1 REVIST A JURÍDICA REVISTA MA TER DEI MATER ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI ISSN 1676-1278 Volume 4 - Número 4 - jan./dez 2003 - Anual PATO BRANCO - PARANÁ Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 2 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 3 REVISTA JURÍDICA MATER DEI - COMPOSIÇÃO DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI: DR. GUIDO VICTOR GUERRA EDITOR: PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA SUPERVISOR EDITORIAL: PROF. DR. DIRCEU ANTONIO RUARO CONSELHO EDITORIAL: PROF. ALCIONE PARZIANELLO PROF. ANDREY HERGET PROFª. ANGÉLICA SOCCA CESAR RECUERO PROF. ANTONIO GERALDO SCUPINARI PROF. CÁSSIO LISANDRO TELLES PROF. CELIO ARMANDO JANCZESKI PROF. CELSO SOUZA GUERRA JÚNIOR PROF. DÉVON DEFACI PROF. ERLON ANTONIO DE MEDEIROS PROF. EVANDRO PORTUGAL PROFª. FERNANDA KARAM DE CHEURI SANCHES PROF. FRANCISCO ADILSON DE ALMEIDA FILHO PROF. GENÍRIO JOÃO FÁVERO PROF. GÉRI NATALINO DUTRA PROF. JÂNIO LUIZ PEREIRA PROF. JEDERSON SUZIN PROFª. JOCIANE TRICHES SILVESTRI PROF. JORGE DA SILVA GIULIAN PROF. JOSÉ EDUARDO FERREIRA RAMOS PROF. LUIZ FERNANDEO BALDI PROFª. MAGDA DEMARTINI TASCA PROF. NILSON DE FARIAS PROF. RAMÃO MARQUES NETO PROF. RODRIGO CORONA MENEGASSI PROF. RODRIGO SIMIONATTO PROFª. SILVANA DE MELLO GUZZO Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 4 PROF. VALMIR CHIOQUETTA JÚNIOR PROF. VANDERLEI SCHNEIDER DE LIMA CONSELHO CONSULTIVO: PROF. DR. ABILI LÁZARO CASTRO DE LIMA - UFPR PROF. DR. ALFREDO DE ASSIS GONÇALVES NETO - UFPR PROF. MSc. ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA - UEPG PROF. DR. ALVACIR ALFREDO NICZ - UFPR PROF. DR. ALVACIR CORREA DOS SANTOS PROF. DR. CLAYTON REIS - UEM PROF. DR. EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE - UFPR PROF. DR. ELIMAR SZANIAWSKI - UFPR PROF. DR. EROULTHS CORTIANO JÚNIOR - UFPR PROF. DR. HOMAR PACZKOWSKI ANTUNES PINTO PROF. DR. JOÃO BATISTA LOPES - PUC-SP PROF.MSc.JOÃO PAULO CAPELLA NASCIMENTO - UEPG PROF. DR. JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO - UFPR PROF. DR. JOSÉ ANTONIO PERES GEDIEL - UFPR PROF. DR. JOSÉ MANOEL DE ARRUDAALVIM NETO - PUC-SP PROF. DR. JOSÉ ROBSON DA SILVA - UEPG PROF. MSc. JÚLIO CESAR BACOVIS - CAMPO REAL PROF. DR. LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT PROF. DR. LUIZ EDSON FACHIN - UFPR PROF. DR. LUIZ GUILHERME BITTENCOURT MARINONI - UFPR PROF. DR. LUIZ RODRIGUES WAMBIER - UEPG PROF. DR. MANOEL EDUARDO ALVES DE CAMARGO E GOMES - UFPR PROF. MSc. MIGUEL KFOURI NETO - ESCOLA DA MAGISTRATURA DO PARANÁ PROFª. DRª. SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO - UEPG PROFª. DRAª. TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER - PUC-SP SECRETÁRIA EDITORIAL: MARISOL TOMASINI DUTRA REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA: PROFª. SETEMBRINA ZUCCHI NUNES RESUMOS: PROF. RODRIGO SIMIONATO Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 5 VERSÃO DOS RESUMOS PARA A LÍNGUA INGLESA: PROFª. LOCILEI DE NEGRI BORTOT DIAGRAMAÇÃO E CAPA: LILYANE HELENA SARTORI EQUIPE DA FACULDADE MATER DEI DIRETOR GERAL DR. GUIDO VICTOR GUERRA VICE-DIRETORA GERAL PROFª. IVONE MARIA PRETTO GUERRA DIRETOR EXECUTIVO PROF. RUBENS FAVA ASSESSORES PEDAGÓGICOS PROF. DR. DIRCEU ANTONIO RUARO e PROFª. VANESSA PRETTO GUERRA COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA PROF. ANDREY HERGET COORDENADOR DO NÚCLEO DE PESQUISAS JURÍDICAS MATER DEI PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM ADMINISTRAÇÃO PROF. VOLMAR BRUNETO COORDENADOR DO CURSO DE SISTEMAS DE INFORMAÇÃO PROF. GÉRI NATALINO DUTRA SECRETÁRIA ACADÊMICA PROFª. WAINÊS SALLETE BASSO SECRETÁRIO FINANCEIRO PEDRINHO DE BORTOLI BIBLIOTECÁRIA BERENICE DE LIMA RODRIGUES Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 6 APRESENTAÇÃO A pesquisa é a mola propulsora da educação, e aliada aos métodos de ensino, permite muito mais do que a simples transmissão Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 7 do conhecimento, criando e renovando constantemente o saber, alçando o pesquisador (estudante) à condição de sujeito ativo desse processo. Ao editar o quarto volume da Revista Jurídica Mater Dei, a Faculdade Mater Dei afirma continuar colaborando para a difusão do conhecimento produzido pelos Docentes de seu Curso de Bacharelado em Direito e de Professores e Juristas de outras instituições públicas e particulares. Vinte e um artigos científicos abordando o Direito, a Filosofia Jurídica, a Educação, a Ciência Política e outras Ciências Sociais, sustentam a presente edição. Fica registrado o agradecimento da Faculdade Mater Dei aos Professores e aos Juristas que colaboraram para a presente publicação. A Faculdade Mater Dei afirma ser a pesquisa relevante para a formação completa, até porque é sabido que o exercício das profissões jurídicas (Advocacia, Magistratura, Ministério Público, Procuradorias, e outras) exige o constante recurso à pesquisa como “ferramenta de trabalho”. Assim, tanto em nível acadêmico quanto profissional, impõese ressaltar a importância da pesquisa para a educação. A Faculdade Mater Dei apresenta mais esta edição de sua Revista Jurídica, com a satisfação de dever cumprido, desejando que ela seja útil a todos quantos com ela tomem contato. DR. GUIDO VICTOR GUERRA DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 8 EDITORIAL Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 9 A Educação se confunde com o próprio processo de humanização, pois é a capacitação do indivíduo tanto para viver civilizadamente e produtivamente, quanto para formar seu próprio código de comportamento e para agir coerentemente com seus princípios e valores, com a abertura para revisá-los e modificar seu comportamento quando mudanças se fizerem necessárias. ELIAS DE OLIVEIRA MOTTA. Direito Educacional e educação no século XXI. Brasília: Unesco, 1997, p. 75. A Educação pretendida pela Faculdade Mater Dei dirige-se à formação integral das pessoas, pois, mesmo considerando a formação acadêmica e a qualificação profissional decisivos para os futuros Bacharéis, cumpre à Educação, ainda, despertar-lhes a consciência para a Cidadania e seu exercício. Com o quarto volume da Revista Jurídica Mater Dei (primeiro semestre de 2003) o Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei ratifica o compromisso com a construção do conhecimento. O caráter interdisciplinar da publicação proporciona ampla visão das transformações ocorridas na Ciência do Direito, neste início de milênio. Os artigos abordam várias temáticas jurídicas e de ciências afins. A contribuição de renomados Professores e Juristas brasileiros firma a credibilidade científica da Revista Jurídica Mater Dei. Com a presente publicação pretende o Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei continuar colaborando para o aperfeiçoamento da Ciência do Direito e a difusão do conhecimento jurídico e de outras ciências. Espera-se que a Revista Jurídica Mater Dei contribua para enriquecer a formação dos Discentes de Cursos de Bacharelado em Direito e de Programas de Pós-Graduação e de outros profissionais que encontrem nela amparo para solucionar dúvidas e questões sobre o conhecimento. PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO COORDENADOR DO NÚCLEO DE PESQUISAS JURÍDICAS MATER DEI EDITOR DA REVISTA JURÍDICA MATER DEI e dos CADERNOS DE ESTUDOS JURÍDICOS MATER DEI Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 10 SUMÁRIO Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 11 A EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL : REFLEXÃO E CRÍTICA - FLORI ANTONIO TASCA OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ORDEM CONSTITUCIONAL - ALVACIR ALFREDO NICZ TEORIA DAS JANELAS QUEBRADAS : E SE A PEDRA VEM DE DENTRO? - JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO e EDWARD ROCHA DE CARVALHO O NUMERUS CLAUSUS E A TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS EM LIGAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA RESERVA DA LEI - JOSÉ ROBSON DA SILVA A NORMA FUNDAMENTAL - HOMAR PACZKOWSKI ANTUNES PINTO TRABALHO TERCEIRIZADO E FRAUDE NA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA - VANDERLEI SCHNEIDER DE LIMA AS NORMAIS CONSTITUCIONAIS QUE TRATAM DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO FRENTE À GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA - JOSÉ EDUARDO FERREIRA RAMOS EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE DO ATO PROCESSUAL - ANDREY HERGET RECURSO EXTRAORDINÁRIO RETIDO E A AUSÊNCIA DE EFEITO SUSPENSIVO - ADRIANA TIMÓTEO DOS SANTOS ANOTAÇÕES SOBRE O LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO CÉLIO ARMANDO JANCZESKI AS MÚLTIPLAS FUNÇÕES DO BEM JURÍDICO NO DIREITO PENAL - PEDRO LUCIANO EVANGELISTA FERREIRA TÓXICOS – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DAS LEIS 6.368/76 E 10.409/02 - IRIO JOSÉ TABELA KRUNN A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 28: ANÁLISE DOS LIMITES DA EXPRESSÃO “DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS” CONSTANTE NAS CLÁUSULAS Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 12 PÉTREAS - MARCIUS NADAL MATOS AS DIVERSAS FACES DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. KLEBER CAZZARO A INCONSTITUCIONALIDADE DO FORO PRIVILEGIADO PARA EX-AUTORIDADES EM AÇÕES CIVIS DE IMPROBIDADE: UM RETROCESSO NA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO - JOÃO CONRADO BLUM JÚNIOR DEMOCRACIA E SISTEMA REPRESENTATIVO : A QUESTÃO DOS PARTIDOS - FABIO ANIBAL GOIRIS RESPONSABILIDADE SOCIAL: A EVOLUÇÃO DAS EMPRESAS E O NOVO PERFIL EMPRESARIAL BRASILEIRO - MAGDA DEMARTINI TASCA AS DIFICULDADES DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA NO BRASIL E NO PARANÁ - RAFAEL AUGUSTUS SÊGA ÉTICA NA MAGISTRATURA - VALTER MARTINS DE TOLEDO FAMÍLIA : CONCEITO EM TRANSFORMAÇÃO - JULIANE GRIGOLETO MAYER APONTAMENTOS SOBRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - GUSTAVO SIQUEIRA SILVEIRA =============================================================== A EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL: REFLEXÃO E CRÍTICA Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 13 FLORI ANTONIO TASCA PROFESSOR TITULAR & COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI. MESTRE EM DIREITO PRIVADO & DOUTOR EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. ADVOGADO & CONSULTOR. RESUMO O texto analisa a educação jurídica brasileira sob vários aspectos, destacando o trabalho desenvolvido pela Ordem dos Advogados do Brasil em prol da melhoria da qualidade do ensino do Direito. O trabalho evidencia a importância da educação jurídica para a construção da cidadania. Aborda o projeto pedagógico e o currículo pleno dos cursos jurídicos, enfatizando a importância da interdisciplinaridade e de sua prática. Trata também da trilogia ensino, pesquisa e extensão. Traça o perfil do corpo docente e do corpo discente de cursos jurídicos nacionais. ABSTRACT The text analyses the Juridical Education in Brazil under several aspects, pointing to the work developed by Bar Association from Brazil to improve the quality of teaching in Law courses. The work shows the importance of juridical education to the construction of citizenship. It talks about the pedagogical project and the full curriculum of the juridic courses, pointing to the importance of intersubjects and its pratic. It also talks about the teaching trilogy, research and expansion. It brings characteristics of professors and students from national juridic courses. PALAVRAS CHAVE - Educação; Direito; cursos jurídicos; educação jurídica. KEY WORDS INTRODUÇÃO A comunidade jurídica nacional ficou perplexa diante da homologação pelo Ministério da Educação (MEC) do parecer nº 146/2002 do Conselho Nacional de Educação (CNE), publicado no Diário Oficial da União em 13/05/2002, flexibilizando as diretrizes curriculares dos cursos jurídicos no Brasil, situação que enseja séria reflexão das pessoas de fato comprometidas com a boa qualidade da educação jurídica brasileira. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 14 Pelo referido parecer, os cursos jurídicos foram equiparados aos cursos de graduação em ciências econômicas, administração, contabilidade, turismo, hotelaria, secretariado executivo, música, dança, teatro e design, o que representou duro golpe contra as diretrizes curriculares dos cursos de Bacharelado em Direito brasileiro. O parecer previa a possibilidade de conclusão de curso jurídico em apenas três anos; dispensava a obrigatoriedade de elaboração e defesa pública da monografia de conclusão de curso (também chamado TCC - trabalho de conclusão de curso); minimizava os critérios para a qualidade do currículo pleno, não exigindo (sequer) biblioteca adequada ao funcionamento do curso. Ao homologar o parecer, as autoridades de ensino olvidaramse do sólido trabalho de setores organizados da sociedade civil - em especial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - em prol da melhoria da educação jurídica ofertada pelas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e particulares em território brasileiro. Nada obstante, o labor de outras entidades classistas (da magistratura, do ministério público) e de diversas IES (públicas e privadas), merece ser destacada a intensa atividade da OAB em prol da educação jurídica nacional. Há muito a OAB cuida do ensino jurídico,1 realizando encontros destinados ao debate sobre o tema, organizando e publicando textos para compartilhar com a sociedade o compromisso de zelar pela boa qualidade dos serviços educacionais (de educação jurídica) no Brasil. A relevância social do estudo do Direito e as crescentes exigências do mercado de trabalho impostas aos egressos dos cursos jurídicos brasileiros são incompatíveis com a flexibilização proposta pelo CNE, o que enseja reflexão e crítica. Impõe-se que os segmentos promoventes da formação jurídica (em especial as IES) e as entidades responsáveis pelas profissões jurídicas (OAB, Associações de Magistrados, do Ministério Público e outras) questionem a oportunidade e a relevância de iniciativas como essa. 2 1 O autor prefere educação jurídica a ensino jurídico, pois o primeiro termo é mais amplo, abrangendo as atividades de ensino, pesquisa e extensão, ressaltando o caráter educativo (além do profissionalizante) dos cursos jurídicos. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 15 Pioneira e louvável foi o Mandado de Segurança nº 8592 (09/ 09/2002), impetrado pelo Conselho Federal da OAB no Superior Tribunal de Justiça para impugnar o parecer do CNE. 3 No dia 14/05/2003, a Primeira Seção do STJ, unânime, concedeu a segurança conforme o voto do Ministro Franciuli Netto (relator), decisão que merece elogios. Em tal contexto foi produzido este texto, destinado a oferecer alguns elementos que favoreçam a reflexão e o debate sobre a educação jurídica, nos dias presentes, mediante a análise da trilogia ensino, pesquisa e extensão. É pretensão deste trabalho fomentar a discussão sobre o futuro da educação jurídica brasileira, a partir da idéia de que a mesma deve transpor os limites do paradigma tecnicista profissionalizante, devendo, o Bacharel em Direito estar habilitado ao efetivo exercício da cidadania. Iniciando a reflexão sobre a realidade da educação jurídica brasileira, o texto destaca a relevante contribuição da OAB para a qualidade dos cursos jurídicos brasileiros, passando a analisar a importância da educação jurídica para a construção e o exercício da cidadania. Busca-se traçar um perfil geral dos cursos jurídicos, desde a concepção em projeto pedagógico e o currículo pleno, passando pela 2 Antes mesmo da homologação do indigitado parecer, o Conselho Federal da OAB condenava com veemência a pretensão do CNE, concluindo em nota oficial que “tamanho retrocesso não pode deixar de receber a mais candente repulsa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. O órgão supremo da OAB, cioso da sua atribuição legal de ‘colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos’, apela para o bom senso e o patriotismo do Senhor Ministro da Educação, no sentido de que não homologue o nefasto parecer em rela’;cão ao curso jurídico, poupando-o, assim, do golpe que contra ele se intenta desferir”. MACHADO, Rubens Approbato. Conselho Federal condena a nova proposta de Diretrizes Curriculares. In: Jornal da Ordem. Brasilía: OAB, maio de 2002, p. 10. 