito até chegar ao começo do filosofar, o que para nós é de
fundamental importância como indicativo de algo que incita essa dialética
interna, fazendo-a produzir efeitos tais como o pensar e a própria Moral.
Este pensar difere do conhecer que nada mais é que ver o que as coisas são, já que o pensar é um momento inicial, denominado anteriormente por Kant como conhecimento transcendental.
A lógica de Hegel é uma dialética do ser, o que naturalmente
evolui para uma dialética do agir, um logos do ente estruturado num
constructo ternário composto por três momentos distintos, dinâmicos
e sucessíveis: a tese, a antítese e a síntese; encontrando cada fase a
sua verdade na seguinte e tornando-se afinal uma síntese que volta a
ser o ponto de partida, ou seja, uma tese ou idéia é proposta até que
para ela surja uma idéia contrária, uma antítese. Há então o conflito
das duas até que venham a gerar uma síntese, que passa automaticamente a ser uma nova tese para a qual então surgirá uma antítese, e
assim sucessivamente e infinitamente. No que se refere ao Direito e à
nossa temática, este constructo não é diferente, pois a Norma Fundamental, através da razão, engendra a Moral, que ao ser exteriorizada e
conformada aos padrões sociais então vigentes, transforma-se em
Ética, ou seja, a moral intrínseca. Estes padrões sociais podem ser representados pela Política, a moral extrínseca. Quando então surge um
conflito entre a Ética e a Política, ou seja, entre o indivíduo e a sua
sociedade representada por um sistema normativo; é invocada então a
Justiça para resolver esse conflito, ou seja, extrair a sua síntese a qual,
devido à constante mutação dos costumes e dos sistemas de normas,
não demorará para se transformar em tese em relação à um novo
paradigma normativo.
Corroborando ainda com os primeiros momentos deste nosso
trabalho, a relação dialética ainda nos mostra claramente os três aspectos da Norma Fundamental, à medida em que ela se fragmenta no
115
BENTON, William. Hegel. Chicago: University of Chicago, 1984 v. 46
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mundo dos fatos. Por si, a Norma Fundamental é o aspecto estático,
em seguida, ao permear a razão e engendrar a Moral, ela se encontra
já no seu aspecto mecânico. Finalmente, quando a Moral gera intrinsecamente a Ética e extrinsecamente a Política, atingimos então o
patamar do aspecto dinâmico que se perpetua ante os conflitos, entre
éticas e políticas e as soluções temporárias da justiça racional e
positivista.
É uma característica da filosofia hegeliana o estudo dos princípios básicos do Direito, investigando primeiro a lei decorrente da Moral
e finalmente a Ética, no âmbito da qual Hegel descreve o Estado como
realização culminante do Todo e como concretização da Ética na sociedade, em detrimento da Política. Tais conceitos são considerados por
Hegel não abstratamente, mas sim dialeticamente em desenvolvimento, pois do seu ponto de vista, assim como do nosso, progredimos do
Direito Abstrato116 para o Estado Concreto. Lei, Estado e Ética são
expressões de um desenvolvimento histórico, o qual é a manifestação
de um espírito ou norma natural racional; e esses espíritos ou normas
naturais nacionais, em sua integridade, constituem manifestações do
espírito universal tido para nós como Norma Fundamental. Por isto,
os Estados finitos, tal como são tratados no Direito Privado, são contínuas aproximações em relação a um Estado desejável, cada vez mais
harmônico com aquela perfectibilidade que a Norma Fundamental
nos inspira a galgar, pois como disse o próprio Hegel sentenciando o
senso comum: “Le plus grand ennemi du Bien c’est le Meilleur”117 .
O Estado concebido por Hegel está fundamentado em três
aspectos que emanam e fluem da e para a Norma Fundamental. O
primeiro aspecto da sua idéia de Estado, tem realidade imediata na
Constituição, ou o que Hegel designa por lei interior do Estado, para
nós a lei nacional positivada. O segundo aspecto modela a relação
entre Estados no Direito Internacional, e a isto chama Hegel de lei
exterior dos Estados. O terceiro aspecto, é a idéia geral como espírito
que se realiza no processo da história mundial. Por essas noções, o
116
117
FRIEDERICH, Carl J. Perspectiva Histórica da Filosofia do Direito. Zohar. Rio de Janeiro. 1963
The Philosofy of Hegel, ed. Friederich.
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136
Estado é não só visto como um todo modelado pelo Direito, mas é colocado num contexto cósmico de significado universal. A idéia legal do
Estado constitui assim o poder espiritual que está legitimado por uma
ordem superior do ser, a que chamamos de Norma Fundamental, que é
o juiz absoluto, e todas as tentativas para formar uma corte supernacional
estão , como uma paz duradoura, voltadas a ser apenas relativas e limitadas. Afirma Hegel que: “O único juiz absoluto, que sempre predomina e é contra todas as particularidades, é o espírito que está em si e
por si mesmo e que se apresenta como o operador eficiente e geral da
história universal”118. Esta seria então uma definição de Hegel para aquilo
que chamamos de Norma Fundamental, e com ela Hegel dissolve todas
as outras normas menores e vínculos fixos, e tudo aquilo que parecia tão
seguro e legalmente ordenado se torna fluido, somente orientado para a
possibilidade do êxito harmônico e perfectível, sendo sempre julgado a
sua luz. É este um tapa de luvas na soberba dos racionais, agnósticos,
materialistas, cépticos e positivistas que pretendem ser o homem o autor de uma harmonia e encadeamento de leis, que ele sequer entende
na totalidade.
O Estado como ordem jurídica do povo, é animado por este
espírito que se designa espírito universal ou Norma Fundamental e
ingressou inspirando na fase da história mundial. Por conseguinte, temos uma razão de Estado metafísica, que de certa forma o diviniza
na premissa de que se trata daquele Estado que o espírito universal
ou Norma Fundamental inspirou em determinado momento. O Estado
é portanto, na visão hegeliana, um simples meio para a realização da
idéia do espírito universal, que é a liberdade de galgar os degraus da
Harmonia, da Paz, da Justiça, etc., encetando assim uma espécie de
caminho de volta à seidade da Norma Fundamental ou espirito universal. Como Montesquieu, Kant e outros filósofos liberais do Direito, Hegel
coloca à frente de toda a sua Filosofia do Direito, a idéia de que o homem deve ser livre, pois é essa a verdadeira essência humana, e, ao
tornar-se consciente de sua verdadeira essência, o homem descobre o
seu verdadeiro destino. Com isto ele corrobora uma vez mais o aspecto
118
The Philosophy of Hegel, ed. Friederich, p. 284.
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dinâmico da Norma Fundamental que é o caminho rumo ao Justo, onde
a total liberdade do ser estará em total harmonia com a natureza cósmica, dispensando a existência da Justiça como é atualmente concebida.
Tenha-se aqui, o Justo, como atributo da Norma Fundamental.
Sedimentando as nossas palavras, Hegel acerta que:
“A base da lei e do Direito é totalmente o espiritual, sendo seu
ponto de partida a vontade (Moral) que é livre. A liberdade constitui sua
substância e seu fim, e o sistema jurídico é o domínio da liberdade
realizada, o mundo do espírito criado pelo espírito com sua segunda
natureza”119 . Apesar de por alguns ter sido considerado como um representante da escola Histórica, Hegel postava-se em franca oposição à mesma, justamente por ela se basear no tradicionalismo e por
não ir além das fronteiras da cultura do povo, da qual decorre o Direito,
sendo esta uma atitude passiva, comodista e de certa forma
segregacionista. Pois a escola Histórica tratava os espíritos nacionais
como entidades fechadas em si mesmas, sem qualquer sujeição ao
espírito universal ou Norma Fundamental, dado que, nesta escola teve
lugar a virada para o positivismo histórico. De acordo com Savigny,
existe “uma conexão orgânica entre Direito, natureza e caráter de um
povo”, já que “o que os une num todo são as crenças comuns do povo,
o mesmo sentimento de necessidade interior, que exclui toda a idéia
de uma origem acidental e arbitrária”120 . Bem, o que Savigny chama
de origem acidental e arbitrária nada mais é, do que a Norma Fundamental ou espírito universal; ele a denomina desta forma simplesmente por não admiti-la ou talvez por não conhecê-la, fazendo “das tripas
coração” para resumir todo o arcabouço harmônico das leis de um
povo à mera criação deste mesmo povo. Isto condiz com a empáfia dos
positivistas em querer atribuir ao homem imperfeito a autoria do Justo,
que ele nem ainda sabe exatamente o que é, e se o sente muito que
parcialmente também não sabe explicar como isto acontece. Perguntar-se-ia, então, aos historicistas, de onde, então, vem essa inspiração cultural? O que move estes povos para que criem os seus Costumes?
119
120
BENTON, William. Hegel. Chicago. University of chicago, 1984.
Geschichte des Romischen Rechts im Mittelalter (6 vol. 1815-31). Preâmbulo
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138
A vontade moral, evidentemente. E de onde ela vem , senão de uma
norma maior, a Norma Fundamental.
A dialética proposta por Hegel, não é a atividade externa de um
pensamento subjetivo, mas é a própria alma do conteúdo, que organicamente projeta seus ramos e raízes, tal conteúdo é a inspiração, o sopro
do espírito universal. A ciência jurídica tem apenas a missão de tornar
consciente essa racionalidade inerente dos objetivos e não querer ser a
responsável pela sua criação. A dialética do Direito é o reconhecimento
da alma da lei que permanece imutável enquanto em torno dela, as normas primárias por ela inspiradas evoluem num ininterrupto vir a ser,
como que descendo para o mundo dos fatos e depois iniciando um caminho de volta para o âmago desta mesma Norma Fundamental e consigo levando aqueles a que a ela se harmonizam, mudando e aperfeiçoando as relações humanas na busca infinita do Justo. Assim, todas as
formas de leis e todas as suas fases parecem estar em circuição; elas
circulam pelo mundo dos fatos e regressam por rotas definidas (Harmonia, Justiça, Ordem, Bem). Estas emanações ativadas da Norma Fundamental Absoluta parecem sair e entrar em ciclos perenes e de proporções gigantescas. Toda a emanação que inspira morais, que engendram normas e que geram leis é uma coisa só, originalmente proveniente da Norma Fundamental. Esta emanação, depois de completar o seu
circuito, no mundo dos fatos, para a sua fonte, retorna. A Norma Fundamental é o útero das várias formas de normas e leis respirando em
ciclos de expansão e contração, sístole e diástole.
Concluindo, o devir da Norma Fundamental sai dela e retorna
para ela, sendo ela mesma. O Direito, é assim um processo em constante evolução. Todas as leis dimanadas do homem, no mundo externo
são efêmeras e “aparentemente” finitas, pois não se extinguem, mas se
transformam quando exurgem novos paradigmas legais. Isto nos faz reportar a Lavoisier, quando afirma que, “nada se cria, nada se perde,
tudo se transforma”. Em cada mutação permanece uma centelha, um
núcleo perene que é a idéia da Norma Fundamental que participa da
essência do infinito. Esta é a dinâmica da Norma Fundamental, sua
dialética que em torno de si mesma forma uma espiral sempre crescente, dela saindo e a ela retornando:
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A NORMA ABSOLUTA
NOÇÕES PRELIMINARES
Na sua obra Teoria Pura do Direito121 , sabiamente, Hans Kelsen
admite ser a Norma Fundamental o fundamento de validade de uma
ordem normativa, ou seja, o princípio de tudo, o conceito maior; um
território pouco explorado, onde os juristas parecem se recusar a colocar os seus pés, “colher algumas amostras da terra” e tráze-la ao mundo dos fatos para que seja analisada. A confusão começa já pelo fato
da Norma Fundamental fazer parte do “mundo das idéias” e isto gera
um grande preconceito da comunidade jurídica, principalmente por parte daqueles que estão plenamente convencidos de que o Direito é uma
ciência e se sentem muito incomodados quando são chamados a voltar os olhos para um lado mais profundo e ainda mais eclipsado pelas
especulações, ora, segundo eles, não é ciência e trata-se de uma perda
de tempo tentar descobrir “o sexo dos anjos”.
Todo estudo que passa do patamar epistemológico para o
gnoseológico gera esse tipo de crítica, pois através dos tempos a
Metafísica tem sido marginalizada por todos as searas do conhecimento, mas, estupidamente, o que os cientistas parecem ignorar é que
tudo principia neste campo, “maldito ou bendito”, e fatalmente nele terminará e assim é a Norma Fundamental. Por que será que o homem
tem esse medo de buscar as origens, as origens de seu pensamento, o
encontro consigo mesmo?
Hans Kelsen parte da premissa de que o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma
superior e assim sucessivamente. Mas até quando? Até sermos obrigados de nos defrontarmos com as fronteiras do desconhecido; sim pois
qualquer norma, presume-se também que deve ser posta por uma autoridade e está ótimo, até o patamar em que esta autoridade é desconhecida.
Para que não nos percamos em conjecturas inúteis, tomemos
como exemplo a conduta do indivíduo, de onde vem ela? Certamente
a resposta mais plausível seria que ela decorre do meio, principalmente
dos seus pais e posteriormente dos seus educadores e daí por diante.
Perguntar-se-ia então donde vem a conduta dos pais e educadores e
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responder-se-ia que ela é advinda dos seus antecessores ou mesmo
da Política do Estado e assim retroceder-se-ia até um determinado
ponto, o início de tudo, se é que ele exista. É exatamente aí que entra
a Norma Fundamental, hipotética ou não ela é uma convenção que
marca a estaca zero, assim como o zero é para a Matemática. De
qualquer modo podemos ir além, pois convenção ou não, temos que
nos perguntar como a Norma Fundamental inspira tantos diferentes
indivíduos a se conduzirem de tão diferentes formas, criando tantos
diferentes sistemas, e leis, e correntes, e ideologias, e direitos que
mais tarde, acabam por sufocar e tolher os seus próprios criadores.
Muito bem, num determinado momento, acertadamente, concluímos que, a sociedade hodierna está estruturada por uma porção de
paradigmas sociais que de certa forma conduzem o indivíduo a fazer
isso ou aquilo, porque todos os outros também o fazem, ou seja, esses
paradigmas impõem que se deve ser de determinada maneira, que
pode muito bem ser diferente daquilo que se realmente é. Isto é injusto
e sufocante, servindo ao Direito como uma luva, uma vez que se todo
conjunto de normas provêm da Norma Fundamental, então, há sinal de
que há algo muito errado com a sua interpretação ou então não haveria
tantas Constituições diferentes e digladiando-se entre si, não haveria
tantos indivíduos dissociados. Se a função do Direito é promover a Harmonia, então que se tente fazer da melhor maneira possível, e isto começa por se ver a Norma Fundamental por um novo prisma, como uma
realidade cada vez mais presente.
Assim como fez Hans Kelsen, tomemos como fulcro da nossa
discussão, um dos mais conhecidos conjuntos de normas da história e
um doa mais antigo que se tem notícia: Os Dez Mandamentos. Diz-nos
a história que Moisés subiu ao Monte Sinai e lá permaneceu durante
quarenta dias e quarenta noites para que Deus lhe passasse as leis
máximas gravadas na pedra. De qualquer modo ninguém sabe o que
realmente aconteceu lá e se realmente aconteceu, o que importa é que
se admite a interferência de um poder “desconhecido e externo” no intuito de ajudar a conduta humana. A própria história admite tão bem este
poder quanto o Direito que se fulcra, até os dias de hoje, em alguns dos
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Mandamentos para elaborar alguns dos seus mais complexos sistemas
jurídicos. Bem ou mal está se atribuindo à uma força exterior, um Deus, a
autoridade competente que, automaticamente, se torna a sua Premissa
Maior, a qual não é, cientificamente, ou empiricamente comprovada, neste momento, então, o Direito perde o seu atributo de ciência, pois mais
a frente veremos que é impossível desvincular o Direito Positivo do Direito Natural, sendo o último pai do primeiro.
Vamos então à hipótese de Deus não ter “ditado” para Moisés
os Dez Mandamentos e vamos admitir que ele, cansado de tentar guiar um povo ignorante e indisciplinado, cansou-se e inventou toda essa
história para colocar-lhes medo e melhor podê-los controlar; ainda assim resta uma “inspiração” que assaltou a idéia de Moisés e o fez
redigir os Dez Mandamentos e é para esta inspiração que queremos
chamar a atenção, é ela que talvez possa expressar em poucos traços
o que seja um sopro da Norma Fundamental que inclina o indivíduo a
agir, harmoniosamente, no seu modus vivendi, para que não prejudique
o fluir natural das coisas; que o ensina que matar o próximo é errado
pois estará infringindo uma lei natural, ou então se deve amar os seus
inimigos tal qual disse Jesus centenas de anos mais tarde.
Não havendo nenhum Deus para controlar, o indivíduo poderia se sentir muito à vontade para fazer o que bem entendesse e teria
sido muito mais fácil para Moisés que ele tivesse abandonado o seu
povo ou mesmo se aproveitado do seu poder por usar seus seguidores da maneira que bem entendesse, transmitindo-lhes mandamentos
tais como: “O Mundo é dos Espertos”, “Quem não Almoça é Jantado”,
“Matar o Próximo é um Ato de Coragem”, “Fornicar Faz Bem Para
Saúde”, ou simplesmente “Sejam o Que São e Façam o Que Quiserem, que Estarão Agindo de Acordo com a sua Natureza”. Mas não, os
Dez Mandamentos vieram justamente para indicar uma conduta para
colocar os indivíduos em harmonia entre si e para com a natureza, daí
podemos extrair um dos primeiros atributos inerentes à Norma Fundamental, a harmonia. uma de suas funções é promover a harmonia,
isso se ela não for a própria harmonia.
E por que será que a maioria prefere agir harmoniosamente
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para se sentir de certa forma melhor? Por que obedecemos os Mandamentos de Deus? Por que faz bem obedecê-los e agir em conformidade com a harmonia da natureza? Temos livre arbítrio oras, e poderíamos muito bem obedecer os mandamentos do diabo, mas isto, de outra forma não estaria de acordo com os desígnios da nossa consciência, ou pelo menos de quem a tem. Podemos aí apontar outra nuança
da Norma Fundamental ou um instrumento através do qual ela se
manifesta: A Consciência. Talvez seja ela a responsável pela razão de
o indivíduo obedecer os Mandamentos de um Deus que ele não tem
certeza que existe e de se sentir bem por isto.
Assim mesmo, Harmonia e Consciência não são suficientes
para transmitir a idéia da magnitude da Norma Fundamental, pois ainda há muitas questões pendentes tais como: se a premissa maior é
que a norma seja convalidada por uma Norma Superior ou ditada por
uma Autoridade competente, cabe-nos perguntar: Quem ou o que dita
as Normas e por que as dita? Qual é o seu interesse em ditar normas e
por que a grande maioria cumpre estas normas? O que realmente se
ganha com isto?
Por mais absurdas ou remotas que estas perguntas possam
parecer, certamente há um porquê e há também um limite até o qual
existirão respostas, pois tal é a magnitude da Norma Fundamental que
ela, por vezes, nos escapa à compreensão, justamente por também limitarmos a nossa exegese aos paradigmas científicos. Já nos reportamos à Norma Fundamental como infinita e onipresente, mas vale ainda
enriquecer esta definição tão abstrata admitindo-a num aspecto estático como fonte da Ordem Cósmica, num aspecto mecânico como distribuidora desta mesma ordem e num aspecto dinâmico como
aplicadora desta ordem que, através de um processo de infinita meiose
se transforma em um sem número de normas.
Todas as normas brotam desta fonte e de algum modo a ela
regressam, promovendo a eterna dinâmica do vir a ser, pois trata-se
da Norma Primordial da qual emanam todos os pensamentos revestidos de conduta. Ilimitada, ela nunca pára de criar, pois é dela que se
extrai a harmonia e sua centelha dorme em cada ínfima facção da
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143
natureza. Só a Norma Fundamental pode ser admitida como correta,
enquanto intocada pela invocação dos homens imperfeitos, que através de suas diferenças transformam-na em normas menores inerentes ao seu status quo, alterando assim o curso dos conhecimentos; e
podemos já concluir que ninguém a dita porque ela é ingenita e existe
por si mesma.
Estamos cientes que neste início de trabalho, a nossa retórica
está assumindo características tomistas, mas este tipo de abordagem
se faz necessária para o bom fluir desta memória.
A Norma Fundamental não é um acidente cósmico e tampouco
uma experiência em andamento, pois de algum modo só ela se auto
avalia e contempla o seu fim escatológico, já desde o seu início. O
Demiurgo122 a ponte entre a Norma Fundamental e o mundo dos fatos
e que parte da sua própria essência existe em cada elemento da natureza, pois tal qual o dente de uma gigantesca engrenagem, cada ser,
cada elemento é parte integrante e indispensável da realização última
desta Norma Fundamental, assim todas as coisas têm em si um fim
dentro de um objetivo maior.
Nos seres humanos, essa essência da Norma Fundamental
existe tal qual um dom e habita o pensamento de cada ser e os faz
parte dela, como os dentes de sua engrenagem.
Dentro de todo este contexto podemos comparar a Norma Fundamental com o cérebro humano que é responsável por todas as atividades do corpo, num aspecto mecânico e também pela função de
todos os outros órgãos deste mesmo corpo, desde as vísceras maiores até os próprios átomos que o compõe; isto admitindo-se um aspecto dinâmico. Disto conclui-se de que se o cérebro não existir, ou morrer, o corpo deixará de exercer atividades dotadas de sentido e passará a viver, temporariamente, “através de aparelhos”, como que num último sopro de dinâmica.
Se nos reportarmos à Metafísica, poderemos afirmar que a
Norma Fundamental seja compatível com a energia, espírito ou ao
Animus que habita e vivifica cada corpo. Daí admitimos que a Norma
122
BENTON, William. Plato. Chicago: University of Chicago, 1984 v.7
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Fundamental está presente em cada elemento e o inspira para que caminhe rumo a um fim maior.
Destarte, podemos admitir a Norma Fundamental como um círculo, sem princípio e sem fim, comparando-a com o zero da Matemática ou com a Nômada de Pitágoras.
Enfim, a Norma Fundamental somos eu e você e a cumprimos instintivamente, porque dela fazemos parte, tal qual um dos dentes da engrenagem.
Na sua Teoria Pura do Direito123 , Hans Kelsen parece vencer
todos os obstáculos, abrindo na mata fechada do positivismo pragmático uma picada que conduz à clareira da compreensão maior da Norma
Fundamental, ou pelo menos, até o início dela. Assim sendo, não se
sabe porque Kelsen abre tantos precedentes e quando parece estar na
iminência de uma conclusão surpreendente, ele nega o seu próprio raciocínio alegando que a sua investigação não pode se perder no interminável. Talvez o que Kelsen não tenha percebido, e se o fez não quis
demonstrar, é que a Norma Fundamental é o próprio “interminável”. Por
esta razão ele elege uma pressuposta última norma a ser posta por
uma autoridade também pressuposta que teria se fundado numa norma
ainda mais elevada; esta no caso seria hipotética ou fictícia, tal qual
uma convenção (reportemo-nos novamente ao zero da Matemática), um
conformismo do ser humano ante à realidade que o cerca, uma espécie
de medo de ir além e de encontrar algo para o que não esteja preparado, de certa forma um medo de descobrir a sua própria verdade.
Vale alertar, que até esta parte deste trabalho estivemos falando a respeito de uma Norma Fundamental Mater ou Única, mãe de
todas outras normas, diferentes das várias outras normas fundamentais que convalidam normas menores formando diferentes sistemas
de normas ou ordens normativas. Este tipo de norma fundamental
menor é tratado por Kelsen como fonte comum de validade de todas
as normas pertencentes a uma mesma ordem normativa, sendo o seu
fundamento de validade comum. Podemos concluir, rapidamente que
estas normas fundamentais menores nada mais são do que facetas de
uma mesma Norma Fundamental tida aqui por nós como Mater.
123
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 3ª ed. (edição brasileira), 1991
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145
OS ASPECTOS DA NORMA
Hans Kelsen postula dois princípios para a Norma Fundamental,
segundo a natureza do fundamento de validade, o que distingue dois
sistemas distintos de normas, o estático e o dinâmico.
Como a nossa abordagem, neste início de trabalho tem sido
até então voltada para a Norma Fundamental como um todo, vamos primeiramente, visualizá-la, dentro do mesmo discurso de Kelsen, só que
num momento anterior e isto nos faz atribuir não princípios, mas sim
aspectos da Norma Fundamental enquanto única, enquanto todo.
Assim como o próprio universo tem seus aspectos, assim também a Norma Fundamental. Se nos reportarmos rapidamente à Teologia poderemos comparar a Norma Fundamental ao próprio Verbo por
Deus pronunciado; estariam então embutidos neste ato dois aspectos,
o estático e o mecânico que significa o ato de se fazer com que se crie.
Assim temos o Logos Supremo como algo estático até que ele vibre e
diga para que se crie – a aplicação de uma norma – o que podemos
identificar como um aspecto ou momento mecânico. Posteriormente a
isto teremos então o que passa a se criar e a se multiplicar. Do primeiro impulso, do primeiro toque passa a desenvolver-se uma série de
processos de criação que prosseguem já, independentes, de que se
tenha de pronunciar o Verbo novamente, este é o aspecto dinâmico.
Aspecto porque tratamos aqui de um mesmo Universo cuja trajetória se
divide entre o incriado e o criado, mas ambos dentro de um mesmo
contexto.
Na astronomia, não é diferente, supõe-se que havia uma espécie de ovo cósmico que, um dia após violentas pressões internas
passou a se expandir, a partir do Big-Bang. Essa expansão tem continuado então até o presente e se prolongará até que toda essa massa
em expansão sofra uma suposta resistência externa, sendo obrigada
a recuar, o que é chamado de Big-Crush, para que então novamente
seja condensada num ínfimo e pesadíssimo ponto que novamente
sofrerá uma pressão interna e explodirá num novo Big-Bang. Expandindo e recuando, expirando e inspirando, eis aí então a respiração do
universo. Disto então temos claros os seus três aspectos: o ovo cósmiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
146
co aspecto estático; a explosão, o aspecto mecânico; a expansão, o
aspecto dinâmico. A dinâmica se perpetua enquanto toda a massa ou
estelar, estiver se expandindo ou recuando.
Tal qual o universo, a Norma Fundamental é única e também
obtém estes três aspectos. Como existência perene, ingênita e infinita,
ela se apresenta, num primeiro momento, como coisa em si, como Norma
não interpretada e preexistente, assim este é o seu aspecto estático.
No momento em que ela inspira qualquer tipo de ato ou de
conduta, ou, por outro lado, fundamenta e convalida um ato, uma
conduta, uma moral, podemos então avistá-la no seu aspecto mecânico, pois há uma ação direta, uma aplicação que importa em moção
ou uma espécie de vibração ou movimento. É justamente o momento
em que a Norma Fundamental, simultaneamente, fundamenta a validade e o conteúdo de outras normas.
Onipresente, a Norma Fundamental está sempre ali e em tudo,
assim depois da sua primeira invocação ela nunca mais deixará de
inspirar e fundamentar tudo o que é dela advindo, não só as autoridades ou as normas que venham imediatamente abaixo dela como também as outras milhares de autoridades e normas que forem pelas
últimas fundamentadas e convalidadas; e assim sucessivamente e infinitamente. Eis aí então o seu aspecto dinâmico, onde a Norma Fundamental funciona só como fundamento último de validade.
Em suma, no aspecto estático é a própria existência da Norma Fundamental. O seu aspecto ou momento mecânico se dá quando
é reproduzido o seu conteúdo e desta reprodução se produzem novas
normas independentes, o que caracteriza o aspecto dinâmico.
Cremos que a linha de pensamento acima apresentada não
difere do que postula, Hans Kelsen. O que muda é só o vernáculo, pois
ao invés de aspecto, ele usa o vocábulo princípio e os reduz a somente
dois. Segundo Kelsen124 no principio estático a Norma Fundamental
fundamenta e convalida a conduta (o que seria para nós já o aspecto
mecânico). Em seguida esta conduta enquanto a idéia fundamentará e
124
Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martbns Fontes, 3ª Ed. (edição brasileira), 1991
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pronuncia o Verbo, ou seja, a inspiração pela Lei; e finalmente atribuímos ao aspecto dinâmico a qualidade de Espírito, que pratica o Verbo, ou seja, a prática e o desenvolvimento da Lei.
E a Lei inspirou o homem que desenvolveu a Moral.
OS ATRIBUTOS DA NORMA FUNDAMENTAL
A tarefa de atribuir qualidades à Norma Fundamental certamente, não é algo simples e talvez nem nos competisse, mas algumas
nuanças se fazem claras e outras, em admitindo a sua pressuposta
perfeição nos fazem especular a respeito de uma Norma que nunca
recai na ambigüidade do que é relativo, pois como já mencionado antes é quase impossível extrair de qualquer seara do Direito nuanças
que expressem a sua quintessência, livre dos fantasmas da relatividade. Portanto, extrapolando os limites do transcendental e do metafísico,
passaremos a elencar alguns atributos que possam caracterizar a
Norma Fundamental.
Dentro de que entendemos como Ciência do Direito nada
iguala a sua amplitude, entendimento e grandeza. Seus desígnios parecem, a principio, impenetráveis e tudo o que emana dela é igualmente infinito, transpondo barreiras de tempo e espaço, neles(tempo
e espaço) apenas assumindo novas maneiras de se apresentar. Seu
real julgamento do que é certo ou errado, bom ou mau, belo ou feio, é
também impenetrável; tão bem quanto a sua noção acerca das polaridades, se é que elas existem no seu conceito(só há dualidade ou
polaridade quando a Norma Fundamental se fenomenaliza), pois sendo única, perfeita e nunca relativa, a Norma Fundamental é a única
norma absolutamente correta e aquela que expressa a exata noção
do sujeito, pois a Justiça é também uma manifestaçãos. Impenetráveis
também são os seus meios de julgar, fundamentar e convalidar outras
normas. A única coisa que se sabe é que no Direito a Norma Fundamental é a fonte e a distribuidora universal. Todas as normas brotam dessa
fonte e para ela regressam, até mesmo aquelas normas dadas como
falhas ou geradoras de injustiças. É ela a Lei Primordial Suprema e Ilimitada da qual emanam todas as leis, todo o Direito criado e aquele por
criar. Apesar de admitirmos “pressuposta” esta perfeição da Norma FunRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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damental, vale salientar que tratamos dela aqui como uma realidade e
não como uma simples enteléquia. Do acima exposto, concluímos que a
Norma Fundamental é infinita, perfeita e até certo ponto impenetrável.
A Norma Fundamental é En Sich a não mudança, pois na condição da Lei Única Universal não existe possibilidade de variação. Somente no mundo fenomênico, onde há a dualidade, é que ela mesma
promove o eterno vir-a-ser que dela parta e até que ela volta e, num círculo
o qual já exemplificamos com a Mônada de Pitágoras. Destarte, nenhuma
infração de qualquer norma do mundo dos fatos viola os desígnios da
Norma Fundamental, mas, pelo contrário, a iniqüidade cumpre o seu papel. Como diria Immanuel Kant, as mudanças de forma, de lugar ou de
tempo que parecem transformar a Norma Fundamental, são reflexos dos
inúmeros, relativos, imperfeitos e falhos sistemas de normas espalhadas
pelo mundo, estruturando mais de duzentos Direitos Nacionais; pois a
Norma Fundamental Única é Imutável.
A Norma Fundamental, como já foi dito antes, não é um acidente ou uma experiência, mas sim tem em si uma razão de ser, sendo
reta em todos os caminhos, pois é só assim que ao final se obtém a
Justiça. Tal é a sua retidão que ela se refrata existindo em cada ser
como consciência, fazendo de cada qual o seu próprio juiz. Eis aí o
grande julgamento e a grande Justiça da Norma Fundamental, que neste patamar, assume a nuança de Lei de Causa e Efeito, tendo como
atributo a equanimidade que gera a equidade.
Uma vez, cada qual tendo consciência dos seus atos e de que
para toda causa existe um efeito, será capaz de realizar o seu próprio
julgamento e criar a própria Justiça, é por isto que é tamanha a relatividade da Justiça humana comparada à verdade da Norma Fundamental.
Se pudéssemos estabelecer um fundamento para a Justiça da
Norma Fundamental, certamente seríamos obrigados a fundá-lo na
Sabedoria e na Misericórdia, tomando todo o cuidado possível para
não atribuir à Norma Fundamental, uma personalidade, pois ela não é
ente, não é uma forma de inteligência, mas sim uma coisa em si dentro da mais precisa definição kantiana. Seria então essa Sabedoria
infinita o juiz que determina as proporções da Justiça e a Misericórdia
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que a cada qual correspondem, assim sendo, tal é essa Sabedoria que
mesmo o mal pelo mal, o erro completo, o delito voluntário, o dolo e a
iniqüidade pela iniqüidade também fazem parte da Sabedoria da Norma Fundamental tendo a sua razão de existir e conduzindo as relações humanas à um fim último, mas ainda desconhecido, intuindo o ser
humano que o mal sobrevive em razão de uma misericordiosa tolerância, que serve às criaturas dotadas de vontade para que descubram
por si mesmas, o que é justo e eqüitativo. Eis aí então outro atributo da
Norma Fundamental, a Justiça.
A Norma Fundamental faz da Justiça e da Misericórdia uma
unidade, alcançando assim a Eqüidade. Pode parecer estranha a inserção do atributo Misericórdia à Norma Fundamental e principalmente o vínculo estabelecido entre essa e a Justiça, mas assim é, pois a
Misericórdia não é, como aparenta, uma violação da Justiça; ao contrário, é uma compreensiva interpretação das exigências da Justiça,
quando esta é aplicada com Eqüidade. A Misericórdia é um atributo
que ajusta as imperfeições humanas que geram infrações, pois não há
um só indivíduo igual ao outro e assim também são as suas morais,
portanto cada caso é um caso e deverá ser julgado sempre em separado, pois cada qual tem a sua maneira de sorver e entender da Norma Fundamental, pois são também diversas as maneiras que ela inspira a conduta de cada qual, proporcionando a cada um a faculdade do
livre-arbítrio. Devido à relatividade da Justiça humana, existe embutido na
Norma Fundamental este atributo que é ferramenta para que bom uso dela
se faça para que as normas não se tornem arbitrárias, a Misericórdia.
Sendo a fonte de todas as leis morais, a Norma Fundamental
implica em retidão e esta, retidão se esparge inspirando todas as condutas, desde as mais primárias e instintivas, transpondo as barreiras
impostas pela Recta Ractio romana que é a zona limítrofe entre o instinto e a razão. Assim sendo, podemos atribuir à Norma Fundamental
uma existência imanente em cada elemento da natureza, inspirandoos sempre para que preservem a harmonia e a ordem natural. No homem, ela é a chispa ou centelha da razão, o que podemos chamar de
Consciência.
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Podemos arriscar a concluir que a razão de ser e a causa da
existência da Norma Fundamental, é a perene harmonia, isto se ela
mesma não for a própria Harmonia.
Os últimos atributos que podemos conferir à Norma Fundamental são a Beleza e a Verdade, pois ambos se confundem de tal
sorte que, dentro da totalidade da Norma Fundamental, não se sabe
onde começa uma e onde termina a outra. a Verdade é bela porque é
completa e simétrica, não se tratando de uma ilusão ou de uma
enteléquia. A Verdade da Norma Fundamental que podemos chamar de
uma Verdade Pressuposta e Desejada é tão certa e real quanto a
própria Grande Norma. Como já foi dantes dito, o homem conhece somente pequenas partes desta Verdade e as interpreta relativamente identificando a Verdade com aspectos e conceitos limitados da realidade
que o envolve, tal qual o seu sistema de normas vigentes, pois por mais
que viva em sociedade, cada ser humano só está capacitado a descobrir algumas das milhares dessas verdades parciais inerentes à sua
conduta e à sua individualidade. O fato, porém, é que nem fundindo essas miríades de verdades relativas, lograríamos a posse da Verdade
última, inerente à Norma Fundamental.
A Verdade e a Beleza fazem com que delas brote um atributo
acessório, que poderíamos denominar Bondade, mesmo não sendo a
Norma Fundamental um ente ou uma personificação, ela traz no seu bojo
a noção de uma Bondade impessoal e desprovida de personalidade,
inerente à sua perfeição como Norma Maior. A Verdade, a Beleza e a
Bondade são realidades da Norma Fundamental que não podem ser
separadas, pois toda Verdade é bela e boa. Toda Beleza, material ou
intelectual, é boa e verdadeira e toda Bondade, quer se trate de
moralidade pessoal, eqüidade social ou de ministério jurídico-normativo,
é igualmente bela e verdadeira. É através da sua centelha imanente em
cada ser que a Norma Fundamental inspira a verdade destes valores
intuindo o homem a buscar uma felicidade e uma paz que só são encontradas dentro da Harmonia.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
152
A NORMA COMO CONSEQÜÊNCIA
Em se admitindo os preceitos da escola histórica, concluiremos
que cada povo tem um espírito ou alma, que se manifesta numa série de
produtos do espírito popular, tais como a Moral e o Direito, que nascem,
espontaneamente, sem a intervenção do legislador. Portanto a Moral e
o Direito nascem do homem como fato natural.
A Moral, como verificaremos a posteriori, é por nós tida como
o embrião do Direito, sendo ela a responsável pela sua razão de existir. Muito bem, esta é uma linha bastante positivista, pois o princípio de
tudo é o homem que através da sua razão desenvolve uma moral, a
qual depois de passar pelos juízos de valor, vai assumir um caráter ético, tornando-se comum a todo o grupo e assumindo o caráter de norma.
Um determinado povo cria então o seu sistema de normas e o adota,
tipificando-o ou não, na forma de leis; eis então que se cria seu Direito
Positivo Nacional, assim como outras sociedades, já devidamente, politicamente, organizadas, o fazem também. Para medir as diferenças
entre estes vários Direitos Positivos Nacionais, surge então o Direito
Internacional, o qual buscará uma Lei Equânime e equivalente para todos estes povos. Se o Direito Internacional, fosse realmente eficaz, não
haveria mais guerras, portanto conclui-se que ele ainda não atingiu a
sua quintessência e tenta ser único e comum, buscando inspiração em
uma norma superior justa, equânime, verdadeira e única para todos os
povos. Esta seria, então, a Norma Fundamental Única por nós admitida.
O que estamos demonstrando aqui, é a hipótese contrária, admitindo a Norma Fundamental como o produto mítico ou hipotético do
“inconsciente moral coletivo”, que gera normas menores, que se transformam em normas cada vez maiores, até chegarem num ponto culminante, onde o Direito não mais responde e do qual não é possível se ir
além. Assim a Norma Fundamental seria um produto da moral humana e
uma barreira final e intransponível para o Direito, ao contrário do que admitimos neste trabalho, enfocado na Norma Fundamental kelseniana que
é uma premissa maior e anterior a toda e qualquer forma de Direito.
A proposta aqui é não consentir outra Norma Fundamental, senão a personificação das normas secundárias, formadoras dos sisteRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
153
mas de normas maiores, numa conseqüente Norma Fundamental
antropomórfica, que na verdade não é premissa maior e nem geratriz,
mas sim o resultado de uma infinidade de poderes criadores humanos,
que, coletivamente, formam uma norma comum e eterna, cuja essência é inescrutável, e daí que não seja objeto de especulação para
nenhum filósofo verdadeiro.
Em se nos reportando aos arcaicos da escola atomística na
Grécia antiga, podemos, através de analogia, conceber que o elemento básico do Direito seria a Moral, isto é, a primeira forma de conduta
racional, a qual se diferencia de homem para homem, dependendo da
sua localização no tempo e no espaço. Assim do turbilhão decorrente
dos entrechoques destas morais formar-se-iam as normas e organizar-se-iam os sistemas jurídicos, pelo princípio da afinidade entre morais de natureza similar, e a conseqüente expulsão das morais diferentes. E assim sucessivamente até atingirmos o Direito Internacional e
por fim a Norma Fundamental, a qual podemos chamar aqui de Norma Conseqüente, ou mesmo região limítrofe.
Contentar-nos-íamos com tal hipótese tão racional e positivista
se não nos viesse à mente a pergunta: Donde vem a Moral? A resposta então seria: ela nasce do homem. É um produto da mente humana.
Mas e a mente humana? Empiricamente falando ela é matéria(massa
encefálica) e a Moral um tipo de pensamento, raciocínio ou intuição
submetida aos juízos de valor. É enfim uma espécie de animus ou
energia. Seria cabível então afirmar que tal energia provém da matéria? Então ter-se-ia de afirmar também que a matéria é antecessora da
energia e não uma forma densificada da mesma. A pergunta continua,
de onde vem a Moral? Ela vem da razão que, de certa forma, racionalizou o instinto. Então, por que houve essa transformação, este elo tão
mal explicado? De qualquer modo, donde vem o instinto? É uma lei
natural, responderiam alguns. E o que é ou donde vem tal lei natural? Para
encerrarmos esta especulação teríamos de nos deter novamente numa premissa maior, numa Norma Fundamental, o que nos faz descartar desde já,
a possibilidade de a Norma Fundamental ser um produto meramente histórica ou cultural. Isto revelaria muita ignorância e mediocridade.
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154
Podemos, ao contrário, completar a nossa teoria com o fator
histórico, o qual não deixa de ser uma ferramenta ou um acessório
para o desenvolvimento de um Direito, anteriormente, inspirado.
O que se constata ainda, é que não importa para onde se vá,
para frente ou para trás, o encontro com a Norma Fundamental é inevitável, pois como veremos no decorrer deste trabalho, é dela que surge o Direito e é a ela que o Direito busca como sua realização máxima.
A RELATIVIDADE DA JUSTIÇA
Como Hans Kelsen preza por abordar a pureza da norma, não
poderíamos encerrar este capítulo sem esta pequena análise sobre o
papel das normas advindas da Norma Fundamental dentro das relações humanas e na preservação da Harmonia entre estas. Em linhas
anteriores escrevemos sobre como a Norma Fundamental inspira a
conduta humana, gerando o livre-arbítrio de cada indivíduo que o expressará diante de outros milhares de indivíduos, cada qual com o seu
livre-arbítrio gerando conflitos de ordem moral, ética e política. Para
tentar solucionar estes problemas surge então a Justiça, mas será que
ela é eficaz?
A relatividade é, sem sombra de dúvida, a maior fraqueza da
Justiça, pois os fatos geradores de normas mudam de lugar para lugar, povo para povo, tempo para o tempo, pessoa para pessoa. A Justiça, como produto de uma relação dialética, está sujeita à
temperamentalidade e aos caprichos do eterno vir a ser, pois cada
Pessoa Física ou Jurídica, interpreta as nuanças da Norma Fundamental de maneira peculiar, assim sendo, o que é certo, politicamente
correto, ético, moral ou justo para um, não o é para outro. Basta que
nos detenhamos para analisar o panorama jurídico dos diversos Estados independentes do mundo e veremos que a norma não consegue
de fato ganhar o adjetivo pura, pois sua interpretação é sui generis e
totalmente influenciada por uma vasta quantidade de elementos, tais
como as religiões, os preconceitos, os Costumes, enfim, tudo o que
vem a formar o arcabouço chamado de Direito Natural.Nada mais natural, pois, seria impossível fazer com que a mente e o comportamento
humano destilassem uma Norma Pura, no que diz respeito à sua
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155
suscetibilidade ao vir a ser e ao ponto de vista de quem a aplica. Se
nos reportarmos à Francis Bacon125 , no seu Novum Organom encontraremos os elementos que “poluem” a Justiça. É claro que Bacon se
refere à Ciência, mas basta que a substituamos pela Justiça. Francis
Bacon nos dá cinco grupos de elementos capazes de macular a pureza de qualquer conceito. São eles: idola tribus, idola specus, idola teatri
e idola fori .
Para melhor ilustrarmos, basta colocarmos a Justiça como o
núcleo destes elementos, que em torno dela gravitam. Primeiro os idola
tribus, que podem muito bem representar toda e qualquer influência
das idéias comuns, como os Costumes, os paradigmas e a Política;
são interferências de caráter extrínseco. Já os idola specus são as
influências pessoais e psicológicas de cada Pessoa Física - principalmente juristas e jurisconsultos – sobre o conceito de Justiça, tais
como as diversas morais, os preconceitos, as crenças pessoais, os
medos, os desejos, os sonhos, etc. Enfim, são as impressões pessoais ou o ponto de vista que cada qual tem acerca da norma e sua
eficácia. Estas são interferências de caráter intrínseco. Podemos classificar os idola tribus e os idola specus como principais, e os idola
teatri e idola fori como acessórios devido à sua subsidiariedade em
relação aos primeiros, pois os idola teatri nada mais são do que o
desvirtuamento das correntes, transformando-as em ideologias de toda
sorte. São as armadilhas do intelecto contra si mesmo e não podemos
deixar de fora todas as formas de fanatismo, politicagem e demagogia
que nada mais são que dramatizações que desfocam e viciam o verdadeiro sentido do Justo.
Por fim os idola fori representam a traição da palavra ao conceito, principalmente no que se refere à interpretação e à confusão
que se faz ao definir e distinguir a Moral da Ética, ambas da Política e
as três da Justiça. Assim sendo as doutrinas, as teorias e os próprios
Direitos Positivos acabam por se perder na distinção e na tipificação
do que é imoral, antiético, politicamente incorreto ou por fim, injusto.
Podemos concluir que é, humanamente impossível extrair um
125
BENTON, William. Francis Bacon/ Novun Organum Chicago: University of Chicago 1984 V.30.
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conceito único e comum de Justo. Resta-nos assim que nos reportemos
aos objetivos da Justiça tão bem como aos paradigmas imutáveis que
ela almeja, que são o Bem, o Bom, o Correto, o Belo, a Harmonia, a
Paz, o Justo, enfim o Perfeito. Bem sabemos que o ser humano não é
perfeito e o que vem dele também não pode sê-lo, de qualquer modo
como já afirmamos em linhas anteriores há uma Norma Fundamental
que “hipoteticamente” detém todos esses atributos e que inspira o indivíduo a buscar uma forma cada vez mais aperfeiçoada de aplicação e
interpretação da Justiça. Podemos dizer que Têmis ainda está longe
de se deixar compreender e envia sempre Diké como sua porta-voz,
sendo a última o canal, a ponte entre sua mãe e os mortais.
Enquanto houver homens diferentes, haverá justiças diferentes e enquanto se tentar torná-la comum, haverá sempre um lado da
balança que pesará mais. E como solucionar este problema? Considerando que cada caso é um caso, é único, assim como cada indivíduo o
é, e a Justiça deve ser aplicada com igual distinção, mantendo-se “una”
e ao mesmo tempo nos apresentando uma nuança específica para
julgar cada ato e principalmente para dizer o Direito.
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Viena: Springer Verlag, 1963.
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TRABALHO TERCEIRIZADO E FRAUDE NA
LEGISLAÇÃO TRABALHISTA
VANDERLEI SCHNEIDER DE LIMA
PROFESSOR DE DIREITO DO TRABALHO NA FACULDADE MATER DEI.
MESTRE EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PELA UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE PONTA GROSSA
RESUMO
O texto trata de uma modalidade de trabalho terceirizado mas carente de
regulamentação legal, o qual vem sendo utilizado no mercado de trabalho de
forma cada vez mais freqüente. O autor revela, no trabalho, preocupação
com esses trabalhadores terceirizados, os quais estariam sendo fraudados
em seus direitos trabalhistas. O texto denuncia a falácia neoliberal segundo
a qual a flexibilização do Direito do Trabalho e o afastamento do Estado das
relações entre capital e trabalho são medidas emergenciais necessárias para
solucionar o problema do desemprego no Brasil.
ABSTRACT
The text is about a way of third labor but that doesn’t have legal laws, which
has been used in labor area frequently. The author reveals, in the study, worry
about these third workers, who would be being frauded in their rights. The
text accuses the new liberal idea in which the flexibilization of the Labor Law
and keeping away the Satate from the relation between capital and labor
would be emergencial necessary ideas to solve the unemployment in Brazil.
PALAVRAS CHAVE - Direito do Trabalho; trabalho terceirizado;
flexibilização do Direito Trabalhista.
O respeito aos direitos do cidadão não depende só das leis. Ele é conquistado
por uma postura individual reivindicatória e pela ação organizada das forças
populares que possibilitem, entre outras coisas, a superação da mentalidade
do ‘levar vantagem’, expressa até nas pequenas atitudes do dia-a-dia, segundo
a qual todo abuso do espaço alheio é legítimo.
Marly Rodrigues, In: A Década de 80
Apesar da ausência de regulamentação legal para a modalidade
de trabalho terceirizado126 , este tipo de prestação laboral tem sido utilizado
no mercado de trabalho de forma cada vez mais freqüente.
126
Por iniciativa do Poder Executivo foi criado o Projeto de Lei nº 4.302/98, o qual dispõe sobre as relações
de trabalho na empresa de trabalho temporário e na empresa de prestação de serviços a terceiros.
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160
Segundo o professor Amauri Mascaro NASCIMENTO (1999, p.170),
sob o prisma empresarial, a necessidade de especialização, o desenvolvimento de novas técnicas de administração para melhor gestão dos negócios e aumento de produtividade, e a redução de custos, fomentam a contratação de serviços prestados por outras empresas, no lugar daqueles que poderiam ser prestados pelos seus
próprios empregados, expediente que tem ensejado inúmeros conflitos na Justiça do Trabalho.
Terceirização designa o processo de descentralização das atividades da empresa, no sentido de desconcentrá-las para que sejam
desempenhadas em conjunto por diversos centros de prestação de
serviços e não mais de modo unificado numa só instituição.
Os processos de terceirização do trabalho, decorrentes da
competitividade interna e externa e das crises cíclicas do capitalismo,
parecem acenar para o retorno a sistemas de locação de serviços e de
empreitada do Direito Civil, embora sob outros rótulos (locação de serviços, parceria, cooperativas...).
Este retrocesso é visível, nas relações de trabalho, quando do
incremento da utilização de contratos típicos do Direito Civil como o de
parceria, onde o trabalho é prestado de modo autônomo (pessoa física), ou como pessoa jurídica, para uma empresa, participando do seu
processo produtivo de modo independente, ou na locação de serviços,
onde a contratada compromete-se a locar a sua atividade à contratante,
mediante um preço.
Acontece que este tipo de relação de trabalho tem suscitados
inúmeros problemas quanto à eficácia protetiva do Direito do Trabalho.
A possibilidade para-legal da terceirização das relações de trabalho,
convalidada através do Enunciado 331 do TST127 128 , tem contribuído
127
Enunciado 331: I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo
diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso do trabalhador temporário (lei 6.019, de 3-1-74)
II – A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com
os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional (37, II, da Constituição da República)
III- Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102,
de 20-6-83), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividademeio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV- O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade
subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da
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161
sobremaneira para “quebrar” a necessária rigidez na tutela aos direitos
mínimos consagrados ao trabalhador, colaborando para aumentar os
crescentes índices de precariedade das relações de trabalho no país, e
também, dificultando a prestação eficiente da laboriosa Justiça do Trabalho.
Entre outros prejuízos aos trabalhadores, é imprescindível salientar que esta modalidade de trabalho afeta o núcleo do contrato individual de trabalho da CLT129 . Reduz direitos do empregado, já que a ele
não se aplicam vantagens salariais concedidas aos trabalhadores com
vínculo direto com a empresa principal que se utiliza do serviço,
consequentemente, excluindo os trabalhadores terceirizados de eventuais promoções, prêmios e demais vantagens salariais e de jornada de
trabalho decorrentes de dispositivos convencionais da categoria.130
Afora essas lesões, frustra-se a aplicação da legislação trabalhista, quando a Justiça do Trabalho, no cumprimento de seus julgados
se depara com a responsabilidade apenas subsidiária do tomador de
serviços quanto aos créditos trabalhistas. Isto repercute numa morosidade cruel na efetivação dos direitos dos trabalhadores que se vêem
duplamente lesados, pelo não cumprimento de seus direitos mínimos
por parte da empresa terceirizada e pela dificuldade na execução de
seus créditos, que na maioria das vezes, tem caráter alimentar.131
Em primoroso artigo acerca das perniciosidades do trabalho
terceirizado, Euclides Alcides ROCHA (1995, p. 86-87) alerta que:
O trabalhador brasileiro, a par das inúmeras mazelas que distinguem
administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título
executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666/93).
128
O Enunciado 331 foi aprovado pela Resolução Administrativa nº. 23/93 de 17/12/1993, tendo sido
publicado no Diário da Justiça da Administração Pública de 21 de dezembro de 1993.
129
“O contrato individual de trabalho tem uma estrutura na qual é fundamental a subordinação, entendendo-se como tal a situação em que uma pessoa física se põe, na qual se compromete a prestar serviços
para outra, que tem o poder de direção sobre a sua atividade, independentemente do resultado dela;
presente a subordinação ficam afastadas as outras figuras”. (NASCIMENTO, 1999, p. 171)
130
“O alijamento do trabalhador da empresa contraria de frente o ordenamento jurídico brasileiro, encontrando óbice em princípios e normas constitucionais esculpidos com clareza contundente”. (LEITE, 1979,
p.73)
131
Fato corriqueiro na Justiça do Trabalho é o desaparecimento da empresa terceirizada, que tem
domicílio ficto, razão social forjada e se estabelece sazonalmente para determinados contratos, posteriormente se esquivando das responsabilidades de caráter trabalhista.
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162
(às vezes, vergonhosamente) a sociedade nacional, como a má distribuição de renda e da riqueza, o desemprego e o igualmente degradante e nefasto: sob variadas denominações (locação de mãode-obra, prestação de serviços, intermediação de trabalho, sublocação de trabalhadores, etc.), tem-se praticado no Brasil, escancaradamente e irresponsavelmente, a pura e simples comercialização
do trabalho humano. O contingente humano que tem sido alvo dessa degradante modalidade de mercancia situa-se geralmente na base
da pirâmide social, constituído de trabalhadores humildes,
desqualificados profissionais e culturalmente, desorganizados ou
frágeis sindicalmente. São zeladores, ascensoristas, vigias, telefonistas, porteiros e outros, que formam o quadro dos que se transformam em objeto de uma nova e nefasta atividade empresarial. Lesam-se os trabalhadores, que muitas vezes batem às portas da Justiça do Trabalho para obter o pagamento de salários e indenizações
por extinção dos contratos. Não raro, as citações e, notificações
são cumpridas por edital, porque a ‘empresa’ desapareceu. As execuções, com freqüência, permanecem inconclusas nas prateleiras
dos juízos, inviabilizadas pelo sumiço do empregador. Lesam-se os
cofres públicos, não apenas pela inexecução de contratos celebrados com entes dessa natureza, mas especialmente pela não satisfação de obrigações fiscais, previdenciárias e sociais. A intermediação
ou a colocação do trabalho alheio a serviço de terceiros tem propiciado exploração e lesividade a significativa parcela da população,
constituindo-se num instrumento de agravamento dos níveis de injustiça social.
No mesmo sentido, ainda que analisando a legislação acerca
do trabalho temporário, José Martins CATHARINO (1982, p. 2) discorre sobre essas modalidades de espoliação dos direitos mínimos assegurados aos trabalhadores, recuperando o significado da mais valia:
“Esta contratação transforma o empregado, duplamente, em mera peça
de engrenagem produtiva (não escolhe sequer a quem aderir) e faz
com que ele seja duas vezes espoliado, submetido àquela tensão de
interesses entre duas empresas que buscam lucro e necessitam, pois,
intensificar a exploração da sua força de trabalho, cuja mais-valia
biparte-se em favor de dois patrões”.
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Afora os problemas já suscitados, no cotidiano da Justiça do
Trabalho, facilmente nos deparamos com vários litígios em que se observa um evidente desvirtuamento do disposto na parte final do inciso
III do Enunciado 331 do TST – Não forma vínculo de emprego com o
tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20-683), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados
ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a
pessoalidade e a subordinação direta – onde sob o escudo desta possibilidade, frauda-se e flexibiliza-se direitos inequívocos de trabalhadores cuja atividade funcional não se diferencia dos trabalhadores com
vínculo direto com a tomadora de serviços.132
Ao admitir-se que a terceirização é um processo inexorável na
moderna economia globalizada, não se deve olvidar que a sua utilização incontida tem acarretado enormes prejuízos à classe trabalhadora.
Não sendo possível, ao menos de imediato, expurgar essa forma de
intermediação, ou expropriação, de mão-de-obra, faz-se urgente a regulamentação dessas atividades, no sentido de implementar critérios
rígidos e restritivos para sua contratação, onde se faça presente a solidariedade entre prestadora e tomadora de serviços e vê-se de forma
absoluta a terceirização de atividade fim da empresa, implementandose multas significativas aos fraudadores da futura legislação.
As transformações no mundo do trabalho são as mais inquietantes e as que mostram mais urgência na busca de uma nova organização
social. O momento é de reflexão, porém isso não significa retrocesso,
pois se devem encarar as novas imposições da economia e da tecnologia,
com fulcro no ser humano e não única e, exclusivamente, no capital.133
Devemos desmistificar a falácia neoliberal de que a flexibilização do
Direito do Trabalho e o afastamento do Estado das relações entre capital e
trabalho constituem medidas emergenciais necessárias para solucionar o
132
Há um desvirtuamento das possibilidades previstas no Enunciado 331, quando até mesmo para
realização de atividades fim da empresa tomadora tem se utilizado da modalidade de trabalho terceirizado;
ainda com evidente ocultação da presente subordinação direta e pessoalidade, requisitos inafastáveis
da relação jurídica de emprego.
133
“Se é verdade que o mundo se move e se desenvolve eternamente, se é verdade que o desaparecimento do velho e o nascimento do novo são leis de desenvolvimento, está claro que não há regimes
sociais imutáveis, princípios eternos de propriedade privada e de exploração; que não há idéias eternas
de submissão do camponês, ao proprietário de terras, do operário, ao capitalista.” (POLITZER, 1953, p. 50)
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problema do desemprego vertiginoso que tem assolado o Brasil.
Não se gera emprego com políticas de redução de direitos da
classe trabalhadora. O problema central do desequilíbrio social que alguns países têm enfrentado, no mundo globalizado, passa por questões
conjunturais e estruturais de amplitude bem maior, com destaque para a
dificuldade de se adequar aos avanços tecnológicos, a ausência ou ineficácia de políticas públicas voltadas às questões sociais, a submissão
dos governos ao interesse do capital nacional e transnacional, que acabam por dominar o cenário político do país, e a impossibilidade de expansão econômica e crescimento do mercado em conseqüência de juros altos, os quais estimulam o capital volátil-especulativo que circula nas economias periféricas, em prejuízo aos investimentos no sistema produtivo.
Portanto, do ponto de vista social, é mero simplismo debitar os
problemas do não-incremento do mercado e da diminuição dos postos
de trabalho aos direitos mínimos consagrados aos trabalhadores.
Tenta-se passar ao povo, com muita propaganda, os maiores
absurdos, frutos de uma ideologia de exploração e colonização. É preciso questionar o discurso do governo, principalmente no que respeita
ao processo de globalização, dando conta de que temos que aceitar
os custos sociais decorrentes.134 Ainda que se admita que a globalização
é inevitável, disto não decorre, naturalmente, que devemos aceitar passivamente os efeitos negativos que ela produz em nossa organização social.
Deve-se buscar uma ruptura neste sistema concentrado e realizar uma sociedade mais igualitária no que concerne aos meios e direitos básicos indispensáveis para uma vida digna à população.
Deixemos claro que a defesa de um Direito do Trabalho consolidado, amparado num Estado intervencionista e sob a égide do princípio
de proteção ao trabalhador, reveste-se de certo conservadorismo, porém
se parte da premissa de que um povo que não consegue manter os direi134
“Alertam as vozes dos governantes que as reformas proclamadas e propostas são necessárias em
razão da perspectiva da globalização econômica, que se põe como ponto indiscutível. Mas se globalizar
é integrar numa única economia, de padrões transnacionais e insuscetíveis de serem experimentados,
respeitando-se as culturas políticas, sociais, administrativas, financeiras de cada povo, por que apenas
os países pobres e endividados curvam-se à adaptação de suas idéias de Justiça, estratificadas em
sistemas de Direito, ficando os Estados ricos nas mesmas condições jurídicas, políticas e econômicas
tuteladoras de suas soberanias nacionais?” (ROCHA, 1998, p. 101)
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tos que conquistou a duros fardos é incapaz de vislumbrar novos direitos.
Parece que a terceirização do trabalho não tem contribuído para
atenuar o problema de desemprego crescente que vem assolando o
país, contrariamente, aumenta as estatísticas da precarização do mercado de trabalho. Esta afirmativa coaduna-se com o real intuito da
legitimação do trabalho terceirizado: de um lado a fornecedora de serviços, procurando conquistar fregueses, através de preços atrativos, somente se os seus custos forem mais baixos, de outro, a tomadora de
serviços, procurando obtê-los baratos, com custo inferior ao que teria se
os obtivesse contratando empregados135 . Tudo isso sem que se leve
em consideração os valores humanísticos do trabalho.
Disso decorre ser necessário implementar um regramento rígido para a utilização do trabalho terceirizado, visando coibir a sua prática desmesurada e anular as fraudes a legislação trabalhista.
REFERÊNCIAS
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MELHADO, R. Terceirização, Globalização e Princípio da Isonomia
Salarial. In: Revista de Direito do Trabalho, nº 95, p. 10-25, set. 1996.
135
Exemplo claro se evidencia nas terceirizações ocorridas nas atividades de empresas públicas ou nas
antigas estatais, como de energia elétrica, água e saneamento, telefonia e bancarias. Onde este tipo de
contrato proporcionou a substancial redução do valor da mão de obra, a precariedade do contrato de
trabalho, a maximização dos lucros e não obstante uma enxurrada de ações trabalhistas pela não
observação de direitos trabalhistas. Conforme atesta Reginaldo MELHADO (1996, p. 15) “a terceirização,
muitas vezes imprescindível, enseja distorções mais graves, são ilustrativas do quadro caótico em que
ela se inscreve essas emblemáticas declarações do Chefe de Polícia do Rio de Janeiro (publicadas no
Jornal Folha de São Paulo, em 09.10.1995, p. 02): ‘a polícia paga R$ 1.200,00 para cada faxineiro que
trabalha lá, contratado por uma firma particular. Sabe quanto o faxineiro recebe? Só R$ 100,00. Para
onde vai o resto do dinheiro? Assim fica difícil convencer o policial de que ele não deve ser corrupto.’”.
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NASCIMENTO, A. M. Curso de direito do trabalho: história e
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167
As normais constitucionais que tratam do mandado
de segurança coletivo frente à garantia do acesso à
justiça
José Eduardo Ferreira Ramos
PROFESSOR DE DIREITO DO TRABALHO & DIREITO PROCESSUAL
DO TRABALHO NA FACULDADE MATER DEI. MESTRANDO EM DIREITO
PROCESSUAL E CIDADANIA PELA UNIVERSIDADE PARANAENSE
(UNIPAR). JUIZ DO TRABALHO NO PARANÁ.
RESUMO
O artigo trata do mandado de segurança coletivo como instrumento de
acesso à justiça. Ao retirar do legislador a possibilidade de excluir da
apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, a
Constituição Federal assegura o amplo acesso à justiça, garantia
imprescindível para a instituição do Estado Democrático de Direito, permitindo
o livre exercício dos direitos e garantias fundamentais. Neste contexto
destaca-se o mandado de segurança coletivo como remédio constitucional
destinado a proteger direitos coletivos e difusos, que potencializam, em tese,
milhares de litígios submetidos ao Poder Judiciário. Destarte, urge o reexame
das restrições estabelecidas pelo legislador constituinte no que toca à
legitimidade dos partidos políticos e das associações para impetrar o mandado
de segurança, para extirpar qualquer obstáculo capaz de impedir ou dificultar
a sua plena utilização pelas entidades referidas no inciso LXX do artigo 5º
da Constituição Federal.
ABSTRACT
The article deals with the coletive injunction as an instrument to acssess
Justice. When they take out, from the legislator, the possibility to exculpate
the appreciation of the Judiciary any threatto the right, the federal Constitution assures access to the Justice, necessary guarantee to the institution of
a Democratic State of Law, permiting the free exercise of Fundamental Rights
and Guarantees. In this context the coletive Injunction comes as a Constitutional medicine with the destiny to protect coletive and difuses rights, which
cover, in tesis, thousands of litigations under the Justice Department. This
way, it’s urgent the reexamination of the restriction stablished by the legislator about the truth of Political Parties and associations to stop a injunction,
to take off anything able to difficult its use by entities said in piece LXX of
article 5th of the Federal Constitution.
PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; mandado de segurança
coletivo; acesso à justiça.
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INTRODUÇÃO
No bojo do presente trabalho serão desenvolvidas algumas
reflexões acerca das normas constitucionais atinentes ao mandado de
segurança coletivo que dificultam o amplo acesso à justiça, principalmente no que diz respeito às restrições introduzidas pelo legislador constituinte para a aquisição da legitimidade ativa pelas entidades coletivas
referidas no inciso LXX do artigo 5º da Constituição da República.
Qualquer discussão nesse sentido passa, necessariamente, pela
compreensão da amplitude da garantia do amplo acesso à justiça,
sabidamente encartada no inciso XXXV do artigo 5º da Carta Constitucional, inserido no Título que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.
O estudo desta temática revela, com absoluta nitidez, que a
doutrina e a jurisprudência pátrias não mais se contentam com o circunscrito significado, outrora atribuído à garantia constitucional, ora em
comento, que a equiparava a mero sinônimo de acesso formal ao Poder Judiciário.
Na verdade, impera, hodiernamente, a noção de que o acesso
à justiça ultrapassa o conceito formal supra aludido para, à luz dos
princípios fundamentais consagrados no Título I da Constituição Federal, compreender a entrega de uma prestação jurisdicional efetiva, capaz de assegurar a dignidade da pessoa humana e a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, com a conseqüente erradicação
da pobreza e redução das desigualdades sociais.
Neste contexto, não paira qualquer dúvida a respeito da importância do mandado de segurança coletivo, introduzido pelo legislador constituinte de 1988, enquanto remédio específico de tutela destinado à proteção dos direitos coletivos e difusos, que, indiscutivelmente
merecem especial atenção da ordem jurídica.
No entanto, a despeito de inovar no aspecto em comento, criando instrumento eminentemente democrático e indispensável para a solução de conflitos de amplitude coletiva, paradoxalmente o legislador
constituinte estabeleceu condições insustentáveis para a sua utilização
pelos partidos políticos e pelas associações legalmente constituídas.
As exigências de representação no Congresso Nacional para
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os partidos políticos e de funcionamento há pelo menos um ano para as
associações, instituídas no inciso LXX do artigo 5º da Carta Constitucional, por si só revelam a infelicidade em que incorreu o legislador da
época, na medida em que os requisitos ora mencionados inegavelmente restringem a possibilidade de uso do mandado de segurança coletivo, em nítido descompasso com a garantia de amplo acesso à justiça.
Afigura-se oportuno lembrar que, na defesa dos direitos líquidos e certos, não amparados por habeas corpus ou habeas data, avulta
a importância do mandado de segurança, enquanto remédio que notoriamente permite a prestação de tutela célere, adequada e eficaz, não
obstante a sumariedade da respectiva cognição.
Os breves comentários até aqui expendidos fundamentam, em
síntese, a conclusão lançada ao final, que sugere, em última análise, o
aprimoramento da norma constitucional em relevo, com a conseqüente eliminação das infundadas restrições criadas para o manejo do
mandado de segurança coletivo, sob pena de irremediável prejuízo ao
processo de pacificação, atualmente vindicado pela sociedade.
A Garantia Constitucional do Amplo Acesso à Justiça.
Prescreve o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, que a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Em primeiro lugar, impende recordar que o dispositivo constitucional supra aludido consagra o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que nitidamente proíbe a criação de quaisquer obstáculos capazes de impedir ou dificultar o caminho do cidadão na busca dos seus direitos perante o Poder Judiciário.
Ao analisar o significado do princípio da inafastabilidade do
controle jurisdicional, esclarece Rui Portanova136 :
Quando o inc. XXV do art. 5º da Constituição Federal diz que a lei
não pode “excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão
ou ameaça a direito”, verdadeiramente está abrindo o Judiciário a
todo tipo de discussão.
136
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p.p. 82-83.
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170
Esta abertura, no Brasil, é até maior do que aquela existente na Europa. Nosso sistema é misto do sistema romano-germânico com o
sistema anglo-saxão. Assim, temos uma base predominantemente
legal como o primeiro, mas acesso a discussões de caráter público
como o segundo.
É o que Cappelletti (...) chama de constitucionalismo moderno ou
justiça constitucional. É a nova e grande revolução que, abandonando a idéia da rígida separação dos poderes, busca responder à
trágica experiência de um poder político incontrolado, corrupto e tirânico. Constituições como a nossa confiam a órgão jurisdicionais,
independentes e imparciais, o sistema de controle e atuação da legitimidade constitucional. ‘A Constituição brasileira se insere, portanto, em muitos aspectos, na vanguarda de uma grande tendência
evolutiva contemporânea, uma tendência que . . . tem mudado profundamente a ‘forma de governo’ dos países liberal-democráticos
modernos.
Prudente realçar, no entanto, que o enfoque restrito até aqui
desenvolvido, não se presta a explicar, satisfatoriamente, o verdadeiro
alcance e tampouco a esgotar o conteúdo do dispositivo constitucional
alhures transcrito. Lembre-se que qualquer interpretação literal merece indiscutível repúdio, porquanto, flagrantemente, divorciada da nova
ordem jurídica, instituída pela Constituição da República de 1998.
A respeito do tema, esclarece Cláudio Teixeira da Silva137 :
Cumpre extrair desse dispositivo constitucional não apenas o significado de que a todos é assegurada a possibilidade de ingresso em
juízo (acesso ao Poder Judiciário). Impõe reconhecer incrustada no
conteúdo do princípio analisado a garantia de efetiva realização judicial do direito substantivo (acesso à justiça).
Nos dias de hoje, não se pode mais admitir o entendimento que o
princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional proíbe tão-somente a elaboração e a promulgação de leis que excluam formalmente da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
137
SILVA, Cláudio Teixeira da. Mandado de Segurança – O Princípío da Inafastabilidade do Controle
Jurisdicional e o Prazo de Impetração. In RJ n.º 230. Dez/1996. p. 10.
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171
Tal interpretação superficial do princípio significaria aceitar como
constitucionais normas de lege ferenda que condicionassem o
ajuizamento de ações judiciais ao pagamento de custas elevadas,
ou, então, que estabelecessem absurdamente o prazo de vinte anos
para a prolação de decisão em causas cuja discussão fosse o ressarcimento de danos causados por autoridade pública no exercício
de suas atribuições.
Sucede que a regra inscrita no inciso XXXV do artigo 5º da
Magna Carta, a par de contemplar o princípio da inafastabilidade do
controle jurisdicional, simultaneamente, resguarda a garantia do amplo
acesso à justiça, com a qual o primeiro guarda estreita sintonia. Salienta Rui Portanova que138 :
A preocupação com o acesso à justiça no Brasil, que informa o princípio da inafastabilidade, é uma filosofia libertária, aberta para o social
e para a realidade, que busca, imperativa e ingentemente, métodos
idôneos de fazer atuar os direitos sociais e uma justiça mais humana,
simples e acessível. Enfim, é um movimento para a efetividade da
igualdade declarada e consagrada pelo Estado Social.
(...)
A sociedade brasileira, recém-saída de período extremamente autoritário, ainda vê disseminados resquícios de autoritarismo ... O Judiciário tem sido o local onde se busca evitar pequenas ditaduras.
A questão do amplo acesso à justiça traz indiscutível finalidade
educativa, de verdadeira adaptação de comportamento a tempos
democráticos. Ademais, permite pôr em questão a superação de
eventual descompasso entre uma lei antidemocrática e a dinâmica
da vida. O Judiciário é acessível, ainda, a demandas que evitem um
tratamento exageradamente individualista, na busca de um
enfrentamento coletivizado do direito. Assim, prevalece menos o
ponto de vista do Estado produtor do direito (legislador/lei, juiz/Judiciário), e prevalece mais a ótica do cidadão consumidor do direito e
da justiça.
Na seqüência, reportando-se a Horácio Wanderlei Rodrigues,
138
PORTANOVA, Rui. op. cit. p.p. 83-84.
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conclui que a vagueza da expressão acesso à justiça permite fundamentalmente, dois sentidos139 :
“O primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e
conteúdo que o de Poder Judiciário, torna sinônimas as expressões
acesso à justiça e acesso ao Judiciário; o segundo, partindo de uma
visão axiológica da expressão justiça, compreende o acesso a ela
como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano”.
A formulação do princípio optou pela segunda significação. Justificase tanto por ser mais abrangente, como pelo fato de o acesso à
justiça, enquanto princípio, inserir-se no movimento para a efetividade
dos direitos sociais.
Nelson Nery Júnior partilha da noção destacada pelos
doutrinadores antes citados, alertando que140 :
Pelo princípio constitucional do direito de ação, todos têm o direito
de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Não é
suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela
seja adequada, sem o que estaria vazio de sentido o princípio.
(...)
Nisso reside a essência do princípio: o jurisdicionado tem direito de
obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. A lei
infraconstitucional que impedir a concessão da tutela adequada será
ofensiva ao princípio constitucional do direito de ação.
Proveitoso recordar que o Estado, ao taxativamente proibir a
possibilidade de autotutela privada, obrigando os cidadãos, em
contrapartida, a submeterem as suas pretensões ao Poder Judiciário,
por mero corolário atraiu para si a incumbência de solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses que lhe são colocados à apreciação,
com a prestação da tutela almejada pelos titulares dos respectivos direitos substantivos141 .
139
PORTANOVA, Rui. op. cit. p. 112.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p.p. 100-101.
141
ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O Direito Constitucional à jurisdição. As garantias do cidadão na
justiça. Coordenador Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo: Saraiva, 1993. p.p. 31-51 passim.
140
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173
Não se olvide, a propósito, que a simples proclamação do direito não pode ser interpretada como entrega da prestação jurisdicional
quando desacompanhada de tutela capaz de garantir e assegurar, de
modo adequado e efetivo, a plena satisfação do direito substancial
vindicado.
Daí a advertência de Cláudio Teixeira da Silva142 , no sentido
de que o processo, enquanto instrumento pelo qual o Estado equaciona
os litígios, há de ser
concebido pelo legislador ordinário, compreendido pelo jurista, manejado pelo advogado e aplicado pelo magistrado como instrumento
verdadeiramente adequado à proteção e realização dos direitos subjetivos previstos abstratamente no ordenamento jurídico.
(...).
Resulta, então, que o princípio expresso no art. 5º, XXXV, da CF,
além de vedar as edições de leis que excluam da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, proíbe, também, que o
legislador ordinário elabore normas que restrinjam ou retirem a adequação e efetividade dos instrumentos processuais constitucionais
criados com o fim específico de proteger e garantir determinadas
espécies de direitos.
Afinal de contas, nos tempos atuais, a jurisdição
indubitavelmente, assumiu, na definição de Jônatas Luiz Moreira de
Paula143 , o status de agente de transformação social, de maneira que
É preciso que a doutrina e a práxis jurídica deixem a posição cômoda de “comentar leis”, para criar e realizar o direito objetivo. Para
tanto, é preciso redefinir a figura da atividade jurisdicional frente a
realidade que ele se encontra.
(...)
Não é novidade falar das “responsabilidades sociais” da atividade
judiciária. Essas “responsabilidades” estão previstas até mesmo no
plano normativo, como se pode observar do artigo 5º, da Lei de In142
SILVA, Cláudio Teixeira da. op. cit. p. 10
PAULA, Jônatas Moreira de. A jurisdição como elemento de inclusão social. São Paulo: Editora
Manole Ltda, 2002. p. 197.
143
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174
trodução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657/42). Este dispositivo é
expresso em proclamar: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos
fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
Lamenta-se que a jurisprudência, neste aspecto, não se tem revelado “tão normativista”, pois tal desídia acaba por fulminar interesses
sociais maiores que os interesses governamentais.
Só assim a jurisdição conseguirá alcançar as finalidades e os
objetivos jurídicos, sociais e políticos que lhe são afetos, nos moldes
da ordem jurídica construída pelo legislador constituinte de 1988, nitidamente edificada sob os pilares do Estado Democrático de Direito.
Nesse cenário, resta insubstituível a advertência lançada por
Kazuo Watanabe144 , no sentido de que
a problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se
trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição
estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.
Enfim, é evidente que a garantia consagrada no preceito constitucional ora sub examen exprime-se sob facetas distintas, porém
umbilicalmente, sintonizadas e conduzidas, na sua essência, para o acesso à ordem jurídica justa, que, além de outras garantias conexas, compreende:
a ampla possibilidade de ingresso em Juízo, vedando-se a criação
de quaisquer obstáculos capazes de impedir ou dificultar a postulação
dos direitos, abstratamente conferidos, perante o Poder Judiciário;
o acesso efetivo a uma ordem de valores e de direitos fundamentais, indispensáveis para a sobrevivência do ser humano e para a
pacificação social;
a extirpação de eventuais normas legais destinadas a restringir ou
retirar a efetividade dos mecanismos processuais criados, inclusive
no plano constitucional, com o fito de proteger e garantir determinadas categorias de direitos; e
144
WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido; WATANABE, Kazuo (org.). Participação e processo. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 1988. p.p. 128-135 passim.
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175
a atuação da jurisdição voltada para a concessão de tutela justa,
adequada, eficaz e célere, de forma a viabilizar a pronta realização
dos direitos subjetivos abstratamente consagrados no ordenamento
jurídico pátrio.
Tudo sob pena de prevalecer a mera retórica, sem qualquer
correspondência no plano da realidade, em total desprestígio ao movimento jurídico, social e político que hodiernamente impera,
sabidamente direcionado para a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, capaz de assegurar a dignidade da pessoa humana e
a redução das desigualdades sociais, com a conseqüente erradicação
da pobreza.
MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO
GENERALIDADES
Apoiando-se em Alfredo Buzaid, José Carlos Barbosa Moreira,
Carlos Alberto Menezes e outros doutrinadores, destaca Luís Roberto
Barroso145 que o mandado de segurança, consagrado pela primeira
vez no artigo 133 da Constituição Federal de 1934,
é uma criação tipicamente brasileira, com inspiração no juicio de
amparo do Direito mexicano. Surgiu como síntese da interpretação
construtiva dos tribunais, a partir da doutrina brasileira do habeas
corpus. Seu processo de maturação remete ao Império e aos primeiros tempos da República, época caracterizada por uma grande
carência de meios de proteção do cidadão contra o Poder Público.
Com exceção da Carta de 1937, editada em época de anormalidade democrática, todas as Constituições subseqüentes fizeram
referência expressa ao remédio processual em epígrafe, inclusive a
atualmente vigente, que prevê as suas duas espécies (individual e
coletivo) nos incisos LXIX e LXX do seu artigo 5º, destinando-as a
proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, contra ato abusivo ou ilegal de
autoridade pública ou de agente de pessoa jurídica no exercício de atri145
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 4. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 185.
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176
buições do poder público.
É importante lembrar que o mandado de segurança coletivo
representa saudável inovação introduzida pelo legislador constituinte
de 1988, na esteira do movimento que se desenvolveu à época para a
proteção dos direitos difusos e coletivos, que culminou na ampliação
da legitimação ativa conferida, originariamente, ao individual, com o conseqüente alargamento do seu raio de ação146 .
Acentua Michel Temer147 que
A criação do mandado de segurança coletivo tem dois objetivos: a)
fortalecer as organizações classistas e b) pacificar as relações sociais pela solução que o Judiciário dará a situações controvertidas
que poderiam gerar milhares de litígios com a conseqüente
desestabilização social.
Nas palavras de Paulo Bonavides148
A Constituição manifestou com a ampliação da garantia o apreço
que vota à defesa coletiva dos direitos, nomeadamente quando ocorre
uma imbricação do direito subjetivo individual com o interesse não
menos subjetivo do ente político, sindical ou associativo, legitimado
doravante para impetrar o referido mandado.
Porém, para que as afirmações antes lançadas não sejam interpretadas, equivocadamente, convém esclarecer que não se está diante de um instituto totalmente novo, uma vez que, conforme adverte
Luís Roberto Barroso149 ,
A Constituição tão-só ampliou o elenco dos legitimados à propositura
do mandado de segurança tradicional (de cunho individual), para
tanto utilizando a técnica da substituição processual. Ao invés de se
exigir que cada sujeito, isoladamente, ou em litisconsórcio, atue na
defesa de direitos próprios, concebeu-se a solução inteligente e prática de permitir que a entidade que os aglutina, mediante um só ‘writ’,
obtenha a tutela do direito de todos. Facilita-se, assim, o acesso à
justiça e permite-se que pessoas coletivas, por vezes mais apare146
VELLOSO, Carlos. Mandado de segurança: uma visão de conjunto. In Mandados de Segurança e de
Injunção. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 1990. p. 106.
147
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 203.
148
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 506.
149
BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p.p. 195-196.
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lhadas e menos sujeitas a retaliações, patrocinem os interesses de
seus membros. De parte isto, evita-se, ainda, a multiplicidade de
demandas idênticas e suprime-se a possibilidade de decisões
logicamente conflitantes.
Hely Lopes Meirelles150 conceitua o mandado de segurança
como o
meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e
certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou
ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for
e sejam quais forem as funções que exerça (CF, art. 5º, LXIX e LXX;
Lei n. 1.533/51, art. 1º).
A propósito, malgrado a vacilação que ainda perdura na jurisprudência e na doutrina pátrias, atualmente predomina a corrente que
atribui ao mandado de segurança, a despeito de sua previsão constitucional, a natureza jurídica de ação, que se diferencia das demais espécies de ações cíveis pela especificidade do seu objeto e pela
sumariedade do seu procedimento151 , possibilitando a concessão de
prestação jurisdicional rápida e eficaz, capaz de assegurar o exercício
do direito violado.
LEGITIMAÇÃO ATIVA
Estabelece o inciso LXX, do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil:
LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
partido político com representação no Congresso Nacional;
organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente
constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa
dos interesses de seus membros ou associados.
Anote-se, em primeiro lugar, que o dispositivo constitucional em
150
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p.p. 21-22.
MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit. p. 31
152
BARBI, Celso Agrícola. Mandado de Segurança na Constituição de 1988. In Mandados de Segurança
e de Injunção. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 1990. p. 69.
151
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178
tela confere legitimação anômala152 -153 às entidades nele referidas, autorizando-as a postular direito alheio em nome próprio (CPC, art. 6º), na
qualidade de substituto processual.
Desta opinião partilha Luís Roberto Barroso154 :
É preciso ter em linha de conta, todavia, que se trata de instituto que
opera no plano coletivo, devendo o objeto da tutela jurisdicional amoldar-se a esta dimensão transindividual. Vale dizer: os direitos e interesses protegidos não pertencem a um único indivíduo, mas a uma
pluralidade deles, que em lugar de agirem cada um de per se, são
substituídos no plano processual pela entidade respectiva. Dessa
forma, presentes os requisitos para a impetração do writ individual,
o mandado de segurança coletivo poderá ser direcionado à tutela de
direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
(...)
Trata-se, como já afirmado, de hipótese de substituição processual.
E isto ocorre sempre que alguém, por autorização legal, pleitea, em
nome próprio, direito pertencente a outrem (CPC, art. 6º). Os direitos tuteláveis, em qualquer de suas modalidades, não se encontram
no patrimônio da entidade impetrante do mandado de segurança
coletivo, mas são titularizados pelos seus associados e filiados.
Neste sentido reiteradas decisões proferidas pelos Tribunais
Pátrios, a exemplo daquelas retratadas nas ementas que seguem:
MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL – AUTORIZAÇÃO EXPRESSA – CF, ART. 5º, LXX; XXI –
Não se exige, tratando-se de segurança coletiva, a autorização expressa aludida no inciso XXI do art. 5º da CF, que contempla hipótese de representação. A legitimação das organizações sindicais, entidades de classe ou associações, para a segurança coletiva, é extraordinária, ocorrendo, em tal caso, substituição processual. CF,
art. 5º, LXX155 .
153
SANTOS, Ernani Fidélis dos. Mandado de segurança individual e coletivo. In Mandados de Segurança e de Injunção. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 1990. p.p. 129-130
154
BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p.p. 196-‘97.
155
STF – RE 212.707/DF. 2ª Turma. Rel. Min. Carlos Velloso. DJU 20.02.1998.
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MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – ENTIDADE SINDICAL – EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM EXAME DO MÉRITO –
AUSÊNCIA DE PROCURAÇÃO DE CADA SINDICALIZADO –
DESNECESSIDADE – ART. 5º, XX, DA CF – SUBSTITUTO PROCESSUAL. 1 – Tratando-se de mandado de segurança coletivo
impetrado por entidade sindical, atua esta como substituto processual, na forma do artigo 5º, inciso LXX, da Constituição Federal. E,
nestes termos, ajuíza ação em defesa de direito alheio, mas em
nome próprio, razão pela qual não se exige a autorização dos seus
sindicalizados, nem procuração neste sentido, como exige o art. 37,
do CPC. 2 – Não há que se confundir esta legitimação extraordinária do sindicato com a previsão contida em outro preceito constitucional, artigo 5º, inciso XXI, que versa sobre representação das entidades associativas, em que é necessária a autorização para a defesa em juízo, já que não se atua em nome próprio (...)156 .
No entanto, por mais que se tente dilatar a interpretação do
dispositivo constitucional retro citado, forçoso concluir que somente as
entidades nele, explicitamente, referidas, têm legitimidade para impetrar
o mandado de segurança em sua versão coletiva.
PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL – MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – LEGITIMIDADE PARA IMPETRAÇÃO –
LITISCONSÓRCIO – CONDIÇÕES DA AÇÃO – CONHECIMENTO.
I – A teor da literalidade do art. 5º, LXX, da Constituição Federal, o
mandado de segurança coletivo, instituto da denominada jurisdição
constitucional, especificamente, do Direito Processual Constitucional, constitui a ação civil de rito sumário especial hábil para a proteção de direito coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas
corpus e habeas data, lesado ou ameaçado de lesão por ato de
autoridade. II – Detém legitimidade ativa para o mandamus coletivo
apenas o partido político com representação no Congresso Nacional, a organização sindical, a entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano
(art. 5º, LXX, da Constituição Federal). (...)157 .
156
157
TRF 2ª Reg. – MAS 97.02.18508-4/RJ. 4ª Turma. Rel. Des. Fed. Benedito Gonçalves. DJU 25.10.2001.
TRF 2ª Reg. – MAS 028855. 1ª Turma. Rel. Des. Fed. Ney Fonseca. DJU 23.01.2001.
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180
MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – ILEGITIMIDADE ATIVA – EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO – Se o impetrante não tem legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo, por não ser partido político com representação no Congresso Nacional, nem organização sindical, entidade
de classe ou associação, nos termos do artigo 5º, LXX, da Constituição Federal, o processo deve ser extinto, sem julgamento do
mérito. Recurso desprovido158 .
A propósito, convém relembrar que os Tribunais Pátrios já decidiram que o Estado-membro e o Ministério Público não dispõem de legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo, nos moldes
das ementas que seguem:
MANDADO DE SEGURANÇA. QUESTÃO DE LEGITIMIDADE ATIVA: IMPETRAÇÃO POR ESTADO-MEMBRO CONTRA ATO DO
PRESIDENTE DE REPÚBLICA QUE APROVOU PROJETO INCENTIVADO DE INDÚSTRIA PETROQUÍMICA, A INSTALAR-SE EM
OUTRA UNIDADE DA FEDERAÇÃO, SOB ALEGAÇÃO DE PREJUÍZO AO PÓLO PETROQUÍMICO A INSTALAR-SE NO ESTADO
IMPETRANTE.
(...).
II. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO: QUESTÃO DE LEGITIMIDADE EXTRAORDINÁRIA DO ESTADO-MEMBRO EM DEFESA DE INTERESSES DE SUA POPULAÇÃO. AO ESTADO-MEMBRO NÃO SE OUTORGOU LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA
PARA A DEFESA, CONTRA ATO DE AUTORIDADE FEDERAL NO
EXERCÍCIO DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO, SEJA PARA
A TUTELA DE INTERESSES DIFUSOS DE SUA POPULAÇÃO –
QUE É RESTRITO AOS ENUMERADOS NA LEI DA AÇÃO CIVIL
PÚBLICA (L. 7.347/85) -, SEJA PARA A IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO, QUE É OBJETO DE ENUMERAÇÃO TAXATIVA DO ART. 5º, LXX DA CONSTITUIÇÃO.
(...)159 .
158
159
a
a
TJMG – AC. 000.250.387-8/00. 1ª C. Cív. Rel . Des . Maria Isabel de Azevedo Souza. j. 27.03.2002.
STF – MS 21059/RJ. Pleno. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. j. 05/9/1990. DJ 19/10/1990.
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181
Mandado de Segurança Coletivo. Ministério Público. Concurso Público. O Ministério Público não tem legitimidade, nos termos do art.
5º, LXX, da Constituição Federal, para impetrar o mandado de segurança coletivo visando à nulidade do concurso160 .
De outra sorte, em que pese a cizânia jurisprudencial originariamente instalada a respeito da questão, atualmente, resta consolidado o entendimento no sentido de que as entidades discriminadas no
inciso LXX, do artigo 5º, da Magna Carta, não dependem de autorização expressa dos seus associados para a impetração do mandado de
segurança coletivo.
Não se ignora que o inciso XXI, do artigo 5º, da Carta Constitucional, condiciona a legitimidade da entidade associativa para representar seus filiados à expressa autorização dos respectivos interessados. No entanto, não se pode olvidar que tal regra versa sobre o instituto
da representação, inocorrente na espécie e sabidamente inconfundível
com o da substituição processual.
Dita orientação é maciçamente predominante nos Tribunais
Pátrios, consoante evidenciam as ementas abaixo transcritas:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. AUTORIZAÇÃO EXPRESSA. DESNECESSIDADE. (...)
I – A legitimação das organizações sindicais, entidades de classe ou
associações, para a segurança coletiva, é extraordinária, ocorrendo, em tal caso, substituição processual. CF, art. 5º, LXX.
II – Não se exige, tratando-se de segurança coletiva, a autorização
expressa aludida no inc. XXI do artigo 5º, CF, que contempla hipótese de representação processual.
(...)161 .
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – ASSOCIAÇÃO – DEFESA
DOS INTERESSES DOS ASSOCIADOS EM LITÍGIO – AUTORIZAÇÃO EXPRESSA – DESNECESSIDADE. I – A associação re160
161
TJ/PR – Ac. 9711. 1ª C. Cív. Rel. Des. Francisco Muniz. j. 30/11/1993. DJPR 17/12/1993.
STF – MS 22132-1/RJ. Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. DJ 18/10/1996.
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182
gularmente constituída e em funcionamento pode postular em favor
de seus membros ou associados, não carecendo de autorização
especial em assembléia geral. II – A legitimação para manejar a ação
de segurança é atribuída aos entes consignados no art. 5º, inciso
LXX, da CF/88, e independe de autorização de quaisquer interessados (...)162 .
Mandado de segurança coletivo. Associação de classe. Legitimidade para figurar no pólo ativo. Direito líquido e certo. Inexistência. As
regras contidas no art. 5º, incisos XXI e LXX, da Constituição Federal, por terem compreensão diversa, devem ser interpretadas isoladamente, porquanto diferem, em essência, a legitimação da sociedade (ou associações) para impetrar mandado de segurança coletivo daquela pertinente à representação em juízo, ativa ou passivamente. A legitimação para manejar a ação de segurança é atribuída
aos entes consignados no art. 5º, inciso LXX, da Carta Político,
independe de autorização de quaisquer interessados, aos quais não
se defere a intromissão no processo para postular em sentido contrário à atuação do substituto, porque eles agem em nome próprio,
em defesa de direito de terceiros, por expressa autorização constitucional (...)163 .
NORMAS OBSTACULIZADORAS DO ACESSO À JUSTIÇA
Apoiando-se em Frederico De Castro, ensina Américo Plá
Rodriguez, que os princípios de direito cumprem tríplice missão, nem
sempre na mesma medida e na mesma intensidade, a saber164 :
informadora: inspiram o legislador, servindo de fundamento para o
ordenamento jurídico;
normativa: atuam como fonte supletiva, no caso de ausência da lei.
São meios de integração de direito, e
interpretadora: operam como critério orientador do juiz ou do intérprete.
Outrossim, ao tratar dos princípios que norteiam a chamada in162
a
a
a
STJ – ROMS 7846/RJ. 2 Turma. Rel . Min . Laurita Vaz. DJU 22/04/2002.
STJ – MS 5.466-7/RJ. 1ª Turma. Rel. Min. Demócrito Reinaldo. j. 04/10/1995. DJU 29/09/1997.
164
RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Trad. de Wagner D. Giglio. São Paulo:
LTr. Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. p.17.
163
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183
terpretação constitucional, alude, Inocêncio Mártires Coelho,165 aos princípios da máxima efetividade e da força normativa da Constituição que,
na sua concepção, devem ser entendidos do seguinte modo:
c) princípio da máxima efetividade: na interpretação das normas
constitucionais devemos atribuir-lhes o sentido que lhes empreste
maior eficácia ou efetividade;
(...)
f) princípio da força normativa da Constituição: na interpretação constitucional devemos dar primazia às soluções que, densificando as
suas normas, as tornem eficazes e permanentes.
Por sua vez, ensina Konrad Hesse166 que:
a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da
norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente,
esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito
e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos
fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação
faça deles tabula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes,
correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição.
A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de
forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro
das condições reais dominantes numa determinada situação.
As noções de máxima eficácia e efetividade, extraídas dos princípios comentados alhures que, vale a lembrança, cumprem tríplice
missão – informadora, normativa e interpretadora – nas palavras de
Américo Plá Rodriguez167 , inegavelmente, balizam a interpretação do
dispositivo constitucional que trata do mandado de segurança coletivo,
dada a sua indubitável importância no contexto social, especialmente
165
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor,
1997. p. 91.
166
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991. p.p. 22-23.
167
RODRIGUEZ, Américo Plá. op. cit. p.17
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184
no que tange à proteção dos direitos coletivos e difusos.
Pois bem. A interpretação literal da alínea a do inciso LXX, da
Constituição Federal, conduz à conclusão de que o partido político sem
representação no Congresso Nacional não detém legitimidade para
impetrar mandado de segurança coletivo, ainda que tenha sido regularmente criado e registrado168 .
Neste aspecto o legislador constituinte incorreu em grave infelicidade. Note-se: ao invés de ampliar a legitimidade ativa para
impetração do mandado de segurança, estendendo-a para todos os
partidos políticos regularmente constituídos, sem qualquer justificativa
plausível optou o legislador pela restrição, colocando à margem as
agremiações políticas sem representação no Congresso Nacional, em
flagrante descompasso com o movimento voltado para a garantia do
amplo acesso à justiça.
Proveitoso recordar que o partido político, enquanto pessoa
jurídica de direito privado, destina-se a “assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal” (Lei
9.096/95, art. 1º).
Diante das finalidades e dos objetivos que foram delegados
aos partidos políticos pela Lei 9.096/95, condizentes, aliás, com os
valores fundamentais consagrados nos artigos 1º e 3º da Magna Carta, nada justifica a manutenção da restrição imposta na parte final da
regra constitucional em apreço.
Ora, na medida em que o partido político regularmente constituído detém personalidade jurídica e plena capacidade, em tese, para
demandar em juízo, ainda que não disponha de qualquer representação no Congresso Nacional, resta inadmissível a sua exclusão do rol
de legitimados para manejar o mandado de segurança, mormente diante das incumbências que lhe foram estendidas pela Lei 9.096/95.
Na realidade, a opção utilizada pelo legislador constituinte, de
singelamente repetir a fórmula inerente à propositura da ação de
168
CRETELLA JUNIOR, José. Comentários a lei do mandado de segurança. 11. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2001. p. 10
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185
inconstitucionalidade (CF, art. 103, inc. VIII), sem maiores digressões acerca da influência do mandado de segurança coletivo na proteção dos direitos coletivos e difusos, nitidamente contraria a idéia de amplo acesso à
justiça pregada no inciso XXXV, do artigo 5º, da Carta Constitucional.
É verdade que, um único representante no Congresso Nacional
satisfaz o requisito constitucional em análise. Poder-se-ia argumentar,
então, que o não preenchimento desta condição evidencia total ausência de representatividade do partido político, de modo a justificar a limitação imposta. Porém, eventual argumentação neste sentido esbarraria
nos artigos 1º, inciso V, e 17, da Magna Carta, que cristalinamente asseguram o pluralismo político e a pluralidade partidária.
Por outro lado, ainda gravita intensa controvérsia doutrinária e
jurisprudencial acerca da abrangência dos direitos e garantias suscetíveis de tutela através de mandado de segurança impetrado por partido
político, uma vez que a alínea a do inciso LXX, do artigo 5º, da Constituição não se valeu da alusão aos interesses dos membros e associados
contida na sua alínea b, aplicável às organizações sindicais, às entidades de classe e às associações legalmente constituídas.
Reportando-se a Carlos Mário Velloso, adverte Luís Roberto
169
Barroso que atualmente prevalece na jurisprudência o entendimento que defende a interpretação restritiva do preceito constitucional em
análise, limitando a atuação dos partidos políticos à proteção de direitos de natureza política e em favor dos seus filiados.
Neste diapasão reiteradas decisões proferidas pelo Superior
Tribunal de Justiça, espelhadas nas ementas que seguem:
PROCESSUAL – MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – PARTIDO POLÍTICO – ILEGITIMIDADE.
Quando a Constituição autoriza um partido político a impetrar mandado de segurança coletivo, só pode ser no sentido de defender os
seus filiados e em questões políticas, ainda assim, quando autorizado por lei ou pelo estatuto.
Impossibilidade de dar a um partido político legitimidade para vir a
169
BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p. 199.
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186
juízo defender 50 milhões de aposentados, que não são, em sua
totalidade, filiados ao partido e que não autorizaram o mesmo a
impetrar mandado de segurança em nome deles170 .
MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – Tutela de Interesses
individuais – Ilegitimidade de parte de PARTIDO POLÍTICO. Os interesses individuais não devem ser avocados pelos partidos políticos,
quando no uso do mandado de segurança coletivo, pois a sua atuação nesse campo não tem a amplitude que pretendem. O mesmo
ocorre com os sindicatos e outras entidades associativas171 .
Entrementes, cumpre indagar: se a Lei 9.096/95 outorgou aos
partidos políticos o encargo de garantir o regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defesa dos direitos fundamentais
definidos na Constituição Federal, não parece mais sensato estenderlhes a legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança coletivo,
na defesa dos direitos difusos e coletivos concernentes às esferas jurídicas acima citadas? A resposta positiva é medida que se impõe.
Já no julgamento do MS 197/DF (ementa acima), levado a efeito no ano de 1990, advertiu o Relator, originariamente, designado, Min.
José de Jesus Filho, em voto vencido:
O legislador constituinte, ao assegurar aos partidos políticos o direito de impetrar mandado de segurança coletivo, desde que tenha
representação no Congresso Nacional, está dando cumprimento à
sua destinação e outorgando-lhes o instrumento legal, para o exercício de uma de suas finalidades. De outra parte, não se pode esquecer que o texto da nossa atual Constituição é, marcadamente
parlamentarista, cujo regime, para sobreviver, exige a presença de
partidos políticos fortes, e uma das formas de fortalecê-los é outorgando-lhes o direito de impetrar mandado de segurança coletivo em
favor de determinado segmento social, sem representatividade ativa, cujo sucesso, sem dúvida, atrairá para suas hostes, se não novos filiados, pelo menos simpatizantes. Portanto, tenho para mim,
com a devida venia, que os partidos estão legitimados ativamente,
por lei, a ingressar em juízo na defesa do postulado que lhes cum170
171
STJ – MS 197/DF. 1ª Seção. Rel. Min. Garcia Vieira. DJ 20/08/1990.
STJ – MS 1348-0/MA. 2ª Turma. Rel. Min. Américo Luz. j. 02/6/1993. DJU 13/12/1993.
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pre preservar e defender.
Na espécie, o Partido dos Trabalhadores, ingressou em juízo na
defesa de um dos direitos sociais humanos, fundamentais, inscritos
na Constituição (art. 6º - previdência social) e direitos à aposentadoria (art. 7º, inciso XXIV).
Assim pensando, rejeito a preliminar de ilegitimidade ativa, para a
qual peço destaque.
Aliás, se esta não fosse a intenção do legislador constituinte,
será que a redação sugerida pelo Relator Bernardo Cabral e aprovada
em primeiro turno, que incluía no caput do inciso LXX do artigo 5º da
Constituição Federal a expressão “em defesa dos interesses de seus
membros ou associados”, teria sido alterada na seqüência pelos constituintes? É lógico e evidente que não.
Após chamar a atenção de que a Constituição não indica os
titulares dos interesses que podem ser defendidos pelos partidos políticos pela via do mandado de segurança coletivo, esclarece José Afonso da Silva,172 o caminho percorrido durante a tramitação, de modo a
elucidar a questão:
As redações nas várias fases de elaboração constitucional: Anteprojeto Nelton Friedrich, art. 29 – “O mandado de segurança coletivo para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas
corpus, pode ser impetrado por Partidos Políticos, organizações
sindicais, órgãos fiscalizadores do exercício da profissão, associações de classe e associações legalmente constituídas e em funcionamento há, pelo menos, um ano na defesa dos interesses de seus
membros ou associados”. Esta redação passou para o Projeto aprovado na Comissão de Sistematização (art. 6º, par. 50), com a supressão da cláusula “para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus”. A redação sugerida pelo Relator Bernardo
Cabral, para o primeiro turno e aí aprovada, despertou a atenção
para a delimitação do objeto do mandado de segurança coletivo dos
partidos. Veio ela no art. 5º, LXXI: “conceder-se-á mandado de segurança coletivo, em defesa dos interesses de seus membros ou
172
SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 462.
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188
associados, por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos,
um ano”. A rigor, essa redação correspondia à que foi aprovada no
Projeto de Sistematização. Houve, porém, reação ao enquadramento
dos partidos nesses limites da legitimação, de onde, em negociação
de lideranças, transpor-se aquela cláusula para o final da alínea b,
vinculada apenas a entidades ali referidas.
Lembra Luís Roberto Barroso,173 que parte da doutrina nacional, aí inseridos Ada Pellegrini Grinover, Celso Agrícola Barbi e Lucia
Valle Figueiredo, defende a tese de que a legitimação ativa do partido
político neste aspecto é ampla, sendo o mandado de segurança coletivo
o meio colocado à sua disposição para a tutela dos direitos difusos e
coletivos que se relacionam aos segmentos discriminados no artigo 1º,
da Lei 9.096/95.
Percebendo os problemas daí advindos, alguns Tribunais pátrios
têm rechaçado expressamente a interpretação restritiva conferida pelo Superior Tribunal de Justiça ao dispositivo constitucional em tela. Atente-se:
MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – Matéria tributária – LEGITIMIDADE ATIVA DO PARTIDO POLÍTICO configurada – ART. 5/
CF, LXX, a. O partido político é parte legítima para propor mandado
de segurança coletivo em defesa dos contribuintes, posto que o art.
5º, inciso LXX, letra “a” da Carta Magna de 1988 ampliou de forma
irrestrita a sua competência, que não se restringe apenas aos filiados
do partido. A majoração da base de cálculo embutida no IPTU e
cobrado no exercício de 1995, em relação ao de 1994, carece de
respaldo legal, quando não decorreu de lei anterior, regularmente
aprovada pelo Legislativo Municipal174 .
A Constituição Federal (art. 5º, LXX, a) não restringe a iniciativa dos
partidos políticos aos direitos da comunidade partidária em casos
de mandado de segurança coletivo. A majoração do IPTU somente
é possível quando exista lei que a autorize, escapando do poder da
autoridade administrativa proceder sua correção mediante decreto
173
174
BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p.p. 198-199.
TA/PR – Ap. Cív. 0087381-2. 4ª C. Cív. Rel. Juiz Clayton Reis. j. 19/6/1996. DJPR 22/11/1996.
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189
que altera o valor venal dos imóveis175 .
Legitimação dos partidos políticos e entidade estudantil para ação
mandamental coletiva. Têm os partidos e entidades estudantis direito de ação coletiva independentemente do interesse peculiar, posto
que se constituem em instrumentos de participação ideologicamente organizados. Gratuidade da matrícula constitucionalmente garantida. Material escolar ou programas complementares de ensino –
como atividades ligadas ao ensino público – são igualmente gratuitas. A esse propósito não se pode cobrar serem tais atividades integrantes do serviço público de ensino176 .
Restrição similar foi criada pelo legislador constituinte na parte
final da alínea “b” do inciso LXX do artigo 5º da Constituição, exigindo
das associações legalmente constituídas o funcionamento pelo período mínimo de um ano para a aquisição da legitimidade para propor
mandado de segurança coletivo na defesa dos interesses dos seus
membros ou associados177 .
A propósito, de imediato cumpre enfatizar que a limitação ora
comentada não é aplicável às organizações sindicais e às entidades
de classe, sob pena de iniludível ofensa aos princípios norteadores da
interpretação constitucional – isto é, da máxima efetividade e da força
normativa da Constituição – e de total menosprezo à garantia do amplo acesso à justiça.
Idêntica linha de raciocínio foi externada pela Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal, em decisão do seguinte teor:
RECORRENTE: UNIÃO FEDERAL.
RECORRIDO: SINDICATO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS
DO TESOURO NACIONAL.
MENTA: LEGITIMIDADE DO SINDICATO PARA A IMPETRAÇÃO
DE MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO INDEPENDENTEMENTE DA COMPROVAÇÃO DE UM ANO DE CONSTITUIÇÃO
E FUNCIONAMENTO. Acórdão que, interpretando desse modo a
175
a
TJ/PR – Ac. 3705. 3 C. Cív. Rel. Juiz Ivan Bortoleto. j. 15/9/1992. DJPR 30/10/1992.
a
a
TRF 4 Reg. – MS 90.04.02703-3/RS. 3 Turma. Rel. Juiz Fábio Bittencourt da Rosa. DJU II 29/1/1992.
177
CRETELLA JUNIOR, José. op. cit. p. 21.
176
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190
norma do art. 5º, LXX, da CF, não merece censura. Recurso não
conhecido178 .
Inclusive, da fundamentação do acórdão, de lavra do Min. Ilmar
Galvão, extrai-se a seguinte lição:
Como relatado, insurge-se a recorrente contra julgado que afastou
a ilegitimidade sindical para a impetração de mandado de segurança coletivo ao entendimento de que a exigência quanto à constituição e funcionamento, há pelo menos um ano, prevista no art. 5º,
LXX, da Carta, refere-se, exclusivamente, à associação, não abrangendo as demais entidades nele previstas.
Colhe-se do voto condutor da acórdão a seguinte fundamentação,
que tenho como incensurável: “Somente para a associação é que
se exige que esteja em funcionamento, há pelo menos um ano. Entenderam, no entanto, o douto Juiz a quo e o Ministério Público que
este pressuposto é exigível, também, do sindicato e da entidade de
classe. A razão da exigência para a associação está em que esta
não tem a estabilidade que tem o sindicato ou a entidade de classe,
e, em face da facilidade com que pode ser criada. Assim, poderia
ser instituída para uma eventualidade, como para impetrar mandado de segurança. A associação é uma mera união. Daí a exigência
de que seja legalmente constituída e que esteja em funcionamento
há mais de um ano. As associações são variadas e múltiplas. As
formalidades para sua criação são mínimas, não tendo a solidez e a
segurança das outras duas entidades”.
José da Silva Pacheco constatou, com rara felicidade, o deslize cometido pelo legislador constituinte179 :
Em vez de ser o remédio propiciado a todas as entidades personalizadas ou não, associações registradas ou não, permanentes ou eventuais, para a garantia de interesses comuns, como por exemplo as
associações de bairros para a defesa do meio ambiente, o inciso LXX
do art. 5º, da Constituição, de 1988, em lugar de estender a legitimidade, restringiu-a, no que concerne ao mandado de segurança.
178
STF - RE 198.919-0/DF. Rel. Min. Ilmar Galvão. j. 15/6/1999. DJ 14/9/1999.
PACHECO, José da Silva. O Mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas. 3. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 308.
179
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191
Analisando a questão, assim decidiu a 1ª Turma do Supremo
Tribunal Federal:
MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – PETIÇÃO INICIAL
DESACOMPANHADA DE DOCUMENTO ESSENCIAL – FALTA DE
COMPROVAÇÃO DE QUE A IMPETRANTE É ENTIDADE LEGALMENTE CONSTITUÍDA E EM FUNCIONAMENTO HÁ PELO MENOS
UM ANO – IMPOSSIBILIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA – MANDADO DE SEGURANÇA NÃO CONHECIDO. – A ação de mandado
de segurança – ainda que se trate do “writ” coletivo, que se submete
às mesmas exigências e aos mesmos princípios básicos inerentes
ao “mandamus” individual – não admite, em função de sua própria
natureza, qualquer dilação probatória. É da essência do processo de
mandado de segurança a característica de somente admitir prova
literal pré-constituída, ressalvadas as situações excepcionais previstas em lei (Lei n. 1533/51, art. 6. e seu parágrafo único)180 .
A propósito, preocupações ligadas ao uso indevido e abusivo
do remédio processual em exame, de modo a viabilizar a construção
de fraudes e o desvirtuamento da finalidade da lei, apesar de louváveis não justificam o obstáculo introduzido pelo legislador constituinte
às associações, que não estejam funcionando pelo lapso de tempo mínimo de 01 ano.
Ora, a legislação infraconstitucional está devidamente aparelhada para coibir atitudes porventura cometidas em detrimento dos
princípios da lealdade e boa-fé processuais, que, sabidamente, norteiam
a atuação das partes em Juízo, a exemplo das regras inscritas nos
artigos 18 e 601, do CPC, que tratam da litigância de má-fé e dos atos
atentatórios à dignidade da Justiça, respectivamente. Basta que os
operadores do direito utilizem os mecanismos colocados à disposição,
com a aplicação de sanções severas, inclusive a título educativo, para
que condutas desta natureza sejam extirpadas.
Agora, simplesmente, retirar das associações constituídas a
menos de um ano a legitimidade para impetrar mandado de segurança
coletivo na defesa dos interesses dos seus membros ou associados é
180
STF - MS 21098/DF. Rel. Min. Celso de Mello. j. 20/8/1991. DJ 27/3/1992
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192
opção que, com absoluta nitidez, destoa da idéia de um Estado que
pretende ser intitulado de democrático e de garantidor do amplo acesso à uma ordem jurídica justa.
Em suma, diante do fundamental e obrigatório resguardo que
o ordenamento jurídico pátrio deve conferir à garantia do amplo acesso à justiça, em atenção ao mandamento insculpido no inciso XXXV
do artigo 5º da Constituição Federal, exsurge, com absoluta clareza, a
necessidade de alteração da norma constitucional que trata do mandado de segurança coletivo, com a conseqüente exclusão das limitações impostas aos partidos políticos – “... com representação no Congresso Nacional” – e às associações – “... e em funcionamento há pelo
menos um ano...”.
CONCLUSÕES
1. A garantia do amplo acesso à justiça encontra sustentáculo
no inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal, que simultaneamente consagra o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
2. Ao proibir a autotutela privada, obrigando os cidadãos a
submeterem as suas pretensões ao Poder Judiciário, o Estado atraiu
para si o mister de solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses
instaurados, com a prestação da tutela almejada pelos titulares dos
respectivos direitos substantivos.
3. A mera proclamação do direito, não pode ser interpretada
como entrega da prestação jurisdicional, quando desacompanhada de
tutela capaz de garantir e assegurar, de modo adequado e efetivo, a
plena satisfação do direito substancial vindicado.
4. A jurisdição precisa assumir o seu papel de agente de transformação social e realizar, concretamente, o direito objetivo, sob pena
de não alcançar as finalidades e os objetivos jurídicos, sociais e políticos que lhe são afetos, nos moldes da ordem jurídica construída pelo
legislador constituinte de 1988, nitidamente edificada sob os pilares do
Estado Democrático de Direito.
5. A garantia de acesso à justiça não se resume à mera noção
de acesso formal ao Poder Judiciário, porquanto compreende, simultaneamente: a ampla possibilidade de ingresso em Juízo, sem quaisRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
193
quer obstáculos; o acesso efetivo a uma ordem de valores e de direitos fundamentais, indispensáveis para a sobrevivência do ser humano
e para a pacificação social; a extirpação de normas legais que restrinjam ou retirem a efetividade dos mecanismos processuais criados com
a finalidade de proteger determinadas classes de direitos e a atuação
da jurisdição voltada para a prestação de tutela efetiva.
6. O mandado de segurança coletivo representa saudável inovação introduzida pelo legislador constituinte de 1988, voltada para a
proteção dos direitos difusos e coletivos, de modo a fortalecer as organizações classistas e pacificar as relações sociais, mediante solução
conjunta de várias situações controvertidas que, por serem idênticas,
merecem ou podem merecer tratamento uniforme.
7. Na interpretação constitucional deve ser extraído o significado que empreste maior efetividade às normas constitucionais, de maneira a torná-las eficazes e permanentes, em consonância com a realidade social.
8. A limitação estabelecida na parte final da alínea a, do inciso
LXX, da Constituição Federal, que reduz a legitimidade para impetrar
mandado de segurança coletivo aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional, choca-se com a garantia constitucional
de amplo acesso à justiça.
9. Na medida em que o partido político, regularmente, criado e
registrado detém personalidade jurídica e plena capacidade, em tese,
para demandar em juízo, ainda que não disponha de qualquer representação no Congresso Nacional, nada justifica a sua exclusão do rol de
legitimados para manejar o mandado de segurança coletivo, seja em
virtude das finalidades e dos objetivos que lhe foram delegados pela Lei
9.096/95, condizentes com os valores fundamentais agasalhados nos
artigos 1º e 3º, da Constituição Federal, seja porque o ordenamento jurídico pátrio, explicitamente, assegura o pluralismo político e a pluralidade
partidária (artigos 1º, inciso V, e 17 da Magna Carta).
10. Se o artigo 1º, da Lei 9.096/95, atribuiu aos partidos políticos o encargo de garantir o regime democrático, a autenticidade do
sistema representativo e a defesa dos direitos fundamentais definidos
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
194
na Constituição Federal, o mandado de segurança coletivo pode ser
usado, por tais agremiações, na defesa dos direitos difusos e coletivos
concernentes às esferas jurídicas supra aludidas.
11. A restrição criada pelo legislador constituinte na parte final
da alínea b, do inciso LXX, do artigo 5º, da Constituição, que exige das
associações legalmente constituídas o funcionamento pelo período
mínimo de um ano para a aquisição da legitimidade para propor mandado de segurança coletivo, na defesa dos interesses dos seus membros ou associados, agride a garantia de amplo acesso à justiça.
12. O requisito temporal previsto na alínea b, do inciso LXX do
artigo 5º, da Constituição Federal, não é aplicável com relação às organizações sindicais e entidades de classe, sob pena de inegável ofensa
aos princípios norteadores da interpretação constitucional – isto é, da
máxima efetividade e da força normativa da Constituição.
13 A legislação infraconstitucional contempla mecanismos que
permitem a repulsa de atitudes ofensivas aos princípios da lealdade e
da boa-fé processuais, porventura praticadas em virtude da ampliação
da legitimidade ativa para as associações em funcionamento, há menos de um ano, a exemplo das regras inscritas nos artigos 18 e 601, do
CPC, que tratam da litigância de má-fé e dos atos atentatórios à dignidade da Justiça, respectivamente.
14. Diante do fundamental resguardo que o ordenamento jurídico pátrio deve conferir à garantia do amplo acesso à justiça, faz-se
necessária a alteração do inciso LXX, do artigo 5º, da Carta Constitucional, para que sejam extirpadas as limitações impostas à legitimidade
dos partidos políticos e das associações para a impetração do mandado de segurança coletivo.
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===============================================================
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
197
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA
PUBLICIDADE DO ATO PROCESSUAL 181
ANDREY HERGET
PROFESSOR NO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA
FACULDADE MATER DEI & COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA
JURÍDICA. ESPECIALISTA EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL PELA
UNOESC. MESTRANDO EM DIREITO PROCESSUAL E CIDADANIA PELA
UNIVERSIDADE PARANAENSE. ADVOGADO NO PARANÁ.
RESUMO
O artigo trata do princípio da publicidade do ato processual em perspectiva
histórica, estudado desde as origens romanas, passando pelas Ordenações,
a Revolução Francesa, os movimentos constitucionais europeus e a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. O texto destaca a atual previsão
constitucional da publicidade dos atos processuais no artigo 5º, inciso LX da
Constituição Federal de 1988, e de suas possíveis restrições. O autor ressalta
que tal princípio é essencial para o processo, refutando o autoritarismo, pois
a democracia não se coaduna com regras que determinem a impossibilidade
da ampla publicidade do ato processual.
ABSTRACT
The article is about the Marketing Principle of the Procedural Act in a Historical perspective, studying since its Roman origins, going through the System,
the French Revolution, the Constitutional Europeans movements and The
Universal Declaration of Human Rights. The text points to the actual constitutional predict of Marketing of the procedural act in article 5th, piece LX of
the Federal Constitution of 1988, and its possible restrictions. The author
says that this principle is essencial to the procedure, condening the
authoritarism, because democracy doesn’t get along to the rules that determine the impossibility of big publicity of the procedural act.
PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Processual; princípio
da publicidade dos atos processuais.
Em verdade, o que buscamos demonstrar em nosso modesto
trabalho, comungando com a unanimidade dos adeptos do Princípio da
Publicidade dos Atos Processuais, é de que sua presença faz parte, é
da essência do processo, porque rebate com veemência todo e qual181
Monografia apresentada no Curso de Mestrado em Direito Processual e Cidadania, oferecido pela
Universidade do Paraná – Unipar, com ênfase para o módulo História do Direito Processual Brasileiro.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
198
quer sistema que se funde na força, na exceção e no autoritarismo. A
democracia, tão buscada historicamente pelos povos, tão pregada pela
humanidade nos tempos atuais, não se coaduna com regras que determinem a impossibilidade da ampla publicidade do ato processual. A
análise desta, deve se dar sob um prisma da maior amplitude possível.
A investigação, como bem lembrado pelo ilustre jurisconsulto Rui Portanova,
“ deve ser da publicidade do processo, e não só no processo182 “.
Não foi por menos, que a construção histórica da necessidade
da publicidade do ato processual ajudou sobremaneira na edificação
doutrinária de Bentham, que sobre tal, manifestou-se no sentido de que
“ a publicidade é a mais eficaz salvaguarda do testemunho e das decisões que do mesmo derivarem: é a alma da justiça e deve se estender a
todas as partes do procedimento e a todas as causas “183 .
Portanto, sob este enfoque procurar-se-á demonstrar a origem
e a evolução histórica do Princípio da Publicidade dos Atos Processuais, na tentativa de não somente resgatar historicamente, mas
temporaneamente, sua efetiva necessidade de observância e aplicação.
INTRODUÇÃO
O tema objeto de pesquisa, diz respeito à EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS, de empolgante discussão, principalmente dado ao fato de que,
eleito como princípio constitucional pelo legislador, incerindo tal disposição no artigo 5º, inciso LX, da Constituição Federal de 1988, durante
a fase histórica da construção do sistema processual, foi lembrado e
esquecido, sistematicamente, justificando tal assertiva, sob o enfoque
de que o Processo no Direito Romano, entendido tal como marco para
análise da questão e elaboração do trabalho em apreço, tinha, mesmo que não expressado, legislativamente, efetivo enfoque público, até
porque públicas eram as audiências.
Mesmo nesta fase, a pesquisa nos demonstrou que oscilaram
os entendimentos de que era necessária a ampla aplicação da regra
182
Rui Portanova, pg. 167
Jeremias Nentham, Tratado de las prueba judiciales, compilado por E. Dumont, trad. Do fr. Manuel
Ossorio Florit, Buenos Aires, EJEA, 1971, v. I, pg. 140/6
183
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199
da publicidade, principalmente levando-se em conta que, no Direito romano, nosso ponto de partida para a análise histórica do Princípio da
Publicidade, houveram três períodos distintos, quais sejam, o das Legis
Actiones; o da Per Formulas; e o da Cognitio Exraordinaria, os quais
serão abordados em tópico sequencial, mas que já nos demonstraram,
os dois primeiros, a aplicação da regra relativa à Publicidade dos atos
processuais, iniciando-se, todavia, no terceiro período, uma fase restritiva
ao mesmo, passando a seguir, por uma análise da evolução histórica do
mesmo, recordando os principais pontos de referência em nosso
ordenamento alienígena e, finalmente, buscando uma menção histórica
do nosso ordenamento jurídico, representado pelos marcos relativos às
Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, cujas quais, conforme
se demonstrará, não pregaram de forma ampla a aplicação do Princípio
em análise.
Em que pesem entendimentos divergentes, alcançados através desta modesta incursão na evolução histórica do Princípio da Publicidade dos Atos Processuais, o tema se apresenta como algo de necessário e interessante estudo, inclusive em razão de que nosso texto
Constitucional, determina como regra, a publicidade dos atos processuais, somente reconhecendo hipóteses de restrição quando o
caso tratar-se de interesse social ou na defesa da intimidade, e naqueles casos expressados em lei, conforme, inclusive, proposta a menção
neste trabalho.
O estudo do tema apresentado, está calcado, num primeiro
plano, na efetiva necessidade de se buscar a origem histórica da publicidade dos atos processuais, ou seja, pesquisar, mesmo que modestamente, a formação do sistema processual, e a partir de que momento histórico passou-se a adotar a publicidade dos atos processuais como regra, deixando a não atenção àquela, como exceção,
considerando casos específicos e concretos, e num segundo plano,
levando-se em consideração o fato de que encontra o mesmo, grande
importância no sistema processual, a partir do momento em que a
publicidade, conforme, anteriormente, mencionado, é pressuposto da
184
José Raimundo Gomes da Cruz, Estudos sobre o Processo e a Constituição de 1988, pg. 165
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200
validade do ato, mais, é garantia do pleno e livre exercício da jurisdição,
é condição, nas palavras de Mirabeau, em pronunciamento perante a
Assembléia Constituinte Francesa, citado por José Raimundo Gomes
da Cruz 184 , asseverando o mestre: “Daí-me qualquer juiz: parcial, corrupto, até meu inimigo; pouco importa, desde que ele só possa agir em
face do público “.
Em razão do até então exposto, é que procuramos em nosso
trabalho, demonstrar a evolução histórica do Princípio da Publicidade
dos Atos Processuais, e a relevância do conhecimento dos caminhos
percorridos pelo mesmo, até seu reconhecimento, fora e internamento,
como de absoluta necessidade de observância.
ORIGEM HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE DOS ATOS
PROCESSUAIS.
Historicamente, e conforme proposto no presente trabalho, buscamos estabelecer a origem histórica da publicidade dos atos processuais, tomando como ponto de partida, o Processo no Direito Romano, o
qual, na lembrança do mestre Jônatas Luiz Moreira de Paula, “ é visto
em três períodos: o das legis actiones (vigorou desde a fundação de
Roma – 754 a.C. – até fins da República), o da per formulas ( iniciado
a partir do declínio da República, atingiu seu auge com a edição da Lex
Aebutia, em 149-126 a.C., e da Lex Julia Privatorum, em 17 a.C., findando-se com o Imperador Diocleciano, entre 285-305 d.C) e da
extraordinaria cognitio, iniciado a partir do principado em 27 a.C., encerrando-se com a queda do Império Romano do Ocidente ( 568 d.C.)”185 .
Essa divisão, inclusive lembrada pelo ilustre mestre, não se apresenta
de forma absoluta e seus períodos não se encontram nitidamente separados.186
Dentro do proposto, e da análise de cada um dos períodos
acima mencionados, é possível estabelecer as características de cada
qual, principalmente no que encontra-se relacionado à publicidade dos
atos processuais, podendo concluir-se com segurança, que nos dois
primeiros períodos – legis actiones e per formulas, os processos eram
185
186
Jônatas, livro – pg. 32/33
idem.
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201
gratuitos, orais e públicos, enquanto que no último – extraordinaria
cognitio, o processo era escrito, portanto, formal, oneroso e secreto.
Denota-se assim, que a partir deste último período, a publicidade dos atos processuais passou a experimentar a imposição de restrições.
Com intuito de demonstrar as características de cada período,
especificamente quanto a publicidade dos atos processuais, passaremos a analisar, neste aspecto, individualmente cada qual.
PERÍODO DAS LEGIS ACTIONES
Neste período, predominou a adoção de fórmulas orais e solenes, aquela, representada pela ampla publicidade dos atos processuais, inclusive com a possibilidade de se remeter a instrução e a solução
de um caso concreto a um cidadão particular, denominado arbiter ou
iudex, e esta, identificada como a necessidade da parte em “ repetir,
cuidadosamente, na actio as palavras previstas na lei“ 187, objetivando
a percepção da tutela postulada. Em decorrência desta situação, que
determinava que deveria o autor “pronunciar a exata relação de tipicidade
entre o fato e a fórmula legal “188, concluia-se que “o conteúdo da defesa
deveria restringir-se à incidência ou não da fórmula legal ao fato descrito pelo autor “189
Outra característica deste período, a determinar a presença a
publicidade dos atos processuais praticados, está ligada ao fato de
que parentes ou amigos do réu (vades), deveriam prestar uma promessa solente de que o réu compareceria ao ato, na data determinada, sob pena de não o fazendo, incorrerem aqueles na obrigação de
pagamento de determinada quanto ao autor.
A defesa, neste período, era formalizada pelo réu de forma
oral, inexistindo a figura da representação, ou seja, neste período, não
era admitida, em regra, a presença de advogados.
Em decorrência do excesso de formalismo, esse ligado ao fato
de que para alcançar a tutela jurisdicional pretendida, deveria o autor
187
Jônatas...., mencionando TUCCI, pg. 36.
Idem, pg.40
189
ibidem, 40.
190
Jonatas, pg. 45.
188
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202
estabelecer a exata relação de tipicidade entre o fato e a fórmula legal,
conforme antes mencionado, comportando ao ré, apenas defender-se
no sentido de demonstrar a incidência ou não da fórmula legal ao fato
descrito por aquele, tal período foi caindo em desuso, exatamente porque suas regras, “obstaculizavam o êxito da actio“190 .
PERÍODO PER FORMULAS
Igualmente público os atos processuais praticados neste período, distinguiu-se do primeiro em razão de que foram abolidas as solenidades naquele exigido, caracterizando-se “por ser um novo processo
porque, ao abandonar a legis e permitir a elaboração de um modelo
abstrato pelo pretor, resultou no enriquecimento e na ampliação dos direitos, dada à eclosão de novas fórmulas“ 191, ou seja, “enquanto que, no
período das legis actiones, a litis contestatio fixava com precisão os
termos do litígio, no período per formulas essa função perdeu importância, em vista dos termos do litígio estarem expressos na fórmula “192 .
Afora características particulares, relativas a procedimentos,
este período, no que diz respeito à publicidade dos atos processuais,
foi, eminentemente, semelhante ao primeiro, supra citado.
PERÍODO DA COGNITIO EXTRAORDINARIA
Conforme mencionado, ao tempo que nos dois primeiros períodos a gratuidade, oralidade e publicidade dos processos eram regra,
neste, passaram a ser exceção, constituindo-se como características a
forma escrita, onerosa e secreta193 .
A partir deste período, iniciou-se uma fase de restrição à publicidade dos atos processuais, “desaparecendo as fórmulas e a oralidade
vai, paulatinamente, dando lugar à escrita, por influência oriental.194 As
audiências não mais eram públicas, mas sim, limitadas às partes.
As regras relativas aos atos processuais, neste período, iniciado em 27 a.C, encerrando-se, provavelmente, em 568 d.C., passou a
sofrer alterações a partir de 527 d.C., quando Justiniano levou a efeito
191
VILLEY, citado por Jônatas, pg. 48
Jônatas, pg. 63/64.
193
Paula, Jônatas Luiz Moreira de Paula. Teoria Geral do Processo, p. 38, citação feita na obra do mesmo
autor, História do Direito Processual Brasileiro, pg. 33.
194
Justo, Antonio dos Santos, citado por jônatas, pg. 72/73
192
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203
ampla reforma nos institutos processuais, reestabelecendo, entre outras, o litis contestatio em audiência pública, bem como a prolação das
sentenças igualmente em audiências públicas, revelando portanto, um
sentimento no sentido de que a publicidade deveria ser a tônica nos
atos processuais.
Superada a fase da construção histórica da publicidade dos
atos processuais no direito romano, é de relevo mencionar as influências observadas por força do direito processual Germânico, que igualmente, não acentuou a publicidade como regra, ao contrário, tinha-a como
exceção. Franz Wieacker, citado por Jônatas Luiz Moreira de Paula, nos
lembra que “O processo de autos levava então, de acordo com um princípio fundamental, ao caráter indirecto das alegações e da prova e a
não publicidade do processo. Só a reforma processual do séc. XIX,
surgida da Revolução Francesa, em ação conjunta com as reminiscências românticas e nacionalistas do antigo processo franco e alemão e
com os ideiais democráticos burgueses, voltou a conduzir aos princípios da publicidade, sem no entanto, poder resolver a contradição interna
de tal exigência com o espírito de uma jurisprudência racional, objectivada
por escrito e especializada.“195
Conforme antes mencionado, a Revolução Francesa, datada
de 1789, foi um marco mundial a estabelecer a publicidade dos atos
processuais como regra, e a não observância de tal, apenas como
exceção. Com tal amplitude, “não é difícil encontrar o princípio nas
legislações da França, Alemanha, Japão, Estados Unidos e a antiga
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas “196 , e mais recentemente, sendo incerida no texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reza em seu artigo 10, que “todo homem tem direito, em
plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres
ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele “.
Enfim, fica presente que, a partir do século XIX, a observância
195
Wieacker, Franz. História do Direito Privado Moderno, 2ª edição, Tradução de ªM. Botelho Hespanha.
Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.200, citado po0r J6onatas Luiz Moreira de Paula, História do Direito Processual Brasileiro,, p. 97
196
Rui Portanova, Princípios do Processo civil, pg. 168
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204
da publicidade dos atos processuais passou a constituir-se regra, e a
não publicidade em exceção, apenas particularidades, desde que devidamente reguladas por lei.
No Brasil, o marco inicial de nossa pesquisa, na busca da origem da publicidade dos atos processuais passa pela análise das Ordenações. Nelas, obtemos as informações necessárias a esclarecer
um nexo de causalidade entre a origem da publicidade dos atos, e sua
observância.
ORDENAÇÕES AFONSINAS
Com início e término de vigência compreendidos entre 1447 a
1521, pode ser considerada como a “primeira legislação processual
em vigor na Terra de Santa Cruz. “197 Teve como característica básica a
compilação, entendida como tal, a transcrição integral de outras fontes,
anteriores, não podendo assim, ser considerada como um código, mas
em verdade, mera sistematização de leis. Dentre os pontos a determinar que havia restrição à publicidade dos atos processuais nesta fase,
extraímos informações relativas à estrutura básica do processo, que,
entre outras, especificamente no processo penal determinava a “inquirição das testemunhas arroladas pelas partes sobre os artigos pertinentes e eventual depoimento de testemunha contraditada, desde que
relevante “, e “abertura e publicação das inquirições para conhecimento
das partes”198 , restando evidenciado que, por tal estrutura, a publicidade que se dava ao ato era, exclusivamente, entre as partes.Nesta fase,
no que dizia respeito ao processo civil, não houve alteração do sistema,
de sorte que igualmente mantida a dita publicação dos depoimentos,
exclusivamente para as partes199 .
ORDENAÇÕES MANUELINAS
Com vigência entre os anos de 1521 a 1603, destacou-se tal
Ordenação pelo fato de tratar-se “de uma das primeiras, senão a pri197
Jônatas, pg. 144
CAETANO, Marcello, História....p.555, citado por Jônatas Luiz Moreira de Paula, in História do Direito
Processual Brasileiro
199
Ordenações Afonsinas, Tít. LXVI, p.242-247
198
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205
meira das legislações codificadas empresas da Europa.“200 Tinha uma
estrutura processual penal e civil, que se apresentava, aquela, pelo
que nos informa o Título I, do Livro V, novamente repetindo o que determinou as Ordenações Afonsinas, no que dizia respeito a ”abertura e
publicação das inquirições para conhecimento das partes “, determinando ainda, que “o segredo no momento da produção da prova testemunhal era visto como forma de defesa da justiçá penal do Reino “201 ,
ou seja, havia flagrante restrição à publicidade, e quanto a esta, repete
o dispositivo, no Livro III, determinando mais uma vez que a “ aberura e
publicação dos depoimentos das testemunhas para as partes “202 , ou
seja, apresentando um quadro já estabelecido anteriormente, ligado à
rstrição da ampla publicidade dos atos processuais.
ORDENAÇÕES FILIPINAS
Por fim, as Ordenações Filipinas, concluídas no ano de 1595,
foram aprovadas por Lei de 05/06/1595, iniciando-se sua vigência em
1603, e consideradas o ” monumento legislativo mais duradouro em
Portugal e no Brasil “203 , mas que em verdade, apresentaram poucas
inovações processuais em relação às outras Ordenações abordadas,
mantendo, como por exemplo, regras relativas à “abertura e publicação das inquirições para conhecimento das partes “, mencionando ainda que o “segredo no momento da produção da prova testemunhal era
visto como forma de defesa da justiça penal do Reino“204 , ou seja, mais
uma vez, denota-se que a regra à època era a restrição, e a publicidade, a exceção.
A interferência do direito português, aliada à natural ingerência do direito romano, fez com que a restrição à publicicade dos atos
processuais fosse a tônica.
No Brasil, com a proclamação da Independência ( 07/09/1822),
houve a natural necessidade de que fossem legisladas outras leis. De
200
jônatas, História,..p. 156.
JÔNATAS, obra citada, p. 162
202
JÔNATAS, obra citada, p. 164, citando o Título XLVII, das Ordenações Manuelinas..., p. 174/176.
203
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História.....p.285-286, e COSTA, Mário Júlio de Almeida. História...,
p.288-289, citados por JÔNATAS.....obra, p. 166.
204
JÔNATAS,..ob citada, p. 173
201
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206
concreto, nos interessa abordar os principais aspectos da Constituição
de 1824 – 1ª Constituição do País, a qual, entre outras características
relevantes, determinou, em seu artigo 159, “publicidade da inquirição
das testemunhas e demais atos do processo, após a pronúncia, seriam
públicos “ deixando evidente, mesmo porque, este era pensamento em
vigor, que a publicidade passaria a ser regra em nosso ordenamento,
apenas a restringindo em casos especiais, e em decorrência de lei.
Na esteira do pensamento mais liberal, nosso legislador, aceitando a publicidade dos atos processuais como regra, terminou por
elegê-lo como princípio constitucional, determinando em seu artigo 5º,
inciso LX, que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais, quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem “,
ficando presente que este é o pensamento e a vontade de nosso legislador, ou seja, de que a restrição somente poderá ocorrer, quando o
interesse social ou a defesa da intimidade o exigirem, e desde que, por
certo, esteja aí amparado em lei.
HIPÓTESES DE RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE DOS ATOS
PROCESSUAIS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema tratado, no decorrer do período em que foi estudado,
foi-se nos tornando cada vez mais apaixonante.
Paralelo ao crescente interesse pela matéria, observou-se com
tristeza, que a doutrina faz reservas quanto ao tema “ publicidade dos
atos processuais”, cremos, por certo, de forma equivocada, de sorte
que tema em voga é de estrema relevância, de importância vital para a
manutenção oxigenada de nosso sistema jurídico. Não se admite, em
tempos atuais, que existam restrições à publicidade do ato processual,
devendo tal ser regra, tão e somente comportando entendimenots divergentes em casos específicos, devidamente regulados por lei. Fica presente, após esta pequena infiltração na história de nosso direito, que a
publicidade dos atos processuais foi alcançada com grande dificuldade. Ora mais presente, ora mais ausente, foi preciso um árduao caminho para se alcançar disposições como as mencionadas, entre outras,
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207
em nosso ordenametno tupiniquim, a esculpida no inciso LX, do artigo
5º, da CF.
Ao mesmo tempo em que aprendemos sobre a publicidade dos
atos processuais, por automático nos interamos mais do tema objeto
deste curso - Direito Processual e Cidadania, e então, entendemos por
que se afirma, e com muita propriedade, que “o direito geral nós aplicamos, e o direito processual, nós o vivemos”.
De uma forma ou de outra, mesmo com as naturais dificuldades inerentes à elaboração de um trabalho como o presente, resultounos grande satisfação, porquanto observamos que a aplicação de forma geral da publicidade dos atos processuais é necessidade, é medida que se impõe, certos de que o secreto, o anônimo e o não divulgado,
não se coadunam com ideais de Justiça, Liberdade e Democracia.
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pág. 178.
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209
RECURSO EXTRAORDINÁRIO RETIDO E A AUSÊNCIA
DE EFEITO SUSPENSIVO 205
ADRIANA TIMÓTEO DOS SANTOS
PROFESSORA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL NO CURSO DE
BACHARELADO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA
GROSSA. MESTRE EM DIREITO ECONÔMICO E SOCIAL PELA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ. ADVOGADA NO
PARANÁ.
RESUMO
O artigo aborda o tema do Recurso Extraordinário Retido e da ausência de
efeito suspensivo, à luz da Constituição Federal e do Código de Processo
Civil. A autora demonstra que a preocupação com a efetividade do processo
decorre de situações em que o tempo é de fundamental importância, e que a
demora da decisão pode comprometer o resultado do processo. O texto
retrata que, apesar do posicionamento contrário do Supremo Tribunal Federal, os parágrafos 2º e 3º do artigo 542 do CPC devem sofrer aplicação
menos rigorosa, pois o processo civil moderno norteia-se pelos princípios da
efetividade e do devido processo legal.
ABSTRACT
The article is about the theme of Holded Extraordinary resource and absence
of suspensive effect, to the light of the Federal Constitution and the Civil
Procedure Code. The author demonstrates that the worry about the effectivness
of the procedure comes from the situations in which the time is of fundamental importance, and that the delay of decision may change the result of the
process. The text says that, even the Supreme Court of Brazil is against, the
paragraphs 2nd and 3rd of the article 542 of the CPC must suffer application
less strong, because the modern Civil procedure goes by the principles of
effetiveness and legal procedure.
PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Processual; recurso
extraordinário.
O RECURSO EXTRAORDINÁRIO RETIDO
Na sistemática do processo civil brasileiro, o Recurso Extraordinário, previsto na Constituição da República, artigo 102, III, alíneas a, b
205
Trabalho apresentado junto ao Mestrado em Direito Econômico e Social da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná – PUC/PR na disciplina Meios de Impugnação às decisões judiciais ministrada pela
Prof.ª Dra. Teresa Arruda Alvim Wambier.
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210
e c, terá cabimento quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da
CF, declarar a incostitucionalidade de tratado ou lei federal ou julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da CF. É medida
extrema que procura tutelar o sistema como um todo, sendo esta a função primordial do Supremo Tribunal Federal (exercer a guarda da Constituição Federal e também, desta forma, permitir a integridade do direito
nacional).
O § 3º, do art. 542, do CPC, disciplina a forma retida do recurso
extraordinário quando interposto contra decisão interlocutória.
Este sistema não apresentaria maiores problemas em situações, onde não há perigo de dano irreversível, oriundo do aspecto temporal. Porém, existem situações em que o tempo é de fundamental
importância, sendo que a demora da decisão pode comprometer o
resultado do processo.
Esta preocupação é característica daquilo que se chama
“efetividade do processo”, ou seja, hipóteses em que a celeridade processual é condição sine qua non para que a decisão tenha eficácia.
CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO206 , com propriedade, afirma que
“... é preciso ter também um processo sem óbices econômicos e
sociais ao pleno acesso à justiça; se queremos um processo ágil e
funcionalmente coerente com os seus escopos207 , é preciso também relativizar o valor das formas e saber utilizá-las e exigi-las na
medida em que sejam indispensáveis à consecução do objetivo que
justifica a instituição de cada uma delas. Tudo o que já se fez e se
pretende fazer nesse sentido visa, como se compreende, à
efetividade do processo como meio de acesso à justiça”.
Diante desta nova perspectiva do processo civil moderno, a
doutrina tem criticado a redação do § 3º, do art. 542, introduzido pela lei
9756/98, e procurado meios de propiciar a subida dos recursos extraordinário e especial (mesmo quando interpostos contra decisão
interlocutória) nos casos em que há urgência.
206
ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de, GRINOVER, Ada Peligrini e DINAMARCO, Cândido Rangel, Teoria
Geral do Processo, 17ª ed., São Paulo, Malheiros, 2001, p. 44-45.
207
Sobre os escopos do processo (políticos, jurídico e sociais) ver p. 41 e seg. da referida obra.
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211
Veja-se a respeito, o comentário de GILSON DELGADO
MIRANDA e PATRÍCIA MIRANDA PIZZOL208 : “situações práticas são
verificadas em que a permanência dos recursos retidos nos autos já
será mais do que suficiente para sepultar o exame da questão pelo
órgão jurisdicional extremo (STJ e STF), notadamente, em se tratando
de lesão grave ou de difícil reparação”.
Exemplos citados pelos autores acima, onde o recurso especial e/ou extraordinário não deverá permanecer retido são quando interpostos contra decisão que opinou pela concessão ou denegação de
liminar (cautelar ou tutela antecipada), deferimento ou indeferimento
do pedido de ingresso em processo como assistente, ou, de intervenção de terceiro, admissão de prova obtida por meio ilícito, decisão que
julga impedimento ou suspeição do juiz.
Urge um mecanismo para afastar a incidência da norma, sob
pena da violação ao princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional. Assim, toda vez que houver perigo de perecimento de
direito ou de ocorrência de dano de difícil ou impossível reparação,
dever-se-á admitir a imediata subida dos recursos.