3 “O ministro Franciulli Netto, da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), concedeu o pedido de liminar em mandado de segurança impetrado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra ato do Ministro de Estado de Educação. Com a concessão da liminar, ficaram suspensos os efeitos da homologação do Parecer n. 146/2002 e das minutas de resolução que o acompanham, no que concerne ao curso de Direito [...] O ministro Franciulli Netto concedeu a liminar considerando que é evidente a plausibilidade do direito invocado pelo Conselho Federal da OAB, uma vez que tanto a legislação infraconstitucional como as determinações da Constituição Federal caminham no sentido de garantir a qualidade dos cursos jurídicos, diante da sua indispensabilidade para a proteção dos direitos individuais e sociais do povo brasileiro. ‘Nunca se pode olvidar, pois, da importância da figura do advogado e dos demais profissionais da área jurídica na sociedade contemporânea, circunstância que acarreta, necessariamente, sensível aumento na demanda por cursos jurídicos, mas que não pode servir de mote para se prestigiar a quantidade em lugar da qualidade’, destacou Franciulli Netto.” STJ. Franciulli Netto defere pedido da OAB contra redução do currículo do curso de Direito. In: Notícias do Superior Tribunal de Justiça. www.stj.gov.br Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 16 interdisciplinaridade como requisito essencial para a excelência da educação jurídica. A partir dessas reflexões a educação jurídica é analisada iniciando-se por seus três pilares : o ensino, a pesquisa e a extensão. Quanto ao ensino, o trabalho trata da aula (teórica e prática) em ensino superior, apontando ser necessária a superação do modelo tradicional e dogmático do ensino do Direito. Quanto à pesquisa, o texto cuida da importância dela para a construção do conhecimento. Quanto à extensão, afirma-se ser em atividades de interação com a comunidade que, sendo esta acadêmica contribui para a construção e o exercício da cidadania. Em seguida, o trabalho traça o perfil do corpo docente e do corpo discente dos cursos jurídicos, enfocando alguns aspectos sobre o papel dos partícipes da educação jurídica brasileira (docentes e discentes). Como opção metodológica, dada a natureza e a destinação deste texto, optou-se por não incluir questões pertinentes à avaliação dos cursos jurídicos, seja a avaliação dos corpos discente e docente, ou a avaliação das IES. De todo modo, a avaliação dos cursos jurídicos será sempre satisfatória se as IES estiverem, efetivamente, comprometidas com a construção e a efetivação de um projeto pedagógico de boa qualidade. OS CURSOS JURÍDICOS NACIONAIS E O TRABALHO DA OAB A educação jurídica, como parte da educação em geral, encontra seu fundamento no texto constitucional, pelo qual “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovido e incentivado com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (artigo 205 da Constituição Federal). No âmbito da legislação infraconstitucional, a educação jurídica é sustentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 20/12/1996, elaborada por mandamento constitucional que atribui competência à União para legislar sobre “diretrizes e bases da educação nacional” (artigo 22, XXIV, da Constituição Federal). Em 30/12/1994 o MEC editou a portaria nº 1.886, traçando “as Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 17 diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo do curso jurídico” : a) integralização do curso entre cinco anos (3.300 horas) no mínimo e sete anos no máximo (artigo 1), exigindo do curso noturno a mesma qualidade do curso diurno (artigo 2); b) integração entre atividades de ensino, pesquisa e extensão, visando a formação fundamental, sócio-política, técnico-jurídico e prática do futuro Bacharel (artigo 3); c) destinação de carga horária (cinco a dez por cento do total) às atividades complementares, incluindo pesquisa, extensão, seminários, simpósios, congressos, conferências, monitoria, iniciação científica e disciplinas não previstas no currículo pleno (artigo 4); d) composição de acervo bibliográfico atualizado com (no mínimo) dez mil volumes de obras jurídicas e de referências às matérias do curso, além de periódicos de legislação, de doutrina e de jurisprudência (artigo 5); e) construção de currículo pleno compreendendo a formação fundamental, profissional (artigo 6) e prática, inclusive com estágio obrigatório (artigo 10); f) elaboração e defesa pública de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), considerado atividade obrigatória para a obtenção do grau de Bacharel (artigo 9). 4 A normativa leva em consideração os estudos científicos e os diversos encontros (seminários, congressos) realizados para discussões sobre a matéria, além de várias publicações sobre a educação jurídica no Brasil, para tudo contribuindo o Conselho Federal da OAB, por sua Comissão de Ensino Jurídico (CEJ). 5 É fato que o Conselho Federal da OAB tem fomentado ativamente a melhoria da educação jurídica nacional, inclusive publicando 4 Nos dias 13 e 14 de julho de 2000, em Brasília-DF, a Comissão de Especialistas de Ensino de Direito da Secretaria de Educação Superior do MEC editou diretrizes curriculares para o curso de Graduação em Direito, “elaboradas por força da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996), a partir das indicações fornecidas pelo Parecer n. 776/97 da Câmara de Educação Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CNE) e pelo Edital n. 4/97 da SESu/ MEC, sistematizam, com base na Portaria n. 1.886, de 30 de dezembro de 1994, com a preocupação de preservar o seu conteúdo, as sugestões enviadas pelos membros da comunidade acadêmica jurídica de forma prévia para a Comissão de Especialistas de Ensino de Direito”. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 18 várias obras a respeito, contendo a síntese dos debates promovidos. Basta ver a série “OAB Ensino Jurídico”, com três livros em 1996: a) “Diagnóstico, Perspectivas e Propostas”; b) “Novas Diretrizes Curriculares”; c) “Parâmetros para Elaboração de Qualidade e Avaliação”. Destaque-se ainda o livro “Ensino Jurídico OAB – 170 anos de cursos jurídicos no Brasil”, publicado pelo Conselho Federal em 1997. O Conselho Federal da OAB tem cumprido seu dever de “colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos, e opinar, previamente, nos pedidos apresentados aos órgãos competentes para criação, reconhecimento ou credenciamento desses cursos”, a teor do artigo 54, XV, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB). 6 A importância do trabalho da OAB para a boa qualidade da educação jurídica é assinalada por Paulo Luiz Neto Lôbo, jurista que contribuiu na gênese do Estatuto: Reconhecendo legitimidade da OAB para manifestar-se sobre a formação do profissional do direito, porque ela é quem mais sofre as conseqüências do mau ensino, o Estatuto atribuiu-lhe a competência para opinar previamente nos pedidos de criação, reconhecimento ou credenciamento dos cursos jurídicos. Assim, antes da decisão da autoridade educacional competente (Conselho Federal e Estaduais de Educação, MEC e Secretarias Estaduais de Educação), caberá ao Conselho Federal emitir parecer prévio. A proliferação descriteriosa de cursos jurídicos, sem as mínimas condições de qualidade, tem contribuído para a preocupante queda 5 “COMISSÃO DE ENSINO JURÍDICO. Compete à Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal opinar previamente nos pedidos para criação, reconhecimen to e credenciamento dos cursos jurídicos referidos no Art. 54, XV, do Estatuto da Advocacia e da OAB. Membros : - Presidente: PAULO ROBERTO DE GOUVEA MEDINA; - Vice-Presidente: FRANCISCO OTÁVIO DE MIRANDA BEZERRA; - Secretário: MILTON PAULO DE CARVALHO; - Membro Efetivo: ANTONIO JOSÉ FERREIRA ABIKAIR; - Membro Efetivo: MARILIA MURICY; - Membro Consultor: IGNÁCIO POVEDA VELASCO; Membro Consultor: MARCELO GUIMARÃES DA ROCHA E SILVA; - Membro Consultor: ROBERTONIO SANTOS PESSOA.” Informação obtida no site do Conselho Federal da OAB (www.oab.org.br). 6 “O vigente Estatudo da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/93) confere à OAB papel de relevo no campo do ensino jurídico. Entre os fins institucionais da entidade, insere-se aquele que importa em ‘pugnar pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas” (art. 44, I, in fine). Na esteira desse desiderato, a citada lei atribui ao Conselho Federal da Ordem competência no sentido de ‘colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos, e opinar, previamente, nos pedidos apresentados aos órgãos competentes para criação, reconhecimento ou credenciamento desses cursos”. MEDINA, Paulo Roberto de Gouvea. A OAB e o ensino jurídico. (www.oab.org.br). Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 19 do nível profissional dos advogados. Atualmente, o Brasil detém mais cursos jurídicos que os Estados Unidos (credenciados pela American Bar Association). Caberá à OAB definir critérios razoáveis, para que possa colaborar com as autoridades educacionais neste objetivo, especialmente mediante a atuação de sua Comissão de Ensino Jurídico. 7 8 A instrução normativa nº 01 (19/08/97) do Conselho Federal da OAB (CEJ), fixa as diretrizes para a “alta qualificação dos cursos jurídicos”: a) corpo docente, no todo ou em parte (considerável) com pós-graduação ou titulação stricto sensu (mestrado ou doutorado), trabalhando em regime de tempo integral ou parcial, mediante remuneração condigna, evitando-se a contratação de “professores horistas”; b) qualidade e atualização do acervo bibliográfico disponível; c) qualidade da estrutura curricular; d) implementação de núcleos de pesquisa e de extensão; e) vagas adequadas à demanda populacional na região; f) instalações e equipamentos (laboratórios de informática) adequados ao funcionamento do curso. No âmbito dos Estados, os Conselhos Seccionais da OAB têm procurado pautar conduta em consonância com as orientações do Con7 LÔBO, Paulo Luiz Neto. Comentários ao novo Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. Brasília: Brasília Jurídica, 1994, p. 173. 8 Em outro comentário ao Estatuto, lê-se sob o título aperfeiçoamento dos cursos jurídicos: “O Conselho Federal tem o dever de colaborar com as Universidades, as Faculdades de Direito e o Ministério da Educação, no sentido de melhorar o ensino jurídico no país, pois seus inscritos advêm de cursos de Direito. Para tal, criou o Conselho, no Estatuto anterior, uma Comissão de Aperfeiçoamento do Ensino Jurídico, que se tem manifestado, sempre, buscando aperfeiçoar este ensino. O Conselho deve ser, ainda, consultado previamente sobre pedidos ao Ministério da Educação para a criação de novos cursos jurídicos no país, ou para seu credenciamento, quando em funcionamento. A nosso ver, a Comissão acima mencionada devia ser muito rigorosa, ao recomendar a criação ou o credenciamento dos cursos jurídicos, que proliferando indiscriminadamente no território brasileiro se multiplicam também desordenadamente, seja pela criação de ‘extensões’ de universidades, seja pela criação desmesurada de vagas noturnas e diurnas, rebaixando o nível do ensino. Com a necessidade de prestação de Exame de Ordem, pensamos que o assunto vai melhorar, pois mesmo com grande número de bacharéis, o número de advogados não crescerá tanto, já que se exigirá não só maior conhecimento do Direito, mas, na medida do possível, observar-se-á a vocação e a possibilidade de o interessado exercer a profissão”. CORRÊA, Orlando de Assis (org.). Comentários ao Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB. Rio de Janeiro: Aíde, 1995, p. 178. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 20 selho Federal, como exemplifica a Carta de Curitiba, fruto do Primeiro Encontro de Presidentes das Subseções e Conselheiros Estaduais: O Colégio de Presidentes das Subseções da Ordem dos Advogados do Brasil, Secional do Paraná, reunido em Curitiba, nos dias 22 a 24 de junho de 2001, em sua versão número 1, da Gestão 2001/ 2003, resolve proclmar a seguinte carta: 1 - Desaprova a criação de Cursos de Direito sem atender a excelência de qualidade indispensável à formação profissional, nem cumprir o princípio da efetiva necessidade regional de novas faculdades; 2 - Ressalta a imperiosidade de alteração das normas alusivas à criação de novos cursos de Direito, no sentido de que o respectivo pronunciamento da OAB no processo administrativo junto ao MEC não seja apenas opinativo, mas tenha caráter deliberativo; 3 - Sugere ao Conselho Estadual que transmita ao Conselho Federal para que seja encetada pela OAB ampla campanha de esclarecimento da sua posição, objetivando a garantia de permanente qualidade de ensino, nos cursos de Direito; 4 - Pugna pela unificação dos Exames de Ordem para habilitar os Bacharéis ao exercício profissional, em todo o Brasil, quer no tocante a data, quer no que respeita ao conteúdo, assegurando-se ampla correção e efetivo respeito no tocante à comprovação da inequívoca capacidade dos candidatos. 9 O Conselho Federal informa que em 2001 “os 273 cursos jurídicos que participaram do Exame Nacional de Cursos (o Provão, do MEC) lançaram no mercado 50.933 bacharéis de Direito”, sendo tal número “seis vezes a quantidade de médicos e está no topo das carreiras do ensino superior”. 10 Em 06/2001, o MEC suspendeu os pedidos de autorização para funcionamento de cursos jurídicos, reabrindo-os em 01/02/2002. Para a 9 OAB. Colégio de Presidentes quer rigor na aprovação de novos cursos de Direito. In: Jornal da OABPR. Curitiba : julho de 2001, p. 09. 10 “O curioso, no levantamento, é que o número de faculdades de Direito no Brasil está abaixo de outras carreiras. Pedagogia, por exemplo, possui 498 cursos (225 a mais do que Direito), mas formou no ano passado um número menor de alunos: 47.870. Em terceiro lugar está o curso de administração, que com suas 497 faculdades formou 46.300 alunos. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 21 OAB, a reabertura viria “na contramão das denúncias sobre a má qualidade decorrente da proliferação dos cursos superiores no Brasil, comprometendo carreiras históricas, como o Direito”. 11 Em 11/2001, a OAB enviou ofício à titular da Secretaria de Ensino Superior, protestando contra a portaria nº 2.402, “cujos efeitos na qualidade do ensino de Direito poderão ser desastrosos” : A Portaria estabelece as novas condições para o aumento de vagas nas faculdades sem autorização prévia e, pela primeira vez, o Direito não é preservado da lista dos cursos cuja expansão de vagas, para se manter a qualidade, passa pelo crivo de seus respectivos conselhos, como Medicina, Odontologia e Psicologia. Mais grave: pela Portaria, a prerrogativa de aumentar as vagas sem autorização prévia, antes exclusiva das instituições com autonomia universitária (universidades, centros universitários) é estendida às faculdades sem autonomia universitária (faculdades integradas, faculdades, institutos superiores ou escolas superiores). Elas ficam autorizadas a aumentar em até 50% o número de vagas. 12 Ainda em 2001, realizou-se a 1a Reunião da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB com os representantes das CEJ’s de Seccionais, d’onde foi consenso que devem ser promovidas novas ações em prol da educação jurídica nacional, dentre as quais a criação de um cadastro de professores de Direito. Segundo noticiado no Jornal da Ordem, além dos critérios já definidos para a elaboração do cadastro, foi sugerido que se acrescente a carga horária e o regime de trabalho do docente para que se possa avaliar a existência de efetivas condições para o exercício de docência. O ofício a ser encaminhado às instituições de ensino superior pelas CEJs Seccionais deverão conter uma breve exposição de motivo, destacando que os dados soliA OAB estima que atualmente existam mais de 450 cursos jurídicos funcionando no Brasil, mas como muitos deles foram criados recentemente, a estatística se refere apenas aos 273 que já estão formando turmas e participam do Provão.” OAB. Direito formou mais de 50 mil bacharéis em 2001. In: Jornal da Ordem. Brasília - www.oab.org.br 11 OAB. Faculdades: MEC acha pouco e abre novos registros. In: Jornal da Ordem. Brasília www.oab.org.br 12 OAB. Portaria do MEC pode agravar crise no ensino jurídico. In: Jornal da Ordem. Brasília www.oab.org.br Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 22 citados servirão como subsídios na apreciação dos novos processos de criação de cursos de Direito. Os critérios estabelecidos na Instrução Normativa 1/97, da CEJ/CJ também foram discutidos. Foi sugerido que se acrescentasse o requisito da vocação econômica da região onde o curso se instalará para complementar os requisitos que possibilitem a apreciação do pedido. 