MEDIDA ADEQUADA PARA AFASTAR A INCIDÊNCIA DO ART. 542,
§ 3º CPC
Para esta finalidade, a doutrina209 -210 e jurisprudência têm apontado dois caminhos: medida cautelar inominada211 - demonstrado o
periculum in mora e o fumus boni iuris - dirigida ao STF ou STJ, ou
interposição do agravo de instrumento previsto pelo art. 544 CPC, ressalvando-se também a possibilidade do próprio tribunal a quo determi208
GILSON DELGADO MIRANDA e PATRÍCIA MIRANDA PIZZOL. Algumas considerações sobre os recursos especial e extraordinário – requisitos de admissibilidade e recursos retidos. Aspectos polêmicos e
atuais dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 204.
209
Conforme menciona GLEYDSON KLEBER LOPES DE OLIVEIRA. O interesse em recorrer nos recursos
extraordinário e especial retidos, instituídos pela lei 9.756/98. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos
cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.
467.
210
Vide ainda WAMBIER, Luiz Rodrigues, TALAMINI, Eduardo e ALMEIDA, Flávio Renato Correia. Curso
Avançado de Processo Civil. Vol 1, 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 709.
211
Também nesse sentido ZAIDEN GERAIGE NETO. Aspecto preocupante sobre o novo § 3º do artigo
542 do Código de Processo Civil e a possibilidade de excepcionar a regra (Lei 9.576, de 17.12.1998).
Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 694
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212
nar a subida imediata dos recursos nos casos de urgência212 .
Neste sentido afirma VICENTE GRECO FILHO213 : “no caso de
inadequação da retenção em virtude da urgência, cabe à parte suscitála, o que deverá ser objeto de decisão do Presidente do Tribunal recorrido, que determinará o imediato processamento, ou não”.
Também FLÁVIO LUIZ YARSHELL afirma que “poderia a parte interessada requerer, diretamente à presidência (ou vice-presidência), que, diante das circunstâncias excludentes da retenção, se passasse, diretamente, ao exame de admissibilidade dos recursos (vale
dizer, que não se aplicasse a retenção). A presidência (ou vice), pensamos, teria – como tem – poderes para excepcionar a regra legal de
retenção, ordenando o regular processamento do recurso”.214
E, mais adiante, prossegue o citado autor: “dessa forma, estando presentes os requisitos para a concessão da cautelar (para se conferir
efeito suspensivo a recurso extraordinário/especial), na forma admitida
pelo STF e pelo STJ, o deferimento da medida deverá: (a) atribuir efeito
suspensivo ao recurso e (b) determinar que se afaste a retenção,
viabilizando-se o exame da admissibilidade, como e por quem de direito
(CPC, art. 541), dos recursos interpostos perante o tribunal a quo”215 .
Analisando situação onde a aluna obteve, através de decisão
judicial, matrícula, junto à instituição de ensino e, interposto recurso especial, o mesmo foi recebido no efeito suspensivo permanecendo retido, pronuncia-se JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA216 : “... para nós, em
situações como a ora analisada, em que a demora do julgamento põe
em risco a segurança e estabilidade das relações jurídicas, o novo procedimento criado para os recursos extraordinário e especial retidos deve
ser afastado, permitindo-se sua interposição pelo modo tradicional”. E
prossegue afirmando que
212
Ver ainda, sobre o tema : GILSON DELGADO MIRANDA e PATRÍCIA MIRANDA PIZZOL. Ob. Cit., p. 208.
VICENTE GRECO FILHO. Direito Processual Civil Brasileiro, 2º v, 14ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 248.
214
FLÁVIO LUIZ YARSHELL. Ainda sobre a retenção dos recursos extraordinário e especial: meios de
impugnação da decisão que a determina. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 169. (nota nº 25)
215
FLÁVIO LUIZ YARSHELL, Ob. Cit., p. 171.
216
JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA. Recurso extraordinário e especial “retidos” – aspectos problemáticos
da novidade introduzida pela Lei 9.756/98, de 17.12.1998. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos
cíveis de acordo com a Lei nº 9.756/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, 374-375.
213
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213
“a suposta inviabilidade procedimental não pode impedir a utilização
da medida cautelar, com o intuito de suspender os efeitos da decisão recorrida, sob pena de inconstitucionalidade. Se se afirma que a
medida cautelar não é cabível em virtude do regime de retenção do
recurso extraordinário ou do recurso especial, deve-se, antes de afastar a medida cautelar (cujo cabimento é albergado na Constituição,
como se viu) afastar o regime de retenção dos recursos extraordinário ou especial”.
Ainda sobre o manejo da cautelar nessas hipóteses, cita-se o
ensinamento de JOSÉ SARAIVA217 :
“O mecanismo viável para essa finalidade consiste na aceitação,
pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça,
de medidas cautelares incidentais nos recursos retidos, ajuizadas
diretamente naquelas Cortes, e que tais medidas, quando acatadas, possam inibir os efeitos da decisão recorrida e, com isso, evitar
o desenvolvimento do processo em desconformidade com a “síntese axiológica” das normas constitucionais e legais fixadas, bem como
em desacordo com a jurisprudência predominante nos mencionados Tribunais”.
Desta forma, consoante a doutrina já mencionada, a medida
cautelar é plenamente viável e estando presentes os seus pressupostos autorizadores, deve a mesma ser deferida, determinado-se que o
recurso não permaneça retido, mas seja ordenado o seu
processamento.
O próprio STF admite que existem situações em que o § 3º, do
art. 542, CPC deve ser afastado218 , porém, a aplicação deste entendimento é extremamente tímida na Suprema Corte.
O argumento utilizado, de que, não emitido o juízo de
admissibilidade do recurso pelo tribunal a quo impede a concessão da
cautelar pois, configuraria “prejulgamento” pelo STF que tem sido criti217
JOSÉ SARAIVA. Os recursos extraordinários e especial – alterações da Lei 9.756/98. Aspectos polêmicos
e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei nº 9.756/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 415.
218
STF - Pet. Nº 1.834-6 – Rel. Min. Otávio Gallotti : “Procede, em princípio a reserva oposta pelo
requerente à aplicação do novo do § 3º do art. 542 do Código de Processo Civil (...) quando se cuida
da retenção de recurso extraordinário interposto contra acórdão prolatado em sede de medida liminar
ou tutela antecipada” In Revista Forense vol 353, p. 275 a 277.
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214
cado pelo seu caráter “positivista” e totalmente divorciado do atual entendimento adotado pelo STJ, que melhor se harmoniza com o processo moderno.
Veja-se a opinião de ATHOS GUSMÃO CARNEIRO219 : “No Supremo Tribunal Federal a jurisprudência é remansosa no sentido de que
a demanda cautelar somente será cabível após o juízo positivo de
admissibilidade do recurso extraordinário; portanto, durante o tempo de
sobrestamento o Pretório Excelso não receberá tal demanda. Já no
Superior Tribunal de Justiça, com observância da aludida norma legal,
a orientação dominante é no sentido de que a medida cautelar pode
ser proposta desde que interposto o recurso especial.”
Também DONALDO ARMELIN220 ao analisar o tema afirma:
“Na modalidade retida, agora, inaugurada pela Lei 9.756/98, tais
recursos não apenas continuam carentes de efeito suspensivo como
ainda não terão a sua admissibilidade apreciada, antes de sua reiteração tempestiva. Nem por isso, contudo, poderá ser inibido o poder
geral de cautela direcionado a evitar a ocorrência de dano irreparável
ou de difícil reparação. Para tanto, mister se fará inovar, a respeito,
admitindo a ação cautelar incidental para se assegurar o efeito
suspensivo a tais recursos, enquanto retidos e condicionados, no
atinente ao seu processamento, à reiteração da parte que o interpôs.
Considerando o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal
acima reportado, a admissibilidade da ação cautelar, nessa hipótese, dificilmente será acolhida. Isto, de certo modo, implicará uma
recusa à prestação a uma tutela adequada à ameaça de lesão de
direito, assegurada, constitucionalmente”.
Desta forma, ao indeferir o pedido cautelar e consequentemente
inadmitir o processamento do Recurso Extraordinário, o STF
desprestigia o princípio da efetividade da tutela jurisdicional.
219
ATHOS GUSMÃO CAREIRO. Requisitos específicos de admissibilidade do recurso especial.
Admissibilidade do Recurso Especial. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com
a Lei nº 9.756/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 126.
220
DONALDO ARMELIN. Apontamentos sobre as alterações ao Código de Processo Civil e à Lei 8.038/90,
impostas pela Lei 9.756/98. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei nº
9.756/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 207.
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215
A CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO
O art. 542, § 2º, do CPC dispõe que, o recurso extraordinário
será recebido tão somente no efeito devolutivo. Outrossim, situações
práticas demonstram que esta norma também deverá ter sua aplicação
relativizada, pois, há hipóteses em que a interposição de recurso não
dotado de efeito suspensivo, não “paralizando” os efeitos da decisão
proferida, pode gerar dano irreparável ou de difícil reparação ao recorrente, que, encontra-se em situação difícil ante a sistemática recursal
prevista.
Para evitar situações como essa, a doutrina tem sugerido a
utilização da cautelar para a concessão do efeito suspensivo a recursos destituídos pela lei de tal efeito. Em artigo sobre o tema, LUIZ
RODRIGUES WAMBIER221 ensina que:
“... a proteção que se dá imediata e diretamente ao objeto litigioso
(ao direito da parte) tem como fim último proteger o próprio resultado útil do processo em que as partes controvertem a respeito daquele determinado bem. É óbvio que de nada adiantaria se considerar a necessidade de proteger o resultado útil do processo, sem que
a isso se agregasse a necessária proteção àquilo que pelo processo se busca. (...) Presentes esses dois requisitos [o fumus boni iuris
e o periculum in mora], isto é sendo provável o direito alegado e
estando o mesmo sob ameaça, porque não é possível sua preservação até que o Poder Judiciário se pronuncie definitivamente naquele processo, está aberta a possibilidade do manejo da tutela
cautelar”.
Poder-se-ia argumentar do não cabimento da medida cautelar
para conferir efeito suspensivo ao recurso, porém, ainda segundo LUIZ
RODRIGUES WAMBIER222, na busca da efetividade do processo, ou
seja, para que as partes possam receber do Estado, o pronunciamento
judicial de modo que, seja possível realizar as transformações no mundo
221
LUIZ RODRIGUES WAMBIER. Do manejo da tutela cautelar para obtenção de efeito suspensivo no
recurso especial e no recurso extraordinário. In Aspectos polêmicos e atuais do Recurso Especial e do
Recurso Extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 365.
222
Ob. Cit., p. 368.
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216
empírico, tal como determinado na decisão, concebeu-se o manejo do
processo cautelar, através do qual, se pudesse “obter a suspensão da
eficácia do julgado que tenha sido impugnado mediante recurso desprovido de efeito suspensivo”.
Tal expediente tem sido admitido na jurisprudência e doutrina,
não configurando este procedimento, uso “indiscriminado e arbitrário”
do processo cautelar, mas “processo de integração dos diversos
microssistemas”223 (cautelar e recursal).
Especialmente o STJ tem admitido a cautelar com este fim, ainda que o tribunal a quo não tenha realizado juízo de admissibilidade do
recurso, face a urgência da situação e a presença dos requisitos
autorizadores da medida.
CASSIO SCARPINELLA BUENO224 noticia que, em Informativo do STJ veiculou-se nota no seguinte sentido: “... são possíveis as
cautelares, desde que publicado o acórdão recorrido, porquanto, se
assim não fosse, restaria desprotegida a parte pelo tempo, muitas vezes longo, para o exame da admissibilidade.”
O STJ está, acertadamente, admitindo a medida cautelar para
conferir efeito suspensivo a recurso, embora em algumas decisões
não o tenha feito quando pendente o juízo de admissibilidade do recurso perante o juízo a quo.
Veja-se a decisão do STJ, no Agravo Regimental nº 1.113225
julgado em 19.12.97, em que foi Relator o em. Min. Antônio de Pádua
Ribeiro, onde, por maioria, admitiu-se o exame de pedido cautelar pelo
Presidente do STJ, mesmo pendente juízo de admissibilidade do
Recurso Extraordinário, sob o fundamento que “não pode o Judiciário deixar de apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito (CF/88, art.
5º, XXXV)”, sendo a liminar deferida ad referendum do Supremo Tribunal Federal (conforme art. 21 do RISTF).
Vale ressaltar do acórdão, o argumento do Sr. Min. Sálvio de
223
Ob. Cit., p. 368.
CASSIO SCARPINELLA BUENO. Uma segunda reflexão sobre o novo § 3º do art. 542 do CPC (Lei
9.856, de 17 de dezembro de 1998). In Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000, p. 113
225
Revista Forense 353/275.
224
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217
Figueiredo Teixeira que, sobre o voto do relator entendeu que
“...o pensamento de S. Exa. está exatamente na linha da
processualística contemporânea, sobretudo em termos de cautelar,
sabido que o processo cautelar se arrima na prudência, buscando
assegurar o êxito do processo principal. Por outro lado, quando o
ordenamento jurídico não tem uma solução específica, a própria lei
diz que o juiz pode utilizar-se da cautelar inominada, autorizando o
juiz a construir a solução que melhor se ajuste ao caso concreto.
Quanto ao problema da competência deste Tribunal, tenho aí que não
há invasão, porque o Sr. Ministro Relator, com muita precisão, colocou a questão em termos de referendum. Destarte, se o Supremo
Tribunal Federal entender diversamente, não ratificará a medida
deferida cautelarmente.
Por outro lado, o processo civil brasileiro atual tem uma norma, que
está no art. 800, introduzida recentemente, prevendo que a medida
cautelar deva ser apresentada ao tribunal e não ao juiz. Por isso é
que, no caso, não há competência do juiz de primeiro grau, data vênia. Assim, no caso, a competência é do Supremo Tribunal Federal,
mas, como estamos em face de um vazio, o que se está propondo é
preenchê-lo provisoriamente, ad referendum daquela Alta Corte”.
Este posicionamento se coaduna com a finalidade do processo cautelar e com a necessidade de encontrar meios hábeis a assegurar a efetividade do processo226 .
Porém, o mesmo não ocorre no âmbito da Suprema Corte.
LUIZ RODRIGUES WAMBIER227 critica a posição do STF enten226
Nesse sentido, conclui LUIZ RODRIGUES WAMBIER: “A concessão de medida cautelar, para imprimir
efeito suspensivo a recurso que nem mesmo tenha sido submetido ao juízo de admissibilidade, implica
plena eficácia aos textos normativos que disciplinam o processo cautelar, como mecanismo de preservação do resultado do próprio processo e se traduz em evidente medida de reverência ao princípio do
devido processo legal, que, em última análise, significa que a parte tem direito a um processo, na
conformidade do que a lei prevê, e a um processo completo, isto é, cujo resultado possa ser o de operar
as transformações determinadas no provimento estatal”. In Da integração dos subsistemas recursal e
cautelar nas hipóteses de recurso especial e recurso extraordinário. Aspectos polêmicos e atuais dos
recursos cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos
Tribunias, 2001, p. 751.
227
LUIZ RODRIGUES WAMBIER. Do manejo da tutela cautelar para obtenção de efeito suspensivo no
recurso especial e no recurso extraordinário. In Aspectos polêmicos e atuais do Recurso Especial e do
Recurso Extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 370.
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218
dendo que “retira toda ou quase toda a utilidade do pedido cautelar
apresentado. Sendo, de fato, caso de deferimento da medida, parece insensato e injurídico submeter essa concessão à condição de o
recurso já ter sido admitido no órgão a quo, já que exigir-se esse
requisito no mais das vezes esvazia a função cautelar que seria, no
caso, a de garantir o julgamento útil do recurso”. E conclui o mesmo
autor: “melhor seria, e sem dúvida atenderia aos princípios que informam todo o sistema processual, como o da efetividade da prestação jurisdicional, se o Supremo Tribunal Federal admitisse, como
já acontece no Superior Tribunal de Justiça, que, por simples petição, acompanhada dos documentos necessários à comprovação
do estágio em que se encontra o processo, se pudesse deferir o
pedido cautelar (se, é claro, estiverem presentes os seus pressupostos autorizadores: periculum in mora e fumus boni iuris)”228 .
CONCLUSÃO
Os parágrafos 2º e 3º do art. 542 CPC devem sofrer aplicação
menos rigorosa, eis que o processo civil moderno norteia-se pelos princípios da efetividade e do devido processo legal. O meio adequado
segundo a doutrina e a jurisprudência do STJ para obter-se tais resultados é o processo cautelar.
A Suprema Corte tem adotado posicionamento contrário, entendendo que, enquanto pendente o juízo de admissibilidade do recurso, no juízo “a quo”, não é possível o deferimento da cautelar com
objetivo de conferir efeito suspensivo ao recurso extraordinário e ordenar seu imediato processamento.
Inobstante, tais argumentos, data vênia, discordamos de tal posição eis que a mesma vai de encontro aos princípios acima elencados
e à efetividade do processo.
Em síntese, que deve-se admitir o manejo de medida
cautelar para conferir-se efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário
bem como ordenar-se o seu processamento (a despeito da forma
retida), quando presentes os requisitos autorizadores da cautelar.
228
Ob. Cit. p. 373.
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219
ANOTAÇÕES SOBRE O LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO
CÉLIO ARMANDO JANCZESKI
PROFESSOR DE DIREITO TRIBUTÁRIO NA FACULDADE MATER DEI.
MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE DIREITO TRIBUTÁRIO & DO
INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE DIREITO TRIBUTÁRIO.
ADVOGADO & CONSULTOR NO ESTADO DE SANTA CATARINA.
RESUMO
O artigo cuida do lançamento tributário sob vários aspectos, tais como: a
constituição do lançamento; as suas três modalidades (de ofício, por
declaração e por homologação), como prevê o Código Tributário Nacional; o
lançamento feito em razão de arbitramento, esclarecendo que não se trata
de lançamento especial, mas apenas técnica do lançamento de ofício; do
lançamento e da execução fiscal. O autor elucida a questão da irrevisibilidade
do lançamento, explicando que o mesmo não pode ser modificado, substituído
ou revisto por ato da administração pública, em prejuízo do contribuinte, com
fundamento em mudança do critério jurídico.
ABSTRACT
The article cares about the tributary assessment under several aspects,
such as: the constitution of the assessment; its three modals ( written, by
declaration and by homologation), as it’s in the National Tax Code; the entry
done with adjustment, clarifying that it isn’t special entry, but only a technique
of entry, of entry and taxforeclosure. The author talks about the issue of not
reversible entry, explaining that it can’t be modified, replaced or revised by
an act of public administration, in loss to the taxpayer, with fundament in
change of Juridic criteria.
PALAVRAS CHAVE - Direito Tributário; Código Tributário Nacional;
lançamento tributário.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
O crédito tributário tem seu ponto de partida com o lançamento, conceituado
pelo Código Tributário Nacional como “o procedimento administrativo tendente
a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente,
determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido,
identificar o sujeito passivo e, sendo o caso propor a aplicação da penalidade
cabível” (art. 142, CTN). A expressão procedimentos administrativos deve
ser interpretada em sentido amplo, no sentido de atuação administrativa, já
que detendo a Fazenda de todos os elementos necessários ao lançamento,
o mesmo pode ser levado a efeito sem instauração de um prévio procedimento.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
220
A atividade administrativa de lançamento, que compete privativamente à
autoridade administrativa, é vinculada e obrigatória, sob pena de
responsabilidade funcional (parágrafo único, do art. 142, CTN).
Processo administrativo. Crédito garantido por depósito judicial. Lançamento
para prevenir a decadência. Possibilidade.
Multa de ofício. Pode a fiscalização formalizar exigência previamente
questionada judicialmente, para evitar os efeitos decadenciais, devendo absterse, porém, de aplicar multa de ofício, estando o crédito tributário garantido
por depósito judicial prévio, em seu montante integral. Recurso parcialmente
provido.229
Processo administrativo. Opção pela via judicial. Constituição do lançamento
para prevenir a decadência. Possibilidade. Normas processuais. Opção
pela via judicial. Tendo o contribuinte optado pela discussão da matéria
perante o Poder Judiciário, tem a autoridade administrativa o direito/dever
de constituir o lançamento, para prevenir os efeitos decadências, ficando o
crédito assim constituído sujeito ao que ali vier a ser decidido. A submissão
de matéria à tutela autônoma e superior do Poder Judiciário, prévia ou
posteriormente ao lançamento, inibe o pronunciamento da autoridade
administrativa sobre o mérito de incidência tributária em litígio, cuja
exigibilidade fica adstrita à decisão definitiva do processo judicial. Multa Incabível a aplicação da multa de lançamento de ofício quando o sujeito
passivo se encontra sob a tutela do Poder Judiciário mediante obtenção
de liminar que o favorece. Recurso parcialmente provido.230
Em vista das disposições do Código Tributário Nacional,
Misabel Derzi231 conceitua lançamento, como o “ato jurídico administrativo vinculado e obrigatório, de individuação e concreção da norma tributária ao caso concreto (ato aplicativo), desencadeando efeitos
confirmatórios-extintivos (no caso de homologação do pagamento) ou
conferindo exigibilidade ao direito de crédito que lhe é preexistente
para fixar-lhe os termos e possibilitar a formação do título executivo”.
Notificação eletrônica. Nulidade. Falta dos requisitos do Lançamento.
É de ser decretada a nulidade de lançamento efetuado através de
229
1º Conselho de Contribuintes, 5ª C., Ac. 105-12.835. Rel. Cons. Luis Gonzaga Medeiros Nóbrega, j.
a
08.06.1999. DOU 1 31.08.1999, p. 05, in Repertório IOB de Jurisprudência, 2 quinzena de novembro de
1999, nº 1/14100, p. 631.
230
1º Conselho de Contribuintes, 8ª C., Ac. 108-05.721. Rel. Cons. Tânia Koetz Moreira. DOU-e 1 21.07.1999,
p.12.
231
DERZI, Misabel Abreu Machado. Comentários ao Código Tributário Nacional. Coordenador Carlos
Valder do Nascimento. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 355.
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221
meios informatizados eletrônicos que não preencha os requisitos
previstos em lei, tais como a falta do nome e da assinatura do funcionário. Art. 142 do CTN, art, 11 do Dec. nº 70.235/72. Notificação de
lançamento nula.232
IRPF. Notificação eletrônica. Nulidade.
O Código Tributário Nacional em seu artigo 142, preconiza ser a atividade do lançamento privativa da autoridade administrativa, ao que
estabelece o artigo 11 do Decreto nº 70.235/72 como requisito obrigatório à notificação a referência ao nome, cargo e matrícula do responsável. Consistindo a notificação do lançamento no ato de formalização
da exigência do tributo, sendo essencial à formulação da defesa pelo
contribuinte, é inadmissível a preterição dos requisitos essenciais
quando de sua emissão, causa, portanto, de nulidade do lançamento.
Por unanimidade de votos anular o lançamento.233
Com a lavratura do auto de infração, fica consumado o lançamento
do crédito tributário, não havendo, pois, de se falar em decadência.
A interposição de recurso administrativo pelo contribuinte tem o efeito,
tão-somente, de suspender a exigibilidade do crédito tributário...234
O lançamento é de competência privativa da autoridade administrativa (art. 142 do CTN). Assim, qualquer que seja a modalidade (direito, por declaração ou por homologação), ele só se completa com a
manifestação da autoridade. Até aí, corre o prazo de decadência;
depois, começa o de prescrição.235
Crédito Tributário. A constituição definitiva do crédito não se dá com
a inscrição, mas com o lançamento. Não basta, entretanto, o lançamento, pois sendo ele suscetível de impugnação pelo sujeito passivo, o crédito, a que o lançamento, se refere, não é definitivo antes
de julgada a impugnação, se esta tiver sido oferecida no prazo legal.
Recurso extraordinário conhecido e provido.236
232
1º Conselho de Contribuintes, 7ª C., Ac. 107-04.743. Rel. Conselheiro Antenor de Barros Leite Filho.
DOU 1 23.06.1998, p. 34.
233
Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª T., Ac. 01-02.690. Rel. Wilfrido Augusto Rodrigues. DOU 1
16.08.1999, p. 05.
234
STF, 1 T., REsp. 91812. Rel. Min. Rafael Mayer. DJ 08.02.1980, p. 505.
235
TFR, 5ª T., Ag. 40981/RJ. Rel. Justino Ribeiro. DJ 20.08.1981, p.37.
236
a
STF, 2 T., REsp. 85587. Rel. Min. Leitão de Abreu, j. 01.09.1978. RTJ 89:939.
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222
1. Tributário. Certidão negativa. Lançamento. Procedimento
administrativo. Recurso pendente. Direito à certidão negativa.
Enquanto pender recurso no procedimento de lançamento, o contribuinte tem direito à certidão negativa de débito fiscal – eis que não
existe, ainda, crédito tributário exeqüível. (REsp. 202.830/Humberto).
2. Processual. Mandado de segurança. Certidão negativa. Dívida em
processo de lançamento. Enquanto houver iliquidez e incerteza em
relação à dívida fiscal, haverá liquidez e certeza no direito do contribuinte à certidão negativa. Mandado de segurança que se defere.237
MODALIDADES DE LANÇAMENTO
Prevê, o Código Tributário Nacional, três modalidades de lançamento: de ofício, por declaração e por homologação.
LANÇAMENTO DE OFÍCIO
Ocorre lançamento de ofício quando o mesmo é realizado pela
autoridade administrativa, com os dados que possui em seus registros
ou naqueles que recebeu via informação do sujeito passivo, sem qualquer participação do sujeito passivo.
Encontra previsão no art.149, do CTN:
O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:
I - quando a lei assim o determine;
II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no
prazo e na forma da legislação tributária;
III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado
declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo
e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não
o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade;
IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória;
237
STJ, 1ª T., REsp. 264.041/AL. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. DJU-e 1 04.06.2001, p. 63.
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223
V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o
artigo seguinte;
VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de
terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária;
VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;
VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado
por ocasião do lançamento anterior;
IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela
mesma autoridade, de ato ou formalidade essencial.
Aliomar Baleeiro, a respeito do tema assevera que, “o caput do
art. 149 refere-se às hipóteses em que o lançamento, por determinação legal, deve ser efetuado de ofício pela autoridade administrativa
(inc. I), o que acontece no Imposto Predial e Territorial Urbano, na
contribuição de melhoria e em taxas diversas, como ainda às revisões
e alterações feitas em relação a outros tributos, que originariamente
deveriam ser lançados com base em declaração (Imposto Territorial
Rural), ou por homologação (ICMS, IPI, IR, contribuições especiais
em geral, etc.). É a lei da pessoa estatal competente que optará tecnicamente pela modalidade do procedimento para lançar. Qual a melhor
alternativa? Dependerá da espécie de tributo a ser lançado. Em conseqüência, o art. 149, I, refere-se à determinação legal, que define a adoção do lançamento de ofício, como modalidade mais adequada à espécie de tributo. Mas o art. 149 (caput e itens de I a IX), disciplina também
as hipóteses de substituição do lançamento com base em declaração
ou por homologação, que deveriam ter sido efetuados originariamente
sem vício, pelo procedimento de lançamento de ofício, total ou complementarmente (revisão ou alteração por iniciativa da autoridade administrativa). E o faz, como já vimos, de forma não exaustiva, numerus opertus,
admitindo que a lei ordinária da pessoa política competente estenda o
rol a outros casos não previstos no art. 149. É que o descumprimento
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224
dos deveres de colaboração pelo sujeito passivo, presentes no lançamento com base na declaração e por homologação, não pode comprometer a gestão, administração e arrecadação dos tributos, de que depende o financiamento do Estado.”238
Processo administrativo fiscal. Lançamentos. Efeitos.
O auto de infração é uma das modalidades de lançamento (lançamento de ofício) com efeito de constituir o crédito tributário, não implicando sua lavratura em exigência desse crédito, o que só se caracterizará com a execução. Portanto, referido ato não contraria
decisão judicial que protege a parte contra “qualquer exigência de
diferenças tributárias”. Instaurado com estrita observância das normas estabelecidas no Processo Administrativo Fiscal (Decreto n.º
70.235/72, com alterações da Lei nº 8.748, de 1993), improcede sua
alegada nulidade. Recurso a que se nega provimento.239
IRPJ. Decadência. Lançamento de ofício.
1. O Imposto de Renda, antes do advento da Lei nº 8.381, de
30.12.1991, era um tributo sujeito a lançamento por declaração,
operando-se o prazo decadencial a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado,
consoante o disposto no art. 173, do Código Tributário Nacional. A
contagem do prazo de caducidade seria antecipado para o dia seguinte à data da notificação de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento ou da entrega da declaração de rendimentos (CTN, art. 173 e seu parágrafo único, c/c o art. 711 e §§ do RIR/
80). 2. Tendo sido o lançamento de ofício efetuado na fluência do
prazo de cinco anos contado a partir da entrega da declaração de
rendimentos, improcede a preliminar de decadência do direito de a
Fazenda Nacional lançar o tributo.240
Normas gerais de direito tributário. Omissão de receita. Interpretação benigna.
238
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi, Rio de
Janeiro: Forense, 1999, p. 825.
239
2º Conselho de Contribuintes, 2ª C., Ac. 202-09312. Rel. Conselheiro Oswaldo Tancredo de Oliveira.
DOU 12.12.1997, p. 29567.
240
Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª T., Ac. 01-02.577. Rel. Conselheiro Carlos Alberto Gonçalves Nunes. DOU 11.08.1999, p. 09.
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225
O lançamento de ofício há de ser celebrado de maneira precisa e
induvidosa, de modo a assegurar que os fatos que o ensejaram constituem, efetivamente, infração à legislação tributária. Se houver dúvida quanto à correta identificação das circunstâncias e da qualificação dos fatos, impõe-se a solução mais favorável ao sujeito passivo, consoante estabelece o inc. II do art. 112 do CTN. Lançamentos
decorrentes – PIS, COFINS, IRRF e CSLL – Julgado improcedente
o lançamento principal (IRPJ) igual sorte colhe os lançamentos ditos decorrentes, face ao nexo de causa e efeito existente entre eles.
Recurso voluntário provido.241
LANÇAMENTO POR DECLARAÇÃO
O lançamento por declaração ou misto, é efetuado com base
na declaração do sujeito passivo ou de terceiro, quando um ou outro,
na forma da legislação tributária, presta à autoridade administrativa
informações sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação
(art. 147, do CTN). Recebido as informações, em vista delas, o fisco
implementa o lançamento.
IRPF. Decadência. Lançamento por declaração.
A jurisprudência administrativa dominante é no sentido de que o prazo de caducidade, no imposto de renda de pessoa física, conta-se a
partir da data da entrega da declaração de rendimentos do contribuinte. Tendo sido o auto de infração lavrado antes de decorrido o
prazo de 5 (cinco) anos, contado da data da entrega da declaração
de rendimentos do sujeito passivo, improcede a decretação da caducidade do direito de a Fazenda Pública lançar o tributo.242
LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO
Também denominado de autolançamento, o lançamento por
homologação “ocorre, quanto aos tributos, cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da
autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autorida241
1º Conselho de Contribuintes, 3ª C., Ac. 103-20.341. Rel Conselheira Lúcia Rosa Silva Santos. DOU
27.09.2000, p. 04.
242
Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª T., Ac. 01-02.979. Rel. Conselheiro Carlos Alberto Gonçalves Nunes. DOU 11.06.2000, p. 17.
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226
de, tomando conhecimento da atividade, assim exercida pelo obrigado,
expressamente, a homologa”(art. 150, CTN). É uma das características
predominantes da tributação nacional, já que a maior parte dos tributos
utiliza esta sistemática. O pagamento antecipado pelo obrigado, extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação do lançamento (parágrafo 1o, do art. 150, do CTN), que se não fixado pela lei,
será de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador. Como de
regra, a Fazenda Pública, não se manifesta no prazo referido, considera-se tacitamente homologado o lançamento e definitivamente extinto o
crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação
(parágrafo 4o, do art. 150, do CTN).
Tratando-se de lançamento por homologação, como a extinção
do crédito tributário só se dá a partir da homologação e não do pagamento, somente a partir deste momento, é que iniciará o prazo extintivo
do direito à restituição do tributo pago indevidamente. Como na prática a homologação, na quase totalidade dos casos, se dá tacitamente,
a jurisprudência pacificou-se no sentido de que o direito do contribuinte buscar a restituição só ocorrerá após o transcurso do prazo de cinco
anos, contados da ocorrência do fato gerador, acrescido de mais cinco
anos, contados daquela data em que se deu a homologação tácita243 .
Contribuição para o PIS (Decretos-leis nos 2.445/88 e 2.449/88):
Inconstitucionalidade reconhecida no tribunal a quo. Compensação (Lei
nº 8.383/91). Possibilidade. Recurso especial parcialmente provido.
I – Os valores recolhidos a título de contribuição para o PIS, cuja
exação foi considerada inconstitucional pelo STF (RE nº 18X.752-2RJ), são compensáveis diretamente pelo contribuinte com aqueles
devidos à conta da mesma contribuição (LC nº 07/70), no âmbito do
lançamento por homologação. Precedentes. II – Tributos, cujo crédito se constitui através de lançamento por homologação, como no
caso, são apurados em registros da contribuinte, devendo ser considerados líquidos e certos para efeito de compensação, a se con243
Como já registrado no capítulo que trata da repetição do indébito tributário, na ação objetivando a
restituição fundada na inconstitucionalidade da lei tributária, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido
que o prazo se conta a partir da decisão plenária do Supremo Tribunal Federal que declarou a
inconstitucionalidade.
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227
cretizar independentemente de prévia comunicação à autoridade
fazendária (cf. art. 2º da IN/SRF nº 67/92), cabendo a essa a fiscalização do procedimento. III – Recurso especial conhecido e parcialmente provido.244
Contribuição previdenciária de autônomos e empresários (Lei nº
7.787/89 e Lei nº 8.212/91). Inconstitucionalidade (RE nº 166.772/
RS e ADIN nº 1.102/DF). Compensação: Possibilidade com a contribuição sobre a folha de salários. Precedente. Recurso conhecido e
provido.
I – Tributos, cujo crédito se constitui através de lançamento por homologação, como no caso, são apurados em registros da contribuinte, devendo ser considerados líquidos a certos para efeito, de compensação, a concretizar-se independentemente de prévia comunicação à autoridade fazendária, à qual compete a fiscalização do
procedimento compensatório. II – Visto que a autora juntou ao seu
pedido comprovante do que pagou sem amparo legal, é lhe permitida a compensação. III – Recurso conhecido e provido.245
Lançamento por homologação. Prévio pedido à receita federal
para compensar. Dispensável.
Tratando-se de contribuições submetidas ao lançamento por homologação, o pagamento é feito sem audiência prévia da autoridade
administrativa, o que conduz à conclusão que a compensação requer iniciativa do contribuinte e independe de prévia manifestação
do fisco. Este, a sua vez, terá o prazo previsto no parágrafo 4º do
artigo 150 do Código Tributário Nacional para eventual lançamento
ex-ofício por diferenças não pagas. Recurso provido.246
LANÇAMENTO FEITO EM RAZÃO DE ARBITRAMENTO
Quando o cálculo do tributo tem por base, ou toma em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a
autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor
244
STJ, 2ª T., REsp. 118.873/MG. Rel. Min. Adhemar Maciel. DJ 17.11.1997, p. 59487.
STJ, 2ª T., REsp. 110.942/MG. Rel. Min. Adhemar Maciel. DJU 04.05.1998, p. 137.
246
1º Conselho de Contribuintes, 7ª C., Ac. 107-05.315. Rel. Conselheiro Francisco de Assis Vaz Guimarães. DOU 24.11.1998.
245
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228
ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações
ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado. Ressalvada, em caso
de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial (art. 148,
do CTN). O arbitramento não se trata de lançamento especial, mas apenas técnica do lançamento de ofício. Sua aplicação depende da existência dos requisitos especificados pelo artigo citado, cujo ônus da prova
caberá ao fisco. As deficiências a serem comprovadas pela Fazenda
Pública, deverão refletir-se, absolutamente incontornáveis. Os elementos
devem ser concretos, precisos e individualizados, não bastando a simples alegação de irregularidades.
A adoção da prova indiciária em que o arbitramento se traduz
pressupõe a prova de que os vícios isolados que afetam a escrituração tornam, absolutamente, impossível ao Fisco reconstituir, com base
nela, o lucro real. Em tal caso, sim, a escrituração tornou-se imprestável
para o objetivo a que visa e o vício ou vícios dos lançamentos individuais
arrastam a desclassificação do conjunto. Não basta uma simples dificuldade ou maior onerosidade do exercício do dever de investigação em
decorrência de vícios isolados da escrita, para exonerar o Fisco do dever de seu cumprimento funcional, autorizando-o desde logo ao recurso
à prova indiciária. Enquanto essa possibilidade subsiste deve o Fisco
prosseguir no cumprimento de tal dever, seja qual for a complexidade e
o custo de tal investigação.247
Como comenta Sacha Calmon Navarro Coêlho248 , manifestando-se sobre o assunto, “o arbitramento é remédio que viabiliza o lançamento, em face da inexistência de documentos ou da imprestabilidade
dos documentos e dados fornecidos pelo próprio contribuinte ou por terceiro legalmente obrigado a informar. Não é critério alternativo de presunção de fatos jurídicos ou de bases de cálculo, que possa ser utilizado
quando o contribuinte mantenha escrita (mesmo falha ou imperfeita, porém retificável) ou documentação e seja correto em suas informações.
247
XAVIER, Alberto. Lançamento por Arbitramento Pressupostos e Limites. Revista de Direito Tributário.
São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 31, janeiro-março de 1985, p. 181.
248
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense,
2000, p. 666-667.
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229
Ao contrário. A Constituição Federal, no art. 145, § 1º, obriga à tributação de acordo com a capacidade econômica do sujeito passivo, segundo o princípio da realidade. Portanto, o art. 148 do CTN, somente autoriza a utilização do arbitramento em face das omissões ou atos de falsidade e desonestidade perpetrados pelo contribuinte ou terceiro, que
tornem imprestáveis os dados registrados em sua escrita. Não sendo
esta a hipótese, a contrario sensu, ficam vedadas as presunções e os
indícios, pautas e médias levantadas, técnicas que afastam o lançamento da realidade dos fatos e da capacidade econômica do sujeito
passivo. Além disso, não pode haver confusão entre mero atraso na escrita e fraude, sonegação, documento falso, enfim desonestidade, que
são sempre dolosos e, de modo algum, podem ser presumidos.”
Tributário. Lançamento de ofício. Montante tributável.
Arbitramento. Escrita contábil-fiscal. Desclassificação. Legalidade.
A Administração, constatando irregularidades, na escrita contábilfiscal de um estabelecimento, pode, e deve, fazer aferição indireta
(arbitramento) do montante tributável, pois tal procedimento é imposto pelo § 6º, do art. 33, da Lei nº 8.212/91. O “agir” administrativo
nada tem de ilegal, ou inconstitucional, na medida em que assegurados, ao contribuinte, o contraditório, e a ampla defesa. Em nome
do princípio basilar do Direito Administrativo, a “soberania do interesse público sobre o particular”, está autorizada a auditoria fiscal,
como a que ocorreu, na construtora, sopesando os dados relativos
aos insumos, com o resultado das edificações, como forma de aferir
a probidade dos dados, relativos às operações realizadas (com evidentes reflexos no recolhimento das contribuições devidas à
Autarquia Previdenciária). Sentença reformada. Embargos à execução improcedentes. Remessa oficial, e Apelação do INSS conhecidas, e providas.249
Arbitramento. Constatada a ausência de documentação fiscal
que comprove as demonstrações financeiras, o único meio de se alcançar a base tributável é através do arbitramento.
Aumento de capital. Comprovação.
249
TRF, 4ª R., 1ª T., AC 1999.04.01.045231-6/SC. Rel. Juíza Maria Isabel Pezzi Klein. DJU-e 2 08.11.2000,
a
p. 56, in Repertório IOB de Jurisprudência, 1 quinzena de março de 2001, nº 1/15695, p. 119.
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230
Impossível, no caso em apreço, a tributação por falta de comprovação de origem e entrega de recursos, quando já efetuado o
arbitramento pela absoluta ausência de documentos e demonstração
financeira. A presunção pressupõe a prova anterior de omissão por
indícios na escrituração, fato impossível quando inexistente a própria
escrituração. A prova seria de todo impossível ou estar-se-ia cerceando o direito de defesa do contribuinte, transformando uma presunção
juris tantum em ficção jurídica. Recurso parcialmente provido.250
IRPF. Acréscimo patrimonial a descoberto. Omissão de
rendimentos.
A presunção de omissão de rendimentos deve estar fundamentada em prova ou indícios veementes de falsidade ou inexatidão
dos esclarecimentos prestados pelo contribuinte. A falta de apresentação de declaração de rendimentos, acompanhada de esclarecimentos
insuficientes do contribuinte não foram arrolados pela lei como fundamento do arbitramento. Os elementos que se dispuserem, a que se
refere o art. 678 do RIR/80, são aqueles que trazem em seu conteúdo
prova e evidência substancial. IRPF. Sinais exteriores de riqueza. Lei
nº 8.021/90. Aplicação – No arbitramento, em procedimento de ofício,
efetuado com base em cheques ou ordens de pagamento, bancários, nos
termos do art. 6º, e seus §§, da Lei nº 8.021/1990, é imprescindível que
seja comprovada a utilização dos valores como renda consumida, evidenciando sinais exteriores de riqueza, visto que, por si só, não constituem fato gerador do imposto de renda, pois não caracterizam disponibilidade econômica de renda e proventos. Recurso negado.251
LANÇAMENTO E EXECUÇÃO FISCAL
A execução fiscal pode reunir numa só cobrança, vários créditos
tributários, inseridos em uma só certidão de dívida ativa, assim como possível que a execução seja instruída com mais de uma certidão. Nestes
casos, a exclusão de uma parcela autônoma, não macula o procedimento
executivo daquela remanescente, considerada devida.
250
1º Conselho de Contribuintes, 8ª C., Ac. 108-05.080. DOU 31.08.1998, p. 08.
Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª T., Ac. 01-02.780. Rel. Conselheiro Remis Almeida Estol. DOU
06.12.2000, p. 12.
251
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231
Processual. Executivo fiscal. Inscrições de dívidas ativas provenientes de taxa e imposto. Certidão relativa as duas inscrições. Embargos recebidos para declarar improcedente a dívida oriunda do imposto. Aproveitamento parcial da certidão. Continuação do processo executivo.
Processo executivo fiscal instruído com certidão em que se comprovam duas inscrições em dívida ativa de origens diferentes: uma
proveniente de imposto; outra, oriunda de taxa. Declarada incobrável
a parcela resultante de imposto, a execução continuará, aproveitando-se a certidão, na parte relativa à taxa.252
Na hipótese da execução fiscal estar exigindo um só crédito, é
facultado ao Fisco a emenda ou a substituição da Certidão de Dívida
Ativa até a decisão de primeira instância (art. 2o, par. 8o, da Lei 6.830/
80), que se não o fizer, impossibilitará ao Juiz, ao acolher parcialmente
os embargos, determinar o prosseguimento da execução pela diferença que considere devida, já que o juiz não poderá fazer um lançamento tributário em substituição àquele tido como viciado, até porque o
lançamento é procedimento privativo da autoridade administrativa.
Neste sentido assinala Hugo de Brito253 que “na verdade, o que
importa para saber, quando a execução deve prosseguir não é a inscrição, nem a certidão respectiva. O que importa é a identificação da
relação obrigacional tributária e o correspondente lançamento, que a
tornou líquida e certa, vale dizer, que a transformou em crédito tributário. Se o crédito é um só, resultado de um acertamento, evidentemente
se é indevido em parte, torna-se ilíquido, sendo inadmissível o procedimento da execução. Se estão sendo cobrados dois ou mais créditos,
ainda que tenham sido objeto de uma única inscrição e estejam documentados por uma única certidão, o desmembramento é possível, devendo a execução prosseguir pelo saldo.”
IRREVISIBILIDADE DO LANÇAMENTO
O lançamento não pode ser modificado, substituído ou revisto
252
STJ, 1ª T., REsp. 73.162/SP. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 11.10.1995. DJU 1 20.11.1995, p. 39566.
MACHADO, Hugo de Brito. Lançamento Tributário, Execução Fiscal e Mandado de Segurança, in
Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Oliveira Rocha Comércio e Serviços Ltda, nº 47, agosto
de 1999, p. 59.
253
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232
por ato da administração pública, em prejuízo do contribuinte, com fundamento em mudança do critério jurídico. Eventual erro de fato poderia
fazê-lo, porém não o erro de direito, especialmente, porque a lei não
pode admitir seja ignorada da autoridade fiscal encarregada de proceder ao lançamento.
Ricardo Lobo Torres254 , manifestando-se sobre o assunto,
apresenta a mesma orientação, ao defender que, a regra geral prevalecente no direito tributário, é a da irrevisibilidade do lançamento. “Nem
o erro de direito na aplicação das leis fiscais, nem a sua injustiça legitimam a revisão do lançamento, eis que através dele se cria uma situação jurídica bilateral. Só a Administração Judicante pode revê-lo, se
houver impugnação do sujeito passivo ou recurso de ofício; ou a Administração Ativa, se ocorrer uma das circunstâncias previstas no artigo
149 do CTN. Os critérios jurídicos utilizados para o lançamento pela
Administração são inalteráveis com relação a um mesmo sujeito passivo, ainda que haja modificação na jurisprudência administrativa ou
judicial. Este princípio, estampado no artigo 146 do CTN, emana da
segurança dos direitos individuais e da proteção da confiança do contribuinte. Aplica-se, principalmente, nos casos de consulta sobre a existência da relação tributária: se a Administração firma determinado ponto
de vista, favorável ao contribuinte, não poderá depois, nem mesmo em
virtude de decisões administrativas ou judiciais, voltar atrás para exigir
daquele contribuinte beneficiado o imposto devido por fatos pretéritos,
apenas os fatos futuros ficarão sujeitos ao novo critério jurídico.”
O mesmo ensinamento é defendido por Paulo de Barros Car255
valho , que registra haver “um critério que vem sendo amplamente
observado, no que concerne aos limites da atividade modificadora
dos atos de lançamento. A autoridade administrativa não está autorizada a majorar a pretensão tributária, com base em mudança de critério
jurídico. Pode fazê-lo, sim, provando haver erro de fato. Mas como o
direito se presume conhecido por todos, a Fazenda não poderá alegar
desconhecê-lo, formulando uma exigência, segundo determinado crité254
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 227.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 278.
255
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233
rio e, posteriormente, rever a orientação, para efeito de modificá-la. A
prática tem demonstrado a freqüência de tentativas da Administração,
no sentido de alterar lançamentos, fundando-se em novas interpretações
de dispositivos jurídico-tributários. A providência, entretanto, tem sido,
reiteradamente, barrada nos tribunais judiciários, sobre o fundamento
explícito no artigo 146 do Código Tributário Nacional.”
Duplo lançamento. Agravamento. Considerado o lançamento
como ato, a sua ocorrência é una, não se confundindo com o procedimento que, normalmente, lhe é anterior. Uma vez lançado o contribuinte, com impugnação apresentada, deve ele ser apreciado sem modificações, pela autoridade julgadora.256
===============================================================
256
1º Conselho de Contribuintes, 1ª C., Ac. 101-93.595. Rel. Conselheiro Celso Alves Feitosa. DOU 1
07.01.2002, p. 31.
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AS MÚLTIPLAS FUNÇÕES DO BEM JURÍDICO NO
DIREITO PENAL
PEDRO LUCIANO EVANGELISTA FERREIRA
PROFESSOR DE CRIMINOLOGIA & DE DIREITO PENAL DO CESCAGE.
MESTRE EM CRIMINOLOGIA E DIREITO PENAL PELA UCAM/RJ.
ADVOGADO NO PARANÁ.
RESUMO
O artigo cuida das múltiplas funções do bem jurídico no Direito Penal, adotando
para tanto, a concepção de bem jurídico como o objeto da proteção jurídica,
representado por um interesse ou valor importante para a sociedade ou para
o indivíduo. Para demonstrar tal importância, fundado em doutrina farta e
especializada, o autor entabula algumas relações do bem jurídico, tais como:
entre o bem jurídico e os princípios basilares do Direito Penal; entre o bem
jurídico e a teoria do fato punível; e entre o bem jurídico e a Constituição,
como limites à política criminal.
ABSTRACT
The article cares about the multiple functions of the juridic assets in Crimminal
Law, adopting for it, the conception of Juridic Assets as an object of juridic
protection, represented by an interest or important value to the society or to
the individual. To demonstrate such importance,found in specialized doctrine, the author talks about some relations of the juridic assets,such as:
between the juridic assets and the base principles of Crimminal Law; between the juridic assets and the theory of the punishing fact; and between the
juridic assets and the Constitution, as limits to the Crimminal politics.
PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; criminologia; bem jurídico penal.
INTRODUÇÃO
O conceito de bem jurídico é de suma importância a qualquer indagação
jurídico-penal pois serve de substrato material e critério diretivo a todo
processo de criminalização. A sua importância é tamanha que a precisa
compreensão das características e peculiaridades de qualquer espécie de
crime não pode prescindir de duas perguntas principais: Qual bem jurídico
o legislador busca proteger? Quais as formas de lesão que o tipo penal
procura evitar?
Atento a estas questões mister dedicar o presente estudo para buscar uma
precisa definição de bem jurídico e o seu esquadrinhamento de suas múltiplas
funções dentro da sistemática jurídico-penal, pois como bem assevera MAURACH:
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“El bien jurídico es el núcleo material de toda a norma de conducta y de todo
tipo construido sobre ella. La interpretación de la ley penal - y com ella su
conocimiento -, sin la directriz que le da la noción del bien jurídico, es
simplesmente imposible.”257
O BEM JURÍDICO E A SOCIEDADE
Há muito se tem asseverado não existir sociedade sem o direito e o direito sem a sociedade - afirmação contida no brocardo latino
“ubi societas, ibi ius” - uma vez que a sociedade não representa mera
justaposição de indivíduos em determinadas coordenadas espaço-temporais, mas pressupõe a formação de um grupo de indivíduos convivendo e interagindo entre si pelas mais variadas formas de relações.
A formação do corpo social busca alcançar a coexistência harmônica de todos os seus integrantes, coexistência que só será
conseguida por meio da coordenação e adaptação das atividades e
interesses individuais entre si. Esta coordenação é obtida pelo
ordenamento jurídico, pela ética e pela moral que são conjuntos de
regras de conduta, mas ao contrário das normas éticas e morais, as
normas jurídicas ocupam destacada posição haja vista não possuírem
sua atuação circunscrita ao âmbito intra-subjetivo.
Responsável por traçar os limites das atividades de cada indivíduo, o ordenamento jurídico impõe e garante a observância de seus
preceitos por meio de sanções cujos efeitos ultrapassam a esfera da
consciência individual acentuando sua força coercitiva. Não é exagero
concluir que o Direito cria e regula a própria sociedade, considerada
como um todo, ou em suas partes ou elementos que a constituem tanto pessoas físicas como pessoas jurídicas - do ponto de vista jurídico. Assim, sob certo ponto de vista, o homem, como sujeito jurídico,
também não deixa de ser uma criação do Direito, que ora lhe atribui
faculdades, ora as reduz, ora delas o priva.
Sendo essa a causa do Direito pode se notar a existência de
tantos ordenamentos quantas forem as formas de organização social,
nada legitimando a afirmação de que o Estado é a sua única manifesta257
MAURACH, Reinhart. Derecho penal. Parte general - tomo I. Atualizado por Heinz Zipf. Tradução da 7ª
edição alemã por Jorge Bofill Genzsch e Henrique Aimone Gibson. Buenos Aires: Editorial Astrea de
Alfredo y Ricardo Depalma, 1994. p. 339.
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ção. Pode-se dizer que ele é a manifestação mais recente já que foi
antecedido por outras formas de organização social como as famílias,
as tribos e os clãs. A própria Igreja é considerada como organismo autônomo, com ordenamento jurídico próprio (jus canonicum) e é tratada
como qualquer outro Estado nas suas relações internacionais.
As sociedades, companhias, sindicatos e corporações também
se regem pelos seus próprios ordenamentos que estabelecem direitos
e deveres para seus membros, e assumem, por esta razão, caráter
eminentemente jurídico.
Impende gizar a natureza do Direito como produto criado pelos agrupamentos sociais de acordo com a intensidade e direção das
necessidades e interesses prevalentes em certo contexto histórico, em
repulsa ás concepções ideológicas do Direito como algo natural e préexistente a toda a sociedade, fruto de noções, universalmente, válidas.258
Assim, desponta claro e evidente que não pode haver independência
ou dissociação entre o estudo do Direito e o estudo do ambiente cultural em que ele se desenvolve.259
Porém, sob o ponto de vista dogmático, ou em função exclusiva
das normas jurídicas, pode se afirmar que só há o Direito que promana
do Estado uma vez que este, nos tempos atuais, é o poder absoluto
dotado de soberania - nos limites de seu território -, sendo por meio do
Direito que ele se constitui e representa a sua eficiência e força. Mas a
realidade mostra que o Estado convive com outros ordenamentos ainda
que enfeixe em suas mãos o ordenamento jurídico.
Sobre o conjunto de relações sociais destinadas, em primeiro
plano, à produção de condições materiais de existência do homem variáveis em razão do contexto histórico em que se desenvolvem e
influenciando fortemente este último - é criada a superestrutura jurídica,
fruto da sedimentação e adensamento da ideologia dominante em uma
sociedade estratificada de classes, uma vez que, a atividade humana
não só é responsável pela produção social, mas também pela produção
258
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 18.
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Direito Penal Português. Parte Geral. Tomo I. Lisboa: Verbo: Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. 1981. p. 23.
259
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de idéias que desenvolvem e aperfeiçoam o modo de produção social.260
Buscando tornar possível a coexistência pacífica dos indivíduos
em sociedade, o Estado irá defender e preservar os valores e interesses sociais, especialmente, relevantes segundo parâmetros escolhidos
pelos interesses sociais hegemônicos, proteção que é efetivada por
meio de todo um arsenal de normas jurídicas a serem executadas pelos
órgãos oficiais. Todos os atos praticados pelo homem, que contrariem
as normas jurídicas, serão denominados ilícitos jurídicos, são os atos
que atacam ou colocam em perigo os interesses e valores protegidos
pelo Direito.
O objeto da proteção jurídica, representado por um interesse
ou valor importante para a sociedade ou para o indivíduo recebe a
denominação de “bem jurídico”, elemento central para a própria conformação e caracterização do Direito.
Em sentido amplo, bem é tudo que possui utilidade e necessidade, enfim todas as coisas materiais ou imateriais que possuem valor
e que em razão deste valor são procuradas, disputadas, defendidas e,
por força do inevitável choque de preferências e interesses individuais,
estão sujeitas a certas formas de ataque ou lesão das quais precisam
ser defendidas.261
Todavia importa salientar que não são todos os valores e interesses sociais e individuais que são considerados bens jurídicos, mas
apenas aqueles valores e interesses cuja relevância social torne indispensável o seu reconhecimento e a sua proteção pelo Direito.
Desta forma o bem jurídico representa um interesse de vital
apreciação comunitária ou individual que - por sua acentuada importância para a sociedade - recebe a tutela do ordenamento jurídico em razão das exigências da consciência geral ou das classes dominantes em
determinado grupo social.262
Como se pronuncia autorizada doutrina, entende-se por bem
jurídico todo o estado social representativo de um valor ético-social es260
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia da Repressão: uma crítica ao positivismo em criminologia.
Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 14.
261
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.15.
262
MAURACH, Reinhart. op.cit. p. 333
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pecialmente, significativo, que o Direito busca proteger de lesões.263
Enquanto que coisa é o gênero que representa tudo que pode
existir tanto no mundo exterior quanto no mundo interior do homem. O
bem é a espécie, representando apenas as coisas que são ou podem
ser objeto de um direito, de modo que, o ar atmosférico e as estrelas do
céu não podem ser bens jurídicos enquanto que a honra, a vida e a propriedade podem. O termo “jurídico” surge a partir do momento que o
bem não apenas é reconhecido, mas também tutelado pelo Direito.
É oportuno esclarecer que, os bens jurídicos podem representar valores sociais permanentes que perduram pelo tempo ou ainda
valores de conteúdo variável em razão das mutáveis concepções de
vida.264 A esse propósito temos a liberdade e a honra, respectivamente.
Mas ainda que o ordenamento jurídico seja definido como o
conjunto total de normas emanadas do Estado, ele irá se dividir em
vários ramos de acordo com a natureza das relações sociais que serão tratadas e com o objeto de sua proteção e de estudo, não obstante
estes ramos manterem relações de interdependência, visando a formação harmônica, integrada e não contraditória, de todo o ordenamento
jurídico.
O BEM JURÍDICO E OS PRINCÍPIOS BASILARES DO DIREITO
PENAL
Dentre os vários ramos do Direito - cuja separação atende, principalmente, a fins didáticos - temos o Direito Penal que é responsável
por defender os valores mais caros e essenciais para o corpo social ao
regular a atuação estatal no combate dos ilícitos penais que representam a forma mais grave de ilícito jurídico.265
Assevera-se que o Direito Penal é o conjunto de regras jurídicas (jus poenali) que disciplinam o poder punitivo do Estado (jus
puniendi), em razão dos fatos possuidores de natureza criminal e,
263
WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Busto Ramirez e Sérgio Yáñez Pérez. Santiago:
Ed. Jurídica de Chile, 1970. p. 15.
264
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral, Tomo 1º. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 30.
265
BRUNO, Aníbal. op.cit. p. 25. No mesmo sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal:
parte geral, volume 1. 6ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 02.
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consequentemente, as medidas que são aplicáveis a quem os pratica266 .
Outros, afirmam que o Direito Penal é compreendido pelo conjunto de
normas e disposições jurídicas reguladoras do exercício do poder estatal sancionador e preventivo, estabelecendo o conceito de delito como
pressuposto da ação estatal, assim como da responsabilidade do sujeito ativo e, associando com a infração da norma uma pena finalista ou
uma medida asseguradora267 .
As definições do que seja o Direito Penal são várias apesar de
manter a mesma essência, valendo destacar que ele pode ser observado através de três prismas diferentes, mas relacionados entre si.268
Sob o prisma objetivo, o Direito Penal seria definido como o
conjunto das normas jurídicas, pelas quais o Estado exerce a sua função
de prevenir e reprimir a prática de fatos puníveis por meio da imposição
de sanções aos seus autores269 (Direito Penal Positivo ou também Direito Penal Objetivo).
Sob o prisma subjetivo o Direito Penal pode ser entendido como
a faculdade que possui o Estado de considerar certas condutas como
criminosas - mediante prévia tipificação legal - e de determinar, aplicar
e executar as conseqüências jurídicas correspondentes (Direito Penal
Subjetivo).
Já sob o prisma científico, o Direito Penal pode ser definido
como o conjunto de conhecimentos que orbitam em torno do Direito
Penal - objetivo e subjetivo - com vistas a possibilitar sua melhor compreensão e aplicação (Direito Penal Ciência, Ciência do Direito Penal
ou Dogmática Jurídico-Penal).
Estão intimamente entrelaçados os conceitos de Direito Penal
como ciência fundante e determinadora do exercício do poder punitivo do
Estado e a definição do Direito Penal como conjunto de normas que regulam o poder punitivo, e ainda, de Direito Penal como faculdade exclusiva
do Estado de exercer o poder punitivo em nome da sociedade.
266
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, volume 1. 34ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999.
ASÚA, Luiz Jimenez de. La ley y el delito. Princípios de Derecho Penal. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial
Hermes, 1954. pp. 20-21.
268
BATISTA, Nilo. op cit. p. 50.
269
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. Vol.I. Tomo I. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Max Limonad,
1954. p. 8; BRUNO, Aníbal. op.cit. p. 28.
267
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O Direito Penal possui fundamental importância, uma vez que é
responsável pela proteção dos interesses e valores mais importantes e
essenciais para a sociedade. Esta proteção será realizada por meio da
proibição de condutas humanas lesivas (real ou potencialmente) aos
deveres ético-sociais elementares consubstanciados na figura dos bens
jurídico-penais.
Referidas proibições possuirão atreladas ao seu
descumprimento reprovável a imposição de conseqüências jurídico-penais específicas, que se consubstanciam na aplicação de penas e medidas de segurança, conforme sistemática adotada pela maioria dos
códigos. Neste sentido o conceito de bem jurídico representa um dos
principais elementos, que constituem o arsenal teórico da dogmática
jurídico-penal, desempenhando importantes funções.
Pois bem, uma destas funções, por si só suficientes para marcar o papel de relevância do bem jurídico, dentro do Direito Penal, diz
respeito ao próprio fim perseguido pelo Direito Penal.
Não obstante, o Direito Penal representar o mais rigoroso sistema de controle e dominação social, cuja criação está vinculada à certas finalidades funcionais de manutenção/reprodução de um sistema
social global em cumprimento de uma nítida missão política (ou como
querem alguns, simplesmente, dizer “para combater o crime”), em razão
de um dos princípios basilares do Direito Penal - o princípio da exclusiva
proteção dos bens jurídicos - este ramo do Direito nasce voltado para a
promoção da defesa da sociedade (ou pelo menos parte dela270 ) pela
proteção dos bens jurídicos que lhe são mais essenciais como a vida humana, a integridade corporal, a honra, a saúde pública, o patrimônio, etc.
Vale ressaltar que a coordenação dos comportamentos humanos - muitas vezes antagônicos e colidentes - requer a utilização de
critérios de decisão, uma vez que a resolução de conflitos supõe a eleição de interesses, predominantes ou a conciliação de interesses avaliados pela sua relacionação com os interesses superiores.271 Neste pon270
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos
Santos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999. p. 162; ANDRADE,
Vera Regina Pereira de Andrade. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do
controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 205 e ss.
271
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Op.cit. p. 37.
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to avulta a importância dos bens jurídicos, interesses e valores sociais
importantes, modernamente, erigidos a esta categoria (bem jurídico) em
consonância com os Direitos Humanos ou Direitos Fundamentais.
Contudo, a legitimação da intervenção penal, no processo de
disciplinamento dos comportamentos humanos em determinado contexto
social, depende da danosidade real ou potencial destas condutas. Isto ocorre
por força do princípio da lesividade que impede a criminalização de condutas puramente internas, que sejam apenas imorais ou diferentes.
As conseqüências da adoção deste princípio, pelo Direito Penal, estão representadas na proibição da incriminação de atitudes, idéias, sentimentos internos, que não se manifestem em uma conduta externa, ainda que, em última análise se identifique com um comportamento
omissivo. Vale gizar que o próprio tipo objetivo dos crimes dolosos necessita de um verbo a representar uma ação humana (matar, ocultar, induzir, etc.) como núcleo material, caso contrário, estaria
criminalizando um estado de pensamento, uma atitude interna que,
isoladamente, não representaria lesão a bem jurídico algum.272
Também são proibidas as incriminações de condutas que se
restringem ao âmbito do autor, como os atos preparatórios previstos no
art. 14, inc. II, do Código Penal Brasileiro, e, também, a situação do crime impossível ou tentativa inidônea, descrita no art. 17, do mesmo codex,
porque estão enquadradas no rol das condutas que não representam
lesão ou perigo de lesão de bem jurídico, ou ainda, em havendo a lesão
de bem jurídico, que esta não ultrapasse a esfera do autor, como ocorre
com o suicídio.
Na mesma linha de raciocínio, são proibidas pelo princípio da
lesividade, as incriminações de simples estados pessoais ou condições
existenciais, como desejam os sectários do Direito Penal do Autor que
toma como base, qualidades pessoais do agente para a imposição de
pena. Hodiernamente, com o advento do Estado de Direito e em nome
da certeza e da segurança jurídicas, nas legislações penais prepondera o Direito Penal do Ato como norte diretivo, utilizando a intensidade e
a direção das ações humanas - efetivamente praticadas, não apenas
272
BATISTA, Nilo. Op.cit. p. 92.
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idealizadas - para fins de imposição de penas. Contudo, ainda subsistem resquícios do Direito Penal do Autor, inclusive na legislação brasileira que considera qualidades do autor na aplicação da pena, como
pode ser visualizado com a reincidência.
Por fim, são proibidas as incriminações de condutas desviantes
que não danifiquem qualquer bem jurídico, o que abre espaço para o
direito à diferença. Desta forma, certos comportamentos, ainda que
estejam fora dos padrões escolhidos pela sociedade e recebam reprovação intensiva, não poderão ser criminalizados, se não representarem
lesão ou perigo de lesão a qualquer bem jurídico alheio, o que destaca
ainda mais a importância do conceito de bem jurídico.
Assim, o bem jurídico exerce a sua função, impedir que o legislador tipifique como crimes, comportamentos humanos que não representem lesão ou perigo de lesão, constituindo verdadeiro limite material ao direito estatal de punir.273 Em se tratando do bem jurídico como
critério legitimador e limitador da intervenção penal, precisas são as
palavras de NILO BATISTA ao observar que: “O bem jurídico põe-se como
sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega,
‘revelando’ e demarcando a ofensa.”274
Mas para nortear a criação e aplicação das normas jurídicopenais, não basta apenas o escopo de proteger determinados interesses ou valores socialmente relevantes.
O Direito Penal só atua na proteção dos bens jurídicos considerados mais importantes e essenciais à sociedade,275 e ainda, apenas
quando se verificarem contra estes a ocorrência - ou perigo de ocorrência - das formas mais graves de lesão e não contra todas as formas de
agressão possíveis, conforme estabelece outro princípio de grande im273
PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 40.
BATISTA, Nilo. Op.cit. p. 95.
275
Não se olvide a relatividade dos bens tutelados penalmente, uma vez que os interesses essenciais
seriam assim definidos de acordo com o sistema de valores e interesses dominantes em uma estrutura
social estratificada porquanto o Direito Penal não representa (e defende) um sistema de valores e
normas cuja aceitação social é unânime, mas sim o sistema de valores prevalentes no momento
embriogênico das normas (legislador) e no momento de sua aplicação (juízes, polícia, penitenciárias,
etc.) evidenciando a “dupla seletividade do Sistema Penal”. Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia
crítica e critica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos:
Instituto Carioca de Criminologia, 1999. p. 75.
274
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portância para o Direito Penal - o princípio da fragmentariedade - de
modo que nem todos os bens jurídicos são protegidos pelo Direito Penal e nem todas as ações lesivas são por ele envolvidas.276
O caráter fragmentário do Direito Penal opõe-se à visão da
“onipresença e onipotência da tutela penal”, tão bem aceita pelas legislações medievais, aplicada com vigor no sistema penal do absolutismo e ainda defendida por certos movimentos da política criminal
contemporânea (“lei e ordem”). Definitivamente, o Direito Penal não é
o detentor do monopólio no tratamento de todos os ilícitos existentes e
não deve tratar dos mesmos de maneira minuciosa. É necessário que
o Direito Penal deixe espaço para os instrumentos jurídicos não-penais agirem, quando estes forem por si só suficientes, caso contrário a
atuação excessiva do Direito Penal retirar-lhe-á a legitimação da necessidade social.
Em razão do Direito Penal ser responsável pela aplicação das
formas mais severas de sanção existentes, dentro de todo o ordenamento
jurídico, ele exige que sua estrutura seja, rigorosamente delimitada e
definida, e ainda, que sua aplicação seja realizada apenas nas hipóteses em que outras formas de proteção de determinado bem jurídico,
verbi gratia, os outros ramos do direito, tiverem falhado em sua função
protetiva.
Vale reforçar que, em razão do Direito Penal representar, desde os primórdios da civilização, a forma mais radical e contundente de
intervenção na esfera individual, ele deve ser utilizado somente em
razão última - ultima ratio - evitando a inflação penal para que o sistema penal não tenha apenas uma atuação simbólica, como estipula o
princípio da intervenção mínima ou subsidiariedade que, aliás, pressupõe a fragmentariedade.
A utilização dos instrumentos do Direito Penal, onde se mostra
suficiente outra forma de atuação jurídica de natureza mais branda e
amena é insensata e contraproducente porque se opõe aos fins do
direito.277 A necessidade de defesa em relação a ofensa, precisa estar
276
277
BITENCOURT, Cezar Roberto. Op.cit. p. 12
BATISTA, Nilo. Op.cit. p. 87.
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dotada de racionabilidade e para tanto não basta que a defesa seja
capaz de prevenir ou fazer cessar a ação agressiva, mas é imperioso
que a forma de defesa possa ser considerada, racionalmente, necessária para atingir tal desiderato.
Dessume-se, portanto, que o Direito Penal não é um exaustivo
sistema de proteção dos bens jurídicos, uma vez que não abarcará todos eles, e muito menos, alcançará todas as formas possíveis de ações
que representem uma lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos defendidos. A função maior de proteção dos bens jurídicos, atribuída à lei
penal, não é absoluta.
Observadas e atendidas as ressalvas impostas pelos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, impende esclarecer que
o bem jurídico desempenha outro papel de grande relevo, dentro do Direito Penal, que é o de figurar como delimitador do conteúdo material do
injusto penal.
Mas nem sempre este foi o entendimento adotado pela
dogmática jurídico-penal, vez que, inicialmente, o crime era concebido
como um pecado, uma afronta aos poderes divinos, uma desobediência que era punida com a expulsão do infrator como sacrifício para
salvaguardar a coletividade e satisfazer aos deuses. Posteriormente o
Iluminismo - com sua busca pela razão - formula uma noção de crime
desvinculada dos preceitos religiosos/míticos, entendendo-o como lesão ou perigo de lesão aos direitos subjetivos. Ressalte-se que esta
concepção é fruto da aplicação da teoria contratualista no direito penal
em decorrência da ideologia liberal-individualista.278 Em seguida, é desenvolvido o conceito de crime como lesão ou perigo de lesão de interesses vitais279 , terminando por desenvolver a concepção material de
crime como injustificada lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico
que atualmente é um verdadeiro axioma.280
Deste modo, evidencia-se com translúcida clareza que o modo
pelo qual o Direito Penal irá atuar está intimamente relacionado com o
bem jurídico, já que dependerá - de maneira incontornável - da seleção
278
279
280
PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 22.
TOLEDO, Francisco de Assis. op. cit. pp. 16-17.
PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 24.
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de quais interesses e valores serão objetos de proteção, e ainda, estará
inequivocamente, limitado pela escolha de quais formas de agressão
que - mediante prévio e taxativo processo de tipificação legal - serão
envolvidas pelo Direito Penal.
A propósito, urge explicitar que, a parte especial dos Códigos
Penais contemporâneos - em que, via de regra, estão elencadas as
condutas consideradas criminosas - trata dos crimes em espécie, de acordo com certa classificação escolhida pelo legislador, quando utiliza o bem
jurídico como critério de seleção, disposição e agrupamento de crimes.
Observando a parte especial do Código Penal Brasileiro, atualmente, em vigor (Decreto-lei n.º 2.848, de 07 de dezembro de 1940) que
se inicia no art. 121 e finda no art. 359, pode-se visualizar a previsão de
11 (onze) títulos em que estão agregadas e divididas as figuras delitivas
de acordo com o bem jurídico protegido, exempli gratia, “dos crimes
contra a pessoa”, “dos crimes contra a família”, “dos crimes contra o
patrimônio”, “dos crimes contra a paz pública”, “dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos”, etc.
Não se olvide que o bem jurídico, considerado um dos pólos do
Direito Penal, ao lado da norma, também possui um papel de incomensurável importância no momento da interpretação teleológica de qualquer
preceito e de todo o ordenamento jurídico, já que os seus fins inventivos e
justificadores estão presentes no momento em que certos interesses são
elevados à categoria de bem jurídico.281
Todavia, é oportuno esclarecer que, o conceito de bem jurídico
não se confunde com o conceito de objeto material do crime, uma vez que
este representa o objeto sobre o qual recai, diretamente, a ação lesiva
praticada pelo agente (sujeito ativo) enquanto que o bem jurídico é o interesse ou valor cuja proteção é almejada pela norma penal.
Ad exemplum, observe-se que, no crime de furto, o bem jurídico
protegido, sempre será o patrimônio, enquanto que, o objeto material pode
ser um livro, um relógio, um automóvel, uma valiosa obra de arte, etc.
Estes motivos já seriam suficientes para demonstrar de maneira
clara e precisa a penetrante propagação de efeitos do conceito de bem
281
ASÚA, Luiz Jimenez de. op.cit. p. 22; BATISTA, Nilo. op.cit. 96; PRADO, Luiz Regis. op.cit. p.41.
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jurídico na forma como é constituído, estruturado e aplicado o poder punitivo do Estado, mas a importância do bem jurídico é ainda maior.
O bem jurídico também exerce sua influência sobre a pena
que é a forma mais incisiva de intervenção estatal, na esfera individual
uma vez que em razão do princípio da proporcionalidade das penas
deve existir um justo equilíbrio entre a intensidade da ofensa praticada
contra certo bem jurídico protegido pelo direito penal e a respectiva
conseqüência jurídica a ser suportada pelo agente praticante do injusto penal reprovável, ou seja, é imprescindível analisar a natureza e
importância do bem jurídico atacado, bem como a intensidade da ofensa
ou lesão suportada (ou tentativa de lesão), para só então se tornar
possível a análise da existência ou não de mencionada
proporcionalidade. Deve também ficar registrada a existência do entendimento de que o bem jurídico desempenharia, ao mesmo tempo uma
função individualizadora ao servir de parâmetro para a fixação concreta
da pena atendida à proporcionalidade supramencionada.282
O BEM JURÍDICO E A TEORIA DO FATO PUNÍVEL
Não bastasse a relação existente entre o bem jurídico e os
princípios básicos do Direito Penal - fortes baluartes e precisos
limitadores do poder punitivo estatal -, o bem jurídico ainda irá desempenhar respeitável papel dentro da teoria geral do delito.
A teoria geral do delito, teoria jurídica do crime ou teoria do
fato punível constitui o cerne do Direito Penal, “o segmento principal
da dogmática penal,”283 porque destina-se explicar as características
gerais e essenciais da conduta punível e de seu autor, assinalando os
caracteres constitutivos gerais e comuns a todos os fatos puníveis284 ,
descobrir a “essência do conceito geral do delito”285 , tratando da chamada parte geral.
Todavia, o trabalho do espírito para empreender a apreciação
ou análise das características gerais do fato punível não se esgota no
282
PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 41.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 01.
284
WELZEL, Hans. op. cit. p. 50.
285
MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Tradução e notas de Juarez Tavares e Luis Regis
Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 01
283
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estudo da parte geral dos códigos, mas é um trabalho que exige por
parte da doutrina, a investigação da parte especial dos códigos, porquanto a parte geral de vários códigos é por demais sucinta, limitada
mais a questão da aplicação da lei penal do que da própria categorização
e construção de um conceito de delito.286
A teoria geral do delito ou teoria do fato punível, conforme
modernas orientações, considerada uma “disciplina lógica,
intrasistemática, conceitual e de oculta vinculação com a realidade287 ”
busca responder uma série de perguntas que orbita ao redor do seu
objeto de estudo: o fato punível.
Ocorre, no entanto, que muito pouco seria conseguido se houvesse a pretensão de responder tudo com uma só pergunta. Deste
modo, as perguntas são conseqüências de uma análise que ocorre a
passos sucessivos e ordenados, não se contentando apenas com a
verificação ou não da ocorrência de um fato punível.288
A definição do fato punível pode variar dependendo do enfoque
a ser utilizado pelo sujeito cognoscente, contudo, sem resultar em uma
modificação do objeto cognoscível. Sob o aspecto formal - cujo ponto
de referência repousa sobre o direito positivado - o fato punível passa
a representar todo comportamento humano que contrarie a lei penal289 ;
ou seja, “todo o crime resulta de definição legal”290 , repelindo-se pela
experiência e pela lógica a idéia proposta por GARÓFALO da existência
de um suposto “delito natural” como criminalidade substancial
identificável em todos os tempos e lugares. A definição puramente formal de fato punível que o restringe a análise de sua contrariedade com
o ordenamento jurídico-penal não é falsa, porém, se traduz em uma
fórmula vazia.291
286
TAVARES, Juarez. Teorias do Delito: variações e tendências. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
1980. p. 06.
287
GOMEZ BENITEZ, José Manuel. Teoria Jurídica do Delito. Reimpression. Madrid: Civitas. 1988. p. 27.
288
ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte
geral. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 384.
289
NORONHA, E. Magalhães. Op. cit. p. 96; BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 281; SANTOS, Juarez Cirino dos.
op. cit. p. 02; MUÑOZ CONDE, Francisco. op.cit. p. 02
290
BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 282.
291
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 195.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
249
Já sob o aspecto material, buscando-se a essência do crime
em sua realidade fenomênica, a sua substância, o fato punível seria toda
lesão ou perigo de lesão às condições existenciais do grupo social,
manifestadas em realidades aptas a realizar a satisfação de necessidades humanas - individuais ou coletivas - que são objeto da proteção
jurídica, em especial da tutela mais severa de todo o direito: a tutela
penal.292
Assim, o conteúdo necessário de todo fato punível, não está representado por uma agressão a qualquer interesse humano, mas apenas a violação de determinado bem jurídico protegido pelo Direito Penal, pois “é sempre um bem jurídico o objeto da especial proteção que
a lei confere com a cominação de pena, e a violação ou exposição a
perigo deste bem é que constitui comportamento criminoso”.293 Porém, em última análise a lesão de um bem jurídico-penal não esgota o
conceito de fato punível em sua totalidade, porque representa apenas
um resultado essencial do crime.294
Tudo isto é certo, mas interessa, para objetivos práticos, saber
quais características devem possuir um comportamento humano positivo (ação) ou negativo (omissão) para que só então seja considerado
um fato punível.
Buscando sanar as deficiências apresentadas pelos outros
conceitos de fato punível, surge o conceito analítico, dogmático ou
“operacional”295 que, não obstante encontrar-se no plano teórico-abstrato, possui incontestável eficácia prática de esclarecimento e
elucidação ao definir, modernamente, o fato punível como toda conduta - ação ou omissão - típica, antijurídica e culpável 296 .
Elaborado pela dogmática germânica, nos fins do século XIX e
início do século XX, mediante esforço de investigação lógica e sistemá292
BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 282; TOLEDO, Francisco de Assis. op.cit. p. 80; SANTOS, Juarez Cirino dos.
op. cit. p. 02.
293
BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 285.
294
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 195.
295
SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 02
296
Pela visão conceitual adotada pelo sistema tripartido do fato punível, não olvidando a existência do
sistema bipartido que trabalha com o conceito de tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade) e culpabilidade, conforme adiante alinhavado.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
250
tica das leis penais surge, inicialmente, o conceito clássico que adota a
sistemática do esquema “objetivo-subjetivo” cunhado por VON LISZT e
BELING, segundo o qual, crime seria o movimento corporal (ação) que
produziria uma modificação no mundo exterior.
Neste conceito não eram reconhecidas quaisquer valorações
porquanto, seguindo o conceito causal-naturalista de ação297 , considerava-se a tipicidade sob aspecto objetivo-descritivo seguido de uma
antijuridicidade objetivo-normativa, completada pela culpabilidade subjetivo-descritiva.298
Na seqüência - por força da influência da filosofia neokantiana
- o conceito clássico adquire novas feições, buscando sanar algumas
insuficiências e repelir as fortes críticas que lhe eram dirigidas sem,
contudo, abandonar suas características fundamentais, como o conceito causal de ação.299 Passando a ser chamado de conceito neoclássico
de delito, verifica-se agora, a consideração de elementos axiológicos e
normativos por influência da chamada teoria teleológica do delito.300
A ação perde seus aspectos puramente biológicos e passa a
ser definida de maneira mais geral e abrangente como conduta volitiva,
voluntária ou humana.301 Na tipicidade ocorre a inclusão de elementos
normativos e a consideração de elementos subjetivos no tipo, conquistas teóricas advindas dos estudos desenvolvidos por MEZGER, a partir das enunciações deste, de MAYER e de HEGLER. Ainda possuindo nítida
natureza objetiva, a tipicidade deixa de ser apenas a descrição
avalorativa, originalmente, proposta por BELING e passa a ser resultado
de juízos de valor.
Já o conteúdo da antijuridicidade não se restringe ao seu aspecto formal (contrariedade do fato com o ordenamento jurídico), mas
requer um conteúdo material expresso na lesividade social da conduta. No que tange a culpabilidade, a teoria teleológica afasta a concepção puramente psicológica, recepcionando, definitivamente, os elementos
297
TAVARES, Juarez. op. cit. p. 17.
BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 139.
299
GOMEZ BENITEZ, José Manuel. op. cit. p. 59.
300
TAVARES, Juarez. op.cit. 41; BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 139.
301
TAVARES, Juarez. op.cit. 42
298
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
251
normativos concebidos, especialmente, por FRANK. A culpabilidade agora não representa apenas o liame psicológico existente entre o autor e o
fato punível, mas perfaz a reprovabilidade do autor pela formação de
vontade contrária ao dever.
Todavia, a última grande modificação no conceito analítico do
fato punível ocorre com o advento da doutrina finalista de WELZEL, que
adequou o conceito jurídico de ação ao seu conceito ôntico-ontológico,
identificando-o com o “exercício de atividade final”302 , como “fator de
direção que sobredetermina o sucesso causal exterior e o converte,
deste modo, na ação orientada para o objetivo”303 . Contudo é necessário observar que a terminologia utilizada por WELZEL em 1935
(Finalität), se interpretada literalmente, dá lugar a equívocos - especialmente nos crimes culposos como admite referido autor - uma vez
que a concepção adequada de ação finalista não se resume apenas à
finalidade, mas encerra as idéias de direção e orientação, de encaminhamento sob o ponto de vista biocibernético antecipado. Assim, o
mais correto seria denominar a “teoria final da ação” de “teoria da ação
cibernética”, porém a primeira expressão consagrou-se mundialmente
e, observada a ressalva acima, atende aos objetivos propostos, desde
que as principais atenções estejam centradas nas “descrições materiais de direção e do encaminhamento dos sucessos da ação”, como
propõe WELZEL com especial argúcia.304
Desta forma não só a vontade, mas também o conteúdo da
vontade passou a ser considerado no próprio conceito de conduta. Se
conduta implica vontade, a vontade sempre leva (e se dirige) a uma
finalidade porque não existe vontade de nada ou vontade para nada.
Destarte, as conseqüentes modificações estruturais ocorridas
na teoria do fato punível foram enormes, especialmente, no que diz respeito ao tipo e a culpabilidade. O dolo e a culpa migram para o tipo
formando a figura do “tipo subjetivo”, já a culpabilidade passa a ter sua
estrutura composta apenas por elementos normativos destinados a
fundamentação do juízo de reprovabilidade, deixando o objeto de
302
WELZEL, Hans. op.cit. p. 53.
WELZEL, Hans. A dogmática no direito penal. In Revista de Direito Penal nº 13/14, jan-jun 1974, p. 11.
304
WELZEL, Hans. op.cit. p 12.
303
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252
reprovabilidade localizado no injusto penal, que a partir de então, adquire as características de injusto pessoal.305
Sobreleva notar-se que o tipo, descrição legal da conduta proibida - figura puramente conceitual - não é em si mesmo antijurídico,
mas antijurídica é apenas a sua realização não justificada.306 Já a
antijuridicidade é a contrariedade da realização de um tipo proibitivo
(norma incriminadora) com o ordenamento jurídico consubstanciada
pela ausência de situação justificante.
Assim, segundo o sistema tripartido307 - que é dominante na
dogmática moderna -, o fato punível seria todo o comportamento humano (ação ou omissão voluntária) típico (previsto em lei como crime),
antijurídico (contrário ao ordenamento jurídico, lesivo socialmente) e
culpável (reprovável ao seu autor).
Não se olvide o sistema bipartido, de fato punível, composto
pelo tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade, como o objeto de
valoração) e pela culpabilidade (juízo de valoração de cunho subjetivo
pessoal concreto), adotado por respeitados juristas contemporâneos
como ARTHUR KAUFMANN, OTTO, SCHÜNEMANN e ENGISCH.308
É oportuno lembrar que, estratificado é o conceito de fato punível e não o fato punível, uma vez que não ocorre a soma de elementos, mas sim a consideração de características localizadas em planos
conceituais distintos.
Observada esta perfunctória exposição sobre o conceito analítico do fato punível, evidencia-se o importante papel desempenhado
pelo bem jurídico, nas categorias conceituais, cuja presença cumulativa
transmuta uma conduta em fato punível. Considerações acerca do bem
jurídico estão presentes de maneira nítida e incontornável na tipicidade
e na antijuridicidade
Deixando de lado a conduta que é o substrato do fato punível, o
305
BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 141.
WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Busto Ramirez e Sérgio Yáñez Pérez. Santiago:
Ed. Jurídica de Chile, 1970. p. 76
307
Levando-se em conta os predicados da ação (ou quadripartido ao considerar também a conduta.
Neste sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 136).
308
SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 04.
306
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
253
bem jurídico permeia o tipo que é a descrição legal da conduta (elemento logicamente necessário, núcleo do ilícito penal309 ) influenciando a
tipicidade, que é atributo da conduta (considerada a mais importante
categoria para fins jurídico-penais310 ), uma vez que o tipo é o arquétipo
conceitual, onde está contida a descrição da lesão - ou perigo de lesão
- de bens jurídicos.311
No que diz respeito a antijuridicidade, impende destacar que
em algumas situações justificantes - como a legítima defesa, o estado
de necessidade e o consentimento do ofendido - a sua ocorrência está
vinculada à verificação de relações (diretas ou indiretas) com o bem
jurídico, de modo que estas situações possam ter o efeito de excluir a
ilicitude indiciada pela tipicidade.312
Primeiramente, analisemos a legítima defesa, situação
justificante fundada nos princípios da proteção individual e da afirmação do direito, cuja definição legal313 prevê a utilização moderada dos
meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente, a
direito seu ou de outrem.
Pois bem, não basta a existência de um comportamento humano que se direcione para uma lesão ou um perigo de lesão a determinado bem jurídico (agressão), e ainda, que este comportamento não
seja autorizado pelo Direito e esteja se desenvolvendo ou em vias de
efetivação para que o autor da reação defensiva à ação inicial de cunho
agressivo esteja contemplado pela situação justificante da legítima defesa.
Para tanto, há de se analisar a natureza do bem jurídico protegido, uma vez que, existe uma cisão doutrinária no que tange a aceitação
da legítima defesa de bens jurídicos de natureza coletiva.
309
TAVARES, Juarez. op. cit. p. 69.
CONDE, Francisco Muñoz. op. cit. p. 41.
311
SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 03; COSTA, Álvaro Mayrink da. Teoria do Tipo. In Ciência e
política criminal em honra de Heleno Fragoso, Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 64.
312
Em se tratando das relações existentes entre o tipo e a antijuridicidade, esta é a posição perfilhada
pela Teoria Indiciária que é adotada pelo esquema finalista: tipicidade é indício de antijuridicidade (“ratio
cognoscendi”). Cf. MUÑOZ CONDE, Francisco. op.cit. p. 43. Em sentido contrário: TAVARES, Juarez.
Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 161.
313
Art. 25 do Código Penal Brasileiro, in verbis: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de
outrem.”
310
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
254
Expressiva corrente doutrinária partilha da idéia de que a ação
protetiva da legítima defesa é cabível - desde que, preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos da justificante - independente da natureza do bem jurídico envolvido.314 Aliás, entende-se até que entre os
bens jurídicos suscetíveis de defesa estariam incluídos todos os bens
jurídicos reconhecidos pelo Direito e não apenas os reconhecidos pelo
Direito Penal.315
Entretanto, o entendimento oposto316 vislumbra a legítima defesa, apenas para bens jurídicos de natureza individual (vida, liberdade,
patrimônio, etc.) ainda que - em um posicionamento mais estendido -, o
titular deste bem seja uma pessoa jurídica ou o Estado. Repousam os
argumentos desta corrente doutrinária, principalmente, sobre as afirmações de que a natureza e o fundamento da legítima defesa circunscrevem-se à esfera jurídica individual e que a agressão de bens
suprapessoais, coletivos ou comunitários (paz social, ordem pública,
etc.) não é suscetível de ser repelida em legítima defesa, uma vez que
o zelo por estes interesses sociais seria atribuição policial, não se autorizando a atuação de particulares neste sentido.
Atendidos todos os requisitos de ordem objetiva, observe-se,
além disso, que sob o aspecto subjetivo um dos requisitos diz respeito
à atuação do agente com vontade de defesa de bem jurídico para que
só então reste configurada a excludente.
Já no que tange ao estado de necessidade, outra espécie de
situação justificante - prevista no artigo 24, do Código Penal Brasileiro317 -, vale observar que o bem jurídico também possui especial relevo,
uma vez que, o estado de necessidade consiste em uma autorizada ação
adequada de proteção necessária do bem jurídico em situação de ine314
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.186;
NORONHA, E. Magalhães. op. cit. p. 200; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §26, n.12-13, p. 357 apud
SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 162.
315
WELZEL, Hans. op. cit. p. 123.
316
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 322; BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 379. GOMEZ BENITEZ, José
Manuel. op. cit. p. 330; ASÚA, Luiz Jimenez de. op.cit. p. 313. PRADO, Luis Regis. Curso de direito penal
brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p. 213.
317
Art. 24 do CP: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo
atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo
sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
255
vitável perigo, não provocado pelo agente.
Uma exigência a ser atendida para a conformação da
justificante em comento diz respeito a efetiva necessidade da ação de
proteção, uma vez que, “de outro modo, não se podia evitar” que o bem
jurídico - alheio ou próprio - sofresse a lesão oriunda da situação de
perigo.
Buscando fundamentação jurídica, surgem algumas teorias
como a teoria do fim, que entende serem as ações protetivas de bens
jurídicos verdadeiros “meios adequados para fins reconhecidos pelo
Estado”. Já a teoria da ponderação de bens justifica ações que resguardem bens jurídicos de valor superior em detrimento de bens jurídicos de valor inferior. Contudo, de acordo com a teoria da ponderação
de interesses que representa a posição contemporânea, a própria
juridicidade da ação de proteção está vinculada a consideração de
todas as causas e condições concretas relacionadas aos bens jurídicos em conflito, à natureza do perigo, etc. 318
Assim, há de se ter em conta a natureza dos bens jurídicos
envolvidos na situação de perigo, já que no estado de necessidade é
imperioso sacrificar um bem para preservar outro, caso contrário, ambos
os bens jurídicos irão perecer. Não se olvide, que de acordo com seu
respectivo substrato, os bens jurídicos podem representar interesses de
natureza variada como uma relação vital (o matrimônio), um estado real
(a tranqüilidade), um objeto psicofísico (a vida), um objeto espiritualideal (a honra) ou ainda uma relação jurídica (a propriedade).319
Todavia, ainda que a variegada natureza dos bens jurídicos permita sua avaliação e a conseqüente escolha do bem jurídico a ser sacrificado, insta esclarecer que em se tratando de situações envolvendo a
“vida contra a vida” não há que se cogitar quaisquer diferenças de valor
(verbi gratia, paciente com 30% de chances de sobrevivência versus
paciente com 80% de chances de sobrevivência, ou, jovem versus idoso) ou de quantidade (exempli gratia, um veículo somente com o condutor versus um ônibus escolar com 40 crianças).
318
319
SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 175.
WELZEL, Hans. op. cit. p. 15.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
256
O bem jurídico também desempenhará papel decisivo na esfera subjetiva do estado de necessidade, uma vez que, um dos seus requisitos é a ação do agente com vontade de salvar o bem jurídico, seja
próprio ou alheio.
Outra justificante que depende sobremaneira da análise do
bem jurídico envolvido é o consentimento do ofendido; única situação
que não está elencada no art. 23, mas é implícita e decorre de interpretação lógico-sistemática de todo ordenamento jurídico, considerada como uma causa supralegal de justificação.320
Consistindo na renúncia de bens jurídicos disponíveis tutelados por normas penais, o consentimento do ofendido pode ter como
efeitos tanto a exclusão da tipicidade da conduta (se o consentimento
for real e se o tipo protege a vontade do ofendido) como da
antijuridicidade da conduta típica (se o consentimento for presumido e,
se além da vontade o tipo protege interesses públicos).321
Porém, é ponto pacífico e sedimentado, em toda doutrina jurídico-penal, que a caracterização de determinada situação, dentro do conceito de consentimento do ofendido, exige que o bem jurídico envolvido
seja plenamente disponível por parte de seu titular, verbi gratia, o
patrimônio, caso contrário o consentimento - tanto real como presumido
- será absolutamente ineficaz. Assim, mais uma vez há de ser analisada
com maior detença a natureza do bem jurídico envolvido para que só
então possam ter eficácia as especificações que giram em torno do próprio consentimento, como a sua anterioridade, a capacidade do ofendido para consentir e o conhecimento concreto daquilo que foi consentido
tanto por parte do titular do bem, quanto por parte do agente que, esperase, esteja atuando dentro dos limites do consentido.
O BEM JURÍDICO E A CONSTITUIÇÃO - LIMITES À POLÍTICA
CRIMINAL
Não bastassem as considerações enumeradas nos parágrafos
anteriores, acerca das relações existentes entre o bem jurídico e os princípios basilares do Direito Penal, além do importante papel desenvolvido
320
321
TOLEDO, Francisco de Assis. op. cit. p. 214
SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do Crime. São Paulo: Editora Acadêmica, 1993. p. 57.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
257
pelo bem jurídico dentro da teoria do fato punível, há de ser notada a íntima conexão verificada entre o bem jurídico-penal e a Constituição.
Uma vez que o texto constitucional pátrio perfilha valores fundamentais como a liberdade e a dignidade humana, cujos desdobramentos se irradiam sobre todo ordenamento jurídico - cumprindo o
papel de um norte diretivo -, há uma conseqüente delimitação e orientação da ação do legislador de modo a promover uma política criminal
que não transforme o direito em mera força, mas obrigue os cidadãos
em sua consciência, respeitadas as bases de um sistema democrático
de direito.
Nesta esteira de pensamento resta cristalino que o conceito
de bem jurídico-penal nasce limitado ao conteúdo material das normas constitucionais, que lhe são hierarquicamente superiores e com as
quais ele jamais pode confrontar. Assim esquadrinhado, desponta também evidente que, o conceito de bem jurídico-penal além de ser protegido pelo Direito Penal, precisa ser protegido do Direito Penal, restringido assim o poder punitivo a uma esfera, precisamente, limitada pelo
Texto Maior, verdadeiro e legítimo indicador das linhas substanciais
prioritárias já acolhidas na realidade social como um valor.322
O conjunto de valores encontrados no altiplano constitucional
serve de baliza segura, não só para o momento embriogênico das normas penais - onde há a seleção e definição dos bens jurídicos a serem
defendidos - mas também para o momento de interpretação e de aplicação destas mesmas normas. A propósito, norma alguma pode ignorar o conteúdo axiológico constitucional, devendo sempre ser examinada a luz deste conteúdo que confere o elemento normativo-material
de todo ordenamento jurídico com vistas à realização da justiça material pela adoção de uma legalidade democrática.
Contudo, mister destacar-se que não basta apenas a previsão
constitucional de certo valor social para que seja autorizada de pronto a
criação de instrumento sancionatório criminal para a respectiva proteção.
Deve também ser notado o escalonamento existente entre estes valores,
que observa o contexto histórico, ao qual encontra-se inserido, reforçan322
PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 67.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
258
do ainda mais o caráter fragmentário da tutela penal que busca sua
legitimação, não apenas em aspectos formais, mas também na valoração
ético-social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não obstante a atividade de seleção dos bens jurídicos esteja
presa às necessidades sociais reais de determinado contexto histórico, busca-se imunidade contra possíveis manipulações ideológicas ao
exigir-se a observância e o respeito dos limites constitucionais. Enfim, o
papel desempenhado pelo bem jurídico-penal como critério de garantia individual e de limitação estatal não pode ser relegado a um segundo plano. Recorrentes avalanches ideológicas e tempestades políticas
cientes desta importância insistiram em “soterrar” o bem jurídico-penal, com especial exemplo - mas não único - para os ataques sofridos
pela dogmática no período do Terceiro Reich.
As considerações ora realizadas são importantes e extremamente caras a todo jurista cônscio de que “o direito não é uma coisa,
posta à mesa, como ‘fato’, para a refeição positivista. Direito e, portanto, crime, são elementos de um processo histórico-social e sociopolítico”
relembrando as palavras do saudoso LYRA FILHO323 ; a todo jurista que
não ignore - consciente ou inconscientemente - a gama de efeitos que
a atuação penal tem proporcionado; a todo jurista que não queira limpar o sangue derramado com textos legais e que não deseje ser um
mero títere na mão de interesses obscuros.
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
261
TÓXICOS – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A
RESPEITO DAS LEIS 6.368/76 E 10.409/02
IRIO JOSÉ TABELA KRUNN
PROFESSOR DE DIREITO PENAL NO CURSO DE BACHARELADO EM
DIREITO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA.
ADVOGADO NO PARANÁ.
RESUMO
O autor traça algumas ponderações a respeito dos tóxicos, sob a égide da
Lei nº 6.368/76, frente às inovações trazidas pela Lei nº 10.409/02. O artigo
destaca que a lei nova não revogou totalmente aquela, e que, portanto,
permanecem vigentes dispositivos da lei anterior, no que não for incompatível
com a nova legislação.
ABSTRACT
The author says some characteristics about toxic drugs, under protection of
Act # 6.368/76, in opposition to the innovations brought by Act # 10.409/02.
The article says that the new law didn’t revocate the other one, and that,
some provisions of the first law are still ruling, if not incompatible with the
new laws.
PALAVRAS CHAVE Antes de adentrar-se no tema aqui proposto, de maneira bastante simples, necessário se faz trazer os conceitos de toxicomania e
de entorpecente, como forma de introdução ao assunto..
Conceito de toxicomania: “é um estado de intoxicação periódico ou crônico, nocivo ao indivíduo e à sociedade, pelo consumo repetido de uma droga natural ou sintética”. (O.M.S.).
Apresenta características próprias, tais como, vontade
incontrolada de consumir a droga, chegando a crer que lhe é necessária; deve arrumar um jeito de encontrá-la de qualquer forma; com uso
constante, passa-se ao aumento da quantidade da droga, sempre em
escala crescente; com o passar do tempo (não muito), passa a sentir-se
totalmente escravo da droga, tornando-se um dependente, esta dependência poderá ser de ordem física ou mesmo psíquica. Deve-se observar que o toxicomano, não é um viciado apenas em drogas naturais como
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a maconha, (conhecida também como haxixe), cocaína, mas em outras
de natureza sintética, tais como os psicotrópicos. É necessário ainda
distinguir as drogas proibidas (entorpecentes) das drogas permitidas,
tais como cigarros, chá, álcool, etc. Tal distinção veio a ocorrer após a
OMS, considerar apenas como droga toxicômana, quando da existência de três requisitos: 1º)desejo ou necessidade (compulsion) de continuar com a droga; 2º)tendência a aumentar a dose; 3º)dependência física e/ou psíquica. Podendo-se acrescentar um quarto elemento: os
malefícios causados ao agente e à própria sociedade.
Conceito de Entorpecente: “venenos que agem eletivamente
sobre o córtex cerebral, suscetível de promover agradável ebriedade,
de serem ingeridos em doses crescentes sem determinar envenenamento agudo ou morte, mas capazes de gerar estado de necessidade
tóxica, graves e perigosos distúrbios de abstinência, alterações
somáticas e psíquicas profundas e progressivas”(in Italo Grasso Biondi,
apud Greco Filho, Tóxicos). Valdir Snizk, escreve que “entorpecente,
juridicamente, é toda substância que possui a capacidade de produzir
alteração no intelecto ou na volição do indivíduo”. (in Comentários à
Lei de Entorpecentes, Forense, p. 13).
Não se pode esquecer que, embora não tenha sido a melhor
solução, a nova lei, em seu artigo 8º, continua a exigir, assim como
fazia a velha legislação no seu artigo 36, a inclusão da substância nas
Portarias relacionadas pelo Órgão competente do Ministério da Saúde. Embora tenha recebido críticas tal modelo ainda na vigência da lei
anterior, o certo é que trata-se de mais um caso de norma penal em
branco. Veja-se o que diz o Professor GRECO FILHO: verbis:
“No momento, se a droga nova, não relacionada pela Serviço
Ncional de Fiscalização de Medicina e Farmácia, for difundida no Brasil, a despeito das piores e mais funestas conseqüências que possa
gerar para a saúde pública, causando dependência física ou psíquica,
não sofrerá repressão penal em virtude da nova sistemática introduzida
pelo art. 36 da lei.
O texto, porém, é claro e, por mais que, teoricamente, discordemos da solução dada, temos que nos curvar ante o império da lei. A
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partir da vigência da Lei n. 6.368/76, somente drogas previamente relacionadas pelo Serviço Nacional de Fiscalização de Medicina e Farmácia ensejarão a aplicação das normas punitivas nela previstas”. (in Tóxicos, Repressão, Prevenção, Saraiva, 1.989, p. 173).
No entanto, quer nos parecer, como advertido pelo mesmo autor, não há necessidade de que conste em tais listas, o nome comercial
do remédio, produto ou substância, bastando apenas que traga a composição química dos mesmos, ficando a cargo do Perito ao elaborar o
Laudo Toxicológico, apontar o ato administrativo que incluiu tal ou tais
substâncias como capazes de causar dependência física ou psíquica.
A Organização Mundial de Saúde(OMS) , passou a
desconsiderar os termos “toxicomania’, “hábito”, “entorpecente”, pela
expressão “dependência” e “ drogas que determinam dependência”.
Abrange tal expressão ainda, o vício de substâncias alucinógenas,
drogas que provocam delírios, visões, estados psicóticos e dependência, senão física, ao menos psíquica.
O artigo primeiro da Lei 6.368/76, que não foi totalmente
revogada pelo 10.409/02, dispunha - e a lei nova repete – o dever de
toda pessoa física ou jurídica de colaborar na prevenção e repressão
ao tráfico ilícito e uso indevido de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. A lei determina ainda que os
Estados e os Municípios deverão criar estímulos fiscais e outros, destinados às pessoas físicas e jurídicas que vierem a colaborar na prevenção e produção, do tráfico e do uso de produtos que venham a
causar dependência física ou psíquica.
A Lei Nova, trata das medidas a serem aplicadas para o tratamento a ser dispensado aos dependentes e usuários de drogas, nos artigos 11 a 13, de forma bastante tímida, não estabelecendo as formas de
internamento e tratamento a serem aplicadas em casos de
inimputabilidade decorrente de ingestão de substância entorpecente que
venha a determinar dependência física ou psíquica proveniente de caso
fortuito ou força maior. Fica claro, que as normas que tratam de tal assunto
na lei velha, encontram-se em pleno vigor, ou seja, aplicam-se os artigos
8º a 11, e ainda o art. 19, não tendo sido revogados pela lei nova.
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Como os dispositivos que criavam os tipos penais na nova lei
foram vetados, resta, evidente, que permanecem vigentes os dispositivos da lei anterior, ou seja, estão em pleno vigor, os artigos 12, 13, 14,
15, 16, 17, 18, da Lei 6.368/76, os quais definem os tipos e as penas,
sendo que o último, as causas de aumento de pena, restando, sem
dúvida, a lei velha cuidar daquilo que não for incompatível com a lei
nova, assim tudo que não for imcompatível com a lei nova, permanece
em vigor. O art. 12, define 18 condutas, que são imputadas através de
suas modalidades aos traficantes, ou seja, aqueles que praticam aquelas condutas, com finalidade de tráfico (mercância, comércio, etc). O
critério de distinção a ser feito para a classificação da conduta do agente, é traçado no art. 30, da lei nova (antes pelo art. 37). Assim, a Autoridade Policial, no caso de flagrante, (no inquérito também) deverá atentar, para diferenciar o traficante do usuário, para: 1º) a natureza da droga
apreendida (se é maconha, cocaína, LSD, heroína, morfina, crack, etc);
2º) quantidade da droga apreendida, 1 grama, 10 gramas, assim por
diante, não esquecendo que a maneira de acondicionar a droga pode
levar a presunção de tráfico (trouxinhas, papelotes, cigarros); 3º) local,
onde se deu apreensão, era perto de escolas, presídio, hospitais, orfanatos, boates, bares de péssima reputação, (boca de fumo); 4º) condições em que se desenvolveu a ação criminosa, se o autuado denunciou
alguém para livrar-se; como é feito o tráfico; como ocorre o repassse
(na rua ou em casa); se há desavenças com outro(s) distribuidor,(es)
pela conquista de locais de venda; 5º) circunstâncias da prisão, se houve resistência à prisão, fuga, o que alegou em primeiro lugar, o encontro
de objetos para uso ou mesmo venda, como seringas, balanças de precisão, embalagens, objetos próprios para esconder a droga (recipientes); 6º) conduta do agente, como vive ele na comunidade, trabalha ou
vive de “bicos”, “expedientes”, tem família constituída (pais, filhos, esposa, companheira), nível escolar e profissional bem como se possui
patrimônio; 7º) antecedentes, considera-se, aqui, o seu anterior
envolvimento com o mundo das drogas, com a polícia (o policial, ou alguns, já o conhecem de outras buscas, diligências, etc.), 8º) qualificação, este elemento não constava da lei anterior, apareceu na lei atual,
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nada mais representa do que a vida pregressa do indivíduo objeto de
investigação. Assim através desses dados de natureza objetiva é que a
autoridade policial poderá avaliar trata-se de traficante ou usuário ou
mero viciado , ou, às vezes, um simples curioso. Na prática, leva-se apenas em consideração a quantidade da droga, sem que haja por parte da
Autoridade Policial (Delegado de Polícia) a necessária justificação do
porquê enquadrou o autuado neste ou naquele artigo. Os Promotores
de Justiça e mesmo os Juízes seguem a mesma linha, na maioria dos
casos, sem atentar para tais detalhes. É claro, que tal classificação é
provisória, podendo ser modificada pelo Promotor ao oferecer denúncia e pelo Juiz no momento da sentença. Veja-se que, a nova lei não
determina que a autoridade justifique, de forma fundamentada, a classificação dada ao crime, no entanto, neste sentido, parece-me lógico que
deve-se considerar em vigor o que dispõe o parágrafo único do art. 37,
da lei anterior, que considero em pleno vigor, já que compatível com a
atual lei.
O art. 13, menciona tudo aquilo que diz respeito ao fabricante ou
industrial da droga, é o engenheiro do mal, diz respeito aos utensílios,
instrumentos, aparelhos empregados na preparação, produção, transformação e beneficiamento da droga. É necessário lembrar que o elemento
normativo do tipo, exige que tais condutas sejam em desacordo com regulamentação legal ou regulamentar, claro, então, que deve-se atentar que
nem todo equipamento tem esta finalidade, bastando que seu proprietário tenha autorização para sua posse e finalidade.
O art. 14, trata da associação com fins específicos ou seja, a de
cometer os crimes descritos no art. 12 e 13, bastando para tanto, duas
ou mais pessoas. Com o advento da Lei 8.072/90, que em seu art. 8º,
determinou que a pena do crime descrito no art. 288 do CP, fosse de 3 a
6 anos de reclusão, quando a finalidade for a de praticar crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins
ou terrorismo. Para alguns (Greco Filho, Alberto Silva Franco, João José
Leal), o art. 14, foi ab-rogado, ou seja, não mais existe. O tipo e a pena
está previsto no art. 288, do CP. Para outros entre estes, Valdir Snick,
para quem o art. 8º não modificou o art. 14, devendo prevalecer a norma
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especial. O certo é que existem 3 posições. 1ª) o art. 14, não foi revogado, nem em relação a pena nem ao tipo legal; 2ª)o art. 14, foi revogado,
tanto no respeitante à pena quanto à tipagem legal, aplica-se o art. 288,
quanto à definição típica (tem que ter no mínimo 4 pessoas), e a pena
será aquela prevista no art. 8º, da Lei 8.072/90; 3ª)o art. 14, foi derrogado,
quanto ao tipo, aplica-se o art. 14, quanto à pena o art. 8º, da 8072, é a
posição sustentada por Damásio e Mirabete. De qualquer forma é preciso distinguir a mera co-autoria da associação. Deve haver, portanto,
entre os agentes, um liame de natureza subjetiva ligando-os, bem como
deverá haver certa estabilidade e permanência na associação, sem o
que não passará de mera co-autoria(art. 29, do CP). Por outro lado,
existe ainda uma corrente que prega a impossibilidade da existência
do crime do art. 14 com o do art. 12, ou seja, se o agente chega a praticar as condutas do art. 12 (em associação), incidirá apenas nas penas
do art. 12, com a causa de aumento descrita no art. 18, inciso III, ou seja,
não haverá possibilidade de concurso material entre tais delitos. Sob
esse aspecto, parece-me ser tal entendimento o mais aceitável.
Por sua vez, o art. 15, indica com precisão os sujeitos ativos do
crime: o Médico, o dentista, e Farmacêutico e o Profissional da Enfermagem. Tais profissionais da saúde, estarão sempre sujeitos ao
apenamento previsto neste artigo, acaso venham a incidir nas condutas descritas no tipo, quais sejam, a de prescrever e ministrar. O tipo
só se corporifica se a dose prescrita for, evidentemente, maior que a
necessária ou estiver em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Só podem prescrever o médico e o dentista, o profissional
da enfermagem não poderá prescrever, poderá apenas ministrar a dose
prescrita pelo médico, no entanto, o médico e o farmacêutico poderão
ministrar. A lei teve em mira, evitar que esses profissionais ministrem
substância entorpecente aos seus pacientes, levando-os, mais tarde, a
tornarem-se dependentes. Assim, devem tais pessoas tomarem o máximo cuidado ao prescreverem remédios aos seus pacientes, fora das
suas reais necessidades terapêuticas. Como o tipo é culposo, fica claro
que terão que agir, por imprudência, por imperícia ou por negligência,
para que possam responder pelo tipo. Acaso venham a dolosamente a
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prescrever ou ministrar substâncias tóxicas, capazes de causarem dependência física ou psíquica no paciente, responderão pelo tipo previsto no art. 12, na forma de prescrever, cuja conduta é ali também prevista.
O delito atinge o seu momento consumativo com a efetiva entrega do
receituário ao paciente ou mesmo a terceiro, ou no momento em que
estiver aplicando a droga, em dose claramente maior do que a necessária. Por último deve-se notar que a dose prescrita ou ministrada deve
ser, significativamente, maior do que aquela indicada para o tratamento,
caso contrário não haverá que se falar em violação desta norma.
O art. 16, trata da figura do usuário, viciado ou experimentador,
ou seja, daquele que vir a adquirir, guardar ou trazer consigo para seu
próprio uso, a substância que tenha potencialidade de causar dependência. A finalidade da conduta é, que vai ditar o enquadramento, se é
traficante ou mero usuário, curioso ou um simples experimentador. Deve
aqui, as autoridades tomarem certas cautelas no qualificar o delito. A
melhor orientação é aquela feita no art. 30, da lei nova, já anotado
anteriormente. Deve-se, ressaltar, que a lei não pune o ato de “fumar”
nem o de “usar” ou “injetar” a droga, visto que o que a lei pune, não é o
vício , mas o fato de alguém praticar as condutas aqui descritas conjuntamente com a posse da droga. Assim, o uso anterior de substância
tóxica, não é apenado. Necessário se torna, que no momento da prisão
o autuado esteja na posse da droga entorpecente. A lei procurou, dessa
forma, punir menos, severamente, o usuário do que o traficante, visto
que aquele, na realidade, não passa de uma vítima deste. Por isso o
menor rigor da lei. Quanto às dúvidas que surgirão sobre a prova da
exclusividade, como já se disse, serão os critérios apontados no art. 30,
da novel Legislação, com o aproveitamento daquilo que não foi revogado e continua a vigorar na antiga lei.
O art. 17, por seu turno, pune as condutas tipificadas no art.
26, da Lei 6.368/76, que ao meu ver, está em pleno vigor. Na verdade
tal dispositivo, é de difícil interpretação, já que não se sabe exatamente, qual a objetividade jurídica protegida. Diz o art. 26: verbis: “Os registros, documentos ou peças de informação, bem como os autos de
prisão em flagrante e os do inquérito policial para a apuração dos criRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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mes definidos nesta lei serão mantidos sob sigilo, ressalvadas, para
efeito exclusivo da atuação profissional, as prerrogativas do juiz, o Ministério Público, da autoridade policial e do advogado, na forma da legislação específica. Parágrafo único: Instaurada a ação penal, ficará a
critério do juiz a manutenção do sigilo a que se refere este artigo”. Acredito que a norma visa proteger, em primeiro lugar, a imagem e a própria
segurança do suspeito, indiciado ou acusado, dos sensacionalismos
da Imprensa, que fazem uma verdadeira apologia do fato criminoso, principalmente quando se trata de envolvido de posses ou ocupantes de
cargos na Administração Pública ou mesmo posição de destaque na
Sociedade em que vive. Assim, com a finalidade de evitar escândalos,
que só desacreditam a Justiça, que o dispositivo deve ser preservado.
Outro objetivo perseguido pela lei, é no sentido de não atrapalhar as
investigações policiais e a própria instrução probatória, principalmente,
agora, com a possibilidade de haver acordo entre o indiciado e o Ministério Público que se deve prestigiar com mais vigor o dispositivo
supracitado.
O disposto no art. 18, da lei anterior, que continua em vigor,
dispõe sobre as várias causas de aumento de pena, que vão de 1/3 a
2/3 (um a dois terços), destacando-se, entre estas, a do inciso III, que
prevê tais aumentos de pena, se qualquer dos crimes previstos na referida lei, foram praticados em decorrência de associação.
No que diz respeito ao processo para julgamento dos crimes
descritos na lei anterior, não há dúvida de que a lei nova regulou a
matéria, nos seus artigos 27 a 41. Assim, o inquérito passou a ter um
prazo de 15 dias, no máximo, quando se tratar de réu preso, para
conclusão, podendo ser duplicado mediante pedido justificado da autoridade policial. Será, no entanto, de 30 dias, quando se tratar de réu
solto, podendo também ser duplicado por determinação judicial. Não
há dúvidas também que o art. 35, da lei anterior, encontra-se totalmente revogado. Para a lavratura do auto de prisão em flagrante e para o
oferecimento da peça acusatória, continua a valer a velha regra, basta
o laudo provisório, firmado por perito oficial ou na sua falta, por qualquer pessoa (a lei diz de preferência pessoa habilitada, no entanto, a
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praxis tem demonstrado que são nomeados policiais da repartição policial para exercer tal mister. Com tal determinação, segundo advertência de Greco Filho, teremos que contar sempre nas Delegacias de Polícia, com experts em “cheirar” e “experimentar” drogas, e através de
sua vasta “experiência” e conhecimentos práticos, irão afirmar se é ou
não droga a substância que lhe foi apresentada. Tal fato não ocorre na
Polícia Federal, vez que os mesmos são dotados de um kit, para realizar os experimentos nas drogas apreendidas, mormente, cocaína. Determina ainda a Nova Lei, que novas diligências possam ser realizadas e após tais prazos remetidas ao Juiz. O artigo 32, foi vetado, bem
como o parágrafo primeiro, no entanto, o 2ª e 3ª estão em vigor. O
parágrafo segundo vai trazer muita confusão. É previsto neste parágrafo, dois institutos: sobrestamento do processo ou a redução da pena.
Ambos decorrentes de acordo entre o Ministério Público e o indiciado.
Dessa forma, o indiciado, que, espontaneamente, delatar (revelar) a existência de organização criminosa e com isso venha a permitir a prisão
de apenas um de seus integrantes, ou a droga seja apreendida, ou de
qualquer forma, justificado no acordo, contribuir para os interesses da
Justiça, fará jus a(s) benesse(s). Parece-me, a primeira vista, o que o
Legislador quis foi pegar o grande traficante, através da famigerada delação. Com essa providência, todo aquele que entregar o seu fornecedor, poderá fazer jus aos benefícios acenados no dispositivo. Entendo
ainda que esta entrega tem que ser efetiva, ou seja, a prisão de um ou
mais membros da organização criminosa tem que efetivamente ocorrer,
ou, a droga tem que ser apreendida, ou que reste manifesto a intenção
do delator em colaborar com a Justiça. Essa colaboração com a Justiça, é que vai dar confusão. Ficará a critério do Julgador, aceitar ou não,
quando o acusado estará de forma clara e efetiva contribuindo para os
interesses da justiça. Tudo isso deverá ocorrer ainda na fase indiciária,
portanto, antes do oferecimento da peça acusatória. Por sua vez o parágrafo terceiro carrega outra inovação. Acaso a revelação (leia-se delação), de parte do denunciado, “entregando” os demais membros da
quadrilha, grupo, organização ou bando, ou fornecendo a localização
do produto, ou droga ilícita, ocorrer após o oferecimento da denúncia, o
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Juiz, desde que por proposta do Ministério Público, ao sentenciar, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la de 1/6 a 2/3 (um sexto a dois
terços). Criou-se aqui mais uma forma de perdão judicial, já que quando
o juiz deixa de aplicar a pena, estamos diante de tal instituto. Curioso, é
saber-se se a proposta só poderá partir do Ministério Público ou também o Defensor (ou o próprio denunciado) poderá fazê-lo? Quer me
parecer que, para que não haja ferimento ao princípio da isonomia processual, tal proposta poderá partir do defensor do acusado, (ou do próprio) o que deve ser exigido são as condições para tal ato, e desde que
existam será perfeitamente possível, (seria, entre outros), mais um dos
direitos subjetivos do acusado, que mesmo diante da inércia do órgão
Acusador, teria o Juiz que apreciar a proposta, desde que provocado,
por evidente. Cabem aqui as observações já feitas pela Doutrina e
Jurisprudência, a respeito da proposta de suspensão condicional do
processo, prevista na Lei 9.099/95, em seu art. 89. Adiante vem o art.
33, que trata da possibilidade de infiltração de policiais nas organizações criminosas voltadas ao tráfico ilícito de entorpecentes, aplicandose, no que couber, os dispositivos da Lei 9.034/95, que dispõe sobre a
utilização de meios operacionais para prevenção e repressão de ações
praticadas por organizações criminosas. Aqui o Legislador conta com
a possibilidade de que Policiais possam infiltrar-se junto às várias modalidade de associações criminosas que têm, por finalidade, o tráfico
ilícito de entorpecentes ou drogas afins. Permite, inclusive, o chamado
flagrante retardado ou prorrogado, na expressão utilizada pelo Professor Luiz Flávio Gomes. Por este dispositivo (art. 33, inciso II), o Policial
poderá saber perfeitamente da ocorrência de crimes ligados ao tráfico
de entorpecentes, no entanto, para poder pegar um maior número de
criminosos, os deixará livres, até que surja o momento adequado para a
prisão. Tudo isso só poderá ser feito após prévia autorização judicial e
com ciência do Ministério Público. Será difícil de ocorrer tais fatos na
prática. A uma, porque a nossa Polícia (principalmente a civil estadual), ganha salários miseráveis e por certo nenhum policial quererá bancar o herói e ingressar numa quadrilha de traficantes, ganhando o salário miserável que ganha (uns não passam de R$700,00). A duas, porque
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não há nenhum preparo de policiais para o trato com o crime organizado (aliás nem mesmo o desorganizado). Assim, com o devido respeito
aos mentores da lei, a norma fatalmente será mais uma a ornamentar o
nosso já cansado ordenamento jurídico penal, pois na prática não será
cumprida. Após tais procedimentos, a lei passa a falar no seu art. 37,
em Instrução Criminal. Recebendo os autos de inquérito policial em Juízo,
o Magistrado irá determinar a abertura de vistas ao Ministério Público,
para que, no prazo de 10 (dez) dias, tome as seguintes providências: a)
requeira o arquivamento; b)requisite diligências que julgar imprescindível para o oferecimento da denúncia; c) ofereça denúncia; c)deixe de
oferecer a peça acusatória, de forma justificada, contra os agentes ou
partícipes dos crimes previstos na Lei 6.368/76. Aqui mais uma vez, o
dispositivo irá trazer muitas indagações. É que na última hipótese, há
ofensa ao princípio da obrigatoriedade da promoção da ação penal
pública, por parte do Ministério Público, que embora tenha sofrido certa
frouxidão com o surgimento da Lei 9.099/95 (Juizados Especiais Criminais), não conheço nenhuma outra norma de igual teor, que confira ao
órgão Acusatório Oficial, abrir mão da ação penal pública. Outro problema diz respeito ao princípio da indivisibilidade da ação penal. Tal proibição, todos sabem, visa mais, especificamente, a ação penal de natureza privada, no entanto, o Ministério Público não poderá deixar de ofertar
denúncia contra um ou alguns dos autores ou partícipes de um crime,
sem que para isso tenha razões sérias e fundamentadas. Aqui no caso
de crimes relacionados a tóxicos, creio que o Legislador estaria se
referindo às hipóteses dispostas no art. 32, (vetado), no seu parágrafo
segundo, (em vigor) em que o Ministério Público não ofereceria denúncia, caso houvesse o propalado “acordo” com o indiciado ou indiciados
(digamos que são vários os indiciados, mas apenas um ou alguns deles faz (em) o “acordo”), então contra este(s) não seria ofertada a denúncia, visto que a lei fala em sobrestamento do processo, e como sabido não há que se falar em processo na fase inquisitória. Assim não vejo
outra saída que não esta, para que o dominus littis deixe de oferecer
denúncia contra um ou alguns dos indiciados, salvo, é claro, nos casos
em que não houver contra um ou alguns dos suspeitos, provas suficienRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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tes a sustentar o requisitório. Outra dúvida que por certo irá surgir, diz
respeito ao prazo do sobrestamento (ou suspensão), do processo, visto
que aqui não se trata de redução de pena e nem de perdão judicial,
como previsto no parágrafo terceiro do mesmo artigo. Com certeza haverão aqueles que irão sustentar que tal prazo se expirará com a ocorrência da prescrição pela pena in abstrato cominada ao crime, como
marco final da suspensão do processo, tal como ocorre, no respeitante
ao previsto no artigo 366, do Código de Processo Penal, que trata da
suspensão do processo (e da prescrição), no caso de ausência do réu
na lide. O certo é que haverão vários posicionamentos, ficando para a
Jurisprudência ditar aquilo que na prática for o mais correto. Adiante,
dentro ainda da Instrução Criminal, poderá haver discordância do Juiz
quanto ao pedido de arquivamento do inquérito policial (ou peças de
informação), determinando a lei que nesses casos se proceda como na
forma do art. 28, do Código de Processo Penal, ou seja, na discordância
do Magistrado, deverão os autos (ou peças) de inquérito policial serem
remetidos ao Procurador-Geral de Justiça, ( no caso de ser crime da
competência da Justiça Comum Estadual), para que tome as providências por todos já conhecidas: designa outro Promotor para oferecimento da denúncia, o próprio Procurador irá oferecê-la ou endossa o pedido formulado pelo seu subordinado, caso em que o Juiz estará obrigado
a acatar o pedido de arquivamento. Vencidas essas providências, dispõe o art. 38, da Nova Lei, que após o oferecimento da inicial acusatória,
o juiz deverá ordenar a citação do acusado, (deveria ser indiciado) para
responder à acusação, de forma escrita, em 10 (dez) dias, contados da
juntada do mandado aos autos ou em caso de citação editalícia, a partir
da primeira publicação. Em seguida designará data para interrogatório,
o qual deverá ser realizado nos próximos 30 (trinta) dias se tratar de réu
solto, ou em 5 (cinco) dias se o réu estiver preso. Segundo o disposto no
parágrafo único deste mesmo artigo, essa resposta, a qual o acusado
tem 10 (dez) dias para oferecer (se não o fizer ser-lhe-a nomeado defensor dativo para tal finalidade), não é (embora a lei fale), defesa prévia, já que além daquelas matérias que são normalmente motivo de alegação por parte do acusado, com a defesa prévia, aqui ele pode ir adiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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ante, já que poderá invocar todas as razões de defesa. Resta claro, pela
redação da lei, que essa modalidade de defesa, equipara-se ao rito
adotado para os crimes cometidos por Funcionários Públicos, (art. 514,
do CPP) já que lá, a lei também oportuniza ao denunciado, a possibilidade de, com a sua resposta, vir o Juiz a rejeitar a peça acusatória.
Embora o Legislador da Lei 10.409/02, seja mais moderno do que o de
1.941, o certo é que este errou ao falar em citação do acusado, já que o
correto, seria como o fez o Legislador anterior, notificação, já que, como
naquela hipótese, a denúncia ainda não foi recebida, portanto, é impróprio se falar em citação, já que esta é a forma pela qual se chama o
acusado para vir a Juízo (penal) se defender do processo contra si instaurado. A confusão que há, é que o dispositivo manda o acusado ser
citado, para se defender previamente e ao mesmo tempo determina que
seja também designado data para ser interrogado. E a confusão existe,
já que no art. 41, a lei fala novamente em interrogatório. Disso resulta, a
primeira vista, que haverá dois interrogatórios. Um na fase pré-processual (talvez seja para oportunizar a possibilidade de ocorrer o “acordo”
entre o indiciado e o Ministério Público) e outro na fase processual propriamente dita. Adiante determina a Nova Lei, que as exceções deverão
correr em autos apartados. Tal disposição é de toda, inútil, já que, como
descrito no corpo da própria Lei, aqui tem aplicação a Legislação Processual Penal Comum, e o CPP, determina em seu art. 111, que as exceções correrão em autos apartados e não suspenderão, em regra, o
andamento da causa. A seguir, apresentada a defesa (leia-se resposta), o Ministério Público terá vista dos autos para manifestação, no prazo de 5 (cinco) dias, sendo que em igual período o Juiz proferirá decisão. Tal decisão irá analisar as razões oferecidas pelo denunciado e
poderá resultar em rejeição da peça acusatória, desde que o Juiz se
convença dos motivos apresentados pelo mesmo e ainda poderá não
recebê-la por, segundo o disposto no art. 39, for manifestamente inepta,
ou faltar-lhe pressuposto processual ou condição para o exercício da
ação penal, ou ainda não haver justa causa para a acusação, devendo
ainda serem observadas as normas estampadas no art. 43, do CPP.
Criou-se assim, novas exigências para o recebimento da peça acusatória
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oficial, visto que foram exigidas outras além daquelas que já constam no
nosso ordenamento jurídico-processual. O assunto é deveras interessante, mas aqui não é o campo para analisá-lo. Quero, no entanto, deixar aqui consignado, que uma das hipóteses mais comuns de falta de
justa causa para a acusação, para dar o ponta pé inicial da ação penal,
será a presença de um Laudo de Exame de Substância Entorpecente,
que venha a afirmar que a substância submetida a exame, não é nenhuma daquelas proibidas pela Legislação, ou mesmo, no sentido de que a
substância não é capaz de causar dependência física ou psíquica, como
por exemplo, não for encontrado na maconha, a presença do seu princípio ativo, que é o TetraHidroCanabinol. Dando seguimento ao rito processual, acaso o Juiz venha a desconsiderar as razões apresentadas e
não ocorra nenhuma das hipóteses acima citadas, a denúncia será recebida, podendo o Juiz, no mesmo decisório, determinar a realização
de diligências que entender necessárias para o deslinde da causa, bem
como designará dia e hora para a audiência de Instrução e Julgamento,
ordenando a intimação do acusado, do Ministério Público e do Assistente da Acusação, caso tenha se habilitado (hipótese difícil de ocorrer,
por falta de interesse). Na audiência de instrução e julgamento, diz a lei,
após o interrogatório do acusado, inquiridas as testemunhas (da acusação e da defesa), será dada a palavra ao Ministério Público e ao defensor do acusado, pelo prazo de 20 (vinte) minutos, prorrogáveis por mais
10 (dez) a critério do juiz, que, em seguida proferirá sentença, acaso se
julgue habilitado, ou terá um prazo de 10 (dez) dias para o mesmo fim. É
notória a confusão causada pela inclusão desse “novo interrogatório”.
Anteriormente, falou-se em citação (e não era o caso), depois fala-se
em intimação do acusado para audiência de instrução e julgamento onde
também será interrogado. Pela leitura da lei, (como já referido) deverá
haver dois interrogatórios, um antes do recebimento da denúncia (a qual
poderá não vir a ser recebida), e outro, após o seu recebimento. Para
mim, os idealizadores da lei em comento, pretenderam dar ao indiciado
a oportunidade de, através de seu primeiro interrogatório, ratificar o acordo entabolado anteriormente (art. 32, § 2º) com o Ministério Público, já
que tal acordo, por evidente, terá que passar pelo crivo do Magistrado, e
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nada melhor do que, pela oitiva do indiciado, colha o Julgador, novos
dados a respeito da sua real intenção em aproveitar os benefícios da
Lei. Razão pela qual, com o respeito devido daqueles que pensam em
contrário, entendo que haverá sim, possibilidade de haver dois interrogatórios, adotando-se o rito estabelecido pela Nova Lei, através de sua
interpretação lógica e até porque irá proporcionar aos futuros envolvidos com tais práticas delitivas, melhores possibilidades de se defenderem, através desses contatos imediatos com o Ministério Público e o
Juiz. Essas seriam as primeiras considerações que deixo à elevada apreciação dos demais colegas, pedindo vênias, pela minha pouca lida com
escritos jurídicos.
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A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA
CONSTITUCIONAL Nº 28 - UMA ANÁLISE CONCRETA
DOS LIMITES DA EXPRESSÃO “DIREITOS E
GARANTIAS INDIVIDUAIS” CONSTANTE NAS
CLÁUSULAS PÉTREAS
MARCIUS NADAL MATOS
MESTRANDO EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PELA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA. ESPECIALISTA EM
DIREITO CONTEMPORÂNEO E DIREITO PROCESSUAL CIVIL PELO
INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS JURÍDICOS. ADVOGADO NO
PARANÁ.
RESUMO
O artigo defende a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 28, a
qual, em seu artigo 1º, deu nova redação ao inciso XXIX, do artigo 7º da
Constituição Federal, dispondo sobre a prescrição para ações quanto a
créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo de cinco anos para
os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção
do contrato de trabalho. A emenda extingüir a imprescritibilidade das verbas
decorrentes do contrato de trabalho do ruralista, afrontando, na visão do autor,
os “direitos e garantias individuais” e extrapolando os limites do poder
constituinte reformador.
ABSTRACT
The article defends the unconstitutionality of amendment # 28, which, in its 1st
article, has a new written in paragraph XXIX, of article 7th of the Federal
Constitution, talking about the prescriptions for actions in relation to credits
come from labor relations, with the time of 5 years to the workers , until the
limit of two years after the extinction of the labor contract. The amendment
extinguished inprescriptibility of appropriation come from rural worker’s contract of labor, in opposition, in the author’s opinion, the “individual rights and
guarantee” and going too far from the limits of the renew representative power.
PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito do Trabalho; direitos
e garantias individuais; poder constituinte reformador.
INTRODUÇÃO
Em 26.05.2000, com a publicação no DOU, entrou em vigor a
Emenda Constitucional n.º 28, que, em seu artigo 1º, dá nova redação ao
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278
inciso XXIX, do art. 7º, da Constituição Federal, com a seguinte forma:
“ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até
o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho.
Em comentário a esta emenda surgiram duas correntes: uma
entendendo que a expressão direitos e garantias individuais, do núcleo
imodificável da Constituição, também conhecido como cláusulas pétreas
(art. 60, § 4º, da Constituição), alberga os direitos sociais. Assim a abolição da imprescritibilidade, durante o contrato de trabalho violou o núcleo constitucional, decorrendo a inconstitucionalidade da Emenda n.º
28.324 A outra, entendendo que os direitos sociais não estariam protegidos pelas cláusulas pétreas, porquanto estas só se referem aos direitos e
garantias individuais – o corolário é a constitucionalidade da emenda.325
Insta observar que, a problemática não se restringe ao direito à
imprescritibilidade, durante o contrato de trabalho do ruralista, porquanto o fundamento das posições revela a magnitude da questão. Se a segunda leitura for consentânea com a Constituição, a vida dos direitos
sociais pode estar com os dias contados, pois o discurso predominante, nestes tempos neoliberais, é baixar totalmente os custos para competir em um mercado global, e a expressão custos abrange,
inexoravelmente, os direitos dos trabalhadores. Neste contexto, não
seria difícil imaginar emendas supressoras de direitos do trabalhador,
quiçá de outros direitos sociais, v.g., assistência social!
Assim, o presente ensaio tratará da configuração do poder de
reforma, de seus limites formais e materiais, para tentar responder a
questão: a Emenda Constitucional n.º 28, é constitucional, e por conseqüência os direitos sociais não estão albergados no núcleo imodificável
da Constituição?
324
Posição defendida por ALCURE NETO, Nacif e GUNTHER, Luís Eduardo. A emenda constitucional n.º 28
e a prescrição do trabalhador rural. In RDT, Editora Consulex, Brasília, vol. 7, ano 1, janeiro de 2001, p. 29.
325
Posição defendida por MALLET, Estevão. A prescrição na relação de emprego rural após a Emenda
Constitucional n.º 28. In Revista LTr., vol. 64, n.º 8, agosto de 2000, p. 1000.
326
A feição ilimitada do Poder Constituinte originário deve ser vista cum grano salis. Neste sentido GOMES,
J. J. Canotilho. Direito Constitucional. 4. Ed. Coimbra: Almeidina,, 1989, p. 99. “Daí onde o poder constituinte
não possa desvincular, no momento da criação constituição, de certas objectivações históricas que o
processo de permanente <desalienação> do homem vai introduzindo na consciência jurídica geral”.
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A CONFIGURAÇÃO DO PODER REFORMADOR
A discussão da problemática colocada no presente ensaio perpassa, por necessário, pelos limites ao poder reformador. Isto porque, o
poder constituinte derivado (outra designação do poder reformador) está
atrelado às limitações quanto ao âmbito de reforma que pode
implementar, enquanto o poder constituinte originário pode, de maneira ilimitada e incondicional326, criar uma ordem jurídica inédita.
Com fundamento nesta diferenciação, a ilimitação do poder constituinte originário e a limitação do poder constituinte derivado, há quem
qualifique o primeiro como potência e o segundo como competência.327
A idéia de competência do poder reformador é de utilidade ímpar para compreender as eventuais inconstitucionalidades que possam
surgir na formulação de uma emenda à constituição. No plano
infraconstitucional, pode-se falar de uma inadequação aos valores constitucionais, o que nos levaria a uma inconstitucionalidade material. Por
sua vez, as emendas não podem, devido a sua posição dentro do corpo normativo, serem controladas através de uma sistemática vertical,
como ocorre com a normativa infraconstitucional. Assim, caso as reformas constitucionais desbordem dos limites formais e materiais impostos originalmente, “o ato legislativo poderá ser inconstitucional, não
tanto pelo contraste direto com as prescrições da Lei Magna quanto
também pelo desvio de poder ou do excesso de poder legislativo”.328
De qualquer sorte, o excesso de poder legislativo poderá e
deverá ser controlado pela Jurisdição, seja através do controle abstrato, por via de ação direta; seja através do controle de constitucionalidade
concreto por via de exceção (o controle feito no caso concreto), sendo
que estes controles deverão ser feitos tanto em relação aos limites
formais, quanto nos materiais.
A competência do poder constituinte derivado está delimitada,
em nosso direito positivo, no art. 60 e parágrafos e no da Constituição
327
SARLET, Ingo Wolfgang . A eficácia dos direitos fundamentais. Porta Alegre: Livraria do Advogado,
1998,p. 346.
328
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
329
Far-se-á uma sucinta análise desses limites, porque a problemática aqui levantada está diretamente
vinculada aos limites materiais; que merecerão maior profundidade.
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280
Federal. Esses dispositivos impõem limites formais, temporais, circunstâncias329 e materiais que passaremos a comentar.
LIMITES FORMAIS
Os limites formais estão dispostos no artigo 60, I, II, III, §§ 2º e
5º da Constituição Federal. Em linhas gerais prevêem: os órgãos competentes para a iniciativa330 ; a necessidade de aprovação em dois turnos, por maioria de 3/5 em ambas as casas; a imposição também a
promulgação das emendas com o respectivo número de ordem; a matéria objeto de reforma de não ser aprovada não pode ser passível de
votação na mesma sessão legislativa.
Estes limites ao poder reformador caracterizam nosso sistema
como um modelo relativamente severo, segundo o professor Ingo
Wolfang Sarlet, denunciando o caráter rígido de nossa Constituição,
que a distingue das constituições flexíveis.331
Para exemplificar o alcance dos limites formais vale citar as
insurgências que ocorreram frente à mudança constitucional do regime jurídico previdenciário da magistratura e dos funcionários públicos.
“No segundo turno de votação no Senado, propôs-se destaque suprimindo a expressão “no que couber”, isto é, alterou-se o texto aprovado em primeiro turno. Com o famigerado destaque, modificou-se
sensivelmente o texto aprovado em primeiro turno. Eis outra flagrante
inconstitucionalidade.”332
O exemplo possibilita a tomada de consciência da seriedade
da questão: um “simples” destaque muda totalmente a norma que pode
ser extraída do texto legal, levando à conclusão, nada açodada, de
que o processo da emenda tornou-se inconstitucional, pois foi aprovado mesmo com uma retumbante mudança no texto; afinal, o texto deve
ser aprovado pelas duas casas sem modificações.333
330
Em relação aos órgãos competentes para o iniciar o processo interessante é a observação de Manoel
Gonçalves Ferreira Filho, onde o autor salienta que na Constituição de 1946, inclusive, não se admitia a
iniciativa do Presidente da República. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3.
ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 283.
331
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porta Alegre: Livraria do Advogado,
1998,p. 347, nota de rodapé 382.
332
VALE, Vander Zambeli.. Inconstitucionalidades da proposta de emenda constitucional que altera o
regime previdenciário da magistratura. Jornal Síntese n.º 10 - DEZ/97, p. 4.
333
Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 282.
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281
LIMITES TEMPORAIS
Os limites temporais correspondem aos prazos de proibição,
cujo cumprimento é indispensável para realizar-se a reforma.
Nas lições de José Afonso da Silva, são limitações pouco comuns. Esclarece o mesmo autor que tal limitação só ocorreu na história
do consticionalismo brasileiro em sede da Constituição do Império, visto
que só após quatro anos de sua vigência, poderia ser reformada.334
Interessante mencionar que, não parece equivocado admitir um
limite temporal no que tange a revisão constitucional prevista no art.
3º, do ADCT, afinal uma reforma ampla no texto constitucional só seria
possível naquela oportunidade – nem antes, nem depois, quando considerou-se extinta a revisão. Contudo, a doutrina entende que só é considerado limite temporal aquele que impossibilite, de maneira absoluta, a
atividade do poder constituinte derivado, o que não ocorreu na Constituição de 1988, uma vez que poderia ser modificada pontualmente através de emendas.335
Curioso é constatar que alguns doutrinadores, arrimados nas
lições de Nelson de Souza Sampaio, que possui a única obra dedicada
exclusiva e especificamente sobre o tema do Poder de Reforma, adotam uma classificação trinária, deixando de mencionar os limites circunstanciais.
“(...) Além disso, o constituinte de 1988 sabiamente vetou a edição
de emendas à Constituição durante intervenção federal nos estados-membros da Federação, bem como na vigência dos estados de
defesa ou de sítio (art. 61, § 1º), o que se justifica principalmente
pelo fato de que nestas situações anômalas, caracterizadas por um
maior ou menor grau de intranqüilidade institucional, poderia ficar
perturbada a livre manifestação dos órgãos incumbidos da reforma
e, em decorrência, a própria legitimidade das alterações. Ainda que
boa parte da doutrina, como já referido, prefira incluir estas normas
no grupo dos limites circunstanciais, entendemos que seu
enquadramento na categoria dos limites temporais não se revela
334
335
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 60.
Idem.
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282
incorreto, já que estes – tomados num sentido mais abrangente –
dizem com a fixação de prazos e oportunidade para a reforma.”336
LIMITES CIRCUNSTANCIAIS
As limitações circunstanciais dizem respeito a condicionantes
que devem ser observados para que haja o lídimo exercício do poder
reformador. Estas condicionantes estão ligadas à idéia de proibição da
reforma em momentos de conturbação e instabilidade institucional. “Nas
hipóteses de intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio,
inexiste aquele equilíbrio indispensável à realização de mudanças no
Documento Supremo.”337
Quanto às limitações circunstancias, positivadas no art. 60, §
1º, faz-se mister mencionar que Manoel Gonçalves Ferreira Filho
posiciona-se de maneira desfavorável quanto à inclusão da intervenção
federal dentro dos limites circunstanciais.
“A adoção de emenda constitucional não pode ser feita em determinadas circunstâncias (art. 60, § 1º). Constituem estas as chamadas
limitações circunstanciais ao poder de emenda.
A primeira delas é a vigência de intervenção federal. Trata-se de
inovação da Constituição de 1988. Não há justificativa para isto. A
intervenção federal não abala a ordem nacional, apenas a do Estado considerado. Se perturba gravemente àquela, virá certamente o
estado de sítio, e, este sim, justifica a proibição.”338
Outra é a orientação do professor Ingo Wolfgang Sarlet, em
passagem que citamos no item anterior. Em que pese a autoridade do
mestre paulista Manoel Gonçalves, parece que a situação de intervenção federal pode comprometer a legitimidade da reforma. Imagine-se
que, certo setor do Congresso Nacional, utilize-se dessa situação para
obrigar os parlamentares do respectivo estado-membro a tomar esta ou
aquela posição quanto a um projeto de emenda. Além de outras situações, menos dramáticas, que comprometam o exercício do poder cons336
337
338
SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 347.
BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., p. 34.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 283.
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283
tituinte derivado, afinal uma intervenção federal sempre reflete uma abalo nas estruturas institucionais do país.
LIMITES MATERIAS – EXPLICÍTOS E ÍMPLÍCITOS?
Além dos limites formais, circunstanciais e temporais, a Constituição positivou limites materiais, no artigo 60, § 4º; também conhecidos
como núcleo imodificável ou cláusulas pétreas. Impende reproduzir o
referido parágrafo:
“§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais”.
Nos princípios elencados neste parágrafo existiria aquilo que
Carl Schmitt denominou de Constituição (ou Constituição material) diferenciando das leis constitucionais (Constituição em seu sentido apenas formal). A Constituição material, através de seus princípios, conformaria a unidade política e jurídica de um povo, não podendo assim
ser modificada, essencialmente.339
Cumpre comentar de maneira perfunctória – disponibilizaremos
nossa atenção em relação ao inciso IV, devido ao problema enfocado
– os incisos I, II, III.