13 Eis alguns exemplos de como a OAB tem contribuído para a melhoria da qualidade da educação jurídica brasileira, propondo critérios para assegurar que as IES primem pela excelência dos serviços educacionais prestados. Destaque-se ainda a importante participação do Conselho Federal e dos Conselhos Estaduais da OAB nos pedidos de autorização e/ou reconhecimento dos cursos jurídicos. A análise da conduta da OAB permite concluir que a entidade está de fato comprometida com a alta qualificação dos cursos jurídicos, combatendo cursos sem qualidade e trabalhando pelo contínuo aperfeiçoamento da educação jurídica nacional. Nada obstante merecedora de elogios, a postura da OAB frente à educação jurídica nacional, deve-se ter muita cautela quanto à disseminação de opinião generalizada e negativista acerca da abertura de novos cursos jurídicos no Brasil. Se é necessário combater a autorização e o reconhecimento de cursos que não oferecem as condições indispensáveis para o bom funcionamento, certo é também que a CEJ do Conselho Federal, bem como as CEJ’s dos Conselhos Estaduais, devam agir com prudência e considerar cuidadosamente os diversos aspectos ligados ao curso que esteja (eventualmente) sendo analisado. Infelizmente, há casos de incoerência em algumas atitudes de CEJ’s (Federal e Estaduais) diante de pedidos de autorização de alguns cursos jurídicos, pois os pareceres (pura e simplesmente) negativos deixam de considerar o projeto pedagógico, em especial (parado13 OAB. Cadastro de professores de Direito. In: Jornal da Ordem. Brasília - www.oab.org.br Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 23 xalmente) para ver se estão presentes os requisitos da instrução normativa 01/97. Muitas vezes o parecer negativo é fruto de uma idéia preconcebida de que há muitos cursos jurídicos no Brasil, de que o mercado não necessita de tantos Bacharéis, de que todo e qualquer curso jurídico novo é (necessariamente) ruim para a comunidade, quando é sabido que nem sempre isso é verdade. Seria ideal que ao menos o relator da CEJ, encarregado de oferecer opinião sobre determinado curso em análise, comparecesse à sede da IES, para verificar in loco quais as condições de oferta do curso. Se durante a tramitação do pedido de autorização de novos cursos o MEC nomeia comissão verificadora (composta por dois consultores, especialistas) para conhecer a IES e estabelecer contato pessoal com seus dirigentes, empregados, professores que participem do projeto pedagógico, é porque isso é indispensável para a formação de um correto juízo de valor acerca da viabilidade ou não da pretensão sobre o curso jurídico. Se a comissão de especialistas do MEC dá parecer favorável à instalação de um novo curso jurídico, é porque (em tese) foi constatada a presença das condições necessárias para o adequado funcionamento do curso. Até porque tais comissões são rigorosas na verificação in loco das condições institucionais. Ao visitar a sede de IES que pretende instalar ou manter curso jurídico, a comissão de consultores ad hoc oriundos do MEC para verificar as condições institucionais, analisa rigorosamente diversos aspectos, dentre eles: a) características e administração da IES; b) políticas de pessoal, incentivos e benefícios; c) organização didático-pedagógica (projeto) do curso pretendido; d) corpo docente indicado para o curso; e) instalações e laboratórios destinados ao curso; f) acervo bibliográfico mínimo. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 24 A seriedade do trabalho dos consultores do MEC passa pelo respeito a princípios éticos e orientações de conduta editados pelas autoridades de ensino. Os avaliadores nomeados pelo MEC para as verificações das condições de oferta, autorização e reconhecimento de cursos superiores (inclusive jurídicos), devem observar o seguinte: As regras de conduta funcionam como um caminho prático para fazer valer os princípios éticos já estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, as regras de conduta estabelecidas pelo Decreto 1171/ 94, que visam a estimular um comportamento ético na Administração Pública. Considerando a natureza da tarefa avaliativa e tendo em vista os princípios que estão conduzindo o processo de avaliação dos cursos de graduação (qualidade da avaliação, credibilidade do processo e respeito à legislação em vigor), preconiza-se que o avaliador, na verificação in loco, deva estar imbuído de uma conduta ética que o oriente na sua missão oficial. Suas posições e decisões deverão estar pautadas na legislação em vigor. A consideração aos requisitos legais implica, também, em respeitar a identidade institucional. As instituições devem ser analisadas pelas suas características, natureza de suas finalidades e estágio de desenvolvimento. A diversidade não é contrária à qualidade. As diferenças entre cursos podem ser manifestações de qualidade em busca de atendimento ao desenvolvimento científico-teconológico e sociocultural. Fundamentados eticamente na imparcialidade e na isenção os avaliadores deverão manter conduta a mais uniforme possível. 14 15 14 Ainda segundo os princípios éticos e orientações de conduta para os avaliadores do MEC, interessante observar os deveres que assumem os consultores ad hoc, objetivando a atender aos princípios preconizados e buscar harmonia nos procedimentos e conduta para a verificação in loco: Cumprir rigorosamente o cronograma de verificação in loco, não aceitando redução dos dias programados; Estar atento para que as reuniões, conversas informais, visitas e leitura de documentos não sejam superdimensionados em detrimento de outras atividades previstas no cronograma da avaliação; Evitar ênfase em algum aspecto de interesse específico ou da especialidade do avaliador; Evitar que conversas particulares com o corpo docente, discente e técnico-administrativo comprometam o andamento da avaliação; Dimensionar o tempo das atividades de modo a não prejudicar o andamento do trabalho; Evitar entrevistas ou exposição à mídia; Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 25 Se a despeito das rígidas regras de conduta impostas aos consultores do MEC, as CEJ’s (Conselho Federal ou Conselhos Estaduais) não formem juízo de convencimento com base no parecer dos verificadores, deveriam então designar ao menos algum membro (relator) para que visite a IES e tire suas próprias conclusões. Após esgotar os quesitos avaliados pela comissão verificadora do MEC, a OAB poderia avaliar outros aspectos pertinentes, tudo para que o parecer fosse calcado em análise realista e sincera sobre as reais condições objetivas e subjetivas para a instalação de um novo curso jurídico. O que se deve evitar é a “política da negação”, pela qual parte-se do pressuposto que qualquer novo curso jurídico seja maléfico para a comunidade (dada a quantidade de cursos já existentes), pois ocorre exatamente o contrário quando o projeto for bem estruturado e a IES também for comprometida com a boa qualidade dos serviços educacionais. Aceita-se que as CEJ’s guardem autonomia na formação do juízo de valor quanto à recomendação de cursos jurídicos, e nem podeNa reunião final, com a coordenação do curso, ater-se somente a discutir aspectos relacionados à avaliação, sem entregar documentos nem manifestar opinião que antecipe o resultado final; Não aceitar a oferta para transporte em aviões particulares, ou seja, nos deslocamentos somente utilizar passagens aéreas do INEP; Não ter vínculo com a IES avaliada, seja administrativo ou técnico; Não indicar nem se comprometer a realizar serviços de assessoria ou de consultoria para o curso e a IES visitados; Estar atento para não confundir sua tarefa na IES com a eventual coincidência de ser também dirigente de IES, de Conselho Profissional ou de Associação; Estar atento para não emitir opiniões e orientações sobre as atividades desenvolvidas ou sobre a IES como um todo; Não externar opiniões sobre outras IES; Não solicitar serviços da IES paa qualquer trabalho de caráter pessoal; Não aceitar ofertas, hospedagem e presentes; Evitar envolver-se em discussões que possam comprometer a credibilidade da avaliação; Não aceitar solicitação de intercessão, de apoio ou de informações com relação a outras áreas do MEC, orientando, quando for o caso, para que a IES procure diretamente o setor respnsável; Evitar a participação em recepções e em ambientes festivos, que comprometam os princípios da avaliação; Não realizar e nem agendar atividades de caráter pessoal, como palestras, cursos, promoção de livros, etc., até a homologação oficial dos resultados da avaliação; Não aceitar convites da IES para passeios turísticos; Não aceitar qualquer tipo de complementação de diárias por parte da IES; As informações coletadas, só devem ser utilizadas para a finalidade da avaliação do curso. 