I - A forma federativa: tal limitação material já estava presente
em todas as constituições republicanas, juntamente com a preservação da República. Assim, através desta limitação fica inviabilizado o
restabelecimento de um Estado unitário, como havia no Império, bem
como um Estado regional, como o da Espanha da Constituição de
1978.340 “Mas poderá reequacionar a estrutura federativa, alterando a
repartição de competências e a distribuição de rendas, por exemplo,
339
Cf. FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, vol. III, 1992, p. 209.
A expressão “jurídica” é nossa, porquanto entendemos que atualmente tal dimensão também faz parte
da Constituição material, sendo certo que à época de Carl Schimitt esta dimensão não era tão acentuada.
340
Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 285.
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conquanto jamais possa eliminar a autonomia dos estados, pois aí estará abolindo a federação.”341
II - O voto direto, secreto, universal e periódico: esta limitação não faz
direta referência à República, porquanto a época da promulgação da
Constituição, havia a possibilidade de ser reimplantado a monarquia
através do plebiscito de 1993.342
A contrario sensu, Pinto Ferreira entende, fazendo uma leitura diferente, que a assunção do voto como cláusula de eternidade tem
relação com o vilipendio sistemático da República em nossa história
perpetrado pelos ditadores de plantão, os quais, não raras vezes, suprimiram o direito a voto ou tornaram-no um arremedo de democracia,
dentro da sistemática da escolha indireta dos governantes.343
Parece ser possível afirmar que os dois posicionamentos são
complementares: o primeiro primando por uma conjuntura que se exauriu;
o segundo apontando percalços ocorridos que não devem ser olvidados.
III- A separação de poderes: este item é comentado assim por
Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Também, não terá a possibilidade de
pôr de lado a “separação de poderes”(art. 60, § 4º, III) a ela substituindo
uma forma qualquer de concentração do Poder; à moda da “ditadura republicana” dos positivistas, ou do governo de assembléia soviéticos”.344
Pode-se, inclusive, exemplificar este limite material desta maneira: imagine que, depois do mandato de nosso atual Presidente, o
poder constituinte derivado, cansado da prodigalização das medidas
provisórias, propusesse a extinção destas. Parece que tal medida seria inconstitucional, pois o poder constituinte ordinário outorgou ao
Executivo a prerrogativa de inovar primariamente a ordem jurídica, em
casos de relevância e urgência, não podendo o constituinte derivado
retirar esta prerrogativa, sob pena de romper o esboço funcional idealizado originalmente.
Os argumentos de que aquela prerrogativa não é própria da função executiva, com a devida vênia, padeceriam de inconsistência, em vista
341
Ibidem.
Neste sentido SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 61.
FERREIRA, Pinto, op. cit., p. 211.
344
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 285.
342
343
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285
da opção feita pelo poder constituinte originário. Em suma, haveria nesta
medida uma afronta ao princípio da separação de poderes.
IV- Os direitos e garantias individuais: serão aprofundados nos
dois itens seguintes.
A problemática que se coloca em relação aos limites materiais
é que estes acabariam por engessar o poder reformador, dado não ser
possível prever as necessidades ulteriores do povo. Até no início da
história constitucional é aventado este problema, v. g., “Jefferson e
Thomas Paine pregavam a impossibilidade de os mortos poderem, por
intermédio da Constituição, impor sua vontade aos vivos (...)”345
Para suplantar este problema alguns advogam a tese de que
não há qualquer legitimidade na tese da intangibilidade dos limites
materiais, porquanto não há qualquer diferença entre o poder constituinte originário e derivado.
“Se os poderes constituintes que a nação confere aos seus deputados são destinados a confeccionar a Constituição, com que poderes
é que os depurados começariam por se atribuir competência para
limitar – por toda a eternidade, presumivelmente – o alcance da própria soberania nacional, proibindo que ela pudesse, pelo processo
normal de representação, afirmar-se de novo acerca de determinados pontos?”346
O douto constitucionalista, porém, acaba aventando a possibilidade da intangibilidade daquelas através da doutrina de Carl Schimitt,
a qual afirma que a Constituição (em seu sentido material) conforma a
unidade política de um povo, não podendo ser usurpada sob pena de
perda dessa unidade.
Contudo, o doutrinador paulista, arrimado nas lições do mestre
lusitano Jorge Miranda, acena para outra possibilidade: o mecanismo
da dupla revisão. Este método consiste em suprimir, em um primeiro
momento, os limites materiais de reforma expressos no § 4º, artigo 60;
em um segundo momento, já sem as limitações, fazer as reformas que
entender convenientes.
345
SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 350.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Significado e alcance das cláusulas pétreas. In Cadernos de
Direito Constitucional e Ciência Política. n.º 13, 1995, p. 7.
346
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286
A maior parte da doutrina, a fim de contra-argumentar esta posição, recorre à teoria dos limites implícitos. Lembra Pinto Ferreira,
posicionamentos históricos amparando a teoria: Story sustentava que
a Federação é um núcleo intangível para ser objeto de emenda constitucional nos EUA. E Cooley ampliou esta doutrina, que o poder de
emenda tem limites no próprio espírito da Constituição. Ambos antecederam Carl Schmitt, porém foi este quem melhor desenvolveu a doutrina dos limites materiais implícitos.347 O constitucionalista germânico
entende não ser necessário falar, explicitamente quais seriam os princípios albergados no conceito de Constituição, pois tais princípios revelam a identidade desta, sua alma, podendo assim estar implícitos.
Destarte, uma emenda que abolisse os limites materiais só poderia ser
inconstitucional, porquanto estaria permitindo a violação de um princípio material implícito: a não de supressão da proteção reforçada à
Constituição material.
Em relação à dupla revisão e os limites implícitos, J. J. Canotilho
e Vital Moreira posicionam-se:
“A proibição heterônoma de um comportamento implica, logicamente,
para o destinatário dela, uma proibição de eliminar a própria proibição.
Quer dizer, a permanência dos limites materiais ter-se-á de considerar como um dos limites materiais implícitos do poder de revisão.”348
Por outro lado, a crítica contra a teoria dos limites materiais implícitos leva em conta, justamente, os limites explícitos: se o constituinte estabeleceu, explicitamente, aquilo que considera imodificável, por
que haveria de existir outros limites? Neste aspecto, ironiza Manoel
Gonçalves Ferreira Filho: “Difícil é admitir que o constituinte, ao enunciar
o núcleo intangível da Constituição o haja feito de modo incompleto, deixando em silêncio uma parte dele, como que para excitar a capacidade
investigatória dos juristas.”349
A fim de dissipar tão ácidas críticas, J. J. Canotilho e Vital
Moreira, sem diretamente referirem-se a estas, afirmam que os limites
347
FERREIRA, Pinto, op. cit., p. 209.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra
ed., 1991, p. 301.
349
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Significado e alcance das cláusulas pétreas, p. 8.
348
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materiais de revisão, expressos apenas, têm função declarativa, “limitando-se a revelar (e de forma não necessariamente completa) limites
inerentes da própria revisão constitucional.”350 Desta maneira os autores lusitanos redimensionam as lições de Carl Schimitt dando suporte à
doutrina dos limites materiais implícitos, além de colocar os defensores
da dupla revisão em uma posição deveras desconfortável.
De fato, a doutrina majoritária admite os limites implícitos351 , e
dá outros exemplos: a reforma total, ou que tenha por objeto os princípios fundamentais, normas sobre o Poder Constituinte (titularidade do
originário e derivado) e sobre a reforma na Constituição, etc...352
Enfim, depois de concluirmos pela impossibilidade de afastar
as cláusulas pétreas, e por conseqüência a perpetuidade de algumas
matérias, como fica a questão da necessidade de mudança, que é o
supedâneo para as críticas quanto à legitimidade do núcleo imodificável?
O professor Ingo Wolfgang Sarlet, com o senso de ponderação,
que lhe é peculiar, entende que este é um conflito dialético inafastável
em uma democracia. De um lado as cláusulas pétreas defendendo valores que, não raras vezes, se chocam com as necessidades imediatas
de outro lado.353 Necessidades que muitas vezes, principalmente em
tempos de globalização, parecem ser imperiosas e inarredáveis.
Contudo, não se pode esquecer que nesta tensão pode estar a
saída, às vezes não pensada, às vezes escamoteada pelos detentores
do poder. Deve-se, de qualquer forma, evitar ao máximo barganhar com a
Constituição, com seus princípios essenciais, porquanto estar-se-á negligenciando a própria identidade, afinal o poder constituinte somos nós!
E nfim, caso as mudanças sejam mesmo necessárias, o mestre
gaúcho, Ingo Wolfgang Sarlet, esclarece:
“(...)Quanto ao risco de indesejável galvanização da Constituição, é
350
CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital, op. cit., p. 301.
Cf. FERREIRA, Pinto, op. cit., p. 208.
352
Exemplos citados por SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 352. O autor faz referência a um exemplo
de Raul Machado Horta, em que este entende que após o plebiscito de 1993, o Presidencialismo e a
República foram eleitos diretamente pelo titular do Poder Constituinte, não podendo ser objeto de reforma, apesar de não constarem do rol da cláusulas pétreas, como já foi mencionado.
353
SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 349. Em item subseqüente trataremos do alcance da expressão
“tendentes a abolir”.
351
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preciso considerar que apenas uma efetiva ou tendencial abolição
das decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte se encontra
vedada, não se vislumbrando qualquer obstáculo à sua eventual adaptação às exigências de um mundo em constante transformação”354
6. DIREITOS FUNDAMENTAIS OU DIREITOS E GARANTIAS
INDIVIDUAIS? A ABRANGÊNCIA DO INCISO IV DAS CLÁUSULAS
PÉTREAS
Quando o constituinte considerou pertencentes ao núcleo
imodificável, os direitos e garantias individuais estariam se referindo a
quê? Estariam se referindo a apenas aqueles direitos de 1ª geração, ou
melhor, dimensão como quer a doutrina mais moderna?355 Ou seja, os
direitos vinculados à idéia de Estado mínimo, do Estado Liberal cujo
auge se deu no século XIX. Quanto a este questionamento sobre a expressão direitos e garantias individuais esclarece Manoel Golçalves
Ferreira Filho:
“Na Constituição de 1934, ela era o título do capítulo II do Título III.
Este tinha como capítulo I: “Dos direitos políticos”, como capítulo II:
“Dos direitos e das garantias individuais”. E neste capítulo enumeravam-se os direitos que a Constituição assegurava aos brasileiros e
estrangeiros residentes no País: liberdade, subsistência, segurança, propriedade...Ou seja, as liberdades clássicas do liberalismo,
pois o direito à subsistência é direito à vida. Não compreendia esse
capítulo os “direitos sociais”, que se arrolavam no Título IV: “Da ordem econômica e social.”356
O eminente autor continua suas observações, demonstrando
nas Cartas subseqüentes – 1937, 1946, 1967 e emenda de 1969 –
manteve-se este divisor normativo – e conclui parcialmente: “Em face
354
Ibidem, p. 363-364.
A doutrina costuma enumerar a existência de direitos de primeira, segunda e terceira gerações. A
primeira dimensão corresponde aos direitos individuais e políticos do Estado Liberal novecentista. A Segunda geração é composta pelos direitos sociais e econômicos; dentro desta categoria localizam-se tanto os
direitos que exigem uma prestação dos Estado, v.g., saúde pública através da implantação de hospitais,
quanto dos direitos não prestacionais, v.g., jornada de trabalho de oito horas diárias. Terceira geração os
direitos coletivos e difusos. A doutrina vem preferindo o termo dimensão ao invés de geração, porque estes
direitos não se excluem, na realidade somam-se, e o termo geração pode dar a idéia errônea de exclusão
de uma categoria frente ao reconhecimento de uma “geração” de direitos mais recente.
356
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 285.
355
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289
do exposto, é forte o argumento de que na tradição brasileira, direitos e
garantias individuais é expressão que abrange somente as liberdades
clássicas. Esses direitos não poderiam ser abolidos pela revisão. O
mesmo não ocorreria com os direitos sociais”.357
Contudo, esta posição, dentro dos métodos interpretativos,
consubstancia-se nos métodos gramatical e histórico, e não é necessário ser um eminente hermeneuta para perceber que estes métodos
constituem apenas uma primeira aproximação.
Dentro de uma interpretação sistemático-teleológica fica difícil
sustentar tal posicionamento, uma vez que já em seu pórtico, no preâmbulo constitucional, o constituinte quer “(...) instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais (...)”; inclusive a precedência topográfica dos direitos sociais,
dá a entender a configuração de nosso Estado como Estado Social.
Tese que se confirma logo a seguir onde a Constituição em seus princípios fundamentais elenca os valores sociais do trabalho, juntamente
com a livre iniciativa. (art. 1º, inciso IV).
Neste sentido, adverte o constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet:
“Não resta qualquer dúvida de que o princípio do Estado Social,
bem como os direitos fundamentais sociais, integram os elementos
essenciais, isto é, a identidade de nossa Constituição, razão pela
qual já se sustentou que os direitos sociais (assim como os princípios fundamentais) poderiam ser considerados – mesmo não estando
expressamente previstos no rol das “cláusulas pétreas” – autênticos
limites materiais implícitos à reforma constitucional.”358
Só com o argumento acima lembrado pelo professor Sarlet seria possível, pelo menos em um primeiro momento, afirmar que existem
dúvidas quanto à constitucionalidade da Emenda 28.
O professor Ingo Wolfgang Sarlet359 demonstra outros aspectos que põe abaixo qualquer tentativa de restringir o conteúdo do inciso
IV, § 4º, art. 60, a tão-somente os direitos e garantias individuais. Se a
tese restritiva fosse razoável, haveria de ser feito um verdadeiro
357
Idem, p. 286.
SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 362. O autor faz referência as lições de Raul Machado Horta.
Nestes comentários tomamos por base a obra do autor, páginas 360 usque 362.
358
359
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290
rastreamento, já no capítulo I, do título II, dos direitos e garantias individuais e coletivos, para separar o joio do trigo. Nesta toada, embevecidos
pela tese, haveríamos de localizar o mandado de segurança individual
como cláusula pétrea e o mandado de segurança coletivo não albergado pela norma de perpetuidade. Algo absurdo, como observa o autor.
E neste labor de separar o joio do trigo, o autor demonstra a
necessidade de encontrar um método. Afinal o que é um direito e garantia individual? Nesta pergunta verberada com agonia jurídica, poderíamos enquadrar os direitos individuais como direitos de defesa,
que é a tradição do direito pátrio. Aí, necessariamente, teríamos de
estender nossa averiguação para outros capítulos, porquanto as liberdades sociais possuem a mesma configuração dos direitos e garantias individuais. Destarte, os direitos sociais não-prestacionais acabariam sendo subsumidos à categoria de cláusulas pétreas.
Neste raciocínio o direito insculpido no artigo 7º, inciso XXIX,
da CF (antes da reforma), enquadra-se na categoria de direitos sociais
não-prestacionais, direitos de defesa na seara dos direitos sociais, e
haveria por estar albergado pela cláusula de eternidade em comento.
Não contente com esta verdade que julga parcial, o ilustríssimo
autor ainda observa que a Constituição Federal não faz qualquer diferença entre os direitos de liberdade (de defesa) e os direitos sociais, e acrescenta que todos os direitos possuem titularidade individual, a despeito de
serem de primeira, segunda ou terceira dimensão, não havendo possibilidade de diferenciá-los, principalmente para cientificamente averiguar se
este ou aquele está albergado pela cláusula pétrea em comento.
Outrossim, é possível afirmar que em uma interpretação sistemática-teoleológica da Constituição que a expressão, direitos e garantias individuais, deve ser interpretada como direitos e garantias fundamentais e nesta ótica todos os direitos fundamentais constantes do
título II, da CF, portanto direitos e garantias individuais, coletivos, sociais, relativos à sindicalização, de nacionalidade e políticos. Não se
podendo olvidar da cláusula, materialmente, aberta do art. 5º, § 2º, ou
seja, ou direitos implícitos e decorrentes do sistema de princípios da
Constituição, inclusive aqueles reconhecidos em documentos internacionais, e os dispersos no texto constitucional.
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291
Caso não se aceda a esta interpretação, alerta o professor Sarlet:
“Constituindo os direitos sociais (assim como os políticos) valores
basilares de um Estado social e democrático de Direito, sua abolição acabaria por redundar na própria destruição da identidade da
nossa ordem constitucional, o que, por evidente, se encontra em
flagrante contradição com a finalidade precípua das “cláusulas
pétreas.(...)”360
A conclusão final de Manoel Gonçalves Ferreira Filho comentando a expressão direitos e garantias individuais não é diferente:
“Entretanto, não é despropositado afirmar ser a expressão direitos e
garantias individuais equivalente a direitos e garantias fundamentais. Ora, esta última designa todo título e abrange os direitos sociais, que assim não poderiam ser eliminados. Certamente, esta última interpretação parece mais condizente com o espírito da Constituição em vigor, incontestavelmente, uma “constituição social”. Ademais, ubi eadem ratio eadem dispositio. Se os direitos sociais, como
as liberdades clássicas , são reconhecidos como direitos fundamentais, por que somente estes seriam intocáveis?361
Enfim, não restariam dúvidas que o direito insculpido no artigo
7º, inciso XXIX, b (antes da emenda) está abrangido pelas cláusulas
pétreas na expressão “direitos e garantias individuais”, bem como todos os direitos fundamentais.
Mas haveria quem, em um esforço hercúleo, mesmo depois de
todos os argumentos porfiados à exaustão, dissesse que o referido direito não pode estar abrangido pelo núcleo imodificável. E esta posição
encontraria fulcro na hipótese deste direito ser tão-somente, formalmente, constitucional. Realmente não é difícil concordar com esta posição,
está-se falando em regime prescricional, que bem poderia estar no bojo
de uma lei infraconstitucional. E daí por diante poderíamos, enfim, perscrutar a fundamentalidade do 13º salário, do 1/3 a mais de férias, etc...
A este respeito o Dr. Sarlet, com sua particular percuciência,
coloca a impossibilidade de tal ponderação, porquanto haveríamos de
nos substituir ao poder constitucional originário. Não havendo compe360
361
Ibidem, p. 363.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 286.
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tência em nenhum poder para fazer tal distinção. “Não se poderá deixar de
considerar que incumbe ao Constituinte a opção de guindar à condição de
direitos fundamentais certas situações (ou posições) que, na sua opinião,
devem ser objeto de especial proteção, compartilhando o regime da
fundamentalidade formal e material peculiar dos direitos fundamentais.”362
O SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO “TENDENDES A ABOLIR”
Se podemos dizer a esta altura que os direitos sociais, como
aliás todos os direitos fundamentais, estão incluídos dentro da expressão “direitos e garantias individuais” das cláusulas de eternidade, não
podemos ainda dizer se o direito analisado em concreto – a
imprescritibilidade dos créditos trabalhistas, durante o contrato de trabalho – foi ou não objeto de uma emenda constitucional (Emenda nº
28) inconstitucional, porque não perscrutamos se a atividade do poder
constituinte derivado acabou apenas fazendo uma adaptação necessária à presente realidade social, ou inobservou os limites da razoabilidade.
Talvez esta diferenciação entre a adaptação do texto e o
desbordamento dos limites constitucionais seja o tema mais tormentoso no presente estudo, juntamente com os limites materiais implícitos.
Qual é o sentido da expressão “tendendes a abolir” no parágrafo 4º, do
artigo 60 da Constituição? A doutrina, nos manuais, aborda-o de maneira perfunctória, haja vista a profundidade deste:
“A Constituição, como dissemos antes, ampliou o núcleo explicitamente imodificável na via da emenda, definido no art. 60, § 4º, que
não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir: da forma federativa do Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias
individuais. É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente, declaram: ‘fica abolida a Federação ou a forma federativa de governo’, ‘fica abolido o voto direto...’, ‘passa a vigorar a
concentração de Poderes’, ou ainda ‘fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação ou o habeas corpus, o mandado de segurança...’. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer ele362
SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 134. Interessante observar que o autor enumera entre os
dispositivos possíveis de serem enquadrados como só formalmente fundamentais o art. 7, inciso XXIX.
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293
mento conceitual da Federação, ou do voto direto ou indiretamente
restringe a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e
garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe
ainda que remotamente, “tenda” (emendas tendentes, diz o texto),
para sua abolição.”363
Nas lições do notável mestre, a referida expressão tende a ser
interpretada – e aqui não reside nenhuma crítica, uma vez que em um
manual o autor deve apenas passar as noções essenciais sobre um
tema – como a impossibilidade de qualquer restrição. Por sua vez ambiguamente parece querer dizer que só as restrições que tendam a abolir. Em suma, não é possível em uma observação sucinta como esta,
compreender a abrangência da expressão. Qual seria o parâmetro?
Esta perplexidade é explicável porque os parâmetros são dados no caso concreto364 . Ou seja, a metodologia aplicável é a tópica.
Não há como a priori sabermos se uma proposta de emenda
ou uma emenda é contrária às cláusulas pétreas. Outrossim, pedimos
desculpas novamente ao mestre José Afonso.
A pergunta que poderia ser colocada é a seguinte: então não
se pode modificar os preceitos protegidos pelas cláusulas pétreas?
Novamente o professor Ingo Wolfgang Sarlet, multicitado neste texto,
nos auxilia:
“Com efeito, de acordo com a lição da doutrina majoritária, as cláusulas pétreas” de uma Constituição não objetivam a proteção dos
dispositivos constitucionais em si, dos princípios neles plasmados,
não podendo estes ser esvaziados por uma reforma constitucional.
Nesse sentido, é possível sustentar que as “cláusulas pétreas” contêm, em verdade, uma proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais. Mera modificação no enunciado não conduz,
portanto, necessariamente, a uma inconstitucionalidade, desde que
preservado o sentido do preceito e não afetada a essência do princípio
objeto da proteção. De qualquer modo, é possível comungar o entendimento de que a proteção imprimida pelas cláusulas pétreas” não implica a absoluta intangibilidade do bem constitucional protegido.” 365
363
SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 61.
SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 356.
365
Idem, p. 358.
364
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294
Tais lições, são tão valiosas, que já é possível responder a questão objeto deste estudo. Se a Emenda Constitucional n.º 28, acabou por
igualar o direito dos trabalhadores rurais e urbanos, fazendo com que
possa existir prescrição, mesmo durante o contrato de trabalho,
anatematizando a imprescritibilidade (durante o contrato de trabalho)
assegurada ao trabalhador rural antes da emenda, sem sombra de dúvida aboliu um direito alcandorado ao nível constitucional, porquanto não
houve apenas uma modificação textual. A norma que se poderia extrair
do texto já não se pode mais. Não se pode mais dizer que não corre a
prescrição enquanto não se extingue o contrato de trabalho, como dantes. Não se pode dizer que os direitos dos trabalhadores rurais são
imprescritíveis durante o contrato de trabalho.
Destarte, a única coisa que se pode afirmar é que houve uma
indevida ingerência no núcleo essencial do direito, que ocasionou uma
ruptura constitucional, pois um direito protegido pelo núcleo imodificável
foi abolido!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão do presente ensaio, podemos falar, cheios de indignação, que a Emenda à Constituição 28, que alterou o regime jurídico da imprescritibilidade para os trabalhadores rurais, é por
completo inconstitucional. E pior, é o prenúncio de uma
desconstitucionalização de vários direitos sociais, principalmente dos
trabalhadores, haja vista o contexto neoliberal que nos circunda.
Aos mais desavisados, este vatícinio “cheira” a apocalipse jurídico, próprio daqueles que não têm o que fazer junto aos foros e especulam a realidade, moldando-a através dos teclados.
Contudo, o que tentamos mostrar é que o fundamento para a
aceitação da famigerada emenda é deveras preocupante, porquanto
aceita uma interpretação literal da Constituição. Interpretação esta que
faz soçobrar a configuração de Estado Social que é, explicitamente
evocada pela Lei Maior. Faz com que os direitos sociais possam ser
restringidos ou eliminados ao talante de uma maioria circunstancial que
está no poder.
Isto é inaceitável!
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295
Mas, temos fé que a Jurisdição haverá de reprimir tal
despautério, firmando nossa crença maior nos primados constitucionais. Pois, caso contrário, quem irá nos garantir o 13º salário?
REFERÊNCIAS
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Consulex, Brasília, vol. 7, ano 1, janeiro de 2001, p. 29.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
MALLET, Estevão. A prescrição na relação de emprego rural após a Emenda Constitucional n.º 28, In Revista LTr., vol. 64, n.º 8, agosto de 2000.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4. Ed.
Coimbra: Almeidina, 1989
CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra ed., 1991.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3.
ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 283.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Significado e alcance das
cláusulas pétreas. In Cadernos de Direito Constitucional e Ciência
Política. n.º 13, 1995.
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, vol. III, 1992.
SARLET, Ingo Wolfgang . A eficácia dos direitos fundamentais. Porta Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 8.
ed. São Paulo: Malheiros, 1992.
VALE, Vander Zambeli. Inconstitucionalidades da proposta de emenda constitucional que altera o regime previdenciário da magistratura. Jornal Síntese n.º 10 - DEZ/97.
===============================================================
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297
AS DIVERSAS FACES DA INCONSTITUCIONALIDADE
DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA LEI FEDERAL N.º 8.429, DE 02 DE JUNHO DE 1992.
KLEBER CAZZARO
MESTRANDO EM DIREITO PARA GESTÃO DAS ORGANIZAÇÕES
PÚBLICAS E PRIVADAS PELA UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
(UNIVALI/SC). ESPECIALISTA EM DIREITO E PROCESSO DO TRABALHO
PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA. ADVOGADO NO
PARANÁ.
RESUMO
O texto aborda a Lei Federal nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa),
ressaltando seus aspectos positivos mas defendendo sua
inconstitucionalidade formal e material. O autor aborda aspectos históricos
sobre o tema, esclarecendo que a improbidade pode manifestar-se nos três
poderes da República, e não única e exclusivamente no Poder Executivo,
defendendo a necessidade urgente de correção do texto legal, para adequálo à Constituição da República.
ABSTRACT
The text is about Federal Act # 8.429/1992 ( Act about Administrative Crime),
pointing to its positive aspects but defending its formal and material unconstitutionality. The author points to Historical aspects about the issue, clarifying
that the crime may happen in the three powers of the Republic, and not only
and exclusively in the Executive Department, defending the urgent necessity of
correction of the legal text , to adequate it to the Federal Constitution.
PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Administrativo; Lei
de Responsabilidade Fiscal.
INTRODUÇÃO
Ainda hoje, em muitos rincões de nosso País, são encontrados
administradores públicos cujas ações em muito se assemelham às de
Nabucodonosor, filho de Nabopolassar e que assumiu o Império
Babilônico em 624 Ac. O primeiro, buscando satisfazer sua Rainha
Meda, saudosa das colinas e florestas de sua pátria, providenciou a
construção de estupendos jardins suspensos, tendo, tal excentricidade,
consumidos anos de labor e gastos incalculáveis. Acabou, com isso,
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
298
erigindo uma das sete maravilhas do mundo antigo.
Tal “maravilha”, de flagrante inutilidade, mutatis mutandis, apresenta grande similitude com certos devaneios atuais, onde o dinheiro público, muitas vezes, acaba sendo consumido por atos de motivação fútil e
imoral por aqueles que o gerenciam. Dão-lhe finalidade dissociada do
interesse público e em total afronta à razoabilidade administrativa. Isso,
na maioria das vezes, leva à flagrante desproporção entre o numerário
dispendido e o benefício auferido pela coletividade, qual seja, nenhum.
O administrador, tal qual o mandatário, não é o senhor dos bens
que administra. Ao contrário: cabe-lhe tão somente praticar os atos de
gestão que beneficiam o verdadeiro titular: O POVO.
Todavia, o homem, definido pelo filósofo grego Aristóteles como
sendo um animal político, precisa do convívio com os seus semelhantes
para a satisfação de suas necessidades.
Com efeito, como forma de proporcionar e ordenar a vida em
sociedade, relatam os historiadores, surgiu o Estado. Entretanto, com a
evolução do tempo e, com ele, a do próprio homem, a figura do Estado
teve desvirtuada inúmeras de suas finalidades. Chegou-se ao absurdo
de, no passado, ter havido confusão entre a coisa pública e o patrimônio
do próprio governante. “Após a Idade Média, durante a época do absolutismo, existia a confusão entre a pessoa do rei e o Estado, de modo que
aquele se sentia e era tratado como o próprio “dono” do poder estatal,
podendo mandar e desmandar, no patrimônio, deste a seu bel prazer.” 366
Hely Lopes Meirelles já destacava que, “o agente administrativo, como ser humano, dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o bem do mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar,
não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá
que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o
honesto e o desonesto.” 367
Valores como a exação, a lisura e a honestidade merecem es366
ROCHA, Renata Veras. O princípio da impessoalidade da administração pública. Revista Jurídica In
Verbis dos Acadêmicos de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal: Sergraf, n.
12, p. 105, jan/dez/2001.
367
ª
ª
MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16 ed. 2 tiragem. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais. p. 79.
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pecial atenção daqueles que lidam com a coisa pública. Necessita-se,
do mesmo modo, que os gestores sejam comprometidos com o social e
com a ética pública.
Não obstante isso, a atitude de certos indivíduos, aliada à ganância, à falta de conceitos éticos e morais firmes e à corrupção a que
alguns foram expostos, tem feito surgir cenários lamentáveis no Brasil.
Apesar de existirem inúmeros mecanismos para coibir a prática de atos contrários à moral, à ética e à sociedade como um todo,
ainda há gestores da coisa pública que insistem em transpô-los para
colocar à frente seus próprios interesses ou de alguém mais próximo,
em detrimento da comunidade ou da administração em favor do povo.
Ao assim agir, além de ferir princípios como o da
impessoalidade e da moralidade, alcança a sociedade em geral, que
se vê prejudicada ou privada de melhorias em suas mais primitivas
necessidades.
Contudo, isso não é o fim. “O próprio organismo social atingido pela inoculação de mortíferas bactérias da corrupção e da perversão humana, reage com as forças mais vivas do seu ser, para preservar os valores mais sagrados da vida e da pessoa humana.”368
Refletindo sobre o tema, tendo à frente questões estampadas
diariamente, pelos mais diversos meios de comunicação existentes no
Brasil e também nas denúncias processuais que são levadas rotineiramente à apreciação do Poder Judiciário, tem-se que “um estado com os
problemas sociais enfrentados pelo Brasil não pode se dar ao luxo de
sustentar agentes estatais que não se devotem à causa pública.” 369
Foi com o objetivo de colocar termo à todas as investidas em
desacordo com a melhor regra aplicável à espécie, que surgiu, há mais
de uma década, a Lei de Improbidade Administrativa (Lei. n.º 8.429/
1992) a qual, aliada a outros diplomas legais, veio para evitar e, quando
isso não for possível, sancionar a prática de atos que atentem contra a
administração pública.
368
MARCÍLIO, Maria Luíza; RAMOS, Ernesto Lopes (coord). Ética: na virada do século: busca do sentido
da vida. São Paulo: LTr, 1997, p. 89.
369
ª
NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 2 ed. rev. amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1999. p. 151.
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300
Porém, apesar de já estar quase debutando, a referida lei encontra-se eivada de sérios defeitos de origem.
Esse pois, é o assunto do presente ensaio.
CONCEITO
É comum encontrar noticiado pela imprensa que este ou aquele
administrador público está respondendo por ato de improbidade administrativa.
Mas, o que significa improbidade administrativa?
Não é difícil de se encontrar textos e pronunciamentos dos
mais diversos, confundindo a improbidade administrativa, com ato ilegal e lesivo ao patrimônio público, os quais são componentes dos requisitos básicos para o manejamento da ação popular 370 .
Apesar disso, o conceito operacional de improbidade administrativa vai muito mais além. Ela tem maior abrangência e alcance do
que as possibilidades previstas para o exercício da ação popular.
De Plácido e Silva define a improbidade como sendo o elemento que “revela a qualidade do homem que não procede bem, por
não ser honesto, que não age indignamente, por não ter caráter; que
não atua com decência, por ser amoral. Improbidade é a qualidade do
ímprobo. E ímprobo é o mau moralmente, é o incorreto, o transgressor
das regras da lei e da moral.” 371
Cabe ainda registrar que “improbidade é o contrário de probidade, que vem do latim probitas, cujo radical probus significa crescer
reto. No sentido moral significa qualidade de probo, integridade de
caráter, honradez. Logo, improbidade é o mesmo que desonestidade,
mau caratismo, falta de pundonor, ato contrário à moral.
No entanto, em termos de direito positivo, a moralidade não se
confunde com probidade. Há entre elas, relação de gênero para a espécie. A primeira compreende o conjunto de valores inerentes à criatura humana que devem reger, em geral, a vida em sociedade. A segunda pressupõe essa retidão de conduta no desempenho de uma atribuição determinada, mas, com zelo e competência.
370
371
Ação Popular – Lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965.
Vocabulário Jurídico. São Paulo: Forense, 1975. V. II, letras D-I. p. 799
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301
Por isso, improbidade administrativa pode significar má qualidade de uma administração não envolvendo, necessariamente, falta de
honradez no trato da coisa pública. Aliás, improbidade vem do latim
improbitas, que significa má qualidade de determinada coisa.
Não é por outra razão que a Constituição impõe a observância
do princípio da eficiência no serviço público, isto é: diligência funcional
do agente público para atingir o resultado máximo, com o mínimo de
tempo despendido.
Assim, improbidade administrativa é gênero de que é espécie
a moralidade administrativa.
Com efeito, podemos conceituar o ato de improbidade administrativa não só como sendo aquele praticado por agente público,
contrário às normas da moral, à lei e aos bons costumes, ou seja,
aquele ato que indica falta de honradez e de retidão de conduta no
modo de proceder perante a Administração Pública direta ou indireta,
nas três esferas políticas, mas também, aquele ato timbrado pela má
qualidade administrativa.” 372
A IMPROBIDADE NOS TRÊS PODERES DA REPÚBLICA
Em se tratando de atos de improbidade, é conveniente ficar
registrado que a administração pública não está firmada tão somente
nos atos do Poder Executivo. Nenhum dos poderes goza de autonomia e independência absoluta.
A tripartição deles por diversos órgãos diferentes e independentes entre si existem para coibir o avanço de um, em detrimento do
outro ou dos outros, dando oportunidade para formar o efetivo sistema
de pesos e contrapesos.
Evidentemente que, para se vislumbrar atividade ímproba, deve
ser analisado o elemento volitivo do agente. Todos os atos emanados
dos agentes públicos e que estejam em desconformidade com os princípios norteadores da atividade administrativa, serão informados por
um elemento subjetivo, o qual veiculará a vontade do mesmo, com a
prática do ato.
372
HARADA, Kiyoshi. (2000). Improbidade Administrativa. http://ww1.prolinkpublicacoes.com.br/publica coes.com.br/publicacoes/doutrinas/doutrina_showdoutrina.asp?tema=2&iddoutrina=577.
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302
À vista disso, havendo vontade livre e consciente de praticar o
ato que viole os princípios que regem a atividade estatal, tem-se o ato
doloso. Ao passo que, será culposo quando o agente não aplicar a
atenção ou diligência exigida na hipótese, deixando de prever os resultados que adviriam de sua conduta por atuar com negligência, imprudência ou imperícia.
Identificada a violação aos princípios administrativos e o elemento volitivo do agente que o praticou, deve-se identificar a atividade
ímproba.
Assim, não obstante sabermos que está afeto ao Executivo a
árdua tarefa de, prioritariamente, executar as leis e administrar os negócios públicos. Ou seja: Governar; Ao Legislativo sobra a competência
para criar normas jurídicas gerais e abstratas, com o objetivo de regular
a vida em sociedade; E, por fim, o Judiciário tem a incumbência de aplicar e administrar as normas vigentes, às quais, registre-se, nem sempre
atendem aos anseios das comunidades a que são impostas.
A improbidade administrativa, nessa linha, pode difundir-se nas três
esferas do Poder, porquanto todos eles praticam atos de administração.
Senão, vejamos:
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NA SEARA DO PODER
EXECUTIVO
A incidência da prática de atos de improbidade é maior na área
do Executivo. Tudo porque ele é o Poder a quem compete, efetivamente,
governar, gerenciar, manusear orçamento e dinheiro público. Abre, com
isso, condições favoráveis à prática de atos ímprobos, que não se traduzem, necessariamente, registre-se, em desvio de verba pública.
Ao Poder Executivo cabe a incumbência, precipuamente, de
executar as leis e administrar os negócios públicos. Isso traduz o ato
de governar.
Consoante a lição de Renato Alessi373 , “a atividade administrativa é desenvolvida sob a concepção de função estatal, a qual deve
ser entendida como o dever do agente em praticar determinados atos,
373
ª
Sistema Istituzionale del Diritto Amnistrativo Italiano. 3 Ed. A. Giuffrè Ed., 1960, p. 2.
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303
valendo-se dos poderes que a lei lhe confere, visando a consecução do
interesse da coletividade”.
Entretanto, como já dito alhures, os atos de improbidade não
estão afetos, exclusivamente ao Poder Executivo.
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NO PODER LEGISLATIVO
Os legisladores, ao contrário que muitos pensam, também
podem cometer atos de improbidade enquanto no exercício da função
pública para que foram eleitos e investidos. Os atos legislativos propriamente ditos podem originar atos de improbidade administrativa.
À guisa de exemplo, podemos citar o caso de uma lei que, de
um lado, previsse demissão em massa de servidores públicos e, de
outro, a contratação de outros tantos. Isso configuraria um ato de
improbidade.
Da mesma forma, qualquer instrumento normativo de caráter
concreto, que beneficie um indivíduo ou um grupo de pessoas em detrimento do interesse público, também seria um ato de improbidade.
Para encerrar, é de se lembrar o exemplo real da Lei n.º 9.996,
de 14 de agosto de 2000, que dispôs sobre a anistia de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral em 1996 e 1998. Como foi amplamente noticiado pelos meios de comunicação, na época, os congressistas legisladores, principais infratores da legislação eleitoral e objetivando satisfazer interesses pessoais, aprovaram o referido diploma, em causa
própria, com a clara intenção de não cumprirem as sanções que lhes
foram aplicadas em razão dos ilícitos eleitorais que haviam praticado
nos pleitos de 1996 e 1998. Tal conduta, imoral ao extremo, apresentou-se, na ocasião, como nítido ato de improbidade administrativa praticado pelos integrantes do Poder Legislativo Nacional.
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PRATICADA
INTEGRANTES DO PODER JUDICIÁRIO
PELOS
Por fim, é de se ter à frente que os membros do Poder Judiciário também não estão imunes de praticar atos de improbidade e, por
isso, serem responsabilizados.
É função precípua do Poder Judiciário, mediante um devido proRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
304
cesso legal e com eficácia vinculativa, dirimir as lides que lhes sejam
submetidas, legitimamente através dos meios processuais colocados à
disposição pela legislação material e processual vigente, seja para dirimir conflitos ou não.
Nesse exercício da função jurisdicional típica, os preclaros
julgadores podem praticar atos de improbidade administrativa. Além
da função jurisdicional, seus membros, no exercício de função administrativa, podem também, efetivamente, incorrer em atos de
improbidade.
No exercício da atividade típica, é inconcebível um conceito
de Justiça dissociado da idéia de imparcialidade. A primeira só se materializará em havendo eqüidistância entre o julgador e as partes, sem
preferências de ordem pessoal, influências de fatores externos no teor
das decisões proferidas ou a omissão deliberada na prática dos atos
jurisdicionais.
Em razão disso, sempre que for constatada a presença de
situações fáticas consubstanciadas do impedimento ou da suspeição
do magistrado, aliadas ao silêncio deste e ulterior prolação de decisão
favorável a uma das partes, ter-se-á um grande indicador da
improbidade do mesmo. Constatadas situações semelhantes, independentemente, das sanções administrativas e penais, resta configurada a
improbidade administrativa.
Por exemplo: Eventual decisão judicial que implicasse inovação legislativa para beneficiar ou agravar alguém, em tese, caracterizaria ato de improbidade.
Outra situação: Magistrado que, frente a um pedido de interdição protocolado há mais de dois anos, deixa de aplicar atos para agilizar
o trâmite do processo; e o interditando, que nos últimos tempos atravessava por crescente estado falimentar de saúde, alcança o óbito, frustrando, assim, a efetiva prestação jurisdicional tanto insistida e reiterada pelos requerentes. O pedido inicial perde o objeto e é extinto sem o
julgamento meritório.
Ainda temos que a prestação jurisdicional é um serviço público essencial, insuprimível e indelegável, constituindo-se em monopólio
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
305
do Poder Judiciário. Essa prestação jurisdicional, feita com desatenção,
sem zelo e competência, em detrimento ao princípio constitucional da
eficiência, constitui ato de improbidade administrativa e nem sempre dá
motivos para o enriquecimento do agente público ou prejuízo ao erário.
Todavia, traduz-se em atividade ímproba.
Nada mais injusto e revoltante ao cidadão não receber ou até
receber do Estado, através de seu órgão monopolista, prestação
jurisdicional,manifestamente, equivocada, incompleta, contrária ao direito, por mero desleixo de um de seus membros.
A LEGISLAÇÃO PARA COIBIÇÃO DOS ATOS DE IMPROBIDADE
A improbidade administrativa tem se tornado elemento que
destrói toda a credibilidade da administração pública. O seu efeito negativo afeta a sociedade e causa descrédito e revolta contra a classe
que dirige àquilo que é público, nas três esferas do Poder. Isso, via de
regra, acaba minando os princípios basilares que estruturam o Estado
Democrático de Direito.
Por isso, a existência, há muito, de normas repressivas tanto
na esfera constitucional, quanto na inconstitucional.
Todavia, antes da vigência da Lei 8.429/92, o ordenamento
jurídico só se preocupava com o enriquecimento ilícito.
HISTÓRICO DA REPRESSÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL.
Aqui, desde já, cabe fazer justiça à atual Constituição Brasileira. Nenhuma carta constitucional anterior à de 1.988 abordou, de modo
tão explícito, quanto ela o fez, ao tratar da improbidade.
As anteriores apenas trataram do enriquecimento ilícito, modalidade mais incisiva da improbidade administrativa.
A parte final do parágrafo 36, do artigo 146 da Constituição
Federal de 1.946, por exemplo, dizia o seguinte: “a lei disporá sobre o
seqüestro e o perdimento de bens, no caso de enriquecimento ilícito,
por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica.”
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
306
Já a Carta de 1.967, alterada pelas emendas 1/69 e 11/78, trazia em seu artigo 153, parágrafo 11, que “a lei disporá sobre o
perdimento de bens por danos causados ao erário, no caso de enriquecimento ilícito, no exercício da função pública.”
Foi a Constituição de 1.988 que inovou. Trouxe, no seu artigo
37, parágrafo 4º, conceito alargado de improbidade administrativa. In
verbis “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade
dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas
em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
Os legisladores brasileiros, antes de produzirem a Lei 8.429/
92, criaram duas leis de importância relevante para coibir atos de
improbidade: A de número 3.164, de 1º de junho de 1.957, chamada
Lei Pitombo-Godoi Ilha, e a de número 3.502, de 21 de dezembro de
1.958, conhecida como Lei Bilac Pinto.
A primeira (Pitombo-Godoi Ilha), sujeitava a seqüestro os bens
do servidor público, adquiridos por “influência ou abuso de cargo ou
função pública, ou de emprego em entidade autárquica”, sem prejuízo
da responsabilidade criminal em que o mesmo tenha ocorrido (art. 1º).
Conferia ao Ministério Público e ao cidadão comum a titularidade para
requerer a medida cautelar competente perante o juízo cível.
A segunda (Lei Bilac Pinto), regulava o seqüestro e o perdimento
de bens de servidor público da administração direta e indireta, nos casos de enriquecimento ilícito, por influência ou abuso de cargo ou função. Ela complementava ainda, a Lei Pitombo-Godoi Ilha, enumerando
algumas hipóteses configuradoras do enriquecimento ilícito.
Todavia, essas duas legislações não tiveram muita aplicação.
Tudo porque tratavam apenas e tão somente do enriquecimento ilícito,
fato de rara incidência, máxime no que diz respeito à dificuldade de
caracterização do mesmo.
Nenhuma delas explicitou o sentido da expressão “influência
ou abuso de cargo, função ou emprego público”.
Foi em 02 de junho de 1.992 que, para regular o artigo 37,
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
307
parágrafo 4º, da atual Constituição Federal, entrou em vigor a Lei n. 8.429,
conhecida como a Lei de Improbidade Administrativa — (Acredito ser
mais coerente chamá-la - Lei contra a improbidade Administrativa).
Ela veio para substituir as duas leis acima citadas.
A LEI N.º 8.429/1992.
Tida como o melhor estatuto para o combate da improbidade
administrativa, a Lei 8.429/92 dispõe sobre as sanções aplicáveis aos
agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de
mandato, cargo, emprego ou função, praticados na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências práticas
para a sua aplicação. Tudo com o objetivo de estabelecer as sanções
cabíveis em forma e gradação, de acordo com o artigo 37, parágrafo 4º
da Constituição Federal, que trouxe norma constitucional em branco,
exigindo regulamentação.
Além de trazer disposições gerais sobre a prática do crime de
improbidade administrativa, a Lei 8.429/1992 aponta os tipos de atos
que são tidos como ímprobos, a saber: atos que importem em enriquecimento ilícito, atos que causem prejuízo ao erário e atos que atentem
contra os princípios da Administração Pública.
Essa mesma lei também dispõe sobre as penas que deverão
ser aplicadas àqueles que praticarem os respectivos atos de
improbidade por ela enumerados, as declarações de bens do agente
que assumir função pública, a forma do procedimento administrativo e
do processo judicial que deverá ser adotada em casos de improbidade
administrativa, além dos prazos de prescrição das respectivas transgressões a ela concernentes.
O crime de Improbidade Administrativa, pela interpretação da
Lei 8.429/92, conforme já colocado no início, pode ser cometido por
“qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa
incorporada ao patrimônio Público ou de entidade para cuja criação ou
custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de 50% do
Patrimônio ou da receita anual” (art. 1º).
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
308
Nessa esteira, entenda-se agente público “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente, ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de
investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nos órgãos estatais acima mencionados” (art. 2o).
Pode cometer também ato de improbidade administrativa, aquele
que, mesmo não sendo funcionário público, participe de crime através de
induzimento, concorra para o crime ou até mesmo se beneficie direta ou indiretamente, dos produtos do crime de corrupção administrativa (art. 3º).
Todavia, apesar da aparente perfeição da Lei 8.429/1.992 que,
diga-se de passagem, vem sendo aplicada há mais de dez anos, ela
encontra-se eivada de vícios de origem que macularam-na desde o
nascimento.
Infelizmente, a atual Lei que combate os atos de Improbidade
Administrativa é formal e, materialmente, inconstitucional.
AS INCONSTITUCIONALIDADES DA LEI DE IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA.
A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E O PRINCÍPIO DA
BICAMERALIDADE.
A atual Constituição Federal diz, em seu artigo 65, que “o projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só
turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se
a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. E o parágrafo
único do mesmo dispositivo constitucional exige que “sendo o projeto
emendado, voltará à Casa iniciadora.” É, pois, o princípio da
bicameralidade.
No caso da Lei 8.429/92, quando da sua confecção, os Legisladores nacionais deixaram de observar o que traz o referido dispositivo constitucional deixando prejudicada e sem qualquer valor a Lei 8.429/92.
Tudo começou com o projeto de lei número 1.446, de 14 de
agosto de 1991. Ele deu origem aos primeiros debates sobre a criação
do que é hoje a Lei 8.429/92.
Aprovada a redação final, após discussão das 302 emendas
que, na época, foram apresentadas à idéia legislativa original, o referiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
309
do projeto foi enviado ao Senado Federal, em 23 de outubro de 1991,
para revisão, cumprindo o que diz o artigo 65 da Constituição Federal.
Acontece que, ao chegar ao Senado da República, o então
Senador Pedro Simon, entendendo insuficiente e lacunoso o projeto
de lei n.º 1.446/91, que havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados, apresentou novo projeto para substituir o primeiro, o qual, por
força disso, acabou alterado (ou emendado).
Em 03 de dezembro de 1.991, o Senado acabou aprovando o
projeto substitutivo apresentado pelo Senador Pedro Simon. Isso implicou não na revisão, mas na rejeição do projeto de lei primitivo, n.º
1.446/1.991, vindo da Câmara dos Deputados.
Por isso, cabia então, cumprir a exigência do parágrafo único,
do artigo 65 da Constituição Federal, que é objetivo ao exigir que “sendo
o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora” para nova apreciação.
Em 04 de dezembro de 1.991, o substitutivo aprovado foi remetido à Câmara dos Deputados para nova análise.
Até aí, tudo certo.
Todavia, na Câmara, a requerimento dos então Deputados
Genebaldo Correia e Eraldo Trindade, o projeto substitutivo, vindo do
Senado, foi retirado de pauta. Em seguida, o mesmo Deputado
Genebaldo, seguidos por mais alguns pares legisladores, apresentaram requerimento para inclusão e aprovação de apenas alguns dos
dispositivos do substitutivo aprovado pelo Senado, para serem incluídos ao projeto n.º 1.446/91, originalmente apresentado pela Câmara
dos Deputados, o qual havia sido rejeitado pelo Senado Federal.
Na Câmara Federal, ao invés de ser apreciado o projeto
substitutivo vindo do Senado Federal, ou seja, cumprir o que manda o
artigo 65 da Constituição Federal, o que aconteceu foi o surgimento de
nova proposta legislativa, unindo partes dos dispositivos do projeto
original, com partes dos dispositivos que constituíram o substitutivo
apresentado pelo Senado Federal. Criou-se pois, uma nova proposta
legislativa, a qual merecia voltar ao Senado para nova análise. Isso não
aconteceu.
Em 5 de maio de 1992, o Plenário da Câmara dos Deputados,
faz votação em turno único, tendo sido apresentados 14 (catorze) destaRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
310
ques no sentido de aproveitar alguns dispositivos do substitutivo do Senado, o qual, por sua vez, foi rejeitado pela Câmara dos Deputados.
Na mesma data, o Plenário aprova a redação final oferecida
pelo então relator, Deputado Nilson Gibson.
Em 15 de maio de 1992, a Mesa da Câmara oficia ao Senado
Federal, comunicando a aprovação das emendas propostas por aquela Casa e a remessa do projeto para sanção presidencial.
Em 18 de maio de 1992, o Senado recebe ofício do 1º Secretário da Câmara comunicando a aprovação da emenda do Senado e o
encaminhamento dos autógrafos para a sanção.
Em 10 de junho de 1992, a Mesa Diretora da Câmara dos
Deputados oficia ao Senado Federal encaminhando autógrafo do projeto sancionado.
Estava selada a inconstitucionalidade da Lei 8.429/92.
A Câmara dos Deputados, fechando os olhos para o artigo 65,
parágrafo único da Constituição Federal, ao invés de devolver para o
Senado Federal, para nova revisão, em respeito ao Princípio da
Bicameralidade, enviou a nova proposta legislativa diretamente para a
sanção presidencial, (sem revisão do Senado Federal) surgindo, então, o que hoje é a Lei número 8.429/1.992.
Nenhum dos dois projetos, quer o 1.446/91 da Câmara dos
Deputados, quer o substitutivo oferecido pelo Senado Federal, foi regularmente discutido em uma Casa, a Casa iniciadora, e revisto pela
outra, a Casa Revisora, conforme exige o artigo 65, e parágrafo único,
da Carta Política Brasileira.
O devido processo constitucional exigido para a elaboração de
leis não foi observado. A Lei que combate os atos de improbidade administrativa é, pois, desde o berço, formalmente inconstitucional.
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL E O PRINCÍPIO
FEDERATIVO.
Não bastasse a inconstitucionalidade formal que prejudica,
desde a origem, a Lei que combate os atos de Improbidade Administrativa no Brasil, ela também está eivada de outro vício inconstitucional
tão grave quanto: o material.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
311
Tudo porque não existe na Constituição Federal, nas disposições que tratam da distribuição de competência entre os entes
federados nenhuma autorização para a União legislar em normas gerais sobre improbidade administrativa.
“Aliás, nem poderia mesmo existir, pois, se se trata de impor
sanções aos funcionários e agentes da administração, a matéria cai
inteiramente na competência legislativa em tema de Direito Administrativo e, portanto, na competência privativa de cada ente político. Em
suma, se o funcionário é federal, somente lei federal pode impor-lhe
sanções pelo seu comportamento irregular; se o funcionário é municipal, somente lei administrativa do Município ao qual está ligado pode
impor-lhe sanções374 ” e, da mesma forma, se o servidor é Estadual, só
pode ser punido por lei Estadual.
A matéria, que nem de longe pode ser desprezada, efetivamente tem sentido, especialmente, porque vem sendo sustentada por
um dos mais renomados administrativistas brasileiros. Toshio Mukai375 .
Defende o referido autor, com propriedade, o seguinte: A Lei
8.429/92, “em sua ementa, dispõe sobre as sanções aplicáveis aos
agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito, no exercício de
mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta,
indireta ou fundacional.
Portanto, a Lei n.º 8.429/92 pretende ser violado o princípio
federativo insculpido no artigo 18 da Carta Magna, imune até mesmo à
emenda constitucional (posto que a cláusula pétrea do art. 60, § 4º, impede a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado) diploma legal de cogência nacional.
E, no caso, inexiste no texto constitucional, dentre as disposições que tratam da distribuição de competências dos entes federados,
mormente no artigo 24, (que dispõe sobre a competência concorrente) nenhuma autorização à União que lhe outorgue competência legislativa
em termos de normas gerais sobre o assunto (improbidade administrativa).
374
A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de
Direito Administrativo. nº 11, p. 720-723, novembro/1999.
375
A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de
Direito Administrativo. nº 11, p. 720. novembro/1999.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
312
No caso da Lei n.º 8.429, ela tem assento no que dispõe o parágrafo 4 , do artigo 37 da Constituição Federal, cujo capítulo onde ele
está inserido, trata da administração pública.
Entender que a lei aí referida seria somente uma lei federal de
caráter nacional, é ofender o princípio federativo, o que nem mesmo
uma proposta de emenda constitucional pode fazer, em razão da cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4º, I, da CF.
É também interpretar o texto constitucional de maneira equivocada, sem respaldo nos processos hermenêuticos, científicos, de
exegese jurídica.
No caso, o caput do artigo 37, dispõe que, “A administração
pública, direta e indireta de cada um dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá (no singular, daí a
expressão interpretativa ‘de cada um dos poderes...’ que utilizamos)
aos princípios... e, também, ao seguinte:...”
Portanto, o caput aponta para cada uma das administrações
que indica, como tendo a obrigação de obedecer (note-se, o texto não
emprega o verbo no plural) aos princípios que menciona e a cada um
dos incisos e parágrafos que, ao depois, o texto comporta. Ou seja, o
caput requer e prevê a presença do regime federativo contemplado na
Constituição (art. 18).
E se é assim, esse comando central, partido do caput, não pode
ser olvidado, e orientará toda e qualquer interpretação que se pretender
dar aos parágrafos e incisos do artigo 37. Portanto, cada uma das administrações citadas deverá observar cada um dos incisos e parágrafos do artigo.”376
“Não está autorizada, no texto, sob pena de ferir o princípio
federativo, a interpretação segundo a qual a lei referida no § 4º, do art.
37, seja uma lei federal, de âmbito nacional, como quer a Lei n. 8.429/
92. Nesse sentido, pois, ela é absoluta e flagrantemente
inconstitucional.”377
º
376
A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de
Direito Administrativo. nº 11, p. 721, novembro/1999.
377
A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de
Direito Administrativo. nº 11, p. 721, novembro/1999.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
313
Com efeito, como se vê, possui guarida a questão em debate,
mormente se tivermos à frente o fato de que “se uma sentença judicial
aplicar as sanções previstas no art. 12 da Lei. n. 8.429/92, a um agente
público estadual ou municipal, será inconstitucional, pois não poderia
aplicar sanção nenhuma a um agente público municipal...378 ” ou estadual.
Para arrematar, além disso, tenha-se à frente que o § 4º, do artigo 37 da Constituição já indicou quais são as únicas espécies de sanções a serem aplicadas, na hipótese de improbidade administrativa.
Portanto, “pelo princípio da legalidade constitucional, ao legislador competia tão só disciplinar a forma e a gradação das penas previstas no
texto constitucional; quando acresceu às referidas penas mais três, o
fez inconstitucionalmente.”379
Eis, pois, mais uma face da inconstitucionalidade da Lei 8.429/1992.
CONCLUSÕES
Como visto, houve boa vontade do legislador quando criou a
Lei 8.429/92, para combater a prática de atos de improbidade administrativa. Todavia deixou ele de observar a melhor técnica processual
para a confecção da mesma.
Os atos de improbidade que, como mencionado anteriormente, podem ser praticados não só na esfera do Poder Executivo, onde é
mais evidente, mas também pelos membros dos Poderes Executivo e
Judiciário, podem restar impunes.
Os legisladores nacionais, quando da confecção da Lei 8.429/
92, deixaram de observar princípio básico exigido pela Constituição
Federal, constituído pelo da bicameralidade. Fato grave que por certo
não escapará da apreciação do Supremo Tribunal Federal.
Além disso, somado à inconstitucionalidade formal escancarada que está a prejudicar totalmente a lei 8.429/92, ela também não pode
ser aplicada, genericamente, para todos os que estão vinculados aos
Poderes da União, Distrito Federal, Estados e Municípios. Cada qual
378
A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de
Direito Administrativo. nº 11, p. 722. novembro/1999.
379
A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de
Direito Administrativo. nº 11, p. 722, novembro/1999.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
314
deve ter a própria lei que regulamente suas respectivas transgressões.
É hora, pois, de ser repensada a situação e, com urgência, reconhecidos os diversos erros e imperfeições que acompanham a Lei n. 8.429/
92. Há mais de uma década, pois, “como já afirmaram, improbitas foi a
atividade legiferante na redação da Lei n. 8.429.92”. 380
===============================================================
380
FERREIRA, Antônio Carlos. Um passeio de avião e o questionamento da referida lei. Revista Jurídica
Consulex. Brasília: Consulex, nº 147: 19-20, 2003.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
315
A INCONSTITUCIONALIDADE DO FORO
PRIVILEGIADO PARA EX-AUTORIDADES EM AÇÕES
CIVIS DE IMPROBIDADE: UM RETROCESSO NA
CONSTRUÇÃO DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
JOÃO CONRADO BLUM JÚNIOR
BACHAREL EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA
GROSSA
RESUMO
O texto defende a inconstitucionalidade formal e material da Lei no 10.628/
2002, a qual está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal, por afrontar
a Constituição da República e contrariar o interesse público. Referida norma
garante foro privilegiado para ex-autoridades, mesmo cessado o mandato ou
função pública, para os casos de ações civis públicas por atos de improbidade
administrativa. O autor assinala que a lei traz retrocesso ao sistema
processual penal do país.
ABSTRACT
The text defends the formal and material unconstitutionality of the Act #
10.628/2002, which is being discussed in the Supreme Court of Brazil, because it confronts the Federal Constitution and the public interest. This act
guarantees privelegious tenure to ex authorities , even being canceled the
public function,fot the cases of public civil actions for administrative crime.
The author says that the law brings a retrocess to the penal processual
system of the country.
PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Administrativo;
Direito Processual; foro privilegiado; improbidade administrativa.
INTRODUÇÃO
Este estudo buscará desenvolver os principais pontos acerca
de famigerado tema do foro privilegiado1 para ex-autoridades, ou seja,
ainda que já tenha cessado o mandato ou função pública e, outrossim,
para as ações civis públicas por ato de improbidade.
A Lei no 10.628, de 24 de dezembro de 2002, objeto da análise,
1
A lei que embasa este trabalho traz a expressão “competência especial por prerrogativa de função”,
a qual tão-somente dissimula o seu verdadeiro intuito, a instituição de um privilégio.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
316
acrescentou dois parágrafos ao artigo 84, do Código de Processo Penal, como se transcreve a seguir:
Art. 84. (...)
§ 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa
a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito
ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício
da função pública.
§ 2o A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho
de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na
hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o. [sem grifo no original]
A constitucionalidade dessa lei está sendo questionada no
Supremo Tribunal Federal, mediante a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) no 2.797, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), cuja medida liminar
foi indeferida 2 pelo Ministro relator Sepúlveda Pertence, em 07 de janeiro de 2003. O controle difuso 3 de constitucionalidade da aludida lei
está também sendo realizado pelos juízes singulares e tribunais estaduais e federais em todo o país, provocado, principalmente, pelo Ministério Público, órgão diretamente encarregado na defesa da sociedade.
Analisar-se-ão, então, as constitucionalidades formal e material daquela lei, sob a ótica da efetivação de uma construção do direito
processual penal brasileiro em conformidade com as regras e princípios estabelecidos pela Magna Carta de 1988.
CONCEITO DE FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E A
DIFERENCIAÇÃO ENTRE PRERROGATIVA E PRIVILÉGIO
O foro por prerrogativa de função é uma das divisões de com2
Infelizmente, como se verá adiante.
o
Vejam-se: (Entendimentos pela inconstitucionalidade) HC n 137.187-1, Órgão Especial do TJ/PR, Rel.
o
Des. LEONARDO LUSTOSA, decisão por maioria de 04/04/2003; Agravo de Instrumento n 313.238-511,
9ª Câmara de Direito Público do TJ/SP, Rel. Des. ANTONIO RULLI, decisão de janeiro de 2003; (Entendio
a
a
mento pela constitucionalidade) HC n 2003.04.01.028906-0, 8 Turma do TRF da 4 Região, Rel. Des. Fed.
LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, decisão unânime de 20/08/2003.
4
Expressão mencionada por Fernando da Costa TOURINHO FILHO. Processo Penal. v. 2., 8. ed., São
Paulo, Saraiva, 1986, p. 103.
3
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
317
petência existentes no direito processual penal pátrio, também denominado de competência ratione personae (em razão da pessoa). Essa
denominação, no entanto, não significa que o indivíduo terá a prerrogativa de foro por se tratar daquela pessoa específica, não é uma competência personalíssima, decorrente de “atributos de nascimento”, 4
mas sim, em virtude da importância do cargo ou função que exerce. Dessa maneira, não obstante ser chamada de ratione personae, não existe
por causa do indivíduo, estritamente, considerado, advindo porém, como
afirmado, da relevância do cargo ocupado pelo agente público que está
sendo processado. 5
As hipóteses de foro por prerrogativa de função são encontra6
das nos artigos 29 (inciso X), 102 (inciso I, alíneas b “e” c), 105
(inciso I, alínea a) e 108 (inciso I, alínea a) da Constituição Federal,
nos casos, respectivamente, de Prefeitos Municipais, Presidente da
República, membros do Congresso Nacional, Governadores dos Estados e do Distrito Federal, juízes federais etc, somente aplicáveis a
crimes comuns e de responsabilidade, não para ações civis. 7
Cabe assinalar que a legislação infraconstitucional não pode,
como será mais bem analisado abaixo, alterar o rol de competências
dos tribunais estaduais ou superiores, pois apenas o poder constituinte derivado, por meio de emenda constitucional em âmbito estadual ou
federal, poderia fazê-lo, não havendo qualquer possibilidade pelo legislador ordinário.
Destarte, depois de elaborado um conceito do que se entende
por foro por prerrogativa de função, passa-se à diferenciação entre prerrogativa e privilégio, palavras comumente empregadas como sinônimas,
5
No tocante à competência por prerrogativa de função, talvez a única justificativa que se adéque ao
interesse público para a existência do instituto seja a impossibilidade do agente público (federal, especificamente) sofrer processos em diversos locais do país, o que prejudicaria o bom exercício da função,
devido à necessidade de deslocamento constante deste para se defender. Assim, para garantir que a
função fosse bem desempenhada, face à sua relevância, concentrar-se-iam em um único foro os
processos criminais. Há autores, porém, que divergem desse posicionamento.
6
Não se pode olvidar que as Constituições estaduais definem a competência no que diz respeito aos
o
tribunais respectivos, já que a Constituição da República assim determina (artigo 125, caput e § 1 ).
7
Exceto quando se tratarem de writs constitucionais (Mandado de Segurança, Habeas Data, Mandado
de Injunção) que, dadas as suas peculiaridades, são impetrados diretamente nos tribunais superiores
(STF, STJ, Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça).
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
318
o que é um equívoco. 8
O privilégio deve ser encarado como uma vantagem oferecida
a um dado indivíduo, uma regalia pessoal, uma espécie de benefício
concedido àquela determinada pessoa. Diferindo, desse modo, do conceito de prerrogativa, que tem na sua essência a proeminência da função exercida pela pessoa, sendo que todos os indivíduos que passarem pelo respectivo cargo, terão, in casu, a prerrogativa de foro,
logicamente, enquanto a Constituição, estadual ou federal, mantiver
essa regra.
Na mesma linha de raciocínio, o jurista Julio Fabbrini Mirabete
faz assertiva esclarecedora:
Na realidade não pode haver ‘privilégio’ às pessoas, pois a lei não
pode ter preferências, mas é necessário que leve em conta a dignidade dos cargos e funções públicas. Há pessoas que exercem cargos e funções de especial relevância para o Estado e em atenção a
eles é necessário que sejam processados por órgãos superiores, de
instância mais elevada. (MIRABETE, Processo Penal, 2001, p. 186.)
ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI NO 10.628/2002 –
CONTEXTO HISTÓRICO
A questão que se está aferindo foi, em passado recente, amplamente debatida pela doutrina e pela jurisprudência, sendo que, após
reiteradas decisões, a Suprema Corte brasileira optou, de maneira
acertada, por cancelar9 a Súmula no 39410 , que dispunha sobre a
mantença do foro privilegiado para ex-ocupantes de cargos públicos,
nos mesmos moldes em que a Lei de 2002 visa estabelecer.
Diante disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
parecia firmada no sentido de entender inconstitucional o “foro por prerrogativa de função” para ex-autoridades, posto que um autêntico privilé8
Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p. 102-104. Sempre que se mencionar
neste estudo as expressões FORO PRIVILEGIADO ou “FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO”, terão sentido de privilégio.
9
o
Ocorreu no Inquérito n 687, julgado em 25/08/1999, em que o Plenário do STF acolheu, por unanimidade, a questão de ordem suscitada pelo Ministro Relator SYDNEY SANCHES, devido à incompatibilidade
formal e material da súmula com Constituição de 1988.
10
“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa
de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.”
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
319
gio. Todavia, houve a edição da Lei no 10.628/2002, que ressuscitou o
foro privilegiado e, absurdamente, foi além para instituí-lo em favor de
agentes públicos processados com fulcro na Lei de Improbidade Administrativa, a qual tem natureza civil11 e não criminal.
A fim de defender a sociedade desses privilégios insanos criados pelos parlamentares federais, que cada vez mais atuam para si,
afrontando a Magna Carta de 1988, a CONAMP ajuizou a ADI no 2797,
conforme já referido, porém, o Pretório Excelso, estranhamente, 12 não
deferiu a medida liminar. O relator afiançou que a remessa de inúmeros processos aos tribunais, em razão do foro privilegiado, e a conseqüente paralisação de seu processamento, não é razão suficiente para
se suspender a eficácia da lei impugnada, “se não é outra a medida
que está a recomendar-se”, nas palavras daquele. O próprio STF, nesse caso, ajuda para chancelar a impunidade de agentes políticos atuais ou do passado, pois agindo como “legítimo” guardião destes, literalmente, dilacera o texto constitucional, cuja integridade tem o dever de
resguardar.
Esse é o contexto hodierno, em que as leis e as interpretações
constitucionais mudam na medida dos “ventos” ou, ao sabor dos detentores do poder na nação.
A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL
A lei que motivou este estudo trouxe à baila dois aspectos a
serem aferidos no tocante à sua constitucionalidade formal, um
concerne à impossibilidade do legislador ordinário aumentar o rol de
hipóteses de foro por prerrogativa de função estabelecidas pela Constituição Federal e o outro se refere à violação ao princípio constitucional
da separação entre os Poderes, consignado no artigo 2o, da Lei Maior.
A Constituição da República, em nenhum momento, estabelece
competência por prerrogativa de função para ex-agentes públicos, bem
11
o
Nesse sentido, por exemplo: (natureza civil) Reclamação n 591, Corte Especial do STJ, Rel. Min.
o
a
NILSON NAVES, decisão por maioria de 01/12/1999; Acórdão n 10.258, 5 Câmara Cível do TJ/PR, Rel.
Juiz Conv. JOAO DOMINGOS KUSTER PUPPI, decisão por maioria de 01/04/2003; (natureza administrao
tiva) Reclamação n 780, Corte Especial do STJ, Rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, decisão por maioria
de 07/11/2001.
12
o
Haja vista o entendimento consolidado com o cancelamento da Súmula n 394.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
320
como não o faz para hipótese de ação civil pública por ato de
improbidade, já que essa se constitui em ação civil, conforme se infere
das simples leituras daquela13 e da Lei no 8.429/9214 .
Os dispositivos constitucionais referentes ao foro por prerrogativa de função (artigos 29, X; 102, I, b “e” c; 105, I, a; 108, I, a; “e” 125, §
1º) contêm rol exaustivo15 de hipóteses de competências16 de cada tribunal, sendo passível de alteração, consoante ao que foi antes asseverado, somente através de emenda constitucional.
O foro privilegiado para ex-autoridades, “reconduzido” ao nosso ordenamento jurídico pela Lei no 10.628/2002, afigura-se desprovido de constitucionalidade formal, visto que esta dispôs sobre matéria
deliberável apenas pelo poder constituinte derivado, nos termos do
artigo 60, da Magna Carta, restando-se afrontadas, dessa maneira, as
normas constitucionais supracitadas. Nessa direção foi a manifestação do ilustre relator quando da análise do inquérito que possibilitou o
cancelamento da Súmula no 394, do Supremo Tribunal Federal:
Continua a norma constitucional não contemplando os ex-membros
do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem
os ex-Ministros de Estado (art. 102, I, “b” e “c”). Em outras palavras,
a Constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro
às autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato. (Inquérito no 687, Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, decisão unânime
de 25/08/1999) [sem grifo no original]
O outro aspecto, por sua vez, que é a violação ao princípio constitucional da separação entre os Poderes, torna-se patente, pois o legislador ordinário, ao editar a Lei aludida, agiu indevidamente como intérprete da Magna Carta vigente, “estabelecendo” interpretação diversa
daquela adotada pela Suprema Corte ao cancelar a Súmula acima men13
o
Artigo 37, § 4 (“...,sem prejuízo da ação penal cabível.”)
Artigo 12, caput (“Independentemente das sanções penais,...”)
15
o
Nesse sentido: HC n 22.342, Corte Especial do STJ, Rel. Min. FELIX FISCHER, decisão por maioria de
18/09/2002.
16
o
É de direito estrito: Ag. Reg. na Petição n 693, Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. ILMAR GALVÃO,
decisão por maioria de 12/08/1993.
14
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
321
cionada. Essa interpretação do STF tem força de norma constitucional,
como bem assinalou o Desembargador do Paraná Leonardo Lustosa:
Com efeito, o art. 102 da CF estabelece que ‘compete ao STF,
precipuamente, a guarda da Constituição’. Dessa forma, exercendo sua função jurisdicional, o STF interpreta a Carta Maior e
estabelece seu alcance. O resultado da interpretação de norma
constitucional tem, por óbvio, força normativa de Constituição,
pelo que não pode ser alterado pelas vias ordinárias. (HC no
137.187-1, Órgão Especial do TJ/PR, Rel. Des. LEONARDO
LUSTOSA, decisão por maioria de 04/04/2003) [sem grifo no original]
Então, apenas o próprio Poder Judiciário, por intermédio de seu
órgão incumbido, precipuamente, da guarda da Constituição, poderia
adotar exegese de norma constitucional acerca de sua competência originária e dos demais tribunais do país,17 sendo que, se o fizer, a respectiva interpretação torna-se parte integrante do texto daquela.
Dessa maneira, houve usurpação pelo Poder Legislativo de função primordial e específica do Judiciário, visto que aquele se imiscuiu
no entendimento pacificado deste sobre a inconstitucionalidade do foro
privilegiado para ex-autoridades, atacando diretamente, em virtude disso, o texto18 constitucional, gerando abalo na harmonia entre os Poderes e, por consectário, maculando o “sistema de freios e contrapesos”
da República brasileira. Em face disso, fica bem demonstrada a violação ao princípio da separação entre os Poderes e, conseqüentemente,
a inconstitucionalidade formal da Lei no 10.628/2002.
A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Sem prejuízo da acima referida inconstitucionalidade formal
da Lei em questão, esta ainda padece de vícios materiais de
constitucionalidade.
A instituição do foro privilegiado para ex-autoridades ou “foro por
prerrogativa de ex-função”19 fere o princípio da isonomia, já que aquelas
17
De acordo com o entendimento exteriorizado por GERALDO BRINDEIRO, então Procurador-Geral da
o
República, em seu parecer na ADI n 2.797.
18
A interpretação pacificada de norma constitucional adere à própria magnitude desta.
19
Expressão usada por Hugo Nigro MAZZILLI. O Foro por prerrogativa de Função e a Lei n. 10.628/02.
Disponível em: http://www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm Acesso em: 07 de setembro de 2003.
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322
voltam à condição de pessoas comuns, não havendo razão plausível para
continuarem sendo processadas em tribunais superiores.
Os ex-ocupantes de cargos públicos, obviamente, não possuem mais a função que anteriormente exerciam, sendo assim, o único
fundamento para o foro por prerrogativa de função, ou seja, a proteção
ao bom exercício do cargo, desaparece. No momento em que o legislador busca formas de beneficiar, inescrupulosamente, ex-agentes do poder público, cria um privilégio inaceitável em um Estado Democrático
de Direito, fazendo sucumbir a igualdade material, haja vista a falta completa de interesse público nessa situação. O único interesse que pode
existir no foro privilegiado para ex-autoridades é o pessoal, isto é, interesses de particulares que, sob a proteção de um mandato ou cargo
público qualquer, alçam-se sem hesitação sobre os interesses maiores
da nação. A jurisprudência do STF, pelo menos até o indeferimento da
liminar na ADI no 2.797, compartilhava dessa idéia:
Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a
prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de
exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema,
como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se
encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça
no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para exexercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de
foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser
interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os exexercentes de tais cargos ou mandatos. (Inquérito no 687, Tribunal
Pleno do STF, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, decisão unânime de
25/08/1999)
Destarte, a Lei sob análise viola o princípio da igualdade, consagrado no caput do artigo 5o da Constituição Federal de 1988.
Além disso, há quem defenda que Lei no 10.628/2002 viola o
princípio da moralidade administrativa, enumerado no caput do artigo
37 da Constituição. A motivação dessa afirmativa estaria na possibilidade clara de paralisação do trâmite das ações de improbidade admiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
323
nistrativa, ante o acúmulo de trabalho dos tribunais superiores, fazendo
com que a impunidade política voltasse 20 à marca dos 100%.
Notadamente, uma das intenções da Lei sob destaque é a retirada da
eficácia de outra, a Lei no 8.429/92, que, mesmo sofrendo bombardeios21 de grupos políticos por todos os lados, vem sendo aplicada com
rigor aos ímprobos.
Pode-se ponderar que essa tese da imoralidade é perfeitamente
plausível, constituindo-se, por conseguinte, em mais uma razão para se
reconhecer a inconstitucionalidade material da Lei no 10.628/2002.
O RETROCESSO NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL
PENAL À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Após o advento da Magna Carta de 1988, a doutrina, a jurisprudência e, em menor grau (por incrível que pareça), a legislação,
vinham, nesses 15 anos, construindo um sistema de processo penal
mais condizente com o novo paradigma de justiça e respeito à dignidade humana introduzidos por aquela, porém, a edição da Lei no 10.628/
2002 afigura-se em um enorme retrocesso.
Os “criadores” e beneficiados por esta Lei certamente farão o
que for necessário para mantê-la vigente, não obstante a evidente
inconstitucionalidade, tanto formal quanto material, da mesma. Diante
disso, o prélio pela aplicação da Constituição nunca pode parar.
O princípio da Supremacia da Constituição, elementar 22 em
nossa ordem jurídica, sempre é lembrado como inafastável e imperativo, havendo, sem ressaibos de dúvidas, unanimidade com relação a
essa afirmação. Contudo, muitas vezes esse discurso não é praticado
20
Lamentavelmente, os poucos políticos que se “consegue” processar, com sustentáculo na Lei de
Improbidade Administrativa, seriam alçados à condição de beneficiários do foro privilegiado, dificultando-se incisivamente a eventual punição.
21
o
Exemplo: Reclamação n 2.138-6, do Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. NELSON JOBIM, que deferiu a
liminar em 11/09/2002 para suspender a eficácia da sentença condenatória proferida na ação de
improbidade administrativa promovida pelo Ministério Público Federal contra o então Ministro-Chefe da
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Ronaldo Mota Sardemberg, em razão
do uso particular de aviões da FAB e do hotel de trânsito da aeronáutica. Conforme consulta realizada
(www.stf.gov.br), este processo encontra-se com vista ao Ministro Carlos Velloso (16/09/2003).
22
Nessa esteira a ensinança de Luís Roberto BARROSO: “Por força da supremacia constitucional,
nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental.” (Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora, 4. ed., 2. tir., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 158)
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
324
no dia-a-dia, seja forense ou parlamentar, levando o legislador, despido
de um senso de constitucionalidade sobre as normas que elabora, a
fabricar verdadeiras excrescências legislativas, como a que se analisa
neste trabalho.
Em decorrência disso, faz-se mister o uso dos instrumentos legítimos de defesa da Constituição da República, como já está ocorrendo de forma difusa e concentrada, para que as incoerências constitucionais da Lei não permaneçam incólumes. Vislumbra-se, perante
a luta que a sociedade23 já intenta pela negativa legítima de vigência à
referida Lei, a retomada do viés constitucional na construção do processo penal pátrio.
CONCLUSÃO
A constatada inconstitucionalidade da Lei no 10.628/2002, não
pode deixar de ser reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, que,
se tiver outro entendimento, inevitavelmente, consagrará uma afronta ao
interesse público e, o que é pior, literalmente rasgará a Constituição da
República. Mas essa violação se configurará, não somente em referência às normas constitucionais mencionadas nesse estudo, pois haverá
também claro devassamento ao artigo 102, da Magna Carta, que determina a função inarredável, portanto por excelência, daquela Corte: a
guarda da Constituição.
Assim sendo, forçosamente deve-se admitir que a Lei do foro
privilegiado trouxe um retrocesso ao sistema processual penal do país.
Todavia, acaba por gerar uma reflexão acerca da construção daquele,
à luz dos princípios constitucionais norteadores, o qual se encontra
diuturnamente, sofrendo achaques de leis e entendimentos
jurisprudenciais.
É nesse momento histórico de desrespeito à imperatividade das
normas e princípios constitucionais que a utilização dos meios processuais e sociais existentes fazem-se extremamente necessários ao controle dos atos estatais, como as leis, cuja motivação, nem de perto, nem
de longe, atendem aos anseios do corpo social.
23
Principalmente pelo seu maior representante na pugna pela justiça: o Ministério Público.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
325
Ante o que foi analisado, pode-se asseverar que ainda há muito
a se construir no direito processual penal brasileiro, haja vista contar-se
apenas com 15 anos de vigência da Magna Carta, constituindo-se como
importante contribuição do intérprete a visão no sentido de não afastar a
supremacia desta, formando um sistema que corresponda efetivamente
aos mandamentos constitucionais.
REFERÊNCIAS
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transformadora. 4. ed. 2. tir. São Paulo, Saraiva, 2002.
LIMA, Fernando Machado da Silva. Projeto de foro privilegiado
para improbidade administrativa: lama à vista ! Disponível em:
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=367 Acesso em: 05 de
setembro de 2003.
MARCÃO, Renato Flávio. A inconstitucionalidade do § 2º do novo
artigo 84 do CPP: Ministério Público e Tribunal de Justiça de
São Paulo firmam posições sobre prerrogativa de função nas
ações de improbidade administrativa. Disponível em: http://
www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3942 Acesso em: 06 de setembro de 2003.
________. Foro especial por prerrogativa de função: o novo art.
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meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio
público e outros interesses. 15. ed. São Paulo, Saraiva, 2002.
________. O Foro por prerrogativa de Função e a Lei n. 10.628/
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MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 11. ed. São Paulo, Atlas, 2001.
PINHEIRO, Adelson Antônio. O foro por prerrogativa de função
após a cessação do exercício da função pública e a
constitucionalidade da Lei nº 10.628/2002. Disponível em: http://
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326
www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3843 Acesso em: 12 de setembro de 2003.
PRAZERES, José Ribamar Sanches. Competência por prerrogativa de função para ex-mandatários: uma decisão histórica
do STF. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/
texto.asp?id=847 Acesso em: 13 de setembro de 2003.
SILVA, Danni Sales. Lei n o 10.628/02: um privilégio
inconstitucional ataca o controle da improbidade administrativa.
Disponível
em:
http://www1.jus.com.br/doutrina/
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TOURINHO, Rita Andréa Rehem Almeida. Foro por prerrogativa
de função e a improbidade administrativa. Disponível em: http://
www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3984 Acesso em: 06 de setembro de 2003.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. 2. 8.
ed. São Paulo, Saraiva, 1986.
===============================================================
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
327
DEMOCRACIA E SISTEMA REPRESENTATIVO: A
QUESTÃO DOS PARTIDOS
FABIO ANIBAL GOIRIS
PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA,
MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO GRANDE DO SUL
Governador do Rio Grande do Norte entre 1956 e 1961, Dinarte Mariz, folclórico político
do nordeste, fazia inúmeras promessas em tempo de eleição. Querendo agradar um
aliado, Dinarte, então candidato a governador, trouxe a notícia de que havia um cargo
de professor de grego vago na universidade do Estado.
O correligionário retrucou:
- Mas não sei nada de grego.
Dinarte explicou:
- Não há problema. Ninguém estuda mais grego, mesmo.
Contudo, no primeiro dia de aula, havia três alunos na classe.
O “professor” enrolou e, no intervalo, pediu socorro ao governador.
Dinarte, já eleito pelo povo, não se apertou. Chamou o chefe de polícia e determinou:
- “Há uns subversivos disfarçados de estudantes de grego da universidade. Prenda-os
todos”.
Contraponto, Folha de S. Paulo, 15 de abril de 1998.
RESUMO
O texto trata do surgimento e do desenvolvimento dos partidos políticos,
como uma resposta à viabilidade da participação da sociedade no processo
político. O autor, sob uma perspectiva de construção de uma democracia
que atenda ao padrão liberal-democrático, produz uma análise dos partidos
políticos, expondo que, no Brasil, do ponto de vista da representação, existem
três tipos de partidos politicos: o partido clientelista, o partido populista e o
partido de vanguarda.
ABSTRACT
The text is about the birth and development of political parties, as an answer
to the viability of the participation of the society in the political procedure.
The author, under the perspective of construction of democracy in a liberal/
demovratic model, produces an analisis of political parties, saying that, in
Brazil, from the point of view of representation, there are three kinds of political parties : the client party, popular party and modern party.
PALAVRAS CHAVE - Ciência Política; democracia; partidos políticos.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
328
INTRODUÇÃO
Uma das modificações de maior relevância no universo da política deu-se quando as Nações sentiram a necessidade de serem governadas por meio de representantes legítimos. Decorreria daí uma das
maiores dificuldades a ser enfrentada pela sociedade civil em razão da
responsabilidade de escolher seus governantes.
O meio mais eficaz encontrado para tornar viável a participação
da sociedade no processo político foi a institucionalização e a legitimação
de partidos políticos, tidos, então, como verdadeiras caixas de ressonância dos interesses populares e, de onde emergem as lutas de interesses e o confronto de idéias ou de ideologias opostas. Com efeito, a
concepção de partido de oposição ou simplesmente de oposição política passaria a significar que, numa democracia, os adversários do governo não são inimigos do Estado e de que seus opositores não são
traidores ou subversivos.
Forjava-se assim o regime representativo, cuja origem pode ser
encontrada na Inglaterra, onde este se formou, lentamente, como fruto
de circunstâncias históricas peculiares. A partir da evolução política do
sistema feudal, a monarquia inglesa passava de absoluta e ilimitada a
constitucional e limitada, num processo de avanço institucional longo e
acidentado, no qual o vencedor ora era o rei, ora o Parlamento. Iniciavase por essa via a organização do sistema de representação política.
O governo de representantes eleito pelo corpo de cidadãos,
supõe sempre, na nação, a presença de uma personalidade moral
superior e diversa da dos demais indivíduos. Assim, soberania nacional, vontade geral, o eu comum de Rousseau, são os substratos doutrinários da representação. Nesse sentido, os poderes executivo e
legislativo são os representantes temporários, os executores eleitos
da vontade geral (Azambuja, 1987)381 .
Nessa dimensão, insere-se o tema da consolidação democrática que, do ponto de vista, estritamente político, significa o afastamento
das ideologias autoritárias e a aproximação da moderna política parla381
Azambuja, D. Introdução à Ciência Política. Rio de Janeiro: Globo, 1987.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
329
mentar, com a plena legitimação do sistema representativo Lamounier
(1991) 382 . Significa, também, a efetiva criação de anticorpos
institucionais contra o retrocesso populista-plebiscitário (a sedução das
chamadas “lideranças carismáticas”) e a ilusão da democracia direta –
ainda que ambos continuem existindo nas modernas sociedades de
massa. Do ponto de vista socio-econômico, os correlatos necessários –
dentro do processo de consolidação da democracia por via da
institucionalização do sistema representativo – são a progressiva elevação
dos níveis de bem-estar social e a redução das desigualdades de renda.
É nesse último sentido que adquire importância a assertiva de
Bobbio (1986)383 , de que hoje o processo de democratização consiste
não tanto na passagem da democracia representativa para a democracia direta, mas, sobretudo, na passagem da democracia política, em
sentido estrito, para a democracia social; ou melhor, consiste na extensão do poder ascendente, que até agora havia ocupado quase que exclusivamente o campo da grande sociedade política, para o âmbito da
sociedade civil nas sua várias articulações: da escola à fábrica.
Tendo estas observações como pano de fundo, o presente trabalho irá focalizar alguns aspectos que dizem respeito ao sistema representativo, particularmente no que concerne aos partidos políticos,
considerando a importância destes – sua suposta ou real eficácia –
como elemento indispensável de consolidação de uma democracia nos
moldes propostos pelo liberalismo.
DEMOCRACIA E SISTEMA REPRESENTATIVO: A QUESTÃO DOS
PARTIDOS
Na América Latina, particularmente no período contemporâneo, o descompasso gerado entre política e economia, vem desafiando a consolidação do regime democrático. A dinâmica das sociedades
dos anos 80 e 90 explicitou o descompasso entre o desenvolvimento
econômico, a diversificação da estrutura social, a rápida urbanização e
a incapacidade das instituições representativas e do próprio Estado de
382
383
Lamounier, B. Depois da transição. Democracia e eleições no governo Collor. São Paulo: Loyola, 1991.
Bobbio, N. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Paz e Terra, , 1986.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
330
responder as demandas sociais. Trindade (1991)384 assinala que essa
situação manifestou-se de forma mais aguda no “lento e gradual” ritmo
da transição política brasileira, onde, apesar da modernização da economia e da sociedade ter atingido, em alguns níveis, padrões de desenvolvimento “pós-moderno”, o modelo político continua ainda amplamente tributário do liberalismo oligárquico, excludente e pré-democrático,
gestado na sociedade agrária.
A coexistência entre o arcaísmo da política e o modernismo de
setores significativos da economia introduz uma dimensão complicadora
no processo de transição do autoritarismo para a democracia, na medida em que a fragmentação social e a multiplicação dos particularismos
de uma situação pós-moderna escapam à racionalidade do “Estado
societal”. Entretanto, é na dimensão pós-moderna da sociedade brasileira que, paradoxalmente, se encontra o germe capaz de romper com
o marasmo da transição. A ruptura do padrão clássico da política brasileira, que coloca ainda no horizonte o dilema do neoconservadorismo
ou do populismo, poderia provocar, diante da baixa legitimidade dos
partidos políticos frente à frágil articulação intra-societal, um salto qualitativo em direção a uma democracia política e social, possibilitando o
controle democrático do dito leviatã estatal. Este é o principal problema
da construção democrática na América Latina.
Nesta perspectiva, o impasse da transição política latino-americana, excluindo-se a via socialista de consecução da democracia,
decorre de um grande desafio da década dos noventa, qual seja, o da
construção de uma democracia que atenda ao padrão liberal-democrático e consiga incorporar, efetivamente, na arena política, os partidos, os
sindicatos e os movimentos sociais.
Benevides (1991),,385 assinala que as críticas mais moderadas
à representação parlamentar apontam os vícios decorrentes de uma
tradição oligárquica incontestável (o que leva à extrema “privatização”
da política) e de defeitos inerentes à legislação, como a sub-representação dos Estados mais populosos e desenvolvidos. As críticas mais
384
385
Trindade, H. América Latina. Eleições e governabilidade democrática.
Benevides, M.V. A cidadania ativa. Referendo, plebiscito e iniciativa popular, São Paulo: Ática, 1991, p.37.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
331
radicais apontam para o que se convencionou chamar de verdadeiro
“estelionato político”, decorrente da perversão da democratização. Em
ambos os casos, discute-se o papel do Estado, dos partidos políticos
(detentores do monopólio da representação no Legislativo) e da legislação eleitoral.
A despeito disso, não custa lembrar algumas das características da política brasileira, tais como: a representação distorcida; o
coronelismo redivivo nas várias formas de clientelismo; o populismo de
diversos matizes; o sistema eleitoral viciado e, ainda, o abuso do poder
econômico nas campanhas eleitorais. Essa realidade, em seu conjunto,
compõe um painel pouco animador da representação política, ao qual
se agrega, conseqüentemente, a descrença do povo na política e nos
políticos.
Em termos gerais, a discussão histórica sobre o fenômeno da
representação política no Brasil pode ser apresentada como reflexo do
confronto entre idéias liberais, democráticas e participacionistas, de
um lado, e idéias autoritárias, elitistas e corporativas, do outro. Do lado
da pró-representação, há nítidas distinções, que vão do liberalismo
clássico da exclusividade da representação parlamentar às teses sobre extensão da cidadania e radicalidade da soberania popular. Do
lado da anti-representação, o espectro de posições abrange desde o
autoritarismo do Estado forte e centralizador, com a encarnação da
representação da nação no chefe carismático, até o elitismo da “democracia da gravata lavada” (Teófilo Otoni e a campanha do “lenço
branco”), da “política dos notáveis” e da “presciência das elites”
(Benevides, 1991, op.cit.).
Diversos autores têm demonstrado sua preocupação sobre as
dificuldades da consecução de uma democracia como sinônimo de soberania popular. A maior parte dos analistas contemporâneos
enfatizam os entraves – políticos e culturais – que se impõem à consolidação de instituições representativas estáveis e razoavelmente democráticas. A tese clássica de Raymundo Faoro sobre a privatização
exacerbada do poder político: o Estado patrimonial, a conciliação e a
cooptação exposta em “os donos do poder” e o ceticismo de Sérgio
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
332
Buarque de Holanda, para quem “a democracia no Brasil sempre foi um
lamentável mal-entendido”, permanecem como referências fundamentais para o entendimento da realidade política brasileira.
Para Faoro, o nó da questão é, justamente, a constatação de
que, “em última instância, a soberania popular não existe senão como
farsa, escamoteação ou engodo [...]. O poder, a soberania nominalmente popular, tem donos que não emanam da Nação, da sociedade,
da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor
de negócios, gestor de negócios e não mandatário”386 .
Entretanto, o engodo e a escamoteação relativas à participação e representação democráticas, são muito mais sutis do que parecem ser; afinal, na retórica, a soberania popular está presente. Desde
1934 o direito positivo brasileiro incorpora a fórmula “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido” (lançada pela primeira vez, na
Constituição belga de 1831). Além disso, desde 1950, o antigo Código
Eleitoral brasileiro, nos termos do art. 132 passou a considerar os partidos políticos como pessoas jurídicas de direito público interno (confirmada pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos de 1971). Não obstante,
em 1995, a Lei 9096, revogava aquele diploma jurídico inserindo, no
seu art. 1º, o fundamento de que os partidos políticos passam à categoria de pessoas jurídicas de direito privado.
Diante deste quadro é que adquire importância a análise dos
partidos políticos, uma vez que detêm o monopólio da representação
política, muito embora em alguns contextos eles simbolizem, também,
os “males da representação”. Classicamente, tem existido, no Brasil,
do ponto de vista da representação, três tipos de partidos políticos: 1) o
partido clientelista, no qual prevalece a representação de estilo medieval e conservador; predominam o “favor” e a exclusão dos representados nas decisões partidárias e políticas globais; 2) o partido populista,
no qual prevalece a concepção mais progressista da representação
(“com razão, vontade geral, verdade”), mas a relação com seus membros é de tutela e; 3) o partido de vanguarda, o mais complexo de todos,
386
ª
Faoro, R. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 8 ed. Porto Alegre: Globo,
1989. Vol.2. p. 748.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
333
pois manifesta-se, ao mesmo tempo, como tutela, de favor, pedagógico
e de “encarnação da verdade”; considerando o sujeito político como
agente de transformação, mas o substitui pela vanguarda.
Um outro tipo de taxonomia ou de classificação dos partidos
políticos centraliza-se na análise da organização interna destes. Assim, existem os partidos de quadros e os partidos de massas. Os partidos de quadros estariam mais preocupados com a qualidade dos seus
membros do que com a quantidade deles. Não buscam reunir o maior
número possível de integrantes, preferindo atrair as figuras mais notáveis, capazes de influir positivamente no prestígio do partido, ou os indivíduos mais abastados, dispostos a oferecer contribuição econômicofinanceira substancial à agremiação partidária. Os partidos de massa,
por seu turno, além de buscarem o maior número possível de adeptos,
sem qualquer espécie de discriminação, procuram servir de instrumento para que indivíduos de condição econômica inferior possam aspirar
às posições de governo.
Como foi explicitado, a simples presença de partidos políticos
com características divergentes e diferenciadas, do ponto de vista ideológico e doutrinário, já é um complicador para a questão da representação. Na verdade os partidos respondem mal – quando respondem –
às novas demandas dos cidadãos, sobretudo quanto a questões relativas aos direitos humanos, às novas aspirações da classe operária,
às reivindicações das mulheres e de outros grupos sociais.
No caso das mulheres essa situação se expressa particularmente quando se considera o fenômeno da sub-representação feminina
no âmbito político. Com efeito, embora a legislação eleitoral assegure a
participação das mulheres nos processos eletivos com a garantia de
cotas mínimas para candidatas na nominata de partidos e coligações,
não custa lembrar que desde a implantação destas – incluindo as eleições de 1996, passando pelas de 1998 e chegando as do ano 2000 –
as cotas, de um modo geral, não foram preenchidas. Nesse sentido,
considere-se que as mulheres, assim como outros segmentos sociais
(negros, índios etc.), enfrentam diversos problemas para participar da
esfera política, entre os quais está a dificuldade de romper com um tipo
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
334
de prática partidária que privilegia oligarquias políticas e econômicas
em detrimento de quem constrói seu patrimônio político de forma independente, com base numa militância efetiva em partidos políticos e nos
movimentos sociais387 . Isso eqüivale a dizer que os partidos, em muitos
casos, mantêm-se “surdos”, fechados e hierarquizados, frente à
pluralidade de identidades ou à heterogeneidade de interesses sociais.
Contudo, Dalari (1999),388 assinala que a favor dos partidos argumenta-se sobre a necessidade e as vantagens do agrupamento das
opiniões convergentes, dada a possibilidade da criação de uma força
grupal capaz de superar obstáculos e de conquistar o poder político,
fazendo prevalecer no Estado a vontade social preponderante. Além
dessa necessidade para tornar possível o acesso ao poder, o
grupamento em partidos facilita a identificação das correntes de opinião e de sua receptividade pelo meio social, servindo para orientar o
povo e os próprios governantes.
Contra a representação política, argumenta-se que o povo, mesmo quando o nível geral de cultura é, razoavelmente, elevado, não tem
condições de se orientar em função de idéias e não se sensibiliza por
debates em torno de opções abstratas. Assim sendo, no momento de
votar são os interesses que determinam o comportamento do eleitorado,
ficando em plano secundário a identificação do partido com determinadas idéias políticas. A par disso, os partidos são acusados de se terem
convertido em meros instrumentos para a conquista do poder, uma vez
que raramente a atuação de seus membros condiz fielmente com os ideais enunciados no programa partidário. Dessa forma, os partidos, em lugar de orientarem o povo, tiram-lhe a capacidade de seleção, pois os
eleitores são obrigados a escolher entre os candidatos apontados pelos
partidos, e isto é feito em função do grupo dominante em cada partido.
Este aspecto de privatização dos partidos políticos levou o cientista político Robert Michels, a concluir que há, invariavelmente, uma
tendência oligárquica na democracia, onde seria inevitável e certamente
nefasta a hegemonia de grupos oligárquicos incrustados no coração das
387
Prá. J. R. Eleições e cidadania: notas sobre o comportamento político de gênero. IN: Baquero, M. (Org.).
A lógica do processo eleitoral em tempos modernos. Porto Alegre/Canoas: UFRGS /La Salle, 1997.
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335
agremiações políticas. Michels definiu tais grupos como a verdadeira
fonte da denominada “lei de ferro das oligarquias”.
Lamounier (1989)389, por sua vez, diz que o ideal é bem conhecido: o que se quer de um partido é que ele estabeleça um equilíbrio
saudável entre a representação de uma “parte” e a preservação dos
interesses do todo. Supõe-se, quase sempre, que esse ideal é mais
bem servido quando os partidos são coesos e voltados para uma atuação programática (ou ideológica); mas o fato é que esse modelo de
partido não corresponde à realidade na maioria das democracias representativas. O que se vê, por toda parte, é a mesma queixa de que os
partidos, concretamente, existentes são indisciplinados, eleitoreiros e
clientelistas. Tampouco é possível desconhecer, quando se examina a
realidade de cada país, que a evolução dos sistemas partidários sofre
impactos complexos e não raro contraditórios da organização constitucional e das leis eleitorais, da estrutura social subjacente, de predisposições culturais, e mesmo de personalidades fortes que porventura tenham empolgado os postos de liderança.
Em última análise, é preciso registrar que a discussão sobre
as insuficiências e as falhas da representação tradicional tem ocorrido
mesmo nas sociedades mais “avançadas” que, de certa forma, distanciam-se das conhecidas tradições oligárquicas, caudilhistas e
coronelistas existentes na América Latina.
Benevides (1991, op.cit.), face à discussão sobre democracia
e sistema representativo tradicional, aponta para o fato de que existem
apologistas do sistema de representação, exclusivamente, parlamentar
e os defensores da inclusão de mecanismos de democracia semidireta.
Os mecanismos institucionais de democracia semidireta seriam o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular. A vigência de tais institutos,
ao lado das eleições periódicas para o Executivo e o Legislativo, configura um regime que alguns autores europeus, sobretudo suíços e
franceses, denominam de “democracia semidireta”. Nos Estados Unidos, onde é freqüente a prática de referendos e de iniciativas populares,
fala-se em “legislação direta” (direct legislation).
388
389
DALLARI, D. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1999.
LAMOUNIER, B. Partidos e Utopias. O Brasil no limiar dos anos 90. São Paulo: Loyola,1989
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336
A introdução do princípio da participação popular no governo
da coisa pública é, sem dúvida, um remédio contra aquela arraigada
tradição oligárquica e patrimonialista; mas, não é menos verdade que
os costumes do povo, sua mentalidade, seus valores, se opõem à igualdade – não apenas a igualdade política, mas a própria igualdade das
condições de vida. Os costumes, por exemplo, representam um grave
obstáculo à legitimação dos instrumentos de participação popular. Daí
sobrelevar-se a importância da educação política como condição
inarredável para a cidadania ativa numa sociedade republicana e democrática.
CONCLUSÃO
Os partidos políticos, tendo se firmado no início do século XIX
como instrumentos eficazes da opinião pública, dando condições para
que as tendências preponderantes no Estado influíssem sobre o governo, impuseram-se como o veículo natural da representação política.
Em conseqüência, multiplicaram-se vertiginosamente, apresentando as
mais variadas características. Há opiniões favoráveis e desfavoráveis
sobre os partidos políticos no que diz respeito ao seu papel como veículo fundamental de representação dos interesses populares.
Nesse sentido, o debate realizado na Alemanha, em 1987,
sobre o tema “A crise da democracia representativa”, faz um inventário
das deficiências do sistema representativo – e de suas causas – e é
eloqüente ao apontar que:
· A deterioração da representação resulta da corrosão de referências morais e ideológicas na definição de direitos e deveres dos cidadãos;
· A representação transforma-se em mera representação de interesses e a relação representante/representado em mera troca de
serviços;
· A dupla lealdade dos partidos aos seus eleitores e simpatizantes,
mas também aos poderes instituídos, em nome da estabilidade política- aumenta a distância entre representante e representado;
·
A progressiva “instabilidade” do eleitorado é enfrentada com reRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
337
cursos nocivos em busca do “consenso passivo” pela propaganda
do medo, do caos, dos perigos do terrorismo ou do desemprego, da
inflação, do desastre ecológico, etc. A manipulação do “medo” em
troca de “proteção” substitui ideologias ou programas partidários;
· Os representantes não têm a competência esperada (ou
alardeada), nem para enfrentar os problemas importantes nem para
representar o grande número de seus eleitores; a “delegação em
cascata” perpetua essa situação.
Diante do exposto, parece razoável advogar pela efetiva inclusão de mecanismos de democracia semidireta – além da representação exclusivamente parlamentar – dentro do sistema político dos Estados. Nesse sentido, são da maior relevância as observações de
Benevides (1991, op.cit.), quando assinala que: “A democratização em
nosso país depende das possibilidades de mudança nos costumes – e
nas “mentalidades”– em uma sociedade tão marcada pela experiência
do mando e do favor, da exclusão e do privilégio. A expectativa de
mudança existe e se manifesta na exigência de direitos e de cidadania
ativa; o que se traduz, também, em exigências por maior participação
política – na qual se inclui a institucionalização dos mecanismos de
democracia semidireta”.
A guisa de conclusão pode-se assinalar que não existe um
receituário político capaz de eliminar, definitivamente, todos os entraves
e defeitos oriundos da prática do sistema representativo; o que se afigura como verdadeiro é a necessidade inadiável de torná-lo cada vez mais
institucionalizado, legitimado e sustentado em princípios democráticos
reais. E isto é tarefa não só do Estado, e dos partidos políticos mas
também dos próprios cidadãos.
BIBLIOGRAFIA
AZAMBUJA, D. Introdução à Ciência Política. Rio de Janeiro:
Globo, 1987.
BENEVIDES, M.V. A cidadania ativa. Referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 1991.
BOBBIO, N. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do
jogo. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
338
DALLARI, D. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo:
Saraiva, 1999.
FAORO, R. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. São Paulo. Globo, 1989. v.2, p.748
LAMOUNIER, B. Depois da transição. Democracia e eleições no
governo Collor. São Paulo: Loyola, 1991.
LAMOUNIER, B. Partidos e Utopias. O Brasil no limiar dos anos 90.
São Paulo: Loyola, 1989.
PRÁ, J. R. Eleições e cidadania: notas sobre o comportamento político de gênero. IN: Baquero, M. (Org.). A lógica do processo eleitoral em tempos modernos: novas perspectivas de análise. Porto Alegre/Canoas: Editora da Universidade/UFRGS /Centro Educacional
La Salle de Ensino Superior, 1997. p.11-35.
TRINDADE, H. América Latina. Eleições e governabilidade democrática. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1991.
===============================================================
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339
RESPONSABILIDADE SOCIAL: A EVOLUÇÃO DAS
EMPRESAS E O NOVO PERFIL EMPRESARIAL
BRASILEIRO
MAGDA DEMARTINI TASCA
PROFESSORA DE DIREITO EMPRESARIAL NA FACULDADE MATER
DEI. M.B.A. EMPRESARIAL PELA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS &
ESPECIALISTA EM ADMINISTRAÇÃO PELO IBPEX. MESTRANDA EM
CIÊNCIAS SOCIAIS APLICÁVEIS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
PONTA GROSSA. ADVOGADA & CONSULTORA NO PARANÁ.
RESUMO
O texto questiona qual é o papel das empresas na sociedade, e
quais as principais condutas de responsabilidade social dessas organizações. Ressalta a autora que a responsabilidade social é um
conceito em construção, o que dificulta a identificação de quais seriam as ações que poderiam ser chamadas de socialmente responsáveis por parte das empresas. O artigo questiona quais os fatores
que impulsionam as empresas a ações eticamente responsáveis.
ABSTRACT
The article questions what is the paper of the companies in the society, and
what are the main functions of social liability of these organizations. The
author says that the social liability is a concept in construction, what makes
the identification difficult of what would be the actions that could be called
socially responsible by the companies. The article questions what factors
make a company to be responsible.
PALAVRAS CHAVE - Direito Empresarial; responsabilidade social das
empresas.
INTRODUÇÃO
O texto aborda alguns aspectos da responsabilidade social
praticada pelas empresas brasileiras na atualidade, emanados de interesses particulares e de pressões sociais.
A análise histórica do desenvolvimento das empresas no Brasil
mostra algumas dificuldades e oportunidades que surgiram no decorrer
do tempo. As ações das empresas têm sido apresentadas como parte
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
340
da estratégia de sobrevivência num mercado cada vez mais exigente.
Fatores como a globalização, o neoliberalismo e a social democracia impregnam correntes de pensamentos, conduzindo a um constante questionamento: o que se apresenta é realmente uma manifestação de consciência das empresas para com o desenvolvimento da sociedade ou trata-se de um novo jogo de sobrevivência, tendo em vista
as mudanças de comportamento da sociedade que cobrar mais responsabilidade das empresas em suas ações?
CARACTERÍSTICAS HISTÓRICO
INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA
-
ESTRUTURAIS
DA
O mercado brasileiro, do início do século XIX, era quase que
exclusivamente, voltado para o exterior, tinha como foco principal a exportação de produtos agrícolas tropicais e minerais, bem como a
importação de produtos industrializados como o tecido fino para consumo interno do país.
Mesmo assim existiam ofícios como carpinteiros, ferreiros, e
ainda indústrias como olarias, as quais fabricavam telhas e tijolos cozidos, normalmente estabelecidas nas grandes propriedades rurais, que
começaram a expandir-se, ensejando que Portugal iniciasse um movimento de opressão às nascentes indústrias brasileiras. (PRADO
JUNIOR, 1999, p. 220)
O medo da concorrência e da independência econômica da colônia fez com que Portugal (em 1785) expedisse alvará extinguindo todas
as manufaturas têxtis do Brasil Colônia, restando apenas autorizada a confecção de tecidos grosseiros que seriam utilizados como vestimenta para
os escravos ou como sacaria. (PRADO, 1999, p. 224/ 225)
Os diversos boicotes contra o desenvolvimento industrial no Brasil fizeram-se presentes naquela época, tendo sido esse um dos fatores
que contribuíram para que o desenvolvimento econômico e tecnológico
do país não acompanhasse o desenvolvimento de outros países, como
os EUA e a Inglaterra.
Somente após a vinda da família real ao Brasil é que o país
teve maior autonomia (mesmo tímida) no desenvolvimento da indústria. Foi o que aconteceu quando abriram-se os portos às chamadas
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
341
‘nações amigas’. Neste momento da história, as empresas não possuíam outro interesse senão a própria sobrevivência.
A estrutura de produção da época fundava-se na ordem
escravocrata e senhorial, o que pressupunha a escravidão com um dos
fatores de acumulação de capital do Brasil. ( FERNANDES, 1987, p. 6).
As indústrias brasileiras, nem na época da colônia, nem mesmo logo após a independência, voltavam-se para questões sociais,
mas apenas mercantis, sendo objetivo das empresas a sua manutenção do mercado por meio da captação dos lucros.
No final do século XIX, mesmo com a resistência dos senhores
rurais, a libertação dos escravos transformou-se em fato, revelando-se
como um dos primeiros sinais de respeito ao próximo, mesmo que outros interessem tenham contribuído para a alforria.
Observa-se que os senhores rurais, diante da pressão que
enfrentavam, foram forçados a modificar suas ações como estratégia
de sobrevivência, substituindo a mão de obra escrava pela mão de
obra dos imigrantes que desembarcavam nos portos. (PRADO JUNIOR,
1999, p. 190)
Mesmo com várias dificuldades, a mão de obra imigrante ajudou
os centros produtores na conquista de espaço dentro da ordem
econômica brasileira. (PRADO, 1985, p. 262)
A utilização da mão de obra imigrante trouxe (mais tarde) a
figura do assalariado, o qual lutou muito para conquistar dignidade
enquanto trabalhador, o que só veio a ocorrer na década de 1930, com
movimentos em favor da classe trabalhadora e mediante reconhecimento
pelo Governo brasileiro de alguns direitos trabalhistas.
Sempre objetivando a sobrevivência, a empresa nacional passou por grandes transformações, alcançou autonomia e conquistou
uma maior fatia do mercado internacional. Mas ainda na década de
1980 encontrava-se, extremamente, protegida, mediante uma política
de altas tarifas sobre produtos importados.
Mas na década de 1990 tudo mudaria, as empresas nacionais sentiriam necessidade de mudanças rápidas em seus objetivos e em suas ações,
visto que as tarifas sobre a importação foram diminuídas drasticamente.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
342
Como conseqüência, várias empresas não conseguiram sobreviver à abertura sem planejamento do mercado nacional. Outras modificaram suas estratégias, que até então eram mais voltadas para o
mercado especulativo, em razão da alta inflação da década de 1980,
passando a investir na produção, seja por meio da melhoria de qualidade dos produtos que ofereciam, seja pelo aprimoramento tecnológico,
seja (enfim,) pelo uso de novas técnicas gerenciais.
Neste ambiente é que a responsabilidade social inicia a sua
jornada na busca de ações eticamente responsável pelas empresas.
O TEMA RESPONSABILIDADE SOCIAL NA ATUALIDADE
Levando em consideração as várias faces que a responsabilidade social apresenta, importante se faz a análise do tema por variados ângulos.
Patricia Ashley (ASHLEY, 2002, p. 37/38) comenta a respeito
de orientações sobre o tema:
Na orientação para os acionistas, a responsabilidade social da
empresa é entendida como a maximização do lucro... na orientação para o Estado ou governo, a responsabilidade social da empresa está no estrito cumprimento de suas obrigações definidas e
regulamentadas em lei...na orientação para a comunidade, a responsabilidade social da empresa é vista como um ato voluntário da
direção, de forma esporádica ou estratégica...orientação para os
empregados vê a responsabilidade social como forma de atrair e
reter funcionários com qualificação, além de alcançar mercados com
barreiras não tarifárias.
Há várias visões sobre o tema, mas no momento, serão apresentadas apenas algumas, ou seja, aquelas entendidas como mais
corriqueiras numa organização empresarial.
Em razão de uma maior conscientização das pessoas, a cobrança exercida sobre as empresas privadas também cresceu nos últimos anos e isso levou-as a um repensar.
Os órgãos de proteção da sociedade, sejam eles representantes dos consumidores (Procons), dos trabalhadores (sindicatos) ou dos
ambientalistas, tiveram um papel preponderante para o início desse
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
343
questionar da empresa quanto a sua responsabilidade social.
Há estudiosos do tema cujo entendimento salienta que a prática da responsabilidade social não representa benefício somente para
a sociedade, mas também traz benefícios para a própria organização,
melhorando sua imagem e contribuindo para o bem-estar dos empregados por meio de incentivo a ações voluntárias.
Tais atos poderiam ainda servir de propaganda para atrair novos consumidores, principalmente os preocupados com a proteção do
meio ambiente ou com a qualidade dos produtos que são colocados à
disposição para o consumo.
Com a divulgação da prática de ações responsáveis a empresa estaria induzindo as pessoas a consumir seus produtos. Sob tal
enfoque observa-se, claramente, a utilização do exercício de um poder
condicionado por parte das organizações, levando o consumidor a uma
submissão involuntária.
Seria ética a divulgação de ações de responsabilidade social
por parte das empresas ? Seria lícito tolher a liberdade da empresa em
mostrar-se, eticamente, responsável para uma sociedade cada vez mais
exigente?
As empresas fazem parte de uma grande rede de relações
que com ela interagem, e em tal sentido as empresas devem procurar
tratar seus empregados, fornecedores e consumidores de forma ética.
Mas nem sempre isso ocorre, muitas vezes as empresas atuam
mais eticamente com aqueles stakeholders que possuem alguma influência sobre a organização, como fornecedores sem os quais não é
possível fabricar seus produtos, ou mediante a intervenção de empregados chaves.
Diante disso, será que as empresas agem devido à
conscientização de responsabilidade perante a sociedade onde estão
inseridas ? Ou as empresas praticam a responsabilidade social tendo
em vista a manutenção ou a conquista de mercados?
Difícil responder, mas caso a resposta à última indagação seja
positiva, a sociedade estaria novamente à mercê do mercado, pois seria ele quem ditaria as ações que deveriam ser praticadas, mas não a
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
344
sociedade em relação às suas reais necessidades.
A questão é complexa, pois às vezes podem ser impostas condutas dispendiosas em termos financeiros, sem que a empresa possa
vislumbrar um meio de aumentar seu capital. Afinal, a empresa está
inserida no sistema capitalista onde impera a lei do mais forte.
FATORES QUE INFLUENCIARAM NA RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS
No século XX a humanidade deu um salto evolutivo quanto ao
desenvolvimento tecnológico, o que se refletiu no comportamento das
pessoas.
A sociedade está cada vez mais exigente, tendo em vista a
rapidez da produção e da disseminação das informações, nesta era da
globalização.
A globalização, juntamente com outros fatores, têm interferido
diretamente na forma como as empresas estão se posicionando no mercado. Hoje, os objetivos de uma empresa somente poderão ser alcançados quando respeitarem determinados limites impostos por leis ou
mediante pressões sociais.
Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2002, p. 26) argumenta que a globalização é (na verdade) um “fenômeno multifacetado
com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e
jurídicas interligadas de modo complexo”
Diante disso, esclarece que a globalização não é um processo
consensual, mas, ao revés, gera conflitos entre forças com interesses que
se contrapõem, como entre as diferentes classes sociais existentes.
Um dos grandes conflitos gerados pela globalização é sua fácil
manipulação e adaptação aos interesses de alguns poderosos grupos
econômicos, como as grandes multinacionais, em detrimento e submissão de uma grande massa.
Esse poder de submissão à sua vontade situa-se justamente no que
Boaventura chama de “consenso entre grupos hegemônicos” ou consenso
neoliberal, ou ainda consenso de Washington. (SANTOS, 2002, p. 27)
O Direito sempre foi uma das grandes características que identificam um país como soberano, mas hoje o que se vê é que o Direito
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345
tem se amoldado de conformidade com a ordem internacional (Organização Mundial do Comércio, etc) e seus interesses.
Tal interação de normas é o resultado da globalização que, lentamente, impõe aos países uma uniformização de leis mundiais, perfeitamente moldadas (adaptadas) ao sistema capitalista.
Para Boaventura (SANTOS, 2002, p. 31), o objetivo das empresas é justamente reduzir o custo da produção e da distribuição, com o
conseqüente aumento do lucro, sendo esse o pensamento que norteia
grandes empresas, como as citadas empresas transnacionais.
Para tanto, o Direito do país especulado por essas empresas
deve ser composto por leis voltadas para a grande economia mundial,
adaptadas ao sistema capitalista e neoliberal defendido por essas grandes corporações. O que se questiona aqui é o chamado ‘custo do
Direito’ para essas empresas.
A globalização evidencia aspectos positivos e aspectos negativos ou sombrios. Um dos aspectos positivos poderia ser a possibilidade de interação com as pessoas de todo o mundo mediante
tecnologias de comunicação. Um dos aspectos sombrios encontra-se
nas estratégias empresariais utilizadas para conduzir a globalização à
produção de benefícios para poucos.
Especificamente para a prática da responsabilidade social a
globalização teve seu lado positivo, pois passou a mostrar para as pessoas que as empresas em outros países faziam mais do que simplesmente vender produtos e oferecer empregos, elas estavam interagiam
com as comunidades em que viviam.
Por meio de exemplos de práticas de empresas fora do Brasil
é que surgiu a necessidade de exigir das empresas nacionais atitudes
socialmente responsáveis.
Pressões estão ocorrendo em todos os setores, principalmente no empresarial, e a grande pergunta está lançada : de quem seria a
responsabilidade pelo desenvolvimento da sociedade e pela diminuição das diferenças entre as pessoas ?
Para tal questão não existe apenas uma resposta, tudo irá depender da posição defendida por quem analisa. Para uns o Estado é o
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346
único responsável, para outros as organizações empresariais devem
assumir tal ônus.
Para os defensores das práticas e ideologias neoliberais as
empresas e os mercados deveriam encontrar seus limites neles mesmos, o Estado não deveria intervir nestas relações.
Para os liberais a sociedade deveria ser organizada conforme
o mercado, as empresas deveriam pertencer ao setor privado, e para o
Estado restaria a massa populacional excluída, a qual não possui qualquer poder de compra.
Bem ou mal, tais regras invadiram o mercado, o qual tira benefícios delas, visando a maior acumulação de riquezas. É nesse espaço
que surge a nova classe de capitalistas transnacionais, incentivando
idéias liberais para satisfazer seus próprios interesses (SOUSA, 2002,
P. 31). Em contrapartida, cria-se uma massa desorganizada e excluída
de trabalhadores.
Mas mesmo diante de idéias tão liberais, a intervenção do
Estado não parou. O Estado precisou agir, mas não a favor da nacionalização, e sim pela diminuição do tamanho estatal, lançando mão
das privatizações (SOUSA, 2002, p. 25).
Somente o Estado tem o poder de diminuir-se, e portanto em
alguns momentos ele deverá intervir para garantir a liberdade e a abertura do mercado.
Tais medidas podem causar sérias transformações sociais
quando implantadas sem nenhuma regulamentação, como pretendem
os ‘capitalistas transnacionais’ e os poderes hegemônicos.
Atualmente, o Direito é um forte escudo protetor de um país
para a proteção de seus cidadãos.
Mesmo assim as multinacionais disseminam-se pelo globo à
procura de mão-de-obra barata, matéria-prima em abundância e mercado para comercializar seus produtos. Neste momento os países periféricos oferecem as condições ideais para que os grandes conglomerados estrangeiros atinjam seus objetivos. (SOUSA, 2002, p. 32)
A interferência das multinacionais em um país pode trazer transformações não só econômicas como também jurídicas, pois tais empreRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
347
sas visam a reduzir o custo para a atividade empresarial, reduzindo também a instabilidade e a incerteza decorrentes das sentenças proferidas
pelos Estados, por meio do Judiciário. (SANTOS, 2002, p. 43)
Muitas vezes as decisões das multinacionais serão pautadas nas
vantagens que cada região ofereça para sua instalação como: a) local
estratégico para a circulação das mercadorias; b) vantagens ou impedimentos previstos pela legislação quanto a trabalhadores e salários; etc.
Essas empresas buscam um Estado que pouco interfira nas
relações comerciais do país. Havendo interferência, que ela seja previsível (SOUSA, 2002, p. 39), sendo necessária, portanto, uma legislação desregulamentada e com a possibilidade de dúbia interpretação.
O custo do Direito é medido pela análise dos encargos sociais,
previstos pela legislação e que possuem o objetivo primeiro de proteger seus cidadãos. Quanto mais a lei protege o empregado e o consumidor menos as multinacionais se interessam pela região.
As multinacionais com maior poder de influência pressionam
os Estados, que já estão mínimos, a enfraquecer as leis existentes
sobre o trabalho (é a chamada flexibilização do Direito do Trabalho),
sobre a reparação de danos, sobre o Direito Tributário, etc.
O fato é que diante de todas as transformações ocorridas no Brasil, pode-se concluir que as partes envolvidas (empresas, sociedade,
Estado) são atores medindo forças neste cenário de intensa transformação social e tecnológica, no limiar do século XXI.
RELAÇÕES ENTRE O PODER E A RESPONSABILIDADE SOCIAL
DAS EMPRESAS
As expressões responsabilidade social e poder estão intimamente ligadas quando vistas em perspectiva estrutural. Aqui a responsabilidade social será vista com ênfase no poder que as organizações
privadas exercem por meio de suas ações.
Há órgãos que lutam contra abusos cometidos pelas organizações, como as Promotorias ou Associações de Defesa de Consumidores, entidades sindicais e outras da sociedade civil, etc.
O fato de as organizações privadas simplesmente explorarem
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348
(sugarem) os recursos naturais do meio ambiente onde estão localizadas, sem nenhuma retribuição, já não está mais sendo tolerado pela
sociedade.
A disseminação do conhecimento teve grande influência nisso. A partir do momento em que as pessoas passaram a conhecer as
empresas, bem como suas várias formas de interagir com a rede de
relacionamentos que a evolvem.
O poder que as empresas exercem nos dias atuais é grande,
mas há leis que tentam coibir tais abusos, como o Código de Defesa
do Consumidor, a Lei Antitruste (concorrência desleal), a Consolidação das Leis Trabalhistas, dentre outras, sempre objetivando o equilíbrio das relações jurídicas, econômicas e sociais.
Atualmente a temática da responsabilidade social comporta
múltiplos conceitos, residindo aqui a dificuldade em definir quais são
as responsabilidades que cabem às empresas.
Mesmo sem um consenso, algumas empresas já buscam trabalhar a questão de sua responsabilidade para com a comunidade
onde estão inseridas, seja por meio da proteção do meio ambiente,
seja pela valorização de seus empregados, seja somente incentivando ações voluntárias. Assim, será que se pode falar em conscientização
das empresas sobre sua responsabilidade para com a sociedade?
É um pouco cedo para responder a tal pergunta, porque não se
pode esquecer que a lei tem por finalidade coibir e limitar os abusos
que as empresas possam cometer.
Por isto, questiona-se quais seriam os reais interesses das
empresas na prática da responsabilidade social. O poder que as empresas exercem sobre um povo é imenso, bastando citar: a) a criação
e a manutenção de empregos; b) a contribuição com impostos; etc.
Por isso é tão necessário haver normas e órgãos responsáveis pela limitação do poder que as empresas exercem na sociedade,
bem como para regular o verdadeiro papel que elas devem socialmente
desempenhar.
Neste contexto, vale lembrar a Maria Cecília Coutinho de Arruda
para quem “o equilíbrio de uma sociedade, em última instância, deRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
349
pende de três grandes fatores: governo, família e empresa. Em minha
modesta opinião, o futuro do Brasil está na mão das empresas”.
(ASHLEY, 2002, p. XVI)
As empresas constituem a grande expectativa de futuro para o
equilíbrio social. Mas até que ponto vai o interesse das corporações em
promover tal equilíbrio?
O mundo dos negócios exige crescente e elevado padrão ético
dos partícipes do processo econômico, pois, como adverte Maria Cecília
Coutinho de Arruda, “hoje, os dirigentes de empresas e outras instituições brasileiras já se deram conta de que a ética é algo sério que começa a fazer sentido. Poderíamos ir mais longe, dizendo que agora a ética
significa a sobrevivência das organizações”. (ARRUDA, 2002, p. 08)
Por ser um tema novo no contexto das empresas e da sociedade, não se tem como objetivo responder a todas as questões, mas sim
apenas esboçar idéias e levantar dúvidas que pairam sobre o tema.
A TERCEIRA VIA: RESPONSABILIDADE SOCIAL DO ESTADO E
INICIATIVA PRIVADA
Um terceiro caminho está sendo proposto: é a chamada social-democracia, a qual possui, na essência a idéia de que o avanço social só será alcançado diante de reformas progressistas ditadas pelo capitalismo, porém com estratégias voltadas para o campo social.
O que se pretende excluir são os extremos, nem tanto o liberalismo exacerbado, tampouco o socialismo ou o comunismo exagerado.
Deve existir harmonia entre o capital e o social, pois ambos
têm como princípio a busca pela melhor capacitação ou pela concorrência. Assim, os rótulos ideológicos de direita e esquerda não fariam
mais sentido. (CHAUI, 1999, p. 10)
Para tal visão de ordenamento mundial as empresas seriam
responsáveis por uma parte da assistência social, e dividiriam com o
Estado o ônus decorrente de cuidados com a população mais carente.
Mas até que ponto o Estado estaria independente para tomar
as iniciativas de regulação do mercado se as empresas privadas ficassem responsáveis pelos serviços básicos da população, como educação e saúde?
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350
Essa é a questão : até que ponto as empresas vão utilizar do
seu poder de ameaça em (por exemplo) deixar o local onde estão instaladas, acaso o Estado não cumpra as suas exigências? Não é possível
saber disso, desde logo.
Portanto, torna-se perigoso deixar a sociedade à mercê, dependente de uma organização que muitas vezes nem tem sede principal no país onde pratica a responsabilidade social.
Será que as multinacionais realmente estão preocupadas em
ajudar comunidades onde estão inseridas a crescer, ou em suas práticas estariam visualizando interesses particulares que somente aumentarão seus lucros?
Para a Professora Maria Célia Paoli (PAOLI, 2002, p. 414) a
idéia pode suscitar a análise da criação de um cidadão de segunda ou
terceira classe, tendo em vista a necessidade de depender da caridade de instituições privadas.
Repassar a responsabilidade do Estado para a iniciativa privada, confiando em seu desenvolvimento, não é a melhor solução. O
que deve ser feito não é a diminuição do Estado (pura e simples), mas
a parceria da iniciativa privada com o Estado.
Por tal parceria o Estado continuaria responsável pela assistência básica da sociedade, porém para isso contaria com a ativa participação das organizações particulares. De qualquer modo, restariam
íntegras a autonomia e a soberania estatais.
CONCLUSÃO
Pode-se concluir deste estudo que as empresas, no Brasil, sempre tiveram como primeiro objetivo a sobrevivência, e para tanto impunha-se o aumento dos lucros e a diminuição dos gastos, como mostra o
desenvolvimento histórico da temática.
Observa-se, atualmente, o surgimento de novas exigências para
que as empresas consigam sobreviver, no mercado moderno, pois a
sociedade civil organizada cobra ações eticamente responsáveis por
parte das empresas.
A visão de hoje é a de que somente o lucro não garante mais a
sobrevivência empresarial, pois as condutas das empresas estão senRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
351
do observadas por fornecedores, consumidores e trabalhadores, todos
mais conscientes do papel que começa a ser exigido das organizações,
para além de seus interesses básicos.
Este texto leva a pensar e a repensar sobre o tema ‘responsabilidade social’. As reflexões conduzem, por sua vez, à conclusão de que o
conceito de responsabilidade social ainda está sendo construído.
Hodiernamente, as empresas vêem-se compelidas a tomar certas atitudes como a conservação do meio ambiente ou o respeito às leis
trabalhistas, tendo em vista ou a pressão exercida pela sociedade ou a
imposição legal existente no Brasil.
Correntes sobre o tema estão surgindo, mas somente o tempo
moldará a verdadeira responsabilidade que as empresas têm para com
as pessoas, voltada ao crescimento local onde estão inseridas.
Porém os excessos devem ser coibidos : pensar que as empresas têm única e exclusivamente interesses egoístas de captação
de lucros é ser simplista demais. A possibilidade de existirem empresas que realmente praticam ações desinteressadas não deve ser totalmente descartada.
REFERÊNCIAS
A) ARRUDA, Maria Cecília Coutinho de. Código de ética : um instrumento que adiciona valor. São Paulo: Negócio, 2002.
B) ASHLEY, Patricia Almeida (coordenadora). Ética e responsabilidade nos negócios. São Paulo : Saraiva, 2002.
C) CHAUI, Marilena. Fantasias da terceira via. Folha de São Paulo,
19 de dezembro de 1999 - Domingo.
D) FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil, 3
ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
E) PAOLI, Maria Célia. Empresas e responsabilidade social : os
enredamentos da cidadania no Brasil. In: Democratizar a Democracia (organizador Boaventura de Souza Santos). Rio de Janeiro :
Civilização Brasileira, 2002.
F) PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo,
23 ed. São Paulo: São Paulo, 1999.
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352
G) ________. História econômica do Brasil, 31ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
H) SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos da globalização.
In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.). A globalização e as ciências sociais, 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002.
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353
AS DIFICULDADES DA IMPLANTAÇÃO DA
REPÚBLICA NO BRASIL E NO PARANÁ
RAFAEL AUGUSTUS SÊGA
PROFESSOR NO CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA
DO PARANÁ. MESTRE EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL
DO PARANÁ & DOUTOR EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO GRANDE DO SUL.
RESUMO
O artigo trata das dificuldades da implantação do regime republicano no Brasil,
e em especial no Estado do Paraná. O autor destaca as primeiras medidas
tomadas pelo Governo Provisório para superar as deficiências do período
imperial, dentre elas a separação da Igreja e do Estado, a secularização dos
cemitérios, o estabelecimento do registro civil de nascimentos e casamentos,
a abertura de linhas de crédito e a convocação da Assembléia Constituinte.
O texto retrata as transformações históricas e políticas pelas quais atravessou
o Brasil, e mais especificamente, o Estado do Paraná.
ABSTRACT
The article is about the difficulties of settlement of the republic system in
Brazil and mainly in State of Paraná. The author points to the first measures
taken by the Provisory Government to win the lacks from the imperial period,
among them the separation of Church and State, the centurization of cemeteries, the stablishment of register of birth and marriage certificate, the
opening of credits and the call to the constitutional convention.The text
shows the historical and political transformations in which Brazil has gone
through, and mainly the State of Paraná.
PALAVRAS CHAVE - Ciência Política; História do Brasil e do Paraná;
Império e República.
O regime que foi instalado, no lugar do Império, tentou se
espelhar, em alguns aspectos, em seu congênere norte-americano e
passou a chamar-se “República dos Estados Unidos do Brasil”. Assumindo a república federativa como forma de governo1 , no qual o poder
decisório deveria, a princípio, ser dividido entre as unidades federativas, indo contra o sistema centralizador do Império. O Rio de Janeiro,
1
SOUZA, Maria do C. C. “O processo político-partidário na primeira república.” In: MOTA, Carlos G. (org.)
Brasil em perspectiva. São Paulo: Difel, 1985, p. 162.
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354
de antigo “Município Neutro da Corte”, passava a ser “Distrito Federal”;
as antigas províncias, “Estados”; e os chefes dos Executivos federal e
estadual, “Presidentes”.
A rigor, não havia um “Partido Republicano”, propriamente dito
no Paraná, antes de 15 de novembro de 1889.2 Após a notícia do golpe
republicano, no Rio de Janeiro chegar ao Paraná pelo telégrafo, o poder
saiu das mãos do presidente provincial e foi entregue ao chefe da guarnição do exército de Curitiba. No resto do país, a transição política foi,
relativamente, calma.
Instituída a República, a 16 de novembro, embora não oficialmente
chegava a notícia em Curitiba. O Presidente Jesuíno Marcondes e o
Comandante da Brigada Militar, coronel Francisco José Cardoso
Júnior, imediatamente, realizam reunião, objetivando a manutenção
da ordem na Província. Os oficiais, porém, da guarnição manifestam o seu apoio ao gesto de Deodoro e logo chega também o telegrama deste, encarregando o Comandante da Brigada, da manutenção da ordem pública, até a nomeação de um Governo provisório. Em conseqüência, nesse mesmo dia, Jesuíno Marcondes entregou a Presidência da Província a Francisco José Cardoso Júnior,
o qual tomou posse, a 17 de novembro, perante a Câmara Municipal
de Curitiba.3
Os primeiros dois anos do regime republicano no Paraná foram
um caos, sete governadores provisórios se alternaram no cargo, quatro
militares e três civis, e pior, nenhum deles era paranaense. O Partido
Conservador, que estava fora do governo no Paraná, quando da proclamação da República, bandeou, peremptoriamente, à nova ordem, e é
só após o 15 de novembro, que as duas alas políticas adquiriram uma
nova “roupagem” republicana.
Já no Rio Grande do Sul, a instalação do regime republicano
foi sui generis, pois desde cedo o novo governo foi dominado pelos
positivistas, que encontraram em Júlio Prates de Castilhos seu mentor.
2
COSTA, Samuel G. “Introdução”. In: CARNEIRO, David & VARGAS, Túlio. História biográfica da república no Paraná. Curitiba: Banestado, 1994., p. 3.
3
WESTPHALEN, Cecília. & BALHANA, Altiva. “A república no Paraná”. In: Revoluções e conferências.
Curitiba: SBPH, 1989, pp.49-50.
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355
Na verdade, Castilhos adquirira sua projeção por meio de sua militância
política no Partido Republicano Rio-Grandense, fundado em 1882 e como
articulista polêmico do jornal “A Federação”. O projeto político de
Castilhos e seus seguidores de um “autoritarismo ilustrado” era baseado nos ensinamentos de Augusto Comte ao buscar o progresso por meio
da ordem e da ciência. Propunham a expansão das relações capitalistas e um desenvolvimento geral da sociedade gaúcha, com melhorias
na educação, nos transportes, nas comunicações, nas técnicas agrícolas e industriais. Porém, o castilhismo propunha uma modernização conservadora, pois, para essa doutrina, a estrutura social deveria ser mantida
e os conflitos sociais negados, uma vez que o proletariado deveria ser
incorporado à sociedade de uma maneira paternalista.
Entrementes, Gaspar Silveira Martins (ex-senador, ex-conselheiro extraordinário do Império e ex-presidente provincial, 1835-1901) constituía-se no maior representante da elite rural ligada ao antigo Partido Liberal e era o único líder gaúcho com condições de esboçar uma reação
frente aos castilhistas, todavia, ele havia sido expulso do país em 1889.
Quando da proclamação da República, Castilhos recusou o cargo de presidente do Estado e preferiu assumir como secretário do governo estadual, sob a chefia do Visconde de Pelotas (José Antônio Corrêa
da Câmara, 1824-1893). Castilhos estava convicto no intento de inaugurar uma nova fase positiva na política rio-grandense, ao transformar
as velhas práticas político-administrativas clientelistas do período imperial. Em 1890, Júlio de Castilhos elegeu-se deputado ao Congresso que
iria elaborar a primeira Constituição da República e logo identificou-se
com a ala ultrafederalista, passando a defender o projeto político
jacobino.4
Em 14 de julho 1891, Júlio de Castilhos promulgaria a nova
Constituição estadual, que reproduzia quase integralmente o anteprojeto proposto por ele mesmo.5 Eleito presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelos próprios deputados, Júlio de Castilhos assumiria o
governo logo em seguida.
4
5
FRANCO, Sérgio C. Júlio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1996, p. 82.
FRANCO, Sérgio C. Op. Cit., p. 94.
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356
A carta gaúcha possuía forte teor centralizador e concentrava a
maior parte dos poderes nas mãos do presidente de Estado, que passava a ser eleito por cinco anos, com direito à reeleição (mais tarde,
Borges de Medeiros, usando deste estratagema, permaneceu no poder
por vinte e cinco anos). E ainda, podia governar por decreto e tinha a
prerrogativa de nomear o próprio vice. O legislativo estadual gaúcho (a
“Assembléia dos Representantes”) restringiu sua ação à elaboração e
aprovação do orçamento. Castilhos procurou criar um governo autoritário
de inspiração positivista. Com a nova Constituição, o grupo ligado a Júlio
de Castilhos assegurou-se perpetuamente no poder, pondo fim ao
revezamento dos tempos imperiais. Estava plantada a semente da discórdia que traria como fruto dois anos e meio de uma guerra cruel e fratricida.
Em termos nacionais, a instalação, relativamente, tranqüila do
regime republicano fez com que seu artífice, marechal Manuel Deodoro
Fonseca (1827-1892), assumisse a presidência do mesmo e tomasse
as primeiras medidas para a sua estabilização, formando o primeiro
gabinete republicano com ministros civis e militares engajados na ruptura, como se vê a seguir: Pasta da Justiça – Campos Sales (cafeicultor paulista), Pasta da Guerra – Benjamin Constant (positivista, ocuparia a Pasta da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, no ano seguinte), Pasta das Relações Exteriores – Quintino Bocaiúva (republicano
“histórico”), Pasta da Marinha – Eduardo Wandenkolk (militar de carreira), Pasta do Interior – Aristides Lobo (republicano “histórico”), Pasta da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas – Demétrio Ribeiro (positivista)
e Pasta da Fazenda – Rui Barbosa (ex-liberal). A consumação do regime se daria dois dias depois com a partida de D. Pedro II para Paris.
As primeiras medidas tomadas pelo Governo Provisório visavam superar as deficiências mais prementes, acumuladas do período
imperial. Dentre elas podemos destacar a separação da Igreja e do
Estado, a secularização dos cemitérios, o estabelecimento do registro
civil de nascimentos e casamentos, a abertura de linhas de crédito e a
convocação da Assembléia Constituinte no ano seguinte.
Não obstante, em termos econômicos é de bom alvitre acompanhar o quadro do país na passagem do Império para a República,
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357
descrito por Nelson Werneck Sodré,
Em 1889, o quadro brasileiro pode ser traçado em umas poucas
coordenadas: o país dispõe de 14 milhões de habitantes, distribuídos em 916 municípios, com 348 cidades; conta com apenas dois
portos aparelhados e apenas uma usina elétrica; com 8.000 escolas, 533 jornais, 360 quilômetros de rodovias, 10.000 quilômetros de
ferrovias e 18.000 de linhas telegráficas; sua produção ascende, em
moeda nacional, ao valor de 500.000 contos de réis, e a sua produção industrial a excede um pouco, pois vai a 508.000 contos de réis;
em dados per capita, a produção industrial corresponde a 35.750
réis, enquanto a produção agrícola corresponde a 35.700; a exportação per capita é de 15.000 réis e a receita per capita de 11.500 réis.
(...) No comércio exterior, verifica-se que, entre 1876 e 1885 a nossa
importação ascendeu a 1.770.000 contos, quando a exportação atingiu a 1.970.000 contos. No decênio de 1886 a 1895, já em parte sob
o novo regime, a importação atingiria a 3.300.000 contos, e a exportação a 4.100.000. O saldo, naquele decênio, subiria a mais de
800.000 contos, dado realmente importante. Começava, no Brasil, a
capitalização.6
Dentre as 21 províncias que foram elevadas à categoria de Estados da União pelos republicanos em1889, o Paraná (com uma população de, aproximadamente, 330.000 habitantes na virada do século XIX)
possuía ainda uma projeção muito tímida em termos nacionais.
Embora criada pelo Império para ser seu ponto de apoio na
região, a Província do Paraná não recebia deste qualquer privilégio, ao
contrário, sofria com graves problemas econômicos e políticos. Sua economia era basicamente extrativista, seja a partir da extração da madeira, seja da erva mate, cujo surto econômico propiciará o desenvolvimento cultural de sua capital. Apesar deste desenvolvimento, o estado era o
18º em população, ficando à frente somente do Espírito Santo, Mato
Grosso e Amazonas, e 2/3 de seu território ainda se encontrava desocupado e mesmo suas fronteiras não eram bem definidas. Talvez por estes fatores a tese de que o Paraná era um mero local de ligação e passagem, uma estância para tropeiros tenha se consolidado, esquecendo
6
SODRÉ, Nelson W. A república; uma revisão histórica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1989, p. 76.
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que neste período praticamente todo o país vivia em condições precárias e encontrava-se com a maior parte de seu território desabitado.7
Por causa da influência dos positivistas, os militares compartilhavam do ideal do “progresso” (dentro da “ordem”), não possuindo em
termos de política econômica um projeto específico. Combatiam o liberalismo dos cafeicultores paulistas, por acreditar que esses só visavam
seus interesses próprios. Com um quadro nacional econômico tímido,
se comparado às nações já inseridas no capitalismo monopolista, mas
estável por outro lado (o café estava com os preços em alta), é que assumiu a Pasta da Fazenda o advogado Rui Barbosa de Oliveira, com o
intuito de modernizar a economia brasileira. Sobre isso, apelamos mais
uma vez a Nelson Werneck Sodré,
A república, nas alterações que introduz, marca nitidamente o extraordinário esforço de adaptação das condições internas às condições externas, de uma capitalização em início a um processo capitalista que atinge a sua etapa imperialista. Com a República, assistimos, realmente, ao apogeu da estrutura colonial de produção: o
Brasil é um dos principais supridores de matérias-primas do mercado mundial e o seu produto fundamental é o alimentício que figura
em maior volume nas correntes de troca, com a particularidade de
fazê-lo ainda sem concorrência. Isto acontece quando o mundo assiste a um extraordinário surto de comércio internacional, decorrente do crescimento vertical da produção capitalista que, com o surto
demográfico, invade mercados e destrói velhas relações.8
A proposta econômica de Rui Barbosa era investir o superávit
na produção industrial e isso ia contra as aspirações de financiamentos dos cafeicultores paulistas, mas acabou agradando aos militares.
A primeira medida de Rui Barbosa, como ministro, foi uma reforma bancária, a fim de facilitar a expedição de títulos de crédito. No
início, tudo correu sem problemas e várias empresas foram criadas no
Distrito Federal. Otimistas previam um bom panorama de crescimento
devido ao crédito facilitado pela reforma.
7
PEREIRA, Luís F. L. Paranismo: o Paraná inventado; cultura e imaginário no Paraná da Primeira
República. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998, pp. 23-24.
8
SODRÉ, Nelson W. Op. Cit., pp. 76-77.
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359
Em termos econômicos, reparamos um quadro parecido com o
visto, anteriormente, quando do fim do tráfico de escravos, cujos capitais foram conduzidos a novos empreendimentos. Agora, porém, o deslocamento dos fluxos de capitais era feito com o aumento artificial do
meio circulante, com essa medida as autoridades esperavam baixar as
taxas de juros e transformar os investimentos nas empresas mais atrativos do que a especulação no mercado financeiro.
Na prática, a teoria mudava substancialmente, pois o retorno
financeiro de um investimento industrial leva tempo para se concretizar e era mais fácil lucrar sem trabalhar que desenvolver projetos com
viabilidade econômica. O que parecia uma boa intenção acabou virando um pesadelo. A historiadora Sandra Jatahy Pesavento sobre isso
esclarece,
A ampliação do meio circulante , conjugada a um sistema de crédito
amplo e fácil para as iniciativas que surgissem, proporcionou uma
febre especulativa no mercado de ações e uma proliferação de novas empresas. Por outro lado, o aumento do papel-moeda em circulação incidiu sobre o valor externo da moeda brasileira, ocasionando
uma baixa de câmbio. Paralelamente, para fazer frente às necessidades fiscais do governo, determinou-se a cobrança de uma taxaouro sobre as mercadorias importadas, ao mesmo tempo que se
elevavam as taxas de importação.9
Num curto espaço de tempo, a especulação financeira era bem
maior que os empreendimentos de fato. O entusiasmo pelo lucro fácil
com papéis contaminou a vida econômica da capital da República e
passou para a história com o malfadado nome de “Encilhamento”, e a
crise por ele gerada marcou a vida econômica dos primeiros anos da
República com inflação e carestia, o que ajuda a entender, em parte, a
insatisfação dos estratos mais humildes da população com as autoridades constituídas.
Em 3 de dezembro de 1889, era nomeada uma comissão de
estudos para instalação da Assembléia Constituinte e a redação de
um anteprojeto, tarefa que foi concretizada por Rui Barbosa.
9
PESAVENTO, Sandra J. O Brasil contemporâneo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1991, p. 22.
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No entanto, as correntes republicanas expostas anteriormente
entraram no confronto de qual projeto de sociedade a Constituição
deveria privilegiar. Os positivistas defendiam um Executivo forte, posição compartilhada por alguns setores do oficialato e por membros do
Governo Provisório, entre eles o próprio presidente Deodoro, que protelou o máximo a convocação da Assembléia Constituinte.
Os antagonismos entre os primeiros e os cafeicultores paulistas
já não podiam mais ser disfarçados, estes clamavam por democracia
e alegavam a ilegalidade da situação jurídica do Governo Provisório.
O apaziguamento das vontades e opiniões predominou e, ao final de
junho de 1890, as eleições para os constituintes foram convocadas
para setembro seguinte e, num pleito conturbado, finalmente, foram
indicados os elaboradores da nova Carta Magna da nação, que acabaram acatando quase que na íntegra, o anteprojeto de Rui Barbosa.
Promulgada a 24 de fevereiro de 1891, a primeira Constituição
republicana estabeleceu os princípios norteadores do país para o período que se estenderia até a Revolução de 1930, a chamada “Primeira
República Brasileira”. A historiadora Maria do Carmo Campello de Souza
tece considerações importantes sobre tais princípios,
Federalismo, presidencialismo e ampliação do regime representativo são as três coordenadas legais da Primeira República, (...) associadas às características de uma estrutura econômica definida pela
grande propriedade. (...) A Federação surge em atendimento às necessidades de expansão e dinamização da agricultura cafeeira, desfeitas, já na Abolição, as motivações econômicas que ligavam as
várias regiões produtoras.1 0
Extraordinariamente, o primeiro presidente eleito foi escolhido
por via indireta, o marechal Deodoro da Fonseca. A Constituição de
1891 estabelecia o presidencialismo como forma de governo e ao chefe do Executivo federal cabia a escolha dos ministros e o mesmo tinha
autonomia para execução de projetos nacionais, sem a interferência
do Congresso, encerrando a negociação parlamentarista imperial. O
presidente tinha ainda a prerrogativa de intervir na administração das
10
SOUZA, Maria do C. C. Op. Cit., pp. 163-164. Sem grifos no original.
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unidades da federação (Estados) com o escopo de manter a “ordem”
republicana. A fundação de bancos emissores de moeda ficava sob a
tutela do presidente. Em reação a essa concentração de poderes, os liberais restringiram o mandato presidencial em quatro anos, sem reeleição.
Apesar do ideal federalista, o ponto de equilíbrio, que no Império era exercido pela aristocracia agrária, passou para as oligarquias
rurais paulistas e mineiras, que controlavam os maiores contingentes
eleitorais e que se revezaram no poder de 1894 a 1930. As eleições
para o Congresso (os senadores não eram mais vitalícios) e para presidente passaram a ser diretas. O sufrágio passou a ser livre, não obrigatório e universal (sem contar a renda) mas apenas para homens
alfabetizados maiores de 21 anos, o que ainda restringia muito o universo de eleitores.
Apesar de algumas tendências centralizadoras, várias conquistas liberais foram alcançadas, como autonomia administrativa dos Estados, que puderam elaborar suas próprias constituições, estabelecer
tributos locais, contrair empréstimos no exterior e criar sistemas judiciários, policiais e militares estaduais. Tais medidas beneficiaram os Estados mais desenvolvidos como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande
do Sul, pois a tributação estadual consentia na adoção de políticas regionais independentes da União.
Por fim, no tocante “aos direitos e garantias do cidadão” manteve-se o liberalismo, vigente desde a carta do Império.
Como os homens de 1824, os de 1891 acreditavam religiosamente
nas fórmulas do liberalismo político. Embutia-se o Brasil no molde
norte-americano, como, outrora, o tinham enquadrado no
constitucionalismo francês. Da extrema centralização para o mais
largo federalismo, eis o salto que ele ia dar. Era idêntica, todavia, a
inspiração das duas Constituições: o individualismo político e econômico, ascendente no mundo em 1824, e em pleno apogeu em
1891. No começo, como no fim do século, pelo modelo europeu ou
pelo modelo norte-americano, o domínio ideológico era ainda o dos
filósofos da Enciclopédia, de Rousseau e dos economistas liberais.
A diferença essencial entre a constituinte monárquica e a republicana consistia no desaparecimento das fortes rivalidades entre unitáriRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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os e federalistas.1 1
Como vimos, a primeira eleição presidencial foi feita no âmbito
do Congresso em 1891, quando o marechal Deodoro venceu Prudente de Morais por uma pequena margem de votos, contudo, na eleição
para o cargo de vice-presidente a delicada estabilidade entre os candidatos não seguiu a mesma tendência e o vice da chapa de Prudente, o
marechal Floriano Vieira Peixoto (1839-1895), venceu com ampla margem o candidato da chapa de Deodoro, o ministro da marinha Eduardo
Wandenkolk. Esse escrutínio causou apreensão no Congresso, pois,
Cedendo à pressão das tropas e para evitar uma possível intervenção militar, seguida de confronto com sérias conseqüências, os parlamentares sufragaram o nome de Deodoro. (...) No dia da posse,
enquanto Deodoro era recebido por “palmas protocolares”, a entrada de Floriano no recinto do Congresso foi saudada com uma “ovação delirante”.1 2
a antipatia entre Deodoro e os “casacas” (civis) era recíproca
em razão de seu afastamento dos interesses dos cafeicultores paulistas
e o seu mandato constitucional foi marcado por atitudes autoritárias de
sua parte, homem acostumado com a disciplina dos quartéis. Em verdade, o pacto circunstancial realizado pelos parlamentares para a primeira eleição presidencial desagradou os setores que se intitulavam
“defensores do 15 de novembro”, como as oligarquias regionais, os exliberais, os republicanos históricos e militares não-positivistas. Tais setores passaram a fazer oposição sistemática a Deodoro. Oportunista,
Floriano aderiu a esse bloco de descontentes.
Já no Rio Grande do Sul, as divergências internas intensificariam-se com a volta de Gaspar Silveira Martins, beneficiado por medida
de Deodoro, anulando a expulsão dos exilados políticos. Quando do seu
desembarque no Rio de Janeiro, no início de 1892, Silveira Martins passou a fazer severas críticas tanto ao marechal Floriano, como a Júlio de
Castilhos, que mesmo afastado da presidência do Rio Grande do Sul
continuava sendo o homem forte do Estado. Martins propunha a instala11
12
BELLO, José M. História da República. São Paulo: Nacional, 1983, p. 72.
MONTEIRO, Hamilton M. Brasil república. São Paulo: Ática, 1986, p. 39.
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ção de uma república parlamentarista aos moldes do Império, idéias
que não agradaram nem um pouco a Floriano.
Do Rio de Janeiro, Silveira Martins seguiu para o Rio Grande
do Sul, dando início à oposição ao Partido Republicano Rio-Grandense
de Castilhos, que defendia, ferreamente, a autonomia estadual, leal ao
preceito positivista das “pequenas pátrias.”
Sobre o retorno de Silveira Martins, Edgard Carone refere,
Em 19 de novembro de 1890, Deodoro da Fonseca decreta a anulação do banimento dos monarquistas e, em junho do ano seguinte,
Ouro Preto volta ao Brasil; em 5 de janeiro de 1892, Silveira Martins
aporta no Rio de Janeiro, onde se encontra com Floriano e diz “estar
tudo errado; que precisava desfazer-se o que estava feito para adotar a república parlamentar”. Sua vinda vai incentivar o movimento
oposicionista no Rio Grande do Sul e, no futuro, o desencadeamento
da revolução federalista, apesar de ser, o próprio Gaspar Silveira
Martins, contrário à ação armada. À sua chegada ao Rio é recebido
com aclamações e declara que seu programa é a defesa do parlamentarismo.1 3
Desde a demissão coletiva do primeiro ministério do Governo
Provisório, em janeiro de 1891, Deodoro chamou o barão de Lucena
para o papel equivalente ao de chefe de Estado e lhe ofereceu os ministérios da Justiça e da Agricultura. Após a promulgação da Constituição,
Lucena permaneceu como ministro interino das pastas, mas depois, em
caráter efetivo, passou a ministro da Fazenda.
Sem maioria no Congresso, Deodoro teve sua atuação presidencial estorvada. Diante disso, o presidente sentiu-se acossado e passou a adotar uma série de medidas polêmicas, que envolviam concessões de obras sem concorrência, substituição de presidentes de Estados, taxações alfandegárias, entre outras. O presidente alegava boa fé e
tinha crença de estar contribuindo para o desenvolvimento do país.
Mas o Congresso não compartilhava essa opinião e intensificou o boicote e a investigação dos atos do presidente. A situação tornou-se insuportável até a consumação do ato desesperado
13
CARONE, Edgard. A república velha: evolução política. São Paulo: Difel, 1971, p. 80.
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de 3 de novembro de 1891.
Em reunião no palácio, Deodoro reclama do Congresso: chama-o
de “ajuntamento anárquico” e proclama a necessidade de seu fechamento “para a felicidade do Brasil”. (...) Acostumado aos expedientes monárquicos de dissolver a Câmara, quando convinha ao Executivo, Deodoro usa-o, inconstitucionalmente. Não se estava mais no
Império, e o regime republicano não admitia atos desse tipo, a não ser
por meio de um golpe militar ou rebelião popular, fugindo completamente à ordem legal. O que o Presidente não entendia era que a defesa da Constituinte e a legalização do novo regime foram levantadas
pelas forças conservadoras, encabeçadas por São Paulo.1 4
A atitude de Deodoro demonstra o quanto ele ainda estava
imbuído do jogo político imperial, quando, em situações intrincadas, o
Imperador dissolvia o parlamento por meio do Poder Moderador e convocava novas eleições. Mas os tempos eram outros e, ainda que muitos acatassem o fechamento do Congresso e a decretação do “Estado
de Sítio”, alguns deputados intensificaram um movimento de resistência
que atraiu setores da Marinha, ligados ao almirante José Custódio de
Melo (1840-1902), que prometeu “apontar seus canhões” contra o golpe. Deodoro aventou o confronto, mas desistiu, receando que o choque
das armas levasse o país a uma guerra civil.
Enfermo e aborrecido, Deodoro chamou Floriano para a transmissão do cargo e assinou sua renúncia a 23 de novembro de 1891. A
resistência da Armada mostrava o quanto a República dependia dos
militares e como o poder civil ainda era frágil frente às vicissitudes do
novo regime. Assim como seu antecessor, o marechal Floriano era um
veterano “tarimbeiro” da Guerra do Paraguai, e, apesar de ter sido
ministro da Guerra do Governo Provisório em 1890, Floriano representava, no meio militar, uma ala mais envolvida com a causa dos
republicanos “históricos”. Sobre a cisão no ambiente castrense Boris
Fausto esclarece,
As forças armadas não atuavam como um grupo homogêneo diante
de uma classe social cujos representantes políticos se achavam
14
MONTEIRO, Hamilton M. Op. Cit., pp. 42-43.
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unidos. As rivalidades se recortavam entre Exército e Marinha – razão principal da Revolta da Armada – entre quadros jovens e velhos,
entre partidários de Deodoro e Floriano. A disputa entre os seguidores dos dois chefes, cujos objetivos não eram, essencialmente diversos, demonstra como a unidade do grupo se quebrava diante de
lealdades pessoais. A influência militar foi, sem dúvida, muito grande
nos primeiros anos da República, a ponto de apenas metade dos
Estados ser governada por civis. Entretanto, mesmo nesta época
de apogeu, os militares partilharam o poder com o núcleo agrárioexportador, fizeram-lhe concessões essenciais e, para bem ou mal,
acabaram por ceder-lhe as rédeas do governo.1 5
Tão logo assumiu, Floriano revogou o Estado de Sítio, convocou o Congresso Nacional para o mês seguinte e garantiu respeito à
Constituição. Não obstante, depôs todos os governadores que apoiaram o Golpe Deodoro (só o Pará escapou), dissolvendo as assembléias locais, e nomeando militares de confiança nas presidências dos Estados. Os presidentes dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Maranhão e Amazonas protestaram e foram refreados pelo
Exército. Floriano começava a pôr as mangas de fora...
Na implantação da República, o Rio Grande do Sul possuía duas
correntes políticas bem definidas: os republicanos castilhistas e os parlamentaristas gasparistas e a oposição não aceitou, passivamente quando Castilhos manteve-se reservado face ao malogrado golpe de Deodoro
em fechar o Congresso e organizou a “União Nacional”.
Quando Castilhos resolveu se declarar contrário à ação de
Deodoro o tempo hábil já tinha passado e o Rio Grande do Sul inteiro
mobilizara-se com rebeliões militares em São Borja, Uruguaiana, Alegrete, Bagé, Jaguarão, Rio Grande, São Gabriel e Quaraí, manifestações civis em Porto Alegre e Bagé e, na serra gaúcha, o líder Antônio
Prestes Guimarães alardeou ter 2.500 homens para a pugna. Castilhos
se viu acuado frente a um comitê que exigia sua renúncia e acabou
deixando o cargo para uma junta governativa que ele próprio escarneceu com a conhecida pecha de “governicho” (período compreendido entre
15
FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de história da república (1889-1945). São Paulo: Cadernos
CEBRAP, n.º 10, 1973, p. 2.
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12 de novembro de 1891 a 17 de junho de18921 6).
A tensão política no Rio Grande do Sul estava apenas começando, já que nesse ínterim era fundado, em Bagé, o Partido Federalista
Brasileiro, presidido por Silveira Martins e composto por antigos correligionários do Partido Liberal. Unidos no combate a Júlio de Castilhos,
os federalistas propunham a revisão da Constituição estadual e o fortalecimento do poder federal por meio do parlamentarismo. Para eles, o
positivismo castilhista feria as “sacrossantas” liberdades individuais resguardadas pela doutrina liberal.
Ironicamente, Castilhos havia sido articulista e diretor do jornal republicano “A Federação,” fundado em 1884. Na verdade, dentro
da teoria clássica, o federalismo, de acordo com o cientista político
Lucio Levi, pode ser entendido como,
O princípio constitucional no qual se baseia o Estado federal é a
pluralidade de centros de poder soberanos coordenados entre eles,
de modo tal que ao Governo federal, que tem competência sobre o
inteiro território da federação, seja conferida uma quantidade mínima de poderes, indispensável para garantir a unidade política e econômica, e aos Estados federais, que têm competência cada um sobre o próprio território, sejam assinalados os demais poderes.1 7
Destarte, os republicanos de Castilhos encaixar-se-iam melhor na defesa do conceito de federalismo exposto acima que os próprios federalistas de Silveira Martins.
Após o fracasso do golpe, Deodoro retirou-se da política, vindo a falecer em agosto de 1892 e Castilhos retornaria à polêmica
jornalística e à política de oposição, organizando “Movimento
Reivindicador.” Todavia, as dificuldades da política fizeram com que o
“Marechal de Ferro” apoiasse Castilhos, diante do mal maior que era
Gaspar Silveira Martins. Política tem dessas coisas...
O impasse estava criado e as duas facções passaram a se confrontar, nem sempre, apenas no campo das idéias. O “governicho” não
conseguia se manter no poder, e após várias vicissitudes os republica16
17
FLORES, Moacyr. Dicionário de história do Brasil. Porto Alegre: Ed. da PUC-RS, 1996, p.244.
LEVI, Lucio. “Federalismo.” In: Dicionário de Política. Brasília. Editora da UnB, 1991, p. 481.
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nos castilhistas assenhorearam-se novamente do poder em meados de
1892 e a tensão política resultou na perseguição dos federalistas que
acabaram, ao final desse ano, refugiando-se no Uruguai a fim de organizarem, militarmente, o “Exército Libertador”, e a partir de fevereiro de
1893 iniciaram as invasões ao Rio Grande do Sul.
Entrementes, ao assumir a presidência, Floriano nomeou o fazendeiro paulista Francisco de Paula Rodrigues Alves para a Pasta da
Fazenda, que estabeleceu uma política econômica conservadora, com
diminuição da emissão de moeda, obtenção de financiamentos externos,
alta dos juros, aumento dos gastos do governo, desestimulando uma política pública de financiamentos para empreendimentos industriais.
O artigo 42 da Constituição da República previa que, “no caso
de vaga, por qualquer causa, da presidência ou vice-presidência, não
houvessem ainda decorridos dois anos do período presidencial, proceder-se-ia a nova eleição”. Floriano, a princípio, nem se preocupou com
esse dispositivo constitucional, alegando que seu caso era excepcional,
pois as “Disposições Transitórias” que fixaram a eleição indireta dele e
de Deodoro previam que, “o presidente e o vice-presidente eleitos na
forma deste artigo (via indireta) ocupariam seus cargos por quatro anos”,
dessa feita, para ele, seu mandato era legal até o final do período, previsto para Deodoro em 1894.
Essa artimanha gerou debates exaustivos nos jornais e no Congresso, órgão competente para a solução da pendência, e este manifestou-se pela permanência de Floriano na presidência até 1894. Evidentemente, essa era uma decisão mais política do que jurídica e outra vez os
paisanos arrefeciam frente aos acenos de intervenção militar.
Como foi visto anteriormente, não existia unidade entre as armas brasileiras e, no início de 1892, Floriano começaria a se deparar
com as primeiras sublevações militares contra seu mandato com o
motim das tropas das fortalezas de Santa Cruz e Lage na capital federal. Acossado, Floriano ordenou a prisão dos soldados insubordinados. Em abril do mesmo ano, oficiais não deixariam passar incólumes
tais atitudes, Fernando Henrique Cardoso sobre isso infere,
Em torno a esta questão (do artigo 42) articulou-se o eixo político da
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oposição e o processo culminou quando, mais uma vez, os militares envolveram-se na conspiração. O Manifesto dos treze generais
pedindo eleições e apontando a desordem reinante, bem como a
recusa de Floriano a acatar o pedido, seguida da reforma dos militares, começou a apontar o caminho escolhido pelo Marechal para
romper o impasse: o reforçamento do poder presidencial.1 8
A solução draconiana para o caso dos generais provocou protestos, que Floriano reprimiu com igual diligência: deportou militares,
jornalistas e parlamentares oposicionistas para lugarejos remotos da
Amazônia. Era o início das jornadas do “Marechal de Ferro”...
A Revolta da Armada foi uma das rebeliões militares mais sérias
que Floriano enfrentou em seu período presidencial. As ironias do destino fizeram com que o mesmo almirante, que havia garantido sua posse,
Custódio de Melo, agora ministro da Marinha, pedisse exoneração do
cargo e comandasse um segundo levante da marinhagem. Custódio
alegava a mesma justificativa anterior: desrespeito à Constituição, pois,
para ele, Floriano havia se tornado um “ditador”, e clamava pela deposição do presidente e por eleição para o primeiro mandatário da República, na qual o próprio Custódio tinha pretensões eleitorais.
A 6 de setembro de 1893, Custódio apossou-se da belonave
Aquidabã, o que foi seguido pela oficialidade (entre eles Luís Filipe de
Saldanha da Gama, 1846-1895, e Eduardo Wandenkolk, 1838-1902)
e pela marinhagem de dezesseis outros vasos de guerra e dezoito
navios mercantes fundeados na baía da Guanabara. Assim como no
contragolpe naval a Deodoro, Custódio acreditava que seus canhões,
junto ao apoio dos setores civis, seriam suficientes para forçar a renúncia de Floriano.
Ledo engano, pois os paisanos não vieram em apoio aos marujos e Floriano contou com a lealdade do Exército, que respondeu
aos bombardeios da Armada da mesma forma. Diante do impasse, os
insurretos resolveram, em dezembro do mesmo ano, dividir a esquadra
e rumar para o sul atrás do suporte dos federalistas, o que facilitou a
18
CARDOSO, Fernando H. “Dos governos militares a Prudente – Campos Sales.” In: História Geral da
Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, Tomo III, 1º vol., 1985, p. 43.
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tarefa de Floriano, na capital, obtendo, rapidamente, o controle das fortalezas e das tropas terrestres da Marinha e passou a arquitetar a compra de navios para o combate marítimo, o que passaria para a história
com a denominação jocosa de “Esquadra de Papelão”. A aquisição
dessa esquadra tem um forte caráter simbólico, uma vez que Floriano
preferiu adquirí-la junto aos Estados Unidos, que era uma república, que
junto à Inglaterra, uma monarquia.
A República não alterou, imediatamente, a política externa do Império. De fato, logo após o golpe militar de 15 de novembro, os Estados Unidos desfrutaram de invejável popularidade entre os brasileiros, como acentuou Oliveira Lima. Os Governos de Deodoro e
Floriano empurraram o Brasil para o eixo de Washington, com a
ajuda de Salvador de Mendonça, nomeado Ministro naquela capital.
Era uma forma de contestar o passado e de resistir ao predomínio
da Inglaterra, implantado desde os tempos coloniais.1 9
Os vasos de guerra estrangeiros ancorados na baía da
Guanabara, notadamente da Itália, Portugal, França e Inglaterra, alegando neutralidade, ameaçaram intervir em prol dos seus interesses comerciais nacionais e dos seus concidadãos residentes na capital da
República e declararam o Rio de Janeiro uma “cidade aberta”. Impediram tanto o desembarque de munição para os governistas como pressionaram os revoltosos da Armada contra bombardeios.
Em um episódio lendário, che si non è vero, è ben trovato, um
representante inglês teria indagado Floriano sobre como ele receberia
eventuais forças destinadas à defesa dos interesses britânicos no Rio
de Janeiro, e o marechal teria simplesmente respondido: “à bala!”.2 0
Essa passagem, verdadeira ou não, deixa transparecer o caráter inflexível e implacável de Floriano.
No início de 1894, os revoltosos da Armada tentaram ocupar
Niterói, mas foram contidos. Em março, desembarcava no Rio de Janeiro a Esquadra de Papelão, comandada pelo almirante Jerônimo
Gonçalves, e os rebelados da capital se rendiam, depois de seis meses
de combates.
19
20
BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973, p. 166.
QUEIROZ, Suely R. R. Os radicais da república. São Paulo: Brasiliense, 1986, p 149.
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Triunfante na capital, o governo transferiu suas forças para o sul
do país e, em meados de abril de 1894, o Aquidabã iria a pique no
Desterro, mas a Revolta da Armada só findaria, simultaneamente, à Revolução Federalista, em junho de 1895, com a morte do Almirante
Saldanha da Gama no Campo Osório, Rio Grande do Sul.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.
BELLO, José M. História da República. São Paulo: Nacional, 1983.
CARONE, Edgard. A república velha: evolução política. São Paulo:
Difel, 1971.
CARDOSO, Fernando H. “Dos governos militares a Prudente – Campos Sales.” In: História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo:
Difel, Tomo III, 1º vol., 1985.
COSTA, Samuel G. “Introdução”. In: CARNEIRO, David & VARGAS,
Túlio. História biográfica da república no Paraná. Curitiba: Banestado, 1994.
FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de história da república (18891945). São Paulo: Cadernos CEBRAP, n.º 10, 1973.
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da PUC-RS, 1996.
FRANCO, Sérgio C. Júlio de Castilhos e sua época. Porto Alegre:
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SOUZA, Maria do C. C. “O processo político-partidário na primeira
república.” In: MOTA, Carlos G. (org.) Brasil em perspectiva. São
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PEREIRA, Luís F. L. Paranismo: o Paraná inventado; cultura
e imaginário no Paraná da Primeira República. Curitiba: Aos
Quatro Ventos, 1998.
PESAVENTO, Sandra J. O Brasil contemporâneo. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 1991.
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371
QUEIROZ, Suely R. R. Os radicais da república. São Paulo:
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SODRÉ, Nelson W. A república; uma revisão histórica. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 1989.
WESTPHALEN, Cecília. & BALHANA, Altiva. “A república no
Paraná”. In: Revoluções e conferências. Curitiba: SBPH, 1989.
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ÉTICA NA MAGISTRATURA 390
VALTER MARTINS DE TOLEDO
MAGISTRADO PARANAENSE APOSENTADO. PRESIDENTE DA
ACADEMIA PARANAENSE DE LETRAS MAÇÔNICAS. MEMBRO DA
ACADEMIA DE CULTURA DE CURITIBA.
RESUMO
O texto aborda a questão da ética na magistratura. Após uma reflexão sobre
o que vem a ser ética, caracterizando-a como a ciência que trata do bem e
do mal, das normas morais, dos juízos morais de valor, o autor faz reflexão
sobre este conjunto de normas vivenciais. O artigo, enfim, destaca que a
ética deve pautar todos os atos do homem, seja como cidadão, seja como
magistrado.
ABSTRACT
The text is about the legal ethics. After a reflexion about what is ethic, its
characteristics as a science that deals with the good and the evil, of moral
rules, of moral judge of value, the author makes a reflexion about this group
of living rules. The article, finally, says that the ethics must be in all human
acts, as a citizen or as a lawyer.
PALAVRAS CHAVE - Filosofia; Ética; Magistratratura.
A função de julgar é a mais alta que pode ser confiada a um Homem depois
do ofício dos altares. Assim, a ética deve pautar a vida do magistrado.
Primeiramente, devo expressar a minha satisfação em dirigirme, nesta casa de ensino superior, a tão seleta platéia aqui presente.
O tema a nosso cuidado – a Ética na Magistratura – é de suma
importância nesta quadra da vida nacional em que muitos cidadãos se
sentem desesperançados em relação à justiça, olvidando que somente
se pode aferir o grau de civilização de uma sociedade pela altitude de sua
justiça e pelo respeito que as pessoas votam a seus Juizes.
Fui magistrado! Exerci a função jurisdicional em várias comarcas
paranaenses e, portanto, tenho consciência de que, além da cultura jurídica, impõe-se que o Juiz seja um Homem verdadeiro, íntegro, que a
vida e a profissão formaram no cadinho das suas grandezas e das suas
390
Conferência proferida a convite do Prof. Dr. Flori Antonio Tasca na Disciplina “Deontologia
Jurídica” do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa.
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dores. Eis o motivo pelo qual a ética deve pautar todos os seus atos,
seja como cidadão, seja como magistrado!
Filosoficamente, a ética é a ciência que trata do bem e do mal,
das normas morais, dos juízos morais de valor e opera uma reflexão
sobre este conjunto de normas vivenciais; tem, igualmente, por objeto, a
determinação do fim ou objetivo da vida humana, assim como dos meios para atingi-lo. Portanto, é a ciência que estuda e tem como desiderato
os modos de existência segundo o que é bom ou mau. Representa a
doutrina dos costumes sob a luz de valores permanentes. Simboliza a
sabedoria no viver e expressa o procedimento ideal. Como toda ciência, a ética começa como filosofia e termina como arte – arte de viver -;
surge como hipótese e remata em realizações – conseqüências do bem
e da virtude -. Enfim, é a trincheira da frente no cerco da verdade, trazendo-nos o mais nobre prazer: a alegria de compreender!
Esta alegria de compreender – a ética -, envolve, na seqüência,
o procedimento ético, que é um conjunto de preceitos a serem obedecidos, para permitir um ideal de realização do Juiz e sua harmônica convivência social, vez que os princípios éticos, em seu exemplo espectro,
visam a estabilidade social e a felicidade coletiva; a ética impõe deveres, mas também outorga direitos e, destarte, expressa a maneira sábia de harmonizar o convívio humano e, através da liberdade de escolhas, permite o aperfeiçoamento da inteligência e do caráter.
Na Magistratura, a ética está intimamente ligada à vocação e à
competência, porque bons juizes são os que dão exemplo de vida – que é
o melhor conselho -, mostrando e demonstrando que a verdade na Justiça
é o Direito, que a verdade no Direito é o bom senso e que a verdade no
bom senso é o exemplo! A vocação, assim como a fé, o amor e o ideal,
ao Juiz é oferecida por acréscimo e chega até ele a partir de uma virtude
superior, inclinando-o, imperiosamente, para o exercício de uma profissão – a de julgar – que tem sentido divino, teológico, como se o Todo
Poderoso, em chamamento, destinasse-o a uma função da qual cobrarlhe-á determinação, persistência e honradez.
Também, vinculada à ética do magistrado, está a competência,
corolário da vocação, que o inclina na busca da perfeição, também reRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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flexo divino; não é sem esforço que se alcança a competência, pois esta
exige disciplina no trabalho e uma gradativa ascensão espiritual. São
vários os degraus a serem galgados: incondicional dedicação, constante análise crítica dos atos praticados, persistente estudo da matéria profissional para adequá-la aos novos tempos e, por fim, enaltecer a
missão enriquecendo-a com algo de novo e melhor.
Como éticos cultores do direito, os magistrados devem ser os
paladinos da lei e da ordem, jamais olvidando que se exige mais coragem em ser justo, parecendo injusto, do que ser injusto, para salvar as
aparências. Prudência, serenidade, honestidade e moderação – princípios essencialmente éticos – são as virtudes que devem balizar a conduta de um magistrado e, acima de tudo, humildade, não uma humildade oriunda de qualquer sentimento de medo ou inferioridade, mas resultante de ausência completa de egoísmo e prepotência. Ao magistrado
cabe, por obrigação ética, a hercúlea tarefa de ajudar decisivamente na
construção de um mundo melhor ,onde o conceito de justiça seja um
apanágio e certeza de liberdade, de paz e de concórdia, nestes novos
tempos, em que as distâncias se apagam e as fronteiras se destroem
mas, ainda, felizmente, sem matar o sonho da existência de uma sociedade onde as brutais diferenças entre os homens serão simples e amargas lembranças do passado. Tal sociedade é um sonho? Uma ilusão?
Uma utopia? É possível, mas se o magistrado não for capaz de sonhar
com uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais feliz, não será digno
da missão que lhe foi confiada e da confiança que os cidadãos e a
Pátria depositam nele – o Juiz.
A ética lhe diz que um objetivo na vida é a única fortuna valiosa
que se encontra e, ressalte-se, não se deve procurá-la fora, mas primeiro dentro do coração. Que a simpatia é a colheita da semente da
gentileza; que nunca deve se apegar a ideologias defuntas, utopias
esquecidas ou conceitos fossilizados,, que poluem o espaço mental
de alguns julgadores. Deve lembrar-se, sempre, que da dignidade ética do Juiz depende a própria dignidade do Direito e, assim, o Direito
valerá o que valham os Juizes como homens, no seu espírito de sacrifício, no seu amor ao trabalho, na sua autoridade, na sua dedicação à
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causa da justiça e, principalmente, na confiança de sua escolha da
profissão de julgar, pois uma mão que treme não pode manejar uma
pena na defesa da verdade, fugindo do medo, esquivando humilhações
e desconhecendo a covardia; deve Ter consciência plena de que a
magistratura tem algo de heróico em si mesma, na pureza imaculada e
na plácida rigidez, que a nada se dobre e a nada se tema, senão à
justiça divina. A missão é um sacerdócio, difícil mas gratificante. Difícil,
pelas longas horas de estudo e pesquisas, no penoso processo de
identificação da solução mais correta e mais justa, na vida, necessariamente, mais austera, levando, às vezes, ao isolamento e quase à solidão. Gratificante, pela compensação da consciência da grandeza da
tarefa e pelo alcance social do trabalho de dirimir conflitos de interesses, dando a cada um o que é seu, segundo a antiga, mas sempre justa
formula assentada há séculos pelos tribunos romanos.
O conceito ético-vivencial do magistrado pede, constantemente, a lição dos seus silenciosos heroísmos, dos sofrimentos tantas vezes escondidos até mesmo dos entes mais queridos, a lição das suas
noites de vigília, no isolamento dos gabinetes de trabalho; lições essas
em que encontra a inspiração e o alento de que precisa para bem desempenhar o mandato da justiça – equilíbrio entre a moral e o direito.
Imbuído de tal princípio ético, o magistrado crê na liberdade
onipotente, criadora das nações robustas; crê na lei que emana dessa
robustez; crê na soberania do direito e não do Poder, direito esse interpretado pelos Tribunais; crê na soberania popular, mas com limites impostos pela inspiração jurídica constitucional para frear as paixões
desordenadas; crê na República e na Federação desde que acatem e
elevem a Justiça; porque da justiça nasce a confiança, da confiança, a
tranqüilidade, da tranqüilidade, o trabalho, do trabalho, a produção, da
produção, o crédito, do crédito, a opulência e da opulência, a respeitabilidade, a duração e vigor da nação. Crê na tribuna sem fúrias e na
imprensa sem restrições, porque crê no poder da razão e da verdade;
crê na moderação e na tolerância, no progresso e na tradição, no respeito e na disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor
insuprível das capacidades. Rejeita as doutrinas do arbítrio; abomina
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as ditaduras de todo gênero, militares ou científicas, coroadas ou populares ; detesta os estados de sítio, as suspensões das garantias, as
razões de Estado, as pretensas leis de salvação pública!
A ética oferta ao magistrado a noção de valores. De uma escala de valores morais que lastreiam a sociedade. Sabe que dos autos –
do processo - extravasa a vida! Conflito da mais variada natureza. Interesses nobres e mesquinhos. Paixões e ambições. Clamores de amor
e ódio. Amarguras, angústias, altruísmo, prepotência, grandeza ou pequenez de espírito. Honra, liberdade, patrimônio, sentimentos e valores
díspares. Penetra no amálgama da vida, em que os homens se amesquinham ou se engrandecem, tudo isso emergindo das folhas do processo, refletindo a vida, nos contornos dos conflitos humanos com suas
múltiplas variações, em forma e substância, da realidade social em constante transformação.
Sabe – deve saber – o magistrado, que como intérprete da lei,
cumpre-lhe, eticamente, aplicá-la com inteligência e bom senso, de
modo que, sobre a letra que mata, prevaleça o espírito que vivifica, segundo a sábia advertência evangélica. Não sendo ele, porém, quem faz
as leis , nem estando elas sob julgamento, e sendo-lhe interditado decidir contra essas mesmas leis – contra legem -, pois a interpretação tem
limites, vê-se o magistrado, não raras vezes, na contingência de aplicar
um preceito que, no seu modo de pensar e sentir, não atende melhor à
idéia de justiça. Estes conflitos, não chegam a ser de consciência ética,
mas lhe causam ignorados sofrimentos que passam quase sempre desapercebidos dos que se arvoram de juizes dos que julgam, atribuindo
ao Juiz erros que não cometeu, intenções que não teve, sentimentos
que não abriga em seu coração. Mal sabem as partes envolvidas nos
litígios, nas ações, nos processos, que o magistrado, por um singular e
complexo processo de transferência, absorve a angústia das partes, sente
e compreende as suas aspirações e suas preocupações e sofre com
elas em forçado silêncio, nem sempre podendo encontrar no
ordenamento jurídico a solução para os seus problemas, até mesmo
porque, a solução estaria menos na lei do que na tolerância, na compreensão, no desprendimento, no altruísmo, no espírito fraterno, no amor,
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enfim, em qualidades de que são tão carentes as relações entre as criaturas humanas – qualidades éticas, porque oriundas da noção do bem
e do mal. Por estas razões, o magistrado realiza um trabalho,
freqüentemente, solitário e incompreendido. É preciso possuir e cultivar
excepcionais atributos éticos, tais sejam a energia sem aspereza, o rigor que não exclui a sensibilidade, a altivez sem arrogância, a bondade
não confundida com fraqueza, a paciência que não é passividade, a
tolerância sem transigências que comprometam o estrito cumprimento
do dever, a modéstia e a humildade que não excluem a enérgica defesa
das prerrogativas e da dignidade do seu cargo e da nobreza de sua
função de julgar. É, enfim, a busca permanente da verdade e da justiça,
no caminho fascinante do Direito, que contém a vida, pois nenhum fato
ou interesse humano é irrelevante para esta ciência que é de todas a
mais abrangente, a mais bela, e, ao mesmo tempo, a mais complexa.
Finalizando. Agradecendo a honrosa atenção com que fui distinguido nesta Academia, ofereço a todos as flores da minha gratidão e, não
falseando a modéstia, encerro este gratificante encontro com os nobres
presentes, afirmando: a Ética é o sustentáculo da Justiça e, a Justiça é o
alicerce da Pátria. No momento em que os princípios éticos inundarem
as almas, o Tribunal será o abrigo do inocente, o Juiz, o pai do oprimido e,
a Justiça, o nervo da República. Como advogado e ex-magistrado faço
esta afirmação com a santidade e a eficácia de uma prece e, nesta, peço
que a felicidade acompanhe a todos, hoje e sempre!
Meus caros e futuros bacharéis:
Se eu fosse uma árvore frondosa de imensa copa, daquelas que
habitam o cerrado do nosso planalto central, com sombra amiga e
aroma agradável das flores, transformar-vos-ia em soldados
espartanos – aqueles que faziam do peito muralha da Pátria – mesmo que empunhando tacape, arco e flecha, pudessem iniciar a grande e imperecível batalha pela prática da ética em nossa comunidade, como não tenho esse poder, fica a sugestão!
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FAMÍLIA: CONCEITO EM TRANSFORMAÇÃO
JULIANE GRIGOLETO MAYER
PROFESSORA DA UNIGUAÇU. MESTRANDA EM CIÊNCIAS SOCIAIS
APLICÁVEIS NA UEPG. ADVOGADA NO PARANÁ.
RESUMO
O artigo trata das novas modalidades de família existentes e suas
conseqüências no mundo jurídico, defendendo a existência da família
homossexual, à luz da Constituição Federal e das leis ordinárias. A autora
desenvolve no texto diversas idéias, como a união baseada no afeto dos
homossexuais e a possibilidade de adoção. O trabalho, enfim, desenvolve
reflexão crítica acerca da necessidade de adequação do Direito frente às
transformações no conceito de família.
ABSTRACT
The article is about the new modals of families and its consequences to the
juridic world, defending the existence of homossexual families, to the vision of
Federal Constitution and the ordinary acts. The author develops in the text
seceral ideas, as the union based in the homosexual love and the possibility of
adoption. The work, finally, develops a critical reflexion about the necessity of
changing the Law because of the transformation in the concept of family.
PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Civil; direito de
família; família homossexual.
INTRODUÇÃO
A família é considerada a instituição primeira, da qual proveio a
forma de governar e o Estado. Com o tempo, a família sofreu algumas
transformações. Essas modificações alteraram o conceito de família e
ocasionaram a formação de uma nova concepção como a família homossexual, que será o tema central desta abordagem.
Da família em transformação pode-se salientar que, atualmente, convivem na sociedade brasileira os modelos de família: patriarcal,
que tem o pai como centro e a ele cabe todo o poder; monoparental com
um dos genitores e o filho ou os filhos; nuclear constituída pelos pais e
sua prole; eudemonista ou afetiva, que centra suas relações no afeto
entre os membros e a original, no sentido de não se adequar aos conRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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ceitos clássicos, “família homossexual”.
Essas famílias podem surgir do matrimônio e/ou da união estável.
Para que se compreenda melhor a abordagem do tema, utilizar-se-ão os estudos realizados sobre a homossexualidade que mostram algumas facetas desta expressão da sexualidade.
Na seqüência, será necessário discorrer sobre a união afetiva
entre homossexuais, que acontecem desde a Antigüidade grega. E que
o fato de haver certa intolerância por uma parcela da sociedade contemporânea, não significa que os homossexuais devam ter seus direitos negados.
Pelo contrário, com base na Constituição Federal e no princípio
da dignidade da pessoa humana, surge o pensamento de doutrinadores,
que como a Desembargadora Maria Berenice Dias, consideram a união
afetiva homossexual como entidade familiar, facultando a possibilidade
de adoção de crianças por pares homossexuais.
Ao tratar a adoção por homossexuais, mister se faz relatar como
este instituto nasceu no ordenamento jurídico e como é regulado atualmente. A seguir, indicar-se-á como se dá a adoção por homossexuais no Brasil e em alguns países da Europa, com o intuito de expor
como se nega à pessoa homossexual o direito a ser diferente, ou seja,
assumir a homossexualidade e ser respeitado, sem exclusão.
Abordar-se-á o direito à diferença como possibilidade admitida, na quarta geração de direitos, para que os homossexuais vivam a
sua sexualidade e sejam tratados com dignidade.
A FAMÍLIA EM TRANSFORMAÇÃO
Por mais simples que possa parecer conceituar família, o
parâmetro utilizado é o de que é a base da sociedade ou que é composta por pai, mãe e filhos. Mas o que se sabe é que família não é um
conceito unívoco ou estanque.
Para o direito, o berço da legislação provém de Roma e, portanto, em matéria de civilização, o princípio da narrativa histórica se dá
por ela. Desta concepção de família extrai-se que havia uma forte ligação com o patrimônio. Segundo Wald (2002, p. 30), a palavra família,
no direito romano “não apenas significava o grupo de pessoas ligadas
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pelo sangue, ou por estarem sujeitas a uma mesma autoridade, como
também se confundia com o patrimônio nas expressões actio familae
erciscundae, agnatus proximus familiam habeto e outras.”
Conforme narra Coulanges (2001, p. 45) o pressuposto de união
na família romana era a religião e os antepassados.
Para Ariès e Duby (1989, p.46-59), com o casamento, a mulher
deveria aderir ao culto do deus do marido em substituição ao culto ao
deus doméstico do pai, por isso havia uma discriminação em relação
às filhas mulheres.
A família patriarcal descende da família romana que tinha um
caráter jurídico, econômico e religioso cuja autoridade suprema era
exercida pelo pater familias.
Essa família patriarcal foi acolhida pelo Código Civil de 1916
que atende a todos os princípios do individualismo:
Como dissemos, o CC apresentou-se como um diploma do seu
tempo. I.e., um ordenamento para a época, razoavelmente, atualizado,
informado que foi pelas luzes dos nossos melhores doutrinadores, cujo
talento em nada desmerecia o padrão científico universal. Sucede, porém, que o seu tempo foi exatamente um tempo de transição do direito
individualista para o direito de cunho social, conforme os padrões da
célebre Constituição de Weimar, de 1919. FRANÇA (1977, p.393)
Com base neste ordenamento, o papel a ser desempenhado
pelo pai e marido é o de prover o sustento da mulher e dos filhos, competindo-lhe a administração dos bens. A mulher é considerada, relativamente, incapaz de exercer, por si própria, os atos da vida civil, permanecendo sob a “tutela” do marido e cabeça do casal, a quem cabe tomar
as decisões pelo grupo. A situação de incapacidade relativa da mulher
foi modificada em 1962, com o advento do Estatuto da Mulher Casada
e, depois da Constituição de 1988 e do advento do Novo Código Civil
homem e mulher são iguais em direitos e obrigações.
O Código Civil de 1916, seguindo os mandamentos da Igreja,
prezava pela indissolubilidade do vínculo matrimonial, o qual uma vez
contraído só se desfazia pela morte de um dos cônjuges.
O modelo de família patriarcal matrimonializado obedece uma
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hierarquia de papéis a serem desempenhados, cabendo ao senhor e
pai atividades públicas e à mulher e aos filhos atividades domésticas.
Cabe ressaltar que o matrimônio serve à legitimação das relações sexuais, ou, nos dizeres de Foucault (1997, p.40) “a conjugalidade
é para a atividade sexual a condição de seu exercício legítimo.”
Bem como para a moral judaico-cristã, que se coaduna com o
capitalismo, as relações sexuais só podem gerar filhos, não proporcionar o prazer: “poderíamos ficar inclinados a reconhecer aqui a antecipação da idéia cristã de que o prazer sexual é nele mesmo uma mancha,
que apenas a forma legítima do casamento, com a proibição eventual,
poderia tornar aceitável.” (FOUCAULT, 1997, p. 41).
Entretanto, a família patriarcal constituída, a partir “do conúbio
entre o homem e a mulher e que vai merecer a mais deliberada proteção do Estado que nela vê a célula básica de sua organização social”
(RODRIGUES, 1991, p.6). Começara um processo de transformação.
A partir de meados do século XIX citam-se como fatores que
contribuíram para esta mudança:
a urbanização acelerada decorrente dos processos de industrialização e do êxodo rural;
as revoluções tecnológicas, as profundas modificações econômicas que possibilitaram às mulheres o ingresso no mundo do trabalho fora de casa;
as transformações comportamentais;
o uso de anticoncepcionais;
os movimentos de emancipação;
a menor interferência da Igreja no Estado;
a possibilidade de divórcio, entre outros.
Para os doutrinadores do meio jurídico, a família estruturada
seria composta por pai, mãe e descendentes e ligados pelo parentesco. Para Lira (1999, p. 81) a família é uma “instituição jurídica e social
resultante das justas núpcias, contraídas por duas pessoas de sexo
diferente”.
Já para Orlando Gomes (1995, p. 30), família “em acepção
‘lata’, compreende todas as pessoas descendentes de um ancestral
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comum, unidas pelo laço do parentesco, as quais se ajuntam os afins” e,
em sentido estrito “limita-se aos cônjuges e descendentes”. Interessa
essa acepção para fins sucessórios e de pensão alimentícia.
Comunga deste entendimento Espínola (2001, p. 10) “a palavra
família compreende as pessoas unidas pelo casamento, as provenientes
dessa união, as que descendem de um tronco ancestral comum e as vinculadas por adoção.” O conceito de Espínola foi atualizado para permitir a
inserção da família não matrimonializada, decorrente da união estável.
Porém, como já entendia Morgan “a família é o elemento ativo;
nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a
uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais
baixo para outro mais elevado.” (apud ENGELS, 1981, p. 4)
É por isso que, atualmente, convivem, harmoniosamente, numa
mesma sociedade os modelos de família patriarcal, a família nuclear,
que surgiu a partir da década de 60, conforme Leite (1997, p.16)
centrada sobre ela própria e sobre a criança, a qual substituiu a família
numerosa por uma célula mais restrita.
A família monoparental, que é aquela formada pelos filhos e
um dos genitores ou com outra pessoa. Cujos fatores determinantes
de sua formação podem ser : o celibato; a separação; o divórcio; a
união livre; a viuvez; motivos de ordem sócio-econômica como a inserção da mulher no mercado de trabalho, a contracepção, a longevidade,
a divisão ou não de papéis de gênero.
E é dessa forma que a família ganha uma nova acepção. A família não é somente formada por ascendentes, descendentes, não se origina, exclusivamente, pelo matrimônio, poder-se-ia dizer que a família atual
busca a realização plena dos seus membros, envolvendo mais a afetividade
que a propriedade. Nasce assim o conceito de família eudemonista ou
família afetiva, que transforma o conceito da família:
A família transforma-se no sentido de que se acentuam as relações de sentimentos entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas
contra as pressões econômicas e sociais. É o fenômeno social da família conjugal, ou nuclear ou de procriação, onde o que mais conta, portanRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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to, é a intensidade das relações pessoais de seus membros. Diz-se,
por isso, que é ‘a comunidade de afecto (sic) e entre-ajuda.’ (OLIVEIRA
e MUNIZ, 1990, p. 11)
E sobre a ideologia do afeto para a formação de uma família:
O afeto é que conjuga. Apesar da ideologia da família parental de
origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é requisito
indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai
e mãe. Há famílias só de homens ou só de mulheres, como também
sem pai ou mãe. Ideologicamente, a atual Constituição brasileira,
mesmo superando o patriarcalismo, ainda exige o parentalismo: o
biparentalismo ou o monoparentalismo. Porém, no mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal – tão forte e tão
estreito, tão nítido e persistente que homem independe do sexo e
até das relações sexuais, ainda que na origem histórica tenha sido
assim. (BARROS, 2002, p. 9)
Barreto (2001, p. 137) ao comentar a obra de Rosana Amara
Girardi Fachin, em busca da família do novo milênio: uma reflexão
crítica sobre as origens e perspectivas do direito de família brasileiro
contemporâneo, afirma que a família procriacional-patriarcal cede lugar para a família, baseada na “comunhão de interesses e de vida,
alicerçada, mais do que no contrato, nos laços de afeto e solidariedade
entre os indivíduos.”
A família, agora é dotada de um dinamismo que dispensa o Estado e a Igreja para se constituir e para sobreviver, é uma instituição da
história humana e, por isso sua existência não é linear. Como vimos, a
família é o “ ‘locus’ de amor, sonho, afeto, companheirismo.” (VILLELA,
1999, p.16 e 18)
E, diante dessas múltiplas possibilidades e assumindo o contorno que se refere a relações de afeto é que se pode incluir no amplo
conceito de família, a família homossexual:
A liberação sexual, sem dúvida, em muito contribuiu para a formação desse novo perfil de família. Não há mais necessidade do casamento para uma vida sexual plena. Algumas pessoas se encontram,
se gostam, se curtem por algum tempo, mas cada qual vive em sua
própria casa, em seu próprio espaço. O objetivo dessa união não é
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mais a geração de filhos, mas o amor, o afeto, o prazer sexual. Ora,
se a base da constituição da família deixou de ser a procriação, a
geração de filhos, para se concentrar na troca de afeto, de amor, é
natural que mudanças ocorressem na composição dessas famílias. Se, biologicamente, é impossível duas pessoas do mesmo sexo
gerarem filhos, agora, como o novo paradigma para a formação da
família – o amor, em vez da prole – os ‘casais’ não necessariamente, precisam ser formados por pessoas de sexo diferentes.
MASCHIO (2002, p. 1)
Para Prado (1985, p. 8) a família homossexual é um exemplo
de família original, sendo a acepção da palavra original utilizada pelo
autor como aquela que não se adequa aos conceitos clássicos de família. Esta família homossexual surge “quando duas pessoas de mesmo
sexo vivem juntas, com crianças adotivas ou resultantes de uniões anteriores.” (PRADO, 1985, p. 22).
A UNIÃO AFETIVA ENTRE HOMOSSEXUAIS
A HOMOSSEXUALIDADE
Antes de se abordar o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo é preciso entender a homossexualidade.
A palavra homossexual, de acordo com Mott (2003, p. 1), tem
sua origem etimológica grega e significa sexo (sexu) semelhante
(hómos), que com a junção indica a prática sexual entre pessoas do
mesmo sexo, quer seja homem com homem ou mulher com mulher. O
termo homossexual foi criado em 1869, pelo jornalista húngaro Benkert.
Existem as derivações, sendo uma delas a palavra homossexualidade, que foi utilizada pela primeira vez na década de 1890 pelo
tradutor de Psycopathia Sexuallis, Charles Gilbert Chaddock.
Até o ano de 1974 a homossexualidade era considerada, pela
medicina, como doença. Foi em 1994, conforme dados de Duarte (1995,
p. 66) e Braga (2002, p. 3), que a Sociedade Americana de Psiquiatria
decidiu retirar a homossexualidade do elenco de distúrbios mentais.
Acerca da origem da homossexualidade existem estudos que
procuram explicá-la, porém, nenhum pesquisador conseguiu definitivamente precisá-la. Assim, atribui-se à homossexualidade fatores biológicos,
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genéticos, hormonais, sociais e psicológicos que podem agir em conjunto e gerar uma pessoa com orientação sexual para o mesmo sexo.
Portanto, pelos estudos realizados, não é possível dizer que a
homossexualidade é uma opção sexual, porque o homossexual, assim
como o heterossexual não escolhe ser uma coisa ou outra, isto de acordo com Fry e Macrae (1984), Martins (2002) e Tesón (1989).
Assim, tem-se preferido dizer que a homossexualidade é uma
manifestação da sexualidade como tantas outras, as quais serão
suscintamente distingüidas:
a) heterossexualidade: praticada por 60% população é a orientação sexual para pessoas de sexos diferentes, segundo Mott (2002, p. 2).
b) Bissexualidade: praticada por 30%, estatística de Mott (2002,
p. 2), é caracterizada “pela alternância na prática sexual, que ora se
realiza com parceiros do mesmo sexo, ora com parceiros do sexo oposto.” (PERES, 2001, p. 119)
c) Homossexualidade: praticada por 10% da população, dados de Mott (2002, p. 2), cuja orientação sexual ocorrer para pessoas
do mesmo sexo. Entre os homossexuais masculinos existe três grandes grupos:
Os gays, popularmente chamados de bichas ou entendidos, incluem os ‘enrustidos’ (infelizmente a maioria!), as ‘bichas fechativas’
e os ‘assumidos’. Entre os assumidos, os ‘gays ativistas’ ou ‘militantes’: são aqueles que se organizam em grupos para defender seus
direitos de cidadania. Transgêneros incluem todas as pessoas que
assumem socialmente o papel de gênero oposto ao sexo biológico
de seu nascimento: o mais comum é o homem assumir-se mulher, e
em número menor, mulheres que passam a viver como homens.
Os transgêneros se vestem de mulher, algumas fazem aplicação
de silicone ou tomam hormônio para feminilizar seu corpo, adotam
nomes e maneiras de mulher. As travestis representam o maior contingente deste grupo, por volta de 20 mil indivíduos, grande parte
vivendo como profissionais do sexo, outras fazem shows ou dedicam-se a profissões ligadas ao mundo feminino. Apesar de ultrafemininas, não rejeitam o próprio pênis, desempenhando eventualmente papel ativo no ato sexual. As transexuais se consideram comRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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pletamente do sexo oposto ao que nasceram, chegando algumas a
realizar operação de transgenitalização ou adequação genital, autorizadas no Brasil desde 1997. O terceiro tipo de praticantes do
homoerotismo são conhecidos popularmente como bofes: tratamse de rapazes ou homens que gostam de transar com gays e
transgêneros, mas que não assumem a identidade homossexual.
Muitos bofes são bissexuais. Os rapazes de programa e michês
transam com homossexuais, alguns, esporadicamente, outros regularmente, sem assumir a própria homossexualidade. Entre as lésbicas há as que são chamadas por elas próprias de sandalinhas,
ladys, sapatas, entendidas e sapatões. Há muita lésbica que se autointitula gay ou homossexual, outras não. (MOTT, 2002, p. 11-12)
d) Intersexualidade: “caracterizada pelo desequilíbrio entre os
diversos fatores responsáveis pela determinação do sexo, o que leva
a uma ambigüidade biológica. (...) Em razão dessa disfunção sexual,
haverá uma discordância entre o sexo genético, gonadal e fenotípico
desses indivíduos.” (PERES, 2001, p. 108 e 110)
Feitas essas distinções, esclarece-se que o presente trabalho
se refere às relações homoafetivas de gays e lésbicas.
OS RELACIONAMENTOS HOMOSSEXUAIS
Os relacionamentos homossexuais sempre existiram: “Antes
mesmo de ter sido escrita a primeira linha da Bíblia, já existiam documentos, no antigo Egito, há mais de cinco mil anos antes de Cristo,
que descrevem relações sexuais entre dois deuses e dois homens.”
(MOTT, 2002, p. 7):
Na Grécia, a homossexualidade masculina era permitida e até
considerada nobre e bela. Segundo Foucault (1990, p. 167), os gregos
não faziam distinção quanto à busca do prazer ser com pessoa do
mesmo sexo ou de sexo oposto. A preocupação maior era com o controle de si sobre os prazeres.
Mesmo que um homem grego mantivesse relações homossexuais, se ele fosse ativo não era considerado afeminado.
Na análise de Foucault (1990, p. 79) cabia ao homem viver a
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esfera pública, as relações com os rapazes tinham o escopo de garantir
a estes uma posição melhor, por meio da aprendizagem com o homem
mais velho e de uma amizade que perduraria quando o jovem ingressasse na vida pública, como chefe de sua própria família.
De acordo com Mott (1988, p. 24-28), muitas tribos africanas
como as de Benin, Congo, Angola, Nupe, permitiam a homossexualidade, tanto a masculina quanto à feminina, embora esta última fosse mais
bem vista que a outra.
Entretanto, com o advento do cristianismo a prática sodomita,
como era denominada, foi considerada crime pelo Tribunal do Santo
Ofício e severamente punida :
A homossexualidade, por ser considerada de todos os pecados,
‘o mais torpe, sujo e desonesto’, chamada na época de sodomia,
pela justiça civil como pela religiosa, daí ser a conduta erótica mais
documentada não só para a população branca, como para a
escravaria. O ‘abominável pecado nefando’ incluía tanto a homossexualidade masculina e feminina, como a cópula anal heterossexual, embora a partir de 1646 os Inquisidores tenham restringindo a
condição de crime somente à ‘sodomia perfeita’, isto é á cópula anal
entre varões, descrita nos manuais e regimentos inquisitoriais como
‘penetratio cum seminis effusione’ (MOTT, 1988, p.40)
A prática sodomita reprimida entre os cativos porque a punição para
este “mau pecado” era a fogueira e seqüestro, por isso havia o prejuízo
do senhor que poderia perder seu investimento. (MOTT, 1988, p.42)
A aversão às práticas homossexuais ocorre porque estas ameaçam instituições arraigadas em nossa cultura como: matrimônio
indissolúvel, prazer sexual (não permitido), sexo somente para fins
procriativos (Levítico e Concílio de Trento), “barreiras de idade, raça e
condição sócio – econômica nas interações erótico – sentimentais .”
(MOTT, 1988, p.126)
Não só no período da Inquisição houve a repressão à homossexualidade. Atualmente, há outras formas de punição como a discriminação, perda de emprego, deserdação, tentativa de suicídio, assassinatos perpetrados por gangues de homofóbicos.
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Ainda que não haja tolerância por alguns membros da sociedade, não se pode negar que os relacionamentos homossexuais existem,
fazer parte do cotidiano e, portanto, merecem proteção como as demais espécies de relacionamentos:
Existem poucas estimativas confiáveis sobre lares e famílias de
pessoas do mesmo sexo. Uma dessas poucas é a de Gonsioreck e
Weinrich, segundo a qual cerca de 10% da população masculina
dos Estados Unidos é gay, e entre 6 e 7% da população feminina é
formada por lésbicas. Segundo sua estimativa, cerca de 20% da
população masculina gay já foi casada e entre 20 e 50% tiveram
filhos. Muitas vezes lésbicas são mães, quase sempre em conseqüência de casamentos heterossexuais anteriores. Uma avaliação
bastante abrangente indica que o número de crianças que vivem
com mães lésbicas varia entre 1,5 e 3,3 milhões. O número de crianças que vivem com pai gay ou mãe lésbica situa-se entre 4 e 6
milhões. (CASTELLS, 1999, p. 262)
Alguns cientistas acreditavam que não havia relacionamento homossexual estável e duradouro e, por estes serem adeptos da pluralidade
de parceiros, com o advento da AIDS chegou esta a ser denominada de câncer gay e atribuída, por fanáticos religiosos, como uma
punição a este comportamento. Entretanto, Bon e D’Arc (1979, p.
235 e 237) em seu Relatório sobre a Homossexualidade Masculina
chegaram ao percentual de 61% dos entrevistados que desejam um
parceiro para a vida e 56% que lastimam a inexistência do casamento homófilo.
Países considerados desenvolvidos já admitem a união homossexual. A França, por exemplo, em 1999 legalizou a união entre pessoas
do mesmo sexo denominando-a de pacto civil de solidariedade.
A Holanda também prevê casamento entre homossexuais e o
direito à adoção de crianças desde 2000.
Ainda na Europa, a partir de fevereiro de 2003 foi admitido aos
casais homossexuais suecos a adoção de crianças. Na Dinamarca a união
civil entre homossexuais foi legalizada em 1989. Na Noruega, em 1992.
E, é possível que outros países europeus aprovem leis semelhantes, “principalmente pela necessidade de igualdade de direitos dentro
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390
da União Européia, e pelo processo de globalização da economia.” (FARIAS, 2002, p.11).
Nos Estados Unidos, dezenas de cidades, entre elas Nova Iorque
(1993) e São Francisco (1991) reconhecem direitos patrimoniais, seguro saúde e outros a casais homossexuais.
Na América Latina, a Argentina foi pioneira, aprovando no dia
13 de dezembro de 2002, em Buenos Aires, uma lei que autoriza a união
civil entre homossexuais:
A lei foi redigida por uma juíza especializada em direito de família
foi discutida durante um ano e meio por várias comissões legislativas,
e foi aprovada por 29 votos a favor e 10 contra depois de uma sessão que durou mais de cinco horas e na qual ativistas gay e militantes católicos estiveram a ponto de sair no tapa. A lei reconhece os
casais que estiverem juntos, em relação ‘estável e pública’, há pelo
menos dois anos, na cidade de Buenos Aires. O governo da capital
argentina tem 120 dias para regulamentar a lei, que deve entrar em
vigor em abril de 2003. (htttp://www.uol.com.br Acesso em: 14 de
dez. de 2002)
Já no Brasil, está em trâmite o Projeto de Lei 1.151/95, da
ex-deputada e atual prefeita de São Paula, Marta Suplicy que busca
legalizar a união civil entre pessoas do mesmo sexo: comenta:
A finalidade da futura norma é regular situações cotidianas para
as quais os institutos vigentes (dependência previdenciária, direito
de propriedade, herança de bens, etc.) são insuficientes para atender às circunstâncias das uniões homossexuais e não para gerar
‘fatos novos’ que desnaturam a essência do conceito de família estabelecido na Constituição Federal e nas Leis Civis vigentes, sem
prejuízo de novas agendas de reivindicações como antes já apontado. (FIGUEIRÊDO, 2002, p. 96)
Desta forma o que se percebe é que a lei não admite a alusão
de união homossexual como família e transforma a lei numa proteção
legal ao patrimônio, o que lembra o modelo romano-patriarcal de família sempre preocupado com os bens materiais em detrimento das relações de afeto e que foi transferido para o ordenamento civil de 1916,
em que o ter se sobrepõe ao ser.
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Brito (2000, p. 35) quando se refere à união homossexual não
admite a comparação ao instituto do casamento: “A caracterização da
união homossexual, como forma de casamento, é erro resultante de uma
visão, excessivamente, contratualísta do matrimônio, e que despreza,
também, elementos essenciais da noção de família.”
Seguindo a mesma linha de raciocínio Czajkowski comentado
por Giorgis (2002, p. 3) assim se pronuncia: “a união de duas pessoas
do mesmo sexo não forma família porque, primeiramente, é da essência do casamento, modo tradicional e jurídico de constituir família, a
dualidade de sexos e, depois, porque as uniões estáveis previstas na
Lei Fundamental como entidades familiares são, necessariamente, formadas por um casal heterossexual (CF, art. 226, § 3º).”
Esse entendimento é fundamentado por Pereira (1996, p. 93) que
diz que casamento entre duas pessoas do mesmo sexo é inexistente e
Rodrigues (1998, p. 27) por não ser adepto da teoria da inexistência de
casamento, assegura que casamento homossexual é nulo.
Para discordar desses doutrinadores, traz-se os seguintes
excertos:
Giorgis (2002, p. 3) “o amor e o afeto independem de sexo, cor
ou raça, sendo preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer
vistas grossas a uma realidade que bate à porta da hodiernidade, e
mesmo que a situação não se enquadre nos moldes da relação estável
padronizada, não se abdica de atribuir à união homossexual os efeitos
e natureza dela.” E mais adiante o autor tenta equiparar as uniões homossexuais à união estável: “as uniões homoeróticas devem ter os mesmos direitos que outros casais, ao demonstrar o compromisso público
um para o outro, em desfrutar uma vida de família, a qual pode ou não
incluir crianças, o que exige isonomia legal.”
Dias (2002, p. 50) elogia o Projeto de Lei nº 6.960, de autoria
do Deputado Federal Ricardo Fiúza que sugere modificações ao Novo
Código Civil para legalizar as relações homoafetivas: “Já estava mais
do que na hora de emprestar visibilidade a estas relações, que prefiro
chamar de homoafetivas” e mais “a negativa de identificar esses relacionamentos como entidade familiar faz, no caso de morte de um dos
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parceiros, migrar o patrimônio, amealhado na vida em comum, para as mãos
de quem, muitas vezes, repudiou a orientação sexual de seu parente.”
Demonstrou-se com a doutrina, aqui colacionada, que existe uma
divergência no entendimento de que se possa considerar a união homossexual como entidade familiar. Os autores que são contrários à idéia
defendem que há uma impossibilidade jurídica porque já estaria
sedimentado que merece proteção do Estado, interessa ao Poder Público somente as relações que podem gerar filhos.
Mas, por outro lado, para alguns autores, existe a possibilidade
de se considerar família aquela formada por apenas um dos genitores e
o filho. Bem como, a Constituição Federal eleva à categoria de entidade
familiar a união estável diz que não pode haver discriminação entre filhos legítimos, nascidos das justas núpcias e os ilegítimos, advindo do
que se chamavam relações espúrias, hoje denominadas de não
matrimonializadas.
Outros doutrinadores sedimentam o conceito de família com
base no afeto, aludindo que este é que conjuga. Para alguns, somente
há conjugalidade a partir do casal heterossexual, que pode ser considerado família, a situação melhora quando este casal resolve adotar uma
criança.
Contudo, a realidade que se apresenta é a de pessoas do mesmo sexo vivendo juntas, de forma estável, com o desejo de adotar crianças em conjunto, mas que por questão de preconceito são excluídas do
conceito de família.
Por que se afirma que somente homem e mulher formam entidade familiar? Onde incluir as relações de afeto, o direito à dignidade
da pessoa humana? A liberdade de expressão da sexualidade e o direito à diferença?
DO DIREITO À DIFERENÇA E DA POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO
POR HOMOSSEXUAIS
O direito à diferença se situa na quarta geração de direitos.
Houve a necessidade de criação desta quarta categoria porque até
então os direitos anteriores (liberdade, econômico-sociais e qualidade
de vida) se dirigiam a todos os indivíduos de forma grupal.
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Entretanto, existem direitos que surgem “de um processo de
diferenciação de um indivíduo em relação ao outro.” (LORENZETTI, 1998,
p. 154). É o caso, por exemplo, dos portadores de deficiência, das pessoas que desejam trocar de sexo, daquelas mulheres que querem abortar, das pessoas que recusam tratamentos médicos que levem à morte
e dos homossexuais.
Comentou-se que a família se transformou e deu lugar a convivência de famílias patriarcais, monoparentais, nucleares, incluindo as famílias homossexuais. Estas últimas, não tão bem aceitas como as demais, porque o grupo dominante, de heterossexuais, tende a excluí-las.
Por isso, quando se fala em direito à diferença não se pretende reivindicar direitos iguais para todos, exigimos a especificidade, pois
conforme Santos (2002, p. 75)“ ... temos o direito de ser iguais quando
a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza”, pensamento corroborado por Touraine (1998, p. 72):
“Somos iguais entre nós somente porque somos diferentes uns dos outros.” Até porque, como coloca Pereira (2002, p. 23), “a graça não está
na diversidade?”
O direito à diferença para os homossexuais representa a possibilidade de serem tratados com dignidade e porque: “a sexualidade é,
assim, um elemento integrante da própria natureza humana, seja individualmente, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual, sem
o direito ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual livre, o
indivíduo humano – e, mais amplamente, o próprio gênero humano –
não se realiza, resta marginalizado, do mesmo modo quando lhe falta
qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais.”
(DIAS, 2000, p. 164)
O Brasil, por meio do Programa Nacional de Direitos Humanos
busca assegurar a todas as pessoas: mulheres, negros, índios, idosos, portadores de deficiências, estrangeiros, imigrantes, refugiados,
portadores de HIV positivo, crianças e adolescentes, policiais, presos,
despossuídos e os que têm acesso à riqueza, a proteção do direito à
vida, à liberdade, ao tratamento igualitário perante a lei, entre outros
direitos fundamentais (ALVES, 2002, p. 10).
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394
A própria Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III, faz
referência ao Brasil como um Estado Democrático de Direito, o qual
tem como um de seus princípios a dignidade da pessoa humana, não
podendo, portanto, haver qualquer discriminação por causa da orientação sexual. (RIOS, 2002, p. 13)
No mesmo diploma legal, tem-se o artigo 5º, que prega a igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de qualquer natureza. A identidade sexual integra o ser humano, portanto não pode sofrer
discriminação. (DIAS, 2001, p. 1)
Para o ordenamento jurídico brasileiro a Constituição está elevada à categoria de conjunto de normas e princípios que não podem
ser infringidos por normas inferiores sob pena de lhes serem argüidas
a inconstitucionalidade. Portanto, com base nos postulados constitucionais, as leis devem ser escritas e interpretadas de forma a não divergirem da Carta Magna. Nesse sentido, observe-se que:
a interpretação da legislação infraconstitucional e a proposição de
projetos de lei (campos de claríssima manifestação do poder político)
não podem ignorar o respeito às diversas modalidades de orientação
sexual socialmente presentes, dentre as quais a homossexualidade
se insere. Isso seja pelo respeito à vida privada e à intimidade, seja
pelo caráter plural e participativo inerentes ao Estado Democrático de
Direito delineado constitucionalmente. (RIOS, 2002, p. 2)
Há quem acredite que não ocorre a discriminação e que os
homossexuais já são tratados com igualdade por comungarem de que
o princípio da igualdade é obedecido toda vez que se trata com igualdade aos iguais e com desigualdade aos desiguais.
Mas, se realmente os homossexuais fossem tratados com igualdade, aqueles que vivem em união estável poderiam ser considerados
família, o que não ocorre.
Se se utilizar esta linha de raciocínio, com a igualdade para os
iguais e a desigualdade para os desiguais, estar-se-ia legitimando o
preconceito porque os homossexuais são diferentes dos heterossexuais apenas no que concerne à orientação do seu desejo sexual, no
mais podem ser ricos, pobres, letrados ou analfabetos, desempregados ou trabalhadores, é anular a diversidade.
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As leis, devido à sua casuística, procuram regular situações
previsíveis para que se estabeleça a boa convivência, mas não prevendo tudo o que possa acontecer, não traz definições para tudo.
Então, cabe ao operador do direito analisar o fato concreto e
buscar a integração da norma jurídica por meio da interpretação. E a
interpretação mais adequada para se garantir o direito aos casais homossexuais de adotarem crianças é a do “realismo jurídico, que busca
enquadrar o direito à realidade social, sustentando que a obediência à
norma decorre do respaldo social para sua eficácia e não da determinação advinda da criação formal.” (FIGUEIRÊDO, 2002, p. 54)
Ou enquanto não houver uma lei para regulamentar o caso
concreto que o Poder Judiciário julgue, por analogia, como lhe faculta
a Lei de Introdução ao Código Civil, concedendo aos homossexuais,
que vivem em união estável, o direito de serem incluídos no conceito
de família. Para que, com isto, possam gozar de todas as prerrogativas que a instituição familiar oferece, como por exemplo, adotar crianças em conjunto.
BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO INSTITUTO DA ADOÇÃO
Na fase pré-romana, o Código de Manu previa que a adoção servia para perpetuar o culto ao deus doméstico e, por isso era pré-requisito
do adotado conhecer os rituais religiosos. Somente era possível a adoção
entre um homem e um rapaz da mesma classe, exigindo-se deste que tivesse todas as qualidades desejadas em um filho. A adoção era admitida
nos seguintes casos: a) por esterilidade do chefe de família, quando deveria a esposa gerar um filho com o irmão ou parente deste; b) pela união da
viúva sem filhos com o parente mais próximo do marido ou c) quando o
chefe de família sem filhos do sexo masculino encarregava sua filha de gerar um menino para si. Todas as crianças assim nascidas eram consideradas filhos legítimos. (PRETTI, 2002, p. 1)
Curioso era o Código de Hamurabi, que, de acordo com Bandeira (2001, p. 17-22), permitia ao adotado regressar ao lar de seus
pais legítimos se estes o houvessem criado. Entretanto, se o adotante
tivesse dispendido dinheiro e zelo com o adotado tal situação era vedada. Caso o adotante tivesse filhos naturais supervenientes à adoRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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ção, esta poderia ser revogada, fazendo jus o adotado à indenização.
Narram os textos bíblicos, conforme alude Bandeira (2001, p.
17-22), casos de adoção como as de Ester por Mardoqueu e de Efraim
e Manes por Jacó.
Os egípcios e hebreus não regulamentaram a adoção, havendo apenas assentamentos neste sentido, como o caso de Moisés, adotado pela filha do faraó, em decorrência de ter sido abandonado, a
contragosto, por sua mãe biológica. Tal tipo de adoção era muito recorrente na antigüidade. (BANDEIRA, 2001, p. 17-22)
Para o Direito Romano, a adoção só era permitida a casais que
não tivessem filhos e a adoção tinha como objetivo possibilitar ao pater
familias que se perpetuasse o culto religioso. (BANDEIRA, 2001, p. 17-22)
O Direito Romano admitia três formas de adoção:
por testamento;
adoção ab rogatio e datio in adoptionem.
Ressalte-se que, a princípio somente os homens eram dotados
de capacidade para adotar. Entretanto, com o enfraquecimento do fundamento religioso, foi permitido às mulheres que tivessem perdido seus
filhos o direito de adotar. (BANDEIRA, 2001, p. 17-22)
A adoção sofreu certo declínio na Idade Média por contrariar os
interesses econômicos dos senhores feudais. Isto porque o adotado não
tinha direito ao título nobiliárquico, que só era transmitido aos descendentes consangüíneos.
O instituto da adoção retomou sua força após a Primeira Guerra Mundial visando amparar os órfãos de guerra e passou a ter feição
de obra de caridade.
A breve revisão histórica tem o objetivo de demonstrar que em
tempos passados a adoção servia mais ao adotante que ao adotado.
Havia também a diferenciação entre filiação legítima e ilegítima, sendo
esta a categoria a que pertencia o adotado e o que tornava preterido no
momento da sucessão hereditária.
No Brasil, o ordenamento jurídico atual, que define a adoção é o
Estatuto da Criança e do Adolescente e o Novo Código Civil, que entrou
em vigor em 13 de janeiro de 2003. Em conformidade com o Novo CóRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
397
digo Civil são requisitos para a adoção: ser maior de 18 anos, independente do estado civil; e ser pelo menos 16 anos mais velho que o adotado (NERY JUNIOR e NERY, 2002, p. 549).
Para a concessão da adoção, e, em conformidade com o artigo
1.625, do Novo Código Civil: “somente será admitida a adoção que
constituir efetivo benefício para o adotando.” (NERY JUNIOR e NERY,
2002, p. 550).
Ressaltemos que, com a promulgação da Constituição Federal
de 1988, acabou a diferenciação entre filiação legítima e ilegítima, possuindo o adotado todos os direitos concernentes ao estado de filho, posto
que a adoção é irrevogável. (MORAES, 2002)
Outro ponto a ser salientado é que a adoção deve cumprir
uma função social, ou seja, de encontrar uma família para a criança e
não o oposto. Contudo, a realidade que se apresenta é diversa. De
acordo com os comentários do juiz da Vara da Infância e Juventude do
Paraná, Fabian Schweitzer, ao Jornal Gazeta do Povo de 6 de janeiro
de 2003, p. 3: “a grande maioria deles faz muitas exigências na hora de
escolher a criança. Quase todos querem uma menina, loira, e de no
máximo 6 meses de vida.” Com isso muitas crianças se vêem privadas
de ter uma família. Ocorre que muitas vezes a adoção é indeferida por
puro preconceito, não somente contra os homossexuais, mas pobres,
negros, de nível cultural inferior. (FIGUEIRÊDO, 2002, p. 28)
DA ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS
Como anteriormente exposto, acredita-se que as relações entre homossexuais são afetivas e, portanto quando dois homossexuais
resolvem levar uma vida sob o mesmo teto estariam formando uma
entidade familiar segundo Dias (2002, p. 51): “De fato, se duas pessoas mantêm uma convivência púbica, contínua e duradoura, que tenha
sido estabelecida com o objetivo de constituição de família, não pode
haver quem, nos dias de hoje, a não ser por puro preconceito, tenha
coragem de dizer que essa união fática contraria as normas de ordem
pública e os bons costumes”.
Veja-se também a opinião de Pereira (2002, p. 28) que é homossexual e adotou uma criança: “o mito de que o amor é baseado no
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sangue está caindo por terra. Então, pensei, família pode ser qualquer
par, desde que se ame e se respeite mutuamente. Estendendo essa
linha de raciocínio concluí por minha conta que família, então, pode ser
um homem com uma mulher, dois homens, duas mulheres, ou até núcleos menores de apenas um homem ou uma mulher, um adulto e uma criança, por que não?”.
Assim, a adoção por homossexuais, solteiros, não encontra
qualquer obstáculo legal.
O que se pretende é assegurar uma proteção maior do Estado
a essas famílias que surgem em decorrência das mudanças sociais. E
o Direito deve acompanhar essas transformações. Faz-se necessária
uma legislação que reconheça a união estável entre homossexuais
como família porque não se pode negar que já existam crianças sendo
criadas por esses casais.
Há entre os profissionais das diversas áreas ligados ao Direito
de Família, especificamente, à adoção, quando se menciona a adoção
por casais homossexuais:
A discussão sobre adoção de uma criança só pode iniciar nos
seguintes pontos: o que é bom para esta criança? O que ela tem a
ganhar sendo adotada por este par? O que ela tem a perder, se não
for adotada?
Aliás, qualquer processo de adoção tem de partir destas questões
sob pena de se estar cometendo uma violência contra os direitos da
criança, tão enfatizados na nossa Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Se assim não fosse, teríamos garantia e certeza de sucesso quando as crianças fossem criadas por casais heterossexuais o que, já
de antemão, sabe-se constituir um absurdo. (DIAS, 2001, p. 1)
Na Holanda, país desenvolvido, dois homossexuais não precisam recorrer a subterfúgios para adotarem uma criança, a certidão de
nascimento sai com a filiação “mãe e mãe” ou “pai e pai” (Revista Veja,
de 11.07.2001)
Acredita-se que o maior empecilho é o preconceito, mas este
pode ser superado, a partir da informação, a exemplo do que aconteceu
no Rio de Janeiro, na Casa França-Brasil, em 02 de julho de 2001. HouRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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ve um júri simulado contra as discriminações, sendo que 114 votos contra 61 concederam a adoção de uma criança de 3 anos a um casal homossexual:
A sessão foi presidida pela Juíza Salete Macolóes, da 7ª Vara
Federal. A defesa ficou por conta do Defensor Público Herbert Cohn,
que atestou a legalidade de um casal homossexual educar uma criança como qualquer cidadão. Por sua vez, a acusação, representada pelo advogado Clovis Sahione, considerou o fato da criança não
fazer parte de uma ‘ família normal’. O júri, no qual a atriz Ruth de
Souza era uma das representantes, foi unânime e votou a favor da
adoção. No final, a Juíza Salete Macalóes deu o veredicto ressaltando que ‘a compreensão, solidariedade, fraternidade e humanidade como única forma de romper os grilhões do preconceito e da
intolerância. (MACIEL, 2001, p. 1)
Existem aqueles que negam o direito de uma criança ser adotada por casais homossexuais porque consideram que haverá prejuízo
ao desenvolvimento do menor:
Em relação aos casais homossexuais entende-se que há a impossibilidade de adoção, todavia, não, necessariamente, essa impossibilidade está vinculada à inaptidão moral, educacional ou financeira dos mesmos. Mas também pode estar conjuntamente relacionada a aspectos exteriores, estando entre eles a certeza de que
haverá uma grande discriminação social para com o filho adotivo de
um casal de pessoas de sexos idênticos. Discriminação que certamente afetará o seu desenvolvimento psicológico e, por conseguinte social. Ora, se a adoção, em si, visa viabilizar ao adotado a inclusão do mesmo em uma família que possibilitará o seu melhor desenvolvimento humano, a sua melhor formação social e individual, e
se cabe à família, conjuntamente com o Estado e com a sociedade
de acordo com o artigo 227, da CF, em sua Segunda parte, colocar
o adotado ‘(...) a salvo de toda forma de (...) discriminação (...)’, como
poderá o Estado efetivar uma adoção por casais homossexuais,
sabendo que o adotado nessa situação encontrar-se-á totalmente
passivo à discriminação de uma sociedade que não está preparada
para reconhecer esta situação. (BRITO, 2000, p. 1-2)
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
400
Talvez a discriminação ocorra como já aconteceu com mulheres
separadas e/ou divorciadas e sua prole, mas nada que comprometa o desenvolvimento sadio da criança que é criada com amor, pois “ o entendimento de que a homossexualidade possa ser danosa, colocando-a na categoria de risco para a criança, não encontra respaldo nas pesquisas feitas
até o momento.” (UZIEL, 2000, p. 39). E o seguinte estudo realizado:
Pese al muy difundido argumento de que las madres lesbianas y
los padres gays puedan influir sobre sus hijas e hijos para que se
vuelvan homosexuales, los estudios empíricos realizados sobre el
tema han mostrado que no hay diferencia estadística en el número
de hijas e hijos de madres lesbianas y padres gays que al crecer se
consideran a sí mismas lesbianas y gays, comparado con las hijas e
hijos de heterosexuales que así lo hacen. (...)
Aparte de la cuestión de la sexualidad per se, las decisiones
prejuiciosas suelen justificarse apelando a la preocupación por la
necesidad que tienen niños y niñas de tener padre y madre de diferentes géneros/sexos para desarrollarse ‘normalmente’ y evitar las
supuestas ‘confusiones’ acerca del género y de los roles de género.
Las investigaciones realizadas no han mostrado diferencias
apreciables en el desarrollo de la identidad y los roles de género por
parte de hijas e hijos de familias homosexuales, lo que indica que al
género lo forman – en gran medida – factores sociales más amplios
y la sociedad com la que la familia tiene contacto. (MOTT, 2002)
Também corrobora esse entendimento a psicóloga Ferreira
(2001, p. 3): “Podendo avaliar a questão da adoção por homossexuais
por esse prisma, ou seja, entendendo pai e mãe com função paterna e
não literalmente, não há ‘contra-indicações’ específicas além das que
existem para qualquer ou quaisquer pessoas independentemente de
sua opção sexual, já que as funções que vão exercer independem do
gênero sexual.”
Desta forma, pretende-se que o Direito de Família seja repensado quanto à possibilidade de adoção por casais homossexuais para
que não lhes seja negado o direito a serem diferentes. Para que gozem da proteção legal do Estado não necessitando omitir sua orientação sexual para conseguir a aprovação da adoção perante a Vara de
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401
Infância e Juventude.
Saliente-se que não existe por parte dos técnicos (assistentes sociais e psicólogas/os) uma proibição, nem mesmo as sentenças que
concedem a adoção devem mencionar a orientação sexual do
adotante seja hetero ou homossexual.
O que não se pode admitir é que haja uma lei de adoção que venha
a ser burlada: “O Estatuto não faz restrições explícitas a casais homossexuais e alguns tribunais brasileiros têm aceitado a adoção
por gays. Nesses casos, o juiz concede a adoção para mães ou
homens solteiros e, para não complicar o processo, os gays normalmente escondem a orientação sexual, principalmente, se moram
com seus parceiros.” (http://www.abalo.com.br/adocao/adocao.htm).
Busca-se uma nova forma de pensar a família, agora com base
na ideologia do afeto e não pelo ideário capitalista. Além de fomentar o
combate à exclusão sem que os homossexuais precisem deixar de viver a sua sexualidade, de forma estável, assegurando-se a proteção da
lei e o direito a ser diferente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo estudo realizado, pode-se concluir que a família está em
transformação, abarcando novos personagens como os homossexuais
e se embasando nos sentimentos ligados ao afeto, mais que no fim exclusivo da geração de filhos ou no patrimônio.
Coexistem entidades familiares patriarcais, matrimonializadas
ou não, com filhos biológicos ou adotivos, monoparentais, nucleares e
famílias formadas por casais do mesmo sexo porque é possível considerar família como a união de pessoas que buscam a realização plena
dos seus membros, envolvendo a afetividade e o respeito.
A homossexualidade é um tema que gera polêmica e, para os
desinformados, repulsa. Com este texto pode-se compreender que a
homossexualidade é uma orientação sexual de um indivíduo para outro
do mesmo sexo, portanto, uma manifestação da sexualidade, não é doença ou opção.
Os homossexuais são pessoas como os heterossexuais, os
bissexuais que se casam ou vivem solteiros, trabalham, estudam, ajuRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
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dam a eleger os membros do Poder Legislativo que fazem as leis que
não os incluem.
Procurou-se demonstrar que a sociedade está buscando a inclusão dos homossexuais por meio do direito à diferença, para que aqueles que vivem “o amor que não ousa dizer o nome” (expressão criada
por Oscar Wilde) tenham o direito de expressarem seu amor sexual e o
amor não sexual. Este amor que é vivido no relacionamento entre pais e
filhos, ao ser facultado aos homossexuais a oportunidade de adotarem
crianças, em conjunto, como na Holanda.
Em que pese não haver no ordenamento jurídico a devida
tutela legal para que casais homossexuais sejam considerados família
e venham a desfrutar de todos os direitos por conseqüência deste status,
não é possível dar as costas à realidade, negando a eles o direito de
serem diferentes porque se supõe um comprometimento ao desenvolvimento psicológico da criança, fato este não comprovado cientificamente. E, por preconceito, declarado ou mascarado, centenas de crianças
permanecem sem um lar.
Vê-se que basta boa vontade no momento de se rever o conceito de família apresentado na Constituição Federal para que haja
consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, defendido pelo Estado Democrático de Direito, no primeiro artigo da Carta
Magna, bem como para que se efetive o tratamento igualitário pregado, afim de que os homossexuais, que vivem em união estável, sejam
legalmente contemplados.
Conforme apresentado, para o Novo Código Civil está em união
estável aqueles que assumem um compromisso estável e duradouro,
por conseqüência, os homossexuais que estabelecem vida em comum,
estável e duradoura deveriam ser considerados, por analogia, entidade familiar e gozar das demais prerrogativas legais e sociais que tal
instituto abarca e, como conseqüência adotar crianças, ter direito à sucessão e benefícios previdenciários, para citar alguns exemplos.
Garantindo-se o direito aos casais homossexuais de serem
abrangidos no conceito de família, poder-se-ia ter uma sociedade com
a plena igualdade e o respeito à dignidade da pessoa humana.
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403
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
407
APONTAMENTOS SOBRE A DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA
GUSTAVO SIQUEIRA SILVEIRA
BACHAREL EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA
GROSSA
RESUMO
O artigo trata da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental
da República Federativa do Brasil, consagrado na Constituição Federal de
1988. O autor cuida do tema em perspectiva histórica, destacando alguns
fatos históricos que influenciaram a nova ordem constitucional brasileira, e
analisando aspectos do Direito Constitucional à luz da vigente Constituição
Federal. O núcleo do trabalho é o princípio da dignidade da pessoa humana,
o qual é estudado a partir da doutrina constitucional e de alguns casos
julgados por tribunais nacionais.
ABSTRACT
The article is about the dignity of the human being as a fundamental principle
of the Federal Republic of Brazil, stablished in the Federal Constitution of
1988. The author sees the theme in a historical perspective, talking about
some historical facts that had influence in the new constitutional order, and
analysing aspects of the Constitutional Law under the actual Federal Constitution. The main part of the study is the principle of dignity of the human
being, which is studied in the constitutional doctrine and some cases judged
by national courts.
PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; direitos fundamentais;
princípio da dignidade da pessoa humana.
INTRODUÇÃO
Com o advento da Constituição Federal de 05 de outubro de
1988, uma nova interpretação instalou-se no mundo jurídico brasileiro,
um novo estado nasceu. Uma nova ordem constitucional instalou-se. A
Constituição Federal é o ápice do sistema jurídico.
Concretizou-se a Constituição como principio basilar do direito
positivo, como fundamento a ser respeitado e a ser norteador de qualquer interpretação legal. Nenhuma norma, deste então, pode ser interpretada, se não com base nos princípios constitucionais.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
408
A Constituição Federal de 1988, mudou também a interpretação de outros textos legais, que tiveram seus artigos revogados quando
em desconformidade com aquela.
Uma nova forma de pensar o Direito instalou-se, aqueles que
antes tinham o Código Civil como a principal fonte do direito privado, e
do direito positivo, agora têm que se adaptar a uma nova tábua de normas e princípios.
O Código Civil perde importância com a constitucionalização
do Direito Civil e o mesmo agora só pode e deve ser analisado segundo os princípios e normas constitucionais.
Aqueles que viveram o desrespeito legal e moral dos Atos
Institucionais sobre a Constituição de 1946 e de 1967, hoje comemoram a justaposição constitucional do sistema positivo brasileiro.
O que passa-se a analisar neste trabalho é uma mudança de
paradigma, uma mudança de modelo, de padrão, no direito positivo brasileiro, onde deixa-se de ter o Código Civil, ou qualquer outro texto legal
como base do sistema jurídico, para ter a Constituição Federal neste posto, onde o fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, deve
ser encarado como a norma basilar de toda a interpretação legal.
Positivado na Constituição Federal de 1988 como um dos fundamentos da República, a Dignidade da Pessoa Humana, considerada como um direito absoluto, inegociável, inviolável, vem a ser um
critério, uma base de interpretação, que deve ser respeitada por toda
ação governamental ou não, sob pena de inconstitucionalidade, visto
que tal fundamento é absoluto e em nenhum momento pode ser desprezado ou afastado.
ANTECEDENTES POLÍTICOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 AOS ANTECEDENTES BRASILEIROS
DA CRISE MUNDIAL DE 1929
Alguns anos após o advento do Código Civil de 1916, com a
grande inquietação da sociedade brasileira, o legislador percebe que o
mesmo Código já não mais tem condições de regular todas as relações sejam públicas ou privadas. O então Código Civil Brasileiro, fruto
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
409
de doutrinas individualistas e voluntaritas, consagradas pelo Código de
Napoleão1 necessitava de algumas especializações.
A Constituição vigente, à época, de 1891, perdia importância e
status de lei maior. O mundo vivia a Primeira Grande Guerra. Em 1922
é fundando o Partido Comunista do Brasil e a Semana de Arte moderna deixaria marcas para toda a história brasileira.
Um movimento revolucionário, que se inicia em 1924, com a
tentativa de tomada da cidade de São Paulo, anda pelo Brasil libertando presos políticos, saqueando e queimando livros fiscais. Os revoltosos
lutam contra um governo violento e que não respeita a constituição vigente à época: “...seu único objetivo é restabelecer o Estado de Direito
e assegurar as garantias Constitucionais...”2
Diante deste contexto, a estagnação de um código geral perdia
fundamento. O Poder Legislativo inicia uma série de trabalhos que iriam terminar em uma especialização das leis civis. A Constituição Federal de 1891 é totalmente esquecida e violada pelos representantes do
povo. O ano de 1925 é marcado por diversas revoltas militares, que
apoiam o movimento revolucionário agora chefiado por Luís Carlos Prestes. Os movimentos são reprimidos com grande violência. O apoio militar a Coluna iniciado em 1924 é grande.3 O analfabetismo no país é de
80% da população.4
Matérias antes tratadas apenas pelo Código Civil, passaram a
ser tratadas por leis especiais, leis que representavam no momento,
toda a inquietação e movimentação da sociedade brasileira5 .
DA CRISE MUNDIAL DE 1929 À DEPORTAÇÃO DE OLGA BENARIO
PRESTES
A crise na Bolsa de Nova York em 1929,6 se alastra pelo mun1
Nas palavras de TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 3.
MEIRELLES, Domingues As noites das Grandes Fogueiras – Uma historia sobre a Coluna Prestes. Rio
de Janeiro: Record, 1995, p. 95.
3
“Os rebeldes continuaram portanto, lutando até que fossem atingidos os seguintes objetivos: revogação da Lei de Imprensa que amordaçava os jornais, instituição do ensino primário obrigatório em todo o
pais, adoção do voto secreto para acabar com as eleições a bico-de-pena, revisão do texto constitucional para evitar que o presidente da Republica continuasse intervindo nos estados, de acordo com
interesses pessoais e políticos. Idem, p. 150.
4
Idem, p. 173
5
TEPEDINO. Idem, p. 05.
6
BRASIL. Arquivos in <www.uol.com.br/barquivos.htm > acessado em 07.10.2003.
2
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
410
do, a ruptura da República Velha, e o fracassado golpe militar de 1930,
são fatos que influenciam o grande número de leis extravagantes, que
vieram novamente regular novas matérias, já previstas ou não pelo Código Civil.
Inicia-se, no Brasil, um governo assistencialista, com a ascensão de Getúlio Vargas, que unifica o poder executivo e legislativo: o Congresso Nacional é fechado pelo Decreto Presidencial nº 9.390. O povo
pede uma nova Constituição e a Faculdade de Direito de São Paulo é
bombardeada. Tem início a Revolução Constitucionalista de 1932. O
Estado de São Paulo luta contra o resto do Brasil pedindo uma nova
Constituição. O movimento é combatido com violência pelo Governo de
Getúlio Vargas, que no mesmo ano convoca uma Assembléia Nacional
Constituinte.7
Advém a Constituição de 1934, constituição de direitos soci8
ais , em um estado intervencionista e corporativista9 . Existe uma nova
preocupação com o sujeito de direito, a expressão, na teoria das obrigações, se constitui no fenômeno do dirigismo contratual. Por sugestão de Clóvis Beviláqua o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a
coisa julgada são protegidos pela Constituição.
Vários países do mundo convivem com governos totalitários,
dentre eles: a Itália com Mussolini, o Brasil com Getúlio e a Alemanha
com Hitler.10
A violência e a tortura fazem parte do Brasil, país que tinha
abaixo do presidente, Filinto Muller, chefe da polícia do distrito federal,
que tinha carta branca do presidente Vargas, para prender sem ordem
judicial, torturar presos políticos e investigar até mesmo os membros do
governo.11
Contrariando expressamente a Constituição vigente, Clóvis
7
NAVARRO, Fernando. A Revolução de 1932. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/historia/
cenasdoseculo/nacionais/revolucaode32>. Acessado em 07.10.2003.
8
Já no preambulo da Constituição de 1934, tem-se o uso da expressão “Bem Estar Social”, são
constitucionais, os direitos à indenização da demissão sem justa causa, as férias anuais remuneradas
entre outros.
9
Um quinto dos eleitos da Câmara dos Deputados são eleitos por corporação de profissionais.
10
NAVARRO, Fernando. A Segunda Guerra Mundial. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/
historia/cenasdoseculo/nacionais/brasil-IIguerra>.Acessado em 07.10.2003.
11
MORAIS. Fernando. Olga. São Paulo: Ed. Companhia das Letras. 1994. Pg. 302
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
411
Beviláqua e Vicente Rào, então ministro da Justiça do governo Vargas,
fazem pareceres favoráveis à expulsão da judia comunista Olga Benario
Prestes do Brasil. Contrariando as leis internacionais de navegação,
Olga Benario é levada, grávida de sete meses, de navio para a Alemanha nazista.12
DO INÍCIO DA SEGUNDA GRANDE GUERRA E A EXPANSÃO
LEGISLATIVA
A Segunda Grande Guerra tem inicio em 1939. São criadas
bases americanas no Brasil e o país declara guerra à Alemanha.13
No ano seguinte os mineiros fazem um manifesto. 14 Querem o
fim da contradição: Política Interna Fascista e Política Interna Democrática. O governo de Getúlio Vargas apoiava governos democráticos na 2a
guerra mundial, mas tinha uma política interna fascista, ditatorial.
Olga Benario Prestes é assassinada em um campo de concentração nazista no início do ano de 1942.15
Getúlio Vargas renuncia e o Ministro do Supremo Tribunal Federal José Linhares, assume a presidência e promulga a Constituição
de 1946.
Assim como a Constituição Italiana de 1948, a Constituição
Brasileira de 1946 demarca limites da autonomia privada da propriedade e do controle de bens. Nos dizeres de TEPEDINO :
O Código Civil perde, assim, definitivamente, o seu papel de Constituição de Direito Privado. Os textos constitucionais, paulatinamente,
definem princípios relacionados à temas antes reservados exclusivamente pelo Código Civil e ao império da vontade: a função social
da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização
da família, matérias típicas de direito privado, passam a integrar uma
nova ordem pública constitucional.16
12
Idem, p. 312.
NAVARRO, Fernando. A Segunda Guerra Mundial. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/
historia/cenasdoseculo/nacionais/brasil-IIguerra>. Acessado em 07.10.2003.
14
NAVARRO, Fernando. Manifesto dos Mineiros. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/
historia/cenasdoseculo/nacionais/manifestomineiro>. Acessado em 07.10.2003.
15
MEIRELLES, op. cit. p. 344.
16
TEPEDINO, op. cit. p. 7.
13
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
412
O Estado busca a atender os interesses sociais, e as leis especiais são os instrumentos utilizados para essas alterações. Existe uma
demanda muito grande de especializações, e o legislador “metralha”
uma grande quantidade de leis.17
DO GOVERNO DE J.K. AO GOLPE MILITAR
Juscelino Kubitschek assume a presidência do Brasil e inicia a
construção de Brasília, prevista no artigo 3º, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição de 1891.18 Jânio Quadros
é o sucessor de JK. “ Forças Ocultas” fazem Jânio renunciar, e o Vice
Presidente, João Goulart é o novo presidente. Iniciam-se reformas de
base: Nacionalização das refinarias de petróleo e uma radical reforma
agrária. Che Guevara recebe uma medalha de honra do Presidente
João Goulart.19
Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Ademar de Barros, Camilo
Castelo Branco, Costa e Silva e Eurico Gaspar Dutra, encabeçam o
golpe militar de 1964. Inicia-se no Brasil uma ditadura militar, que visa
afastar do Brasil a “ameaça comunista”20 .
Institui-se já em 1964 o primeiro AI (Ato Institucional) poder de
fato, não de direito, que vinha a alterar, profundamente, a então Constituição vigente.
Em 1965 são extintos os partidos políticos e inicia-se um
bipartidarismo forçado21 . As garantias dos juízes são suspensas.
Os militares promulgam a Constituição de 1967. Vive o Brasil
o período mais negro de sua história. Estudantes são presos, professores cassados, é o fim da liberdade de expressão. Os militares
implementam grandes obras para ludibriar a população, é a época das
obras faraônicas. A dívida externa Brasileira aumenta, sensivelmente.
17
Idem, p. 9.
NAVARRO, Fernando. A História de JK. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/historia/
cenasdoseculo/nacionais/jk>. Acessado em 07.10.2003.
19
ZANINI, H. A vida de Che. Disponível em <www.guevarahome.org/biofrafia.htm >. Acessado em
07.10.2003.
20
NAVARRO, Fernando. Anos de Chumbo. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/historia/
anosdechumbo>. Acessado em 07.10.2003.
21
ARENA e MDB são os únicos partidos legais.
18
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
413
Troca-se a liberdade pela segurança, que se fingia ter.22 No plano do
Direito Civil, a lei de alimentos é promulgada em 1968, Lei 5.478.
Considera-se a adição dos atos institucionais a Constituição
de 1967 uma “não constituição”, uma “anticonstituição”, uma
“desconstituição” de poder jurídico, moral e legal. O Movimento Revolucionário Oito de Outubro, e a Aliança Libertadora Nacional seqüestram
o embaixador americano Charles Elbrick. Movimentos revolucionários
formados, principalmente, por estudantes lutam contra o governo militar,
que reage a essas “revoluções” com uma grande seqüência de novas
penas. As passeatas agora são proibidas, os jovens pegam em armas
para libertar o país da ditadura. Busca-se a liberdade política e civil.23
O Brasil passa a ter pena de banimento,24 pena de morte25 e
prisão perpétua.26 A época é de casuísmo jurídico.27
Países como Espanha, Portugal e Grécia sofrem com ditaduras impostas, autocraticamente, pelo direito positivo, usado como gestão autoritária da sociedade.28
O INÍCIO DA REDEMOCRATIZAÇÃO
Em 1983, a dívida externa brasileira chega a 95 bilhões de
dólares, a inflação chega a 213% ao ano29 . Começa o fim da ditadura:
uma transição para a democracia marca a época.
Em 1984 iniciam-se movimentos pelas Eleições Diretas, a censura cai aos poucos. O período ainda era de ditadura, mas respiravase liberdade nas Faculdades de Direito.30
Uma Assembléia Nacional Constituinte é reunida em 1987.31
22
NAVARRO, Fernando. Anos de Chumbo. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/historia/
anosdechumbo>. Acessado em 07.10.2003.
23
DUMONT, F. O Seqüestro do Embaixador dos EUA. Disponível em <www.ternuma.com.br/embaix.htm
>. Acessado em 07.10.2003.
24
Instituída pelo AI 13.
25
Instituída pelo AI 14.
26
Instituída pelo AI 14.
27
As leis passam a ser criadas depois dos fatos. A cada movimento para acabar com a ditadura o
governo decreta uma nova lei.
28
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direito Humanos. São Paulo: Companhia da Letras, 1988, p. 78.
29
BRASIL. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Dados. Acesso em 07.10.2003 <www.bcb.gov.br >.
30
Nos dizeres de Christina Miranda RIBAS in Carta Aberta ao Centro Acadêmico Carvalho Santos.
31
Paulo BONAVIDES demonstra bem esse momento: “Quem convocou a Constituinte Congressual nem
de leve percebeu o alcance dessa revolução silenciosa, revolução sem armas, sem sangue, sem dor,
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
414
Ulisses Guimarães promulga a Constituição de 1988, a Constituição
Cidadã.
O Código Civil passa a ser novamente interpretado, a partir de
uma Constituição. A Constituição de 1988 determina uma inserção do
estado nas relações privadas. As leis infraconstitucionais passam a definir objetivos concretos do Estado. A cláusula geral de todo o
ordenamento jurídico passa ser a Constituição Federal de 1988. Ocorre
uma modernização na linguagem legislativa, termos não só jurídicos
passam a incrementar a legislação brasileira. O legislador tenta acompanhar o avanço tecnológico.
O poder público passa a atuar mais nas relações sociais, o povo
brasileiro, tão sofrido com uma ditadura, passa a viver novamente em
uma democracia. Tem-se a impressão da soberania dos textos constitucionais assim como 1940 voltarem a acontecer . Inicia-se uma nova ordem em um novo país.
Há um novo Estado Brasileiro, com fundamentos, como a dignidade da pessoa humana moldando toda interpretação legal, e com
uma ordem democrática, não vista há alguns anos.
O ESTADO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO PÓS 1998
TEMAS MATERIALMENTE E FORMALMENTE CONSTITUCIONAIS
As Constituições prevêem inicialmente a estrutura do Estado
e os direitos fundamentais dos cidadãos. Esses são os chamados temas ou normas materialmente constitucionais. Matérias cujas quais
sem elas perde-se todos os sentidos de uma Constituição.
Valiosa é a definição de Michel TEMER:
Indubitavelmente, existe um núcleo material nas Constituições sem o
qual não se pode falar em Estado. Se este pressupõe organização e
se esta é fornecida por instrumentos normativos cogentes, imperativos, derivam eles do exercício do poder. Assim, é norma substancial-
revolução de idéias e dos interesses nacionais, revolução do povo soberano que havia sido humilhado,
excluído e discriminado até o dia em que se apoderou da praça publica, a praça que lhes pertence,
segundo o canto de Castro Alves, e fez o comício das diretas para fundar uma república, cujas lideranças
não compreenderam o sentido da mudança. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 221-222.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
415
mente constitucional aquela que identifica o titular do poder. 32
Ocorre que a Constituição Brasileira em seus 250 artigos não
prescreve mandamentos apenas sobre a estrutura do Estado e os direitos fundamentais. A Constituição Federal Brasileira adota também outras matérias, como a ordem social, princípios da atividade econômica,
políticas urbanas, rurais entre outras. São os chamados temas formalmente constitucionais, que a princípio, não fazem parte de uma Constituição, mas que estão, formalmente, previstas nela.
O legislador constituinte brasileiro entendeu necessário prescrever nos artigos da Constituição, outras matérias que deveriam merecer proteção constitucional. O medo da ditadura e da violação de direitos ainda existe no coração dos brasileiros.33
A Constituição Brasileira, apresenta-se assim prescrevendo diretrizes para todo ordenamento jurídico nacional, ditando políticas públicas e privadas, influenciando a interpretação de todo citado ordenamento.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Como disse o Professor Paulo BONAVIDES, durante 21 anos
– de 1964 a 1985 – no Brasil, não houve legitimidade, nem respeito à
Constituição escrita, nem respeito à Constituição real34 .
O então Código Civil de 1916 foi a Constituição do Direito Privado e também usado para algumas interpretações em direito público.
A Lei de Introdução ao Código Civil de 1942 passou a ser a base da
interpretação legal.
Nos ensinamentos do Professor da Universidade Federal do
Ceará, percebe-se que durante a chamada ditadura militar35 não existia
nos detentores do poder, legitimidade, nem respeito às ordens constitucionais. Não houve legitimidade porque aqueles, no primeiro momento deram um golpe, e permaneceram no governo, pois usurparam do povo a
função mais primordial do Estado: o Poder. O povo sem voto, sem direi32
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 21.
Vide a Música “Vai Passar” de Chico BUARQUE DE HOLLANDA que muito fala sobre este assunto.
34
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 211.
35
“A ditadura desvalorizou neste País a Constituição, o Congresso e os partidos políticos, humilhou-os
e rebaixou-os com a ascensão tecnocrática a todos os níveis de poder”. Idem. p. 213.
33
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
416
tos, sem Constituição, permaneceu acordando calado36 até 1988, quando a Constituição lhes devolveu o que era de direito.
Inicia-se assim uma nova interpretação do sistema jurídico positivo. A Constituição deve ser interpretada segundo seus próprios princípios. Os fundamentos da República, estampados no artigo 1º, devem
moldar toda a interpretação seja constitucional, seja infraconstitucional.
Qualquer interpretação que se faça da Constituição deve ser com base
nos seus princípios fundamentais. Antes de ler qualquer artigo da Constituição deve-se ater aos princípios constitucionais, pois só em função
deles a Constituição Federal deve ser interpretada.
Toda legislação deve ser interpretada segundo os fundamentos
constitucionais da República. A Constituição não é apenas o centro
reunificador do Direito Público, mas também do Direito Privado. Fundamentos como o da dignidade da pessoa humana devem moldar todas as interpretações.
Frisa-se outra vez dos ensinamentos do Professor Michel
TEMER:
Para boa interpretação constitucional é preciso verificar, no interior
do sistema, quais as normas que foram prestigiadas pelo legislador
constituinte ao ponto de convertê-las em princípios regentes desse
sistema de valoração. (...) Por isso a interpretação de uma norma
constitucional levará em conta todo o sistema; tal como positivado,
dando-se ênfase, porém para os princípios que foram valorizados
pelo constituinte. 37
36
Acordar calado, foi a expressão usada por Chico BUARQUE DE HOLLANDA em sua música “Cálice ”
para demonstrar toda a censura e restrição do direito de liberdade de expressão que existia na época.
37
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 54. Importante seria
transcrever também a citação que o Professor Michel TEMER, faz no mesmo capítulo de José de Oliveira
BARACHO: “Os problemas da interpretação constitucional são mais amplos do que aqueles da lei comum,
pois repercutem em todo o ordenamento jurídico. E, invocando Hector Fix Zamudio, lembra que a “interpretação dos dispositivos constitucionais requer, por parte do interprete ou aplicador, particular sensibilidade
que permite captar a essência, penetrar na profundidade e compreender a orientação das disposições
fundamentais, tendo em conta as condições sociais, econômicas e políticas existentes no momento em
que se pretende chegar ao sentido dos preceitos supremos... Os diversos conceitos de Constituição, a
natureza especifica das disposições fundamentais que estabelecem regras de conduta de caráter supremo e que servem de fundamento e base para as outras normas do ordenamento jurídico, contribuem para
as diferenças entre a interpretação jurídica ordinária e a constitucional.”
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
417
Consagra a Constituição uma nova tábua de valores, uma nova
gama de princípios que são elevados à qualidade de fundamentos constitucionais e que levam a uma nova interpretação das leis do país.
A TÁBUA DE VALORES TRAZIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
DE 1998
A NOVA TÁBUA DE VALORES
Novos valores são trazidos ao Direito Positivo brasileiro, e outros princípios já existentes ganham caráter, status constitucional. São
princípios, fundamentos constitucionais que passam a penetrar em toda
legislação e fomentar interpretações e decisões. Análise que passa-se
a fazer agora:
OS FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA
Artigo 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania
II – a cidadania
III – a dignidade da pessoa humana
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
V – o pluralismo político
Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Fundamentos, são as bases, são os alicerces de uma construção,
de um sistema. Os fundamentos da República Federativa do Brasil são a
estrutura de todo o sistema jurídico, político e sociológico do Estado.
Os Fundamentos da República moldam todo o complexo legal que
há por vir na Constituição da República. Estabelecem uma espécie de critério, uma espécie de ordem que toda a interpretação deve respeitar.
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Dignidade é a qualidade do digno, honestidade, brio.38 Pode38
a
BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, Aurélio. Minidicionário da Língua Portuguesa. 1 ed, 7
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
a
418
se até acrescentar outros sinônimos da palavra dignidade, mas face a
subjetividade, e elasticidade desta palavra limitou-se apenas com as
palavras do mestre da Academia Brasileira de Letras.
Quando a Constituição Federal diz ser humano, ela quer justamente acabar com a desigualdade entre homem e mulher, tratando todos como seres humanos, e não mais apenas como homem.39
Dignidade da pessoa humana seria então uma qualidade de
vida ao cidadão, uma qualidade de medidas que devam comungar
com o respeito à pessoa, aos seus costumes, à sua personalidade, a
uma vida digna.
A dignidade da pessoa humana é citada logo no primeiro artigo da Constituição Federal de 1988, onde estabelece o mesmo como
fundamento da República Federativa do Brasil.
Ter o princípio da dignidade humana como fundamento da
República, demonstra, que nenhuma atitude, seja de qualquer ente
estatal, ou de qualquer particular, poderá ofender esse princípio.
É de grande valia, a definição do Professor Alexandre de
MORAES:
... a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e
garantias fundamentais, sendo inerente às personalidade humanas.
Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções
transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade
individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão
ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo
que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao
exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto
seres humanos.” (grifou-se)
Assim sendo, toda interpretação legal deverá respeitar a digniimpressão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997.
39
º
Pregava o antigo Código Civil Brasileiro de 1916, que foi revogado em 2003: Art. 2 Todo homem é
capaz de direitos e obrigações na ordem civil.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
419
dade humana, nenhuma decisão poderá violar este princípio sob pena
de violar um dos fundamentos da República.
Acredita-se que o princípio da dignidade humana é o princípio
mais importante adotado como fundamento da República, onde sem uma
vida digna para seu cidadão, perde-se a função da vida em sociedade.40
Tem-se a dignidade da pessoa humana como “valor-fonte” de
todos os valores sociais e fundamento último da ordem jurídica. O valor
da pessoa humana, a dignidade da pessoa humana, enquanto conquista histório-axiológica encontra a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais e também nos fundamentos da República.41
A dignidade da pessoa humana deve muito à afirmação dos
direitos humanos, pois foi a efetivação e a positivação deles que propiciou a defesa da dignidade da pessoa humana enquanto “valor-fonte”
do direito.
A CONSTITUIÇÃO: SEUS SENTIDOS SOCIOLÓGICO, POLÍTICO E
JURÍDICO
Analisaremos agora a Constituição sob três aspectos: sociológico, político e jurídico. São as três faces de uma Constituição.
SENTIDO SOCIOLÓGICO
Ferdinand LASSALLE, explica muito bem o sentido sociológico de uma Constituição, onde seu texto tem menor importância, e se
dá mais valor aos fatores reais do poder.42
LASSALLE afirma que a Constituição representa o social, e
assim é legítima, pois representa quem realmente é detentor do poder,
ou se distancia do poder social, sendo assim ilegítima, pois se afasta
de quem realmente é o legítimo possuidor do poder: o povo. É de
LASSALLE, a famosa frase, dita então, no Congresso de Berlim, que
uma Constituição sem sua efetivação, sem ser efetivamente “real”, são
meras “folhas de papel”.
40
SILVEIRA SIQUEIRA, Gustavo. O Acesso a Justiça e o Fim do Estado. Trabalho apresentado no III
Encontro de Pesquisa da UEPG em maio de 2003.
41
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
42
LASSALLEE, Ferdinand. O que é uma Constituição ? Trad. Hiltomar Martins OLIVEIRA. Ed. Líder.
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420
Michel TEMER, muito bem pontifica, ao citar o sentido sociológico de uma Constituição: “os que vêem o Direito sob esse prisma sociológico distinguem o instrumento formal, consubstanciado na Constituição, e o instrumento real consubstanciado na efetiva detenção e exercício do poder.” 43
SENTIDO POLÍTICO
Sem dúvida, o ser humano é um animal político. Um ser que,
segundo Hannah ARENDT, exerce sua liberdade dentro do campo político.44 A razão de ser da política é a liberdade45 e a Constituição é o
meio pelo qual se exerce a liberdade e a política. A Constituição garante
ao cidadão a sua liberdade.
As primeiras Constituições foram criadas para proteger o cidadão do rei, do governante. Seus primeiros objetivos, que também valem para o mundo de hoje, foram garantir direitos mínimos aos cidadãos, que nem mesmo o rei, o governante poderia usurpar.
Sendo assim entende-se também a Constituição com um sentido político.
Entretanto, sob outro enfoque, José Afonso DA SILVA46 citando Carl SCHMITT, diferencia normas material e formalmente constitucionais, como analisado no ítem 3.1 do presente trabalho. Neste caso o
sentido político da Constituição, seria dar um caráter político às decisões do legislador constituinte em incluir na constituição, normas, formalmente, constitucionais já que, rigorosamente, apenas as regras materialmente constitucionais seriam de extrema importância. A decisão
de incluir normas, formalmente, constitucionais, na Constituição, demonstra este caráter político da mesma.
SENTIDO JURÍDICO
Como já dito, anteriormente, a Constituição é mais que uma lei
no sentido jurídico. Ela representa um status superior às leis, representa
43
Idem, p. 52.
ARENDT, Hannah. O que é liberdade. Entre o Passado e o Futuro. Perspectiva. Tradução de Mauro
Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 155.
45
RIBAS, Christina Miranda. Apontamentos em Torno da Idéia de Liberdade em Hannah Arend In: O
Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: USP, 1999, p. 389.
46
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 26.
44
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421
normas, princípios que não podem ser violados, sob pena de invalidar o
ato que a contrarie.
A Constituição é o ápice do sistema jurídico47 é ela que sustenta o mundo jurídico, é ela a fonte do cientista do direito para buscar
soluções das controvérsias do sistema normativo.
BAPTISTA traz importantes apontamentos sobre o tema:
A Constituição é um sistema, pois assentada num conjunto de elementos que compõem uma unidade, entrelaçados, coerentemente
de modo a evitar conflitos ou fornecer meios para a solução quando
surgidos. Trata-se de um sistema composto por princípios e normas, pois inviável sua existência somente com uns ou com outros.
Embora há dificuldade de diferenciação entre princípios e normas,
existem critérios para o estabelecimento de suas particularidades,
que vão desde o grau de abstração até a solução de seus conflitos.
Os princípios constitucionais exercem, em especial na atual conjuntura sócio-político-jurídico do país, papel significativo de adequação
da normatividade nacional ao asseguramento dos direitos fundamentais, como meios de interpretação e integração do sistema, em
suas funções ordenadora e prospectiva. As normas constitucionais
propiciam condições de uma mais densificada segurança jurídica
no país, estabelecendo diretrizes, mesmo as programáticas, a serem observadas pela legislação infraconstitucional. Todos os princípios e normas previstos no atual texto constitucional deverão ser
observados pelo legislador ordinário e pelos operadores do direito –
47
Michel TEMER, cita Hans KELSEN, em sua Teoria Pura do Direito, trazendo alguns importantes e
discutidos conceitos sobre o sentido jurídico da Constituição: “ É Hans Kelsen quem demonstra, sob
esse foco, o que é a Constituição. Ao fazê-lo, evidencia o que é o Direito. Ressalta a diferença entre o
Direito e as demais ciências, sejam as naturais, sejam as sociais. Enfatiza que o jurista não precisa
socorrer-se da Sociologia ou da Política para sustentar a Constituição. A sustentação encontra-se no
plano jurídico. O sociólogo, o politicólogo, podem estudar a Constituição sob tais ângulos. Mas as
preocupações seriam outras. O cientista do Direito busca soluções no próprio sistema normativo. Daí
por que buscará suporte para a Constituição num plano puramente jurídico. Para uma explicação singela
da teoria kelseniana é preciso fazer distinção entre o mundo do ser e o do dever-ser. O mundo do ser é
o das leis naturais. Decorrem da natureza. De nada vale a vontade do homem na tentativa de modificálas mediante a formulação de leis racionais. No mundo da natureza as coisas se passam mecanicamente. A um antecedente liga-se indispensavelmente dado conseqüente. Um corpo solto no espaço (antecedente) cai (conseqüente). Se chover (antecedente) a terra ficara molhada (conseqüente). No mundo do
dever-ser, as coisas se passem segundo a vontade racional do homem. É este que, a dado antecedente,
liga determinado conseqüente. As ciências sociais pertencem a esse mundo do dever-ser. Idem, p. 52.
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422
princípio da supremacia da Constituição – os quais poderão lhe dar
maior grau de concretização e densidade através da concretização
legislativa e jurisprudência. 48
A evolução do sistema jurídico brasileiro, com a promulgação
da Constituição Federal de 1988, tem um grande significado no que
tange a interpretação legal, agora só feita em função da mesma. Juridicamente falando, a Constituição Federal é a base do sistema jurídico,
fonte de princípios e sustentação para as interpretações legais. As leis
consideradas, infraconstitucionais, só podem ser interpretadas se estiveram de acordo com os princípios e normas constitucionais.
Considera-se a Constituição a lei suprema no estado brasileiro,
suas prescrições, prevalecem sobre todos os tipos de atos jurídicos.
SENE demonstra muito bem este sentido ao afirmar que “o sistema jurídico brasileiro tem evoluído e a doutrina e os estudos de direito
constitucional têm aumentado, com significativo desenvolvimento da teoria da interpretação constitucional, para recolocar o direito constitucional no ápice da pirâmide do sistema, por ser ele o detentor do estudo do
texto fundamental do Estado de Direito, da Democracia.” 49
A CONSTITUIÇÃO COMO ÁPICE DO SISTEMA JURÍDICO
Acredita-se, que a Constituição é o ápice do sistema jurídico
brasileiro. Desta forma, diante de um exemplo prático, deve o intérprete
da lei, antes mesmo de analisar a lei, analisar todo um contexto que a
mesma está envolvida. Deve o interprete ler quais os princípios constitucionais que deverão ser respeitados quando da interpretação desta lei,
e qual a validade dessa lei face as regras formais da constituição.
Sendo assim, a lei deve respeitar, primeiramente, os princípios
constitucionais, elencados como fundamentos da República, no artigo
1º , da Constituição Federal e também as normas que a Constituição
determina para o caso em questão.
Ao analisar-se uma norma infraconstitucional então, primeira48
BAPTISTA. Carlos Alberto. A Constituição como Sistema de Princípios e Normas In Revista Jurídica
o
o
Mater Dei, 2 v, n 2. Pato Branco: Faculdade Mater Dei, 2002, p. 89.
49
o
o
SENE, Ludmilo. O principio do duplo grau de jurisdição In Revista Jurídica Mater Dei. 2 v, n 2. Pato
Branco: Faculdade Mater Dei, 2002, p. 93.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
423
mente, analisa-se se ela é adequada aos princípios constitucionais, aos
fundamentos da República, e depois as regras constitucionais formais
para o caso em questão.50
Veja-se, mais uma vez, o Professor da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Michel TEMER:
... a interpretação de uma norma constitucional levará em conta todo
o sistema, tal como positivado, dando-se ênfase, porém, para os
princípios que foram valorizados pelo constituinte. Também não se
pode deixar de verificar qual o sentido que o constituinte atribui às
palavras do texto constitucional, perquirição que só é possível pelo
exame do todo normativo, após a correta apreensão da principiologia
que ampara aquelas palavras. 51
Como muito bem explica o Professor, a interpretação de uma
norma deve seguir, sempre, os princípios constitucionais e ser norteado
segundo todo o contexto contido na constituição.
O princípio da dignidade humana, inserido como fundamento
da República, influi toda a interpretação do ordenamento jurídico.52
Acredita-se ser, a Constituição Federal, o pacto social moderno, como nos ensina Paulo BONAVIDES,53 é indispensável para a proteção dos direitos humanos, e mais, especificamente, da dignidade da
pessoa humana, que na Constituição Brasileira aparece como um fundamento da República. A Constituição Brasileira trás a positivação dos
direitos naturais e confere proteção máxima a eles.
50
Valido é o exemplo citado por FERRAZ JR. “ A primeira e mais importante recomendação, neste caso,
é de que, em tese, qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais
do sistema para que se preserve a coerência do todo. Portanto, nunca se deve isolar o preceito nem no
seu contexto (a lei em tela, o código: penal, civil, etc.) e muito menos na sua concatenação imediata
(nunca leia só um artigo, leia também os parágrafos e os demais artigos). De modo geral por exemplo, a
questão de saber se uma lei pode, sem limitação, criar restrições a atividade comercial e industrial de
empresas estrangeiras, leva o interprete a busca, no todo (sistemático) do ordenamento, um noção
padrão de empresa nacional e seu fundamento nas normas constitucionais. Assim, diante de uma lei que
de fato estabelecesse tais restrições, é preciso saber se a constituição ao estabelecer a igualdade de
todos perante a lei e discriminar ela própria, alguns casos em que o principio se vê excepcionado, cria
algum principio geral sobre as exceções autorizadas”.
FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 1997. p. 354.
51
TEMER, op. cit. Pg. 23
52
Como diria KELSEN “E o fundamento de validade de uma ordem normativa é uma norma fundamental da
qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem”. Teoria Pura do Direito. Trad.
João Baptista Machado. Ed. Martins Fontes. 1999, p..33.
53
Idem, p. 214.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
424
É mediante o princípio da dignidade da pessoa humana, que retira-se a validade de todo o ordenamento jurídico brasileiro. O ordenamento
jurídico brasileiro atual, sem respeito a este princípio é uma violação à
República Brasileira, à sua Constituição e a seus fundamentos.
A TÁBUA DE VALORES CONSTITUCIONAIS NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
Inicialmente, apresentam-se dois casos onde constata-se, na
sustentação da decisão judicial, o fundamento da dignidade da pessoa
humana. Valendo frisar que essas tais julgadas foram prolatadas antes
da Constituição Federal de 1988, mas que entretanto, já tinham o “espírito” Constitucional de 1988.
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E LIBERDADE PROVISÓRIA
O primeiro caso jurisprudencial citado, ocorreu no estado do
Espírito Santo, onde o Juiz de Direito concede a liberdade provisória a
uma acusada por acreditar que a prisão da mesma, que estava grávida, seria um suplício muito grande tanto para a genitora quanto para a
criança, fundamentando que tal decisão, de dar liberdade a àquela,
protegeria a dignidade de ambos.
A acusada é multiplamente marginalizada: por ser mulher, numa
sociedade machista, por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta, por ser prostituta,
desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que
certa vez passou por este mundo, por não ter saúde, por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da
qual este Juiz teria de se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia. É uma dupla
liberdade que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para seu filho que, se do ventre da mãe puder ouvir o som
da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo,
para que venha a este mundo tão injusto com força para lutar, sofrer
e sobreviver. Quando tanta gente foge da maternidade, quando pílulas anticoncepcionais, pagas por instituições estrangeiras, são distribuídas de graça e sem qualquer critério ao povo brasileiro, quando
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
425
milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento são
esterilizadas, quando se deve afirmar ao Mundo que os seres têm
direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não
reduzir os comensais, quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si. Este Juiz
renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia
a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob
prisão. Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a
esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia
cristão. Expeça-se incontinenti o alvará de soltura. 54
A denunciada no caso em questão, era acusada de tráfico de
drogas e estava presa por força da prisão em flagrante. Comparece
a mesma a Juízo, pedindo a liberdade provisória.
Da análise da decisão em questão, percebe-se que a mesma,
que concedeu a liberdade à acusada, não é fundamentada em nenhum requisito legal do Código de Processo Penal, 56 mas sim em um
princípio, o princípio da dignidade humana, como uma mãe presa, há
um mês de dar a luz, pode dar uma vida digna ao seu filho que vai
nascer em uma cadeia? Que dignidade terá a grávida ao conviver com
seu filho em um ambiente, como uma prisão?
Sem dúvida o MM. Juiz de Direito, no caso em questão, João
Baptista Herkenhoff, concede a liberdade à acusada Edna, baseado
no princípio da dignidade humana, para que ela e, principalmente, seu
filho tenham um mínimo de dignidade, já que são vítimas de inúmeros
sofrimentos, segundo muito bem frisa o magistrado.
Tem-se, no presente, caso a dignidade sustentada como uma
condição mínima de cuidados com a pessoa, com a criança que vai
nascer e com sua mãe, tem-se a dignidade analisada como um respeito
ao estado de gravidez e seus cuidados.
55
54
Sentença retirada do livro: Uma Porta Para o Homem no Direito Criminal. HERKENHOFF, João
ª
Baptista. 4 Ed. Editora Forense. Poder Judiciário do Espírito Santo - Primeira Vara Criminal de Vila Velha.
Autos 3.775\1.978 - Sentença Concedendo Liberdade Provisória à Denunciada. MM. Juiz de Direito: João
Baptista Herkenhoff.
55
Artigo 12 da Lei 6368/76
56
Artigos 310 e seguintes que tratam da liberdade processual.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
426
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SENTENÇA CRIMINAL
ABSOLUTÓRIA
No segundo caso citado, tem-se a dignidade da pessoa humana como um subsídio para absolvição de uma acusada de ter praticado
lesões corporais, no caso em que, segundo o Magistrado, o que também importa para a Justiça criminal é o valor da pessoa humana e a
recuperação dos cidadãos.
Passo a decidir: a Justiça Criminal, dentro de uma visão formalista,
localiza-se no passado, julga o que já foi. A Justiça Criminal, numa
visão humanista, coloca-se no presente e contempla o futuro. A Justiça Criminal não é uma máquina de calcular que só fecha suas
contas quando o saldo é zero. A Justiça Criminal é sobretudo um
ofício de consciência, onde importa mais o valor da pessoa humana, a recuperação de uma vida, do que a rigidez da lógica formal.
A prova testemunhal convence que Edna S. é hoje, uma pessoa,
inteiramente, recuperada para o convívio social. Como ficou demonstrado, sua vida está dedicada inteiramente a sua casa. Compareceu
hoje, perante este Juízo com uma filha nos braços. Insondáveis caminhos da vida... Da última vez que aqui veio, esta criança, que hoje
traz nos braços, ela trazia no ventre. Por despacho deste Juiz, foi
naquela ocasião posta em liberdade.
Creio que a sentença justa, no dia de hoje, é a sentença que absolve a acusada. Não se trata da sentença sentimental, da sentença
benevolente, como se julga, tantas vezes, erradamente, sejam as
sentenças deste Juiz. É a sentença que crê no ser humano, é a
sentença convicta, que muitas vezes, pessoas marginalizadas pelas estruturas sociais encontram, no contacto com o julgador, o primeiro relacionamento a nível de pessoa. Absolvo a acusada na esperança em voz alta, sentença ouvida, palavra por palavra, pela acusada, para que sinta ela que desejo que tenha uma vida nova. Libertoa deste processo e espero que nunca mais fira quem quer que seja.
Considerando tudo que foi ponderado, acolhendo as razões do Ministério Público e da Defesa, atendendo ao gesto de perdão da vítima Neuza Maria Alves, atento à criança que Edna traz no colo, sua
filha Elker, desejando que esta sentença seja um voto de confiança
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
427
que Edna saiba compreender – ABSOLVO a acusada da imputação
que lhe foi feita. 57
A denunciada foi levada a julgamento, pois teria supostamente
praticado lesões corporais 58 contra a vítima em questão.
Lendo a sentença do MM. Juiz de Direito percebe-se que já nas
primeiras linhas há fundamentação da sentença absolutória. Acredita
mais uma vez o magistrado que a Justiça, no caso em questão, a Justiça Criminal, deve se moldar no princípio da pessoa humana, no valor da
pessoa humana.
A ré não foi absolvida por ter praticado uma ação atípica, imbuída
de excludente de antijuridicidade ou culpabilidade. Ela foi absolvida por
acreditar o MM. Juiz de Direito que a mesma é uma vítima, e que uma
condenação contra ela iria violar a dignidade da pessoa humana, no caso
em questão, o valor da pessoa humana, citado pelo magistrado.
Em que pese as considerações de caráter penal, acredita-se
que esta decisão, nos dias de hoje, estaria plenamente amparada pela
Constituição Federal, e é passível de elogios, de um Juiz, dez anos
antes da Constituição Federal de 1988, já tinha em mente princípios
que muitas vezes, são esquecidos por alguns magistrados, legisladores
e juristas.
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PRECONCEITO
O terceiro caso, ocorreu no Estado do Paraná. Um taxista é
punido pela Associação por usar cabelo cumprido, ato que desrespeitava o estatuto da referida Associação. O Tribunal de Justiça confirma a
sentença do Juiz a quo no sentido de declarar inconstitucional tal estatuto por violar vários princípios constitucionais, dentre eles também, o
fundamento da dignidade da pessoa humana.
ACORDAM OS DESEMBARGADORES INTEGRANTES DA 7A CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ.
POR UNANIMIDADE DE VOTOS, EM NEGAR PROVIMENTO A APE57
Sentença retirada do livro: Uma Porta Para o Homem no Direito Criminal. HERKENHOFF, João
Baptista. Poder Judiciário do Espirito Santo - Primeira Vara Criminal de Vila Velha.Autos 3.724\1.978 Sentença Absolutória - MM. Juiz de Direito: João Baptista Herkenhoff.
58
Artigo 129 do Código Penal Brasileiro.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4
428
LAÇÃO E AO RECURSO ADESIVO.
EMENTA: CAUTELAR INOMINADA/REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS.
TAXISTA DE CABELO COMPRIDO PUNIDO PELA ASSOCIAÇÃO
DOS MOTORISTAS COM O DESLIGAMENTO DA FREQÜÊNCIA
DO
RÁDIO
INSTALADO
EM
SEU
VEÍCULO.
INCONSTITUCIONALIDADE DA LEGISLAÇÃO MUNICIPAL E DAS
NORMAS INTERNAS DA ASSOCIAÇÃO. DETERMINAÇÃO DE PERFIL DE APARÊNCIA NÃO RAZOÁVEL. DISCRIMINAÇÃO INJUSTA.
VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE INDIVIDUAL, ISONOMIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
PROCEDÊNCIA: TOTAL DA CAUTELAR E PARCIAL DA PRINCIPAL. DECISÃO CONFIRMADA. 1. DECRETOS MUNICIPAIS (NS.18/
90 E 7/94) E NORMAS REGIMENTAIS E ESTATUTÁRIAS DA ASSOCIAÇÃO, QUE DETERMINAM E PUNEM O TAXISTA, POR USAR
CABELOS COMPRIDOS, SÃO INCONSTITUCIONAIS, POR ACARRETAREM A VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA
LIBERDADE INDIVIDUAL, ISONOMIA E DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. 59
No terceiro caso, acima, depara-se com um motorista de táxi
que é punido pelo estatuto da associação dos taxistas, o qual prescreve condutas dos mesmos. O taxista é punido por ter cabelos cumpridos.
O juiz a quo decretou a inconstitucionalidade do regulamento da associação e condenou a mesma por ter cortado o rádiotáxi autor como punição. Os réus recorreram e o presente acórdão confirma a sentença
inicial e nega provimento ao recurso da associação.
Invocando princípios constitucionais como a liberdade individual, a isonomia e principalmente o fundamento República da dignidade
da pessoa humana, o Tribunal de Justiça do Paraná afasta o estatuto
dos taxistas por considerar o mesmo inconstitucional, por violar os princípios e fundamentos constitucionais supra citados.
A decisão do Tribunal de Justiça do Paraná, demonstra muito
59
TJPR – AC- Autos 124094600 – Relator Des. Accacio Cambi. Disponível em www.tj.pr.gov.br. Acesso
em 14 de outubro de 2003. Poder Judiciário do Estado do Paraná - Tribunal de Justiça. Apelação Cível. –
ª
7 Câmara Cível. Data de Julgamento: 09/09/2002.
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bem os princípios arraigados neste trabalho. Onde qualquer violação à
dignidade da pessoa humana deve ser afastada e muitas vezes até
passível de punição.
Muitas são as decisões em que encontra-se presente o fundamento da dignidade da pessoa humana. Entretanto existem casos em
que este fundamento é totalmente esquecido, deixado de lado. Julgamentos onde os motivos políticos, muitas vezes, são mais fortes que os
motivos jurídicos e que os motivos sociais.
O CASO OLGA BENARIO PRESTES E O CASO EDNA S.
O caso de Olga Benario Prestes, é citado no item 2.2 deste
trabalho, onde Olga, grávida, é expulsa do Brasil por razões políticas:
seu marido Luís Carlos Prestes60 estava preso por suspeita de golpe
de estado. Olga que era alemã, era membro do partido comunista alemão e judia.
O fato era que Olga foi expulsa do país grávida, sem as condições mínimas de higiene e segurança, violando até mesmo as regras
internacionais da navegação. Os pareceres jurídicos da época dos juristas já citados no item supra citados, ignoravam o princípio da dignidade da pessoa humana, e citavam razões de estado para expulsar
Olga. Ocorre que não existia nenhuma acusação contra ela, nenhuma
ação penal, seja no Brasil seja na Alemanha. Ademais tais pareces, violavam, flagrantemente, a Constituição vigente na época.
Estar grávida, tornou-se para Olga, um sacrifício imenso, ao atravessar o oceano em condições subumanas e grávida. A decisão que
expulsa Olga Benario Prestes do Brasil é na época considerada legal.
Por outro lado temos o caso de Edna S., presa por força de
prisão cautelar, é solta por um Juiz do Espírito Santo, por considerar que
a mesma não poderia dar um nascimento, um início de vida digna ao
seu filho na cadeia.
Não apenas o fato das duas mulheres estarem grávidas, mas
também o fato da citação do princípio da dignidade da pessoa humana, igual a situação de ambas cidadãs.
60
Luís Carlos Prestes ficou preso cerca de 10 anos, até ser assinada a lei da anistia. Alguns anos depois
Prestes foi o senador mais votado da história da República do Brasil.
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No caso de Olga percebe-se que o princípio da dignidade da
pessoa humana, que na época não era positivado na Constituição Brasileira de 1934, mas o mesmo já fazia parte de um direito inerente a
todos nós, o direito natural. O direito natural de uma vida digna. O que
mais revolta, é que o mesmo foi afastado por questões políticas, ideológicas.
Já no caso de Edna S., o MM. Juiz resgata o direito natural a
uma vida digna, que também na época não era positivado. A Constituição vigente era a de 1967.
A importância destes casos para o presente trabalho é que analisando os dois casos às vistas da Constituição Federal de 1988, apenas a segunda decisão, no caso de Edna S. seria constitucional, pois
estaria abraçada pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
A decisão de expulsar Olga Benario Prestes do Brasil, hoje,
seria considerada ilegal, inconstitucional, por violar o fundamento da
República, a dignidade da pessoa humana.
O PORQUÊ DO FUNDAMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA
Inicialmente, cabe frisar que a dignidade humana, sempre foi considerada como um direito nas mais diversas Declarações de Direitos
dos Homens, e face a sua importância para o ordenamento jurídico brasileiro, a mesma foi elevada ao status de fundamento constitucional.
Como dito acima, o princípio da dignidade da pessoa humana
é posto na Constituição Brasileira como um fundamento da República.
Acredita-se que o legislador constituinte quis dar a este princípio da dignidade da pessoa humana, não apenas um caráter instrumental, mas também um caráter finalístico, ou seja, todas as ações devem
basear-se por este fundamento. Todas as ações devem pisar nos degraus da dignidade da pessoa humana.
A Consagração deste princípio, fundamento, com certeza, teve
influência nas Declarações Internacionais de Direitos Humanos, que após
a Segunda Guerra Mundial serviram para “positivar” os então direitos
naturais que regimes totalitários haviam violado.
Após a Segunda Guerra, com a Declaração de Direitos do
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Homem, em 1948, a dignidade da pessoa que está incluída nesta declaração, toma papel importantíssimo, moldando toda a subseqüência
da Declaração de Direitos do Homem e todas as legislações que vieram a mesma reconhecer.
A Constituição Brasileira foi promulgada após mais de 30 anos
de ditadura militar no país, mais de 30 anos de tortura, de desaparecimento de pessoas, de violações aos mais básicos direitos dos cidadãos. Com certeza o medo, a angústia causada por esta época negra
na história do Brasil fez com que o legislador constituinte desejasse fundar o novo país, que nascess com a Constituição de 05 de outubro de
1988, com dignidade da pessoa humana.
O exemplo do totalitarismo e das ditaduras militares no mundo
trazem à tona a aversão a qualquer tipo de medida que possa violar os
direitos humanos. A fixação da dignidade da pessoa humana, como fundamento da República deve obrigar medidas públicas para a proteção
efetiva da dignidade das pessoas.
O que não se pode admitir é que Constituição Brasileira seja
desrespeitada e que interpretações da mesma possam excluir tal princípio. Se o princípio da dignidade da pessoa humana, não for base
para a interpretação de todas as leis e atos legais no país estar-se-á
negando a própria Constituição, o próprio país e estar-se-á colocandoa ela para ser vendidas nas galeria de ficção das livrarias, como certa
vez escreveu e afirmou o Prof. Fábio Konder COMPARATO: “A única
razão de ser de uma Constituição é proteger a pessoa humana contra o
abuso do poder dos governantes.” 61
Durante anos, viveram os cidadãos brasileiros com violações
graves a direitos humanos, e até mesmo direitos constitucionais no
Brasil. O levante da dignidade da pessoa humana vem consagrar a
defesa do cidadão contra qualquer tipo de governo ou estado autoritário.
A dignidade da pessoa humana é um fundamento absoluto, ou
seja, não pode em nenhuma hipótese sofrer restrições. Segundo DE
PLÁCIDO E SILVA: “Assim se diz o direito, que, por sua própria força e
plenitude, é oposto a toda e qualquer pessoa, erga omnes(...) O direito
61
Folha de São Paulo. 14.05.1998. Tendências\Debates.
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absoluto dá, assim, a faculdade de agir ou poder agir, sem restrições, contra qualquer pessoa que venha atentar ou ferir o direito de que se é titular.”62
Acredita-se ser a dignidade da pessoa humana o único fundamento absoluto do sistema jurídico brasileiro. Alguns diriam que o direito á vida é absoluto, entretanto, no direito brasileiro, este direito não é
absoluto, visto que a pena de morte, no Brasil pode acontecer nos casos de guerra, segundo a Constituição Federal. Também a liberdade,
no direito brasileiro não é um direito absoluto, pois pode sofrer diversas
limitações, como nos casos da condenação penal.
Sendo um fundamento absoluto, não se pode afastar a dignidade da pessoa humana nunca, sob pena de estar-se tomando uma
decisão inconstitucional e contrária aos princípios da República Federativa do Brasil.
Mesmo aquele que é condenado a vários anos de prisão, tem o
direito à dignidade, tem direito a um estabelecimento prisional que respeite sua integridade moral, física e psicológica.
O fundamento da dignidade da pessoa humana, advindo ao
direito brasileiro em 1988, é também prescrito no artigo 1º da Constituição do Estado do Paraná, e na Lei Fundamental da Alemanha-Constituição Federal da Alemanha. 63
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A real mudança que acontece no direito positivo brasileiro, é que
com o advento da Constituição Federal de 1988 e o estabelecimento da
dignidade da pessoa humana como fundamento da República, não se deverá admitir nenhuma ação que vise contrariar este fundamento.
O que demonstra-se é que a dignidade da pessoa humana, com
a edição da Constituição de 1988, deve ser obrigatoriamente, sob pena
de inconstitucionalidade à base de toda ação.
Procurou-se esclarecer que a positivação do princípio da dignidade da pessoa humana, veio de uma luta de anos, principalmente no
Brasil, país que muito sofreu com as ditaduras.
62
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 76.
o
Art. 1 A dignidade da pessoa humana é inviolável. Todas as autoridades públicas têm o dever de a
respeitar e proteger. A LEI FUNDAMENTAL DA ALEMANHA DE 23 MAIO DE 1949. COIMBRA EDITORA:
1996.
63
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433
Casos em que o fundamento da dignidade da pessoa humana é
violada, como o citado acima de Olga Benário Prestes, não são mais
admitidos pelo sistema jurídico brasileiro e não têm amparo legal algum.
A positivação da dignidade da pessoa humana, se faz comprovar que a mesma, é mais que uma lei, é um fundamento constitucional
da República e faz parte deste país como a nossa própria constituição.
O fato de caracterizar a dignidade da pessoa humana como um
fundamento constitucional absoluto, estabelece que a mesma, em nenhuma hipótese poderá ser suprimida na interpretação de qualquer ato
do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário.
Assim como a Constituição do Estado do Paraná, da República da Alemanha, a Constituição da República Federativa do Brasil, veio
a fixar a dignidade da pessoa humana, logo no primeiro artigo, o que
demonstra a importância que a mesma exerce também no direito internacional.
A dignidade da pessoa humana, então, neste plano almejado, é
um respeito à integridade das pessoas, um respeito às condições mínimas de vida, uma não interferência na integridade moral, física e psicológica das pessoas, respeitando sempre a individualidade de cada pessoa, seus direitos e suas idéias.
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