15 Ainda Sobre os requisitos dos avaliadores e impedimentos éticos veja-se : RODRIGUES, Horário Wanderlei & JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Ensino do Direito no Brasil: diretrizes curriculares e avaliação das condições de ensino. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 161 e ss. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 26 ria ser diferente. No entanto, para lançar parecer desfavorável em pedido e autorização, contrariando opinião favorável dos consultores ad hoc, é imperioso que a OAB conheça bem o projeto pedagógico do pretendido curso (estude-o). E mais, para um julgamento mais imparcial, é de todo conveniente que a OAB verifique in loco se a IES oferece condições para a implantação de um curso jurídico que atenda as exigências legais e as recomendações emanadas da própria Ordem. Assim, exalta-se o bom trabalho desenvolvido pela OAB para a melhoria contínua da qualidade dos cursos jurídicos brasileiros, ao tempo em que se adverte sobre a necessidade de análise criteriosa e embasada dos pedidos de autorização de novos cursos, porque preenchidos os requisitos de lei e as regras das própria Ordem, não há porque recorrer à “política da negação”. EDUCAÇÃO JURÍDICA PARA A CIDADANIA 16 O Direito é uma realidade social decorrente da natureza gregária do ser humano e a civilização não existe sem normas, pois ao Direito é conferida a prerrogativa de assegurar interesses e estabelecer limites e sanções, revelando-se essencial conhecer o Direito para bem viver em sociedade. Direito e coexistência social são indissociáveis, exteriorizando o homem “suas relações com os seus semelhantes, ou de sua ação sobre os bens, materiais ou imateriais, que lhe proporcionem os meios de conservação e desenvolvimento”, 17 diz Vicente Ráo no clássico “o Direito e a vida dos direitos”. 16 O conceito de cidadania é multifacetado e transforma-se no tempo e no espaço, não se tratando de idéia unívoca. Para tanto, basta dizer, amparada em Maria de Lourdes Manzini Covre, que a cidadania é o “resultado não de uma apreensão estanque, mas de um processo dialético em incessante percurso em nossa sociedade ... ser cidadão significa ter direitos e deveres, ser súdito e soberano”. COVRE, Maria de Lourdes Manzine. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 8-9. O tema é tratado em muitos outros trabalhos, como por exemplo : DEMO, Pedro. Cidadania pequena. Campinas, Autores Associados, 2001. MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. VAIDERGORN, José. O direito a ter direitos: polêmicas do nosso tempo. Campinas: Autores Associados, 2000. 17 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos, 5 ed. São Paulo: RT, 1999, p. 51 ss. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 27 A existência do ser humano é pressuposto do Direito, sendo o convívio social seu estado de natureza: “à proteção e ao aperfeiçoamento do homem, o direito tende. Mas, para realizar este fim, não o considera isoladamente; considera-o, sim, em estado de comunhão com os seus semelhantes, isto é, sempre como parte do todo social a que pertence”. 18 Esse estado de comunhão consuma-se em relações sociais ocorridas nos diferentes campos de interação humana, como nos grupamentos sociais, familiares, estudantis, religiosos, científicos, políticos, societários ou outros. A lição de Vicente Ráo é simples, mas exemplar, pois o Direito acompanha o homem, desde antes de seu nascimento até depois de sua morte, sendo inegável a origem, a essência e a finalidade social do Direito: O direito ampara o ser humano desde o momento em que é concebido e enquanto ainda vive no ventre materno. E depois o segue e acompanha em todos os passos e contingências de sua vida, contemplando o seu nascimento e, com o seu nascimento, o início de sua personalidade. Protege-lhe, com a liberdade, a integridade física e moral. Prevê e segue, de grau em grau, seu desenvolvimento físico e mental, dispondo sobre sua capacidade progressiva ou sobre sua incapacidade. Regula suas relações de família, como filho, parente, nubente, esposo e pai, bem assim suas relações patrimoniais, quer tenham por objeto bens corpóreos, quer recaiam sobre outras pessoas, obrigadas a uma prestação de dar, fazer, ou não fazer alguma coisa. Prevê e disciplina as conseqüências patrimonais e penais da violação de seus direitos. Define sua atividade profissional. Contempla sua qualidade de membro de grupos sociais e de membro da comunhão política, inclusive suas relações com o Estado, que ele, o direito, também cria, ordena e enquadra na ordem da comunhão universal. E, por fim, dispõe sobre a sua morte, perpetuando-o através de seus sucessores. 19 Regulando condutas sociais, o Direito tutela, igualmente inte18 19 Idem, ibidem. Idem, ibidem. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 28 resses individuais e coletivos, fomentando e fortalecendo o sentimento de agregação ínsito à natureza humana. O estudo e a compreensão do Direito são importantes para a construção de uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”, como enuncia a Constituição da República Federativa do Brasil. No dizer de Elias de Oliveira Motta (considerado o pai do Direito Educacional) “o século XXI será o século da educação”. Em entrevista concedida à Editora Consulex, afirmou : “precisamos mobilizar o povo brasileiro para a luta em favor do respeito ao direito à educação em todos os níveis e para a formação de um consenso nacional de que a educação deve ter tratamento prioritário”. 20 21 No alvorecer do terceiro milênio vive-se a era do conhecimento, na qual as pessoas buscam na educação sua emancipação intelectual e profissional, caminho seguro para a construção de uma vida (individual e social) melhor. Ainda Oliveira Motta, na consagrada obra “Direito Educacional e educação no século XXI”, ressaltando a importância da educação para a civilização, assinala que “a Educação se confunde com o próprio processo de humanização, pois é a capacitação do indivíduo tanto para viver civilizadamente e produtivamente, quanto para formar seu próprio código de comportamento e para agir coerentemente com seus princípios e valores, com a abertura para revisá-los e modificar seu comportamento quando mudanças se fizerem necessárias”. 22 23 20 OLIVEIRA MOTTA, Elias de. Século XXI será o século da educação. In: CD-ROOM Revista Jurídica Consulex – O mundo jurídico em cores. Entrevista realizada por Daine Côrtes, da Editora Consulex, com Elias de Oliveira Motta, Consultor Legislativo do Senado Federal, Advogado e Historiador com Doutorado em Sociologia da Educação pela Universidade de Sorbonne, conhecido como o pai do Direito Educacional. 21 Mostrando a importância da educação durante a história da humanidade, Mario Alighiero Manacorda escreveu a excelente obra “história da educação: da antigüidade aos nossos dias”, na qual pretende “perseguir o processo educativo pelo qual a humanidade elabora a si mesma, em todos os seus vários aspectos”. MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação: da antigüidade aos nossos dias, 9 ed. Trad. Gaetano Lo Monaco. São Paulo: Cortez, 2001. 22 MOTTA, Elias de Oliveira. Direito Educacional e educação no século XXI : com comentários à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Unesco, 1997, p.75. 23 Ainda sobre o Direito Educacional, destaca-se o livro de Edivaldo Boaventura, “intitulado a educação a a brasileira e o Direito”, dividido em três partes : 1 ) do direito à educação ao direito educacional; 2 ) o a regime constitucional da educação; 3 ) os sistemas e a descentralização do ensino. BOAVENTURA, Edivaldo. A educação brasileira e o Direito. Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 29 Arnoldo Wald, em texto intitulado “a crise e o primado do Direito”, salienta com lucidez a necessidade do progresso humano no plano jurídico-cultural: Ao que parece, o homem contemporâneo, como o aprendiz de feiticeiro, conseguiu desenvolver uma tecnologia adiantada e realizar progressos materiais relevantes, sem cuidar, todavia, da formação intelectual e moral, esquecendo-se da necessidade de um constante equilíbrio entre a estrutura econômica e técnica e a superestrutura cultural e jurídica. [...] Durante algum tempo advogou-se um progresso econômico a qualquer preço, entregando-se aos economistas a função de legislar e concentrando-se o esforço nacional no aumento quantitativo da produção. Olvidou-se, naquela época, a distinção básica entre o progresso e o desenvolvimento, o primeiro meramente quantitativo e o segundo essencialmente qualitativo, aquele simplesmente material e este profundamente humano e ético, envolvendo a qualidade de vida, a boa legislação e a adequada distribuição da Justiça.24 Norbert Rouland, contribuindo para as jornadas temáticas idealizadas e dirigidas por Edgar Morin, escreveu capítulo para a sétima jornada (as culturas adolescentes), intitulado “iniciação jurídica dos alunos do segundo grau”, evidenciando a relevância da educação jurídica para a evolução da humanidade. Colhem-se do texto (dentre outras) as seguintes lições: A educação para o Direito deve aparecer a priori como uma das tarefas mais difíceis propostas a professores que devem dirigir-se a adolescentes, na medida em que as regras jurídicas são freqüentemente sentidas pelos jovens como exteriores às suas vidas, impostas pela “sociedade”. É justamente por isso que a aprendizagem de um mínimo dessas regras parece indispensável, com a condição de fazer com que os jovens apreendam seu verdadeiro caráter, que não é - diga-se antes de mais nada - repressivo. Parece necessário partir de valores que são amplamente comuns aos adolescentes: ... em primeiro lugar, a liberdade ... em segundo lugar, 24 WALD, Arnoldo. A crise e o primado do Direito. Oração proferida em 01.02.83 no TJSP ao receber o Colar do Mérito Judiciário. In: Revista dos Tribunais nº 617. São Paulo: RT, março de 1987, p. 254-255. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 30 a solidariedade ... em terceiro lugar, a injustiça ... 25 Nada obstante, Rouland sugerir a educação jurídica para os adolescentes, é para os jovens e os adultos que o conhecimento jurídico adquire mais “utilidade”, dadas as inúmeras situações da vida que exigem conhecimentos jurídicos. A relevância da educação jurídica para as pessoas em geral é também ressaltada por Plauto Faraco de Azevedo: O papel dos cursos jurídicos é de fundamental importância. Neles formam-se pessoas, cuja atuação tem importância sensível não só no mundo jurídico, em qualquer de seus setores, como na política, eis que, dentre os que a ela se dedicam, muitos são egressos dos cursos jurídicos. A formação jurídica espraia sua influência pelos três poderes em que se estrutura o Estado. De sua maior ou menor abertura, derivarão resultados diversos, decisivos à vida social. 26 Em que pese o caráter elitista evidenciado na educação jurídica, no século XIX e na primeira metade do século XX, fato é que desde os primórdios do Direito lusitano vigente no Brasil até os presentes dias, os bacharéis em Direito têm ocupado destacadas posições na vida pública e nas profissões jurídicas. Logo, vale a lição de Aurélio Wander Bastos, para quem o curso jurídico “é um curso que se explica e se justifica em qualquer sociedade democrática”. Para ele, “o processo de crescimento e expansão do curso de direito é pouco relevante, guardada a sua qualidade, é importante para que se resguarde as instituições democráticas, mesmo porque nem todos que se formam em direito vão ser juízes/promotores ou vão ser advogados”. 27 25 Quanto às matérias jurídicas, esclarece Norbert Rouland, será preciso fazer escolhas. O autor sugere como disciplina fundamental o Direito Constitucional, pois ele determina as regras que delimitam o comportamento dos homens políticos, geralmente vistos pelos jovens como personagens totalmente livres de leis. Noções de organização judiciária seriam valiosas para que os jovens entendam a importância da função jurisdicional. Direito penal, direito processual, direito civil (família), direitos humanos, seriam outras disciplinas cujo estudo. ROULAND, Norbert. Iniciação jurídica dos alunos do segundo grau. In: MORIN, Edgar. Jornadas Temáticas. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 481-484. 26 AZEVEDO, Plauto Faraco de. OAB – Ensino Jurídico. In: OAB Ensino jurídico. Diagnóstico, perspectivas e propostas. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996, p. 239. 27 BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas – Uma recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro. In: Ensino jurídico OAB – 170 anos de cursos jurídicos no Brasil. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1997, p. 52. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 31 Com efeito, o curso jurídico, para além de formar profissionais habilitados ao exercício dos vários ofícios jurídicos, deve trabalhar para a conscientização dos cidadãos do papel ativo que devem exercer em prol da transformação social, disseminando e fortalecendo valores éticos, jurídicos e culturais hauridos e consolidados na vida acadêmica. A importância da educação jurídica para todos é destacada por João Baptista Herkenhoff: Uma visão panorâmica do jurídico é indispensável a uma boa cultura geral. Toda pessoa precisa conhecer seus direitos e deveres, nas mais diversas situações que o cotidiano oferece. Na vida social, podemos ser atores nos mais diversos papéis: eleitor, contribuinte, jurado, inquilino, mutuário do Sistema Financeiro da Habitação, empregado de uma empresa, membro de um sindicato, titular de uma caderneta de poupança, consumidor etc. Em todas essas posições somos, de uma forma ou de outra, envolvidos nas teias do jurídico [...] Pessoas outras, que não estudantes, precisam também de uma visão geral do Direito, seja por necessidade profissional, seja como decorrência de uma justa aspiração de crescimento humano e cultural. 28 Assim, pode-se afirmar que (de regra) a oferta de cursos jurídicos (com qualidade) gera benefícios sociais e culturais para a comunidade, pois além de formar bacharéis (futuros profissionais) com perfil definido em projeto pedagógico, deve fomentar a conscientização das pessoas sobre os direitos fundamentais e o exercício da cidadania. Além disso, o curso jurídico deve ser produtor de conhecimentos, como diz José Wilson Ferreira Sobrinho: A função da universidade não é exclusivamente a de transmitir o conhecimento existente, como se isto, por si só, justificasse a existência de uma estrutura universitária. Não. A produção do conhecimento é que deveria ser a preocupação central da universidade. Afinal, é problemático entender uma universidade que não gera conhecimento. Existe, então, apenas para possibilitar a repetição do saber estabilizado? É muito pouco. 28 HERKENHOFF, João Baptista. Direito, caminho para democracia. In: Ética, Educação e democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 47. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 32 O ensino jurídico deveria ser uma fonte de produção de conhecimentos atualizados, sintonizados com o tempo presente.29 A elevação do padrão de escolaridade da população brasileira (também na educação superior) é questão estratégica, pois como conseqüência há progresso na ciência e na tecnologia, ensejando condições para um progresso libertador (não subordinado). A educação superior deve ensejar qualidade de vida, contribuindo para amenizar a exclusão social e cultural. Os desafios da sociedade contemporânea exigem (constante e crescente) qualificação, para a qual contribui decisivamente a educação superior. Portanto, a responsabilidade das IES não deve ser limitada à formação, meramente técnica, apenas profissional, como se isto fosse suficiente para integrar as pessoas ao mundo do trabalho. A educação hodierna deve produzir novos conhecimentos, fomentando a capacidade de adaptação a mudanças. Impõe-se, então, uma abordagem nova para os cursos jurídicos, que propicie aos egressos a capacidade de investigação (aprender a aprender) e o domínio dos modos de produção do saber, ensejando permanente e contínuo progresso educacional. O curso jurídico deve educar, o que significa, para Cosme Damião Bastos Massi & Oswaldo Giacóia Júnior, “cultivar, adestrar, habilitar, ensinar, instruir, formar e elevar o indivíduo e o gênero humano”, ou ainda: Educar é, pois, o esforço solidário das gerações humanas, uma atividade por meio da qual o indivíduo é elevado no nível do desenvolvimento cultural coletivo do gênero humano, de modo a poder integrar como membro a sociedade cosmopolita dos seres racionais, com pleno acesso e disposição sobre o patrimônio cultura da espécie humana. Já no plano do gênero humano, em seu conjunto, educar significa desenvolver cada vez mais as disposições naturais para a humanidade, um processo indefinidamente em aberto, conduzindo o homem progressivamente para um ideal de perfeição que 29 FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Didática e aula em direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 53. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 33 corresponda ao ideal da humanidade. 30 A verdadeira educação decorre da aprendizagem cidadã, ou, no dizer de Edgar Morin, “a Educação deve contribuir para a autoformação da pessoa (ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se tornar cidadão. Um cidadão é definido, em uma democracia, por sua solidariedade e responsabilidade em relação à sua pátria. O que supõe nele o enraizamento de sua identidade nacional”. 31 32 Luis Alberto Warat, em excelente texto, assinala que o aperfeiçoamento sócio-cultural conduz a humanidade rumo a um mundo melhor: Particularmente penso que o fundamental, na tentativa de superação da crise civilizatória, passa pelo esforço de superação das trivialidades, pelo aprofundamento dos afetos. Nisto reside o amor como força política. Apoiando-me nesta dimensão política do amor, é que venho trabalhando, atualmente, a questão da crise do ensino do Direito, porque penso que a partir da compreensão do amor podem ver-se o fator desencadeante para a reconstituição do espaço político da sociedade, e recomposição ética dos vínculos sociais, os caminhos da consolidação da democracia e uma integração regional baseada nos afetos: a formação de uma cidadania regional e de uma prática política dos direitos humanos, condizente com as novas formas de sensibilidade que nos podem ajudar a crescer ou a destruir-nos. Sempre pensei que aprender era algo muito maior do que o domínio 30 MASSI, Cosme Damião Bastos e GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Ética e educação. In: SERBINO, Raquel Volpato [et al] (org.) Formação de professores. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 351-355. 31 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. Repensar a reforma. Reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 65. 32 Como escrevem Gilberto Cotrim & Mário Parisi, a função das instituições de ensino (as escolas) “não se restringe mais, como antigamente, à modesta tarefa de ensinar a ler, escrever e contar. Seu papel, no panorama complexo da vida social moderna, é mais amplo e profundo. Suas responsabilidades atuais são bem maiores. Além de instrumento de formação física, intelectual e moral, cabe-lhe a missão de promover a integração harmoniosa do educando no seio da comunidade, fornecendo-lhe todos os elementos para que se possa tornar um fator de progresso individual e social [...] Na opinião dos maiores pedagogos contemporâneos, os fins da educação não podem se resumir numa preparação mecânica e conformista, através de um processo de aprendizagem passivo. Ao contrário, esse processo deve ser dinâmico, ativo, progressivo, isto é, em constante ascenção, como a própria vida.” COTRIM, Gilberto & PARISI, Mário. Fundamentos da educação: história e filosofia da educação. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 327-328. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 34 de uma informação técnica-legal. A aprendizagem do Direito, como algo vinculado à dignidade, à solidariedade, à autonomia, à justiça social. Por certo que para aprender isto é preciso que se estimule aos alunos para o amadurecimento dos afetos. Assim, ajudando-os a amadurecer emocionalmente estarão mais abertos para a aceitação das diferenças, a recepção do novo e a produção criativa do mundo. Porque isto é aprender Direito: ser criativo, aberto ao novo e predisposto à solidariedade. O resto é crise. 33 Logo, os cursos jurídicos devem comprometer-se com a formação de bacharéis aptos ao exercício de qualquer profissão jurídica, mas com perfil diferenciado, ultrapassando o limite de meros intérpretes e reprodutores de dogmas (leis). A educação jurídica deve abarcar as dimensões social, política e econômica dos processos e das transformações a que se submete a sociedade, capacitando os acadêmicos à solução (equacionamento) de problemas, habilitando-os profissionalmente e preparando-os ao exercício consciente da cidadania. A história registra que outrora a educação jurídica foi fundamental para a estruturação do Estado brasileiro, como mostra Mozart Linhares da Silva no livro “o império dos bacharéis - o pensamento jurídico e a organização do Estado-Nação no Brasil”, tratando da formação da cultura jurídica no Brasil, a partir da herança portuguesa e da instalação dos cursos jurídicos brasileiros. O trabalho ressalta a preponderância da educação jurídica para a formação de gerações de intelectuais estadistas que participaram do processo de estruturação do Estado-Nação brasileiro.34 De fato, o bacharelismo brasileiro foi fundamental para o progresso nacional, como demonstra Pedro Paulo Filho na obra “o bacharelismo brasileiro: da colônia à república”, na qual trata da participação dos bacharéis nos episódios decisivos da história do Brasil.35 33 WARAT, Luis Alberto. Confissões pedagógicas diante da crise do ensino jurídico. In : OAB Ensino jurídico. Diagnóstico, perspectivas e propostas. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996, p. 221. 34 SILVA, Mozart Linhares da. O império dos bacharéis - o pensamento jurídico e a organização do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003. 35 O livro trata dos seguintes temas : a) o bacharelismo brasileiro; b) fundação dos cursos jurídicos; c) Ordem dos Advogados do Brasil; d) A inconfidência mineira e os bacharéis; e) a independência e os bacharéis; f) o império e os bacharéis; g) a abolição e os bacharéis; h) a república e os Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 35 Se ontem os bacharéis contribuíram para a construção do Estado brasileiro, hoje ainda perdura nobre missão, qual seja, a de implementar os valores de cidadania afirmados nos textos legais, para que (efetivamente) a nação brasileira seja de fato justa, livre e soberana. A educação jurídica, dadas as suas particularidades, pode cumprir fielmente o desiderato de fomentar os ideais de cidadania, trabalhando para que os mesmos sejam concretizados na vida diária, com o respeito aos direitos fundamentais e outros consagrados pela ordem jurídica. O PROJETO PEDAGÓGICO E O CURRÍCULO PLENO Todo curso superior deve estruturar-se em projeto pedagógico, o qual é submetido ao MEC e devidamente analisado por comissão verificadora quando da autorização e/ou reconhecimento dos cursos. Quanto aos cursos de bacharelado em Direito, consta das diretrizes curriculares do MEC que “na composição de seus projetos pedagógicos, os cursos jurídicos devem definir os seguintes elementos”: a) objetivos gerais do curso, contextualizados em relação às suas inserções institucional, geográfica e social; b) condições objetivas de oferta (perfil, titulação e nominata do corpo docente, infra-estrutura) e vocação do curso; c) modos de desenvolvimento das habilidades de seus alunos para alcance do perfil de formando desejado; d) currículo pleno; e) cargas horárias das atividades didáticas e da integralização do curso; f) formas de realização da interdisciplinaridade; g) modos de integração entre teoria e prática das atividades didáticas; h) formas de avaliação do ensino e da aprendizagem; i) modos de integração entre graduação e pós-graduação, quando houver; bacharéis; i) bacharéis que ampliaram fronteiras; j) bacharéis e advogados na política; k) bacharéis e advogados nas letras; l) bacharéis e advogados no Estado Novo; m) bacharéis e advogados na revolução de 1964. PAULO FILHO, Pedro. O bacharelismo brasileiro: da colônia à república. Campinas: Bookseller, 1997. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 36 j) modos de incentivo à pesquisa, como necessário prolongamento da atividade de ensino e como instrumento para a realização da iniciação científica; k) concepção e composição das atividades do estágio de prática jurídica; l) formas de avaliação interna permanente do curso; m) concepção e composição do programa de extensão; n) concepção e composição das atividades complementares; o) regulamento da monografia final; p) sistema de acompanhamento de egressos; q) formações diferenciadas, em áreas de concentração, quando necessárias ou recomendadas; e r) oferta de cursos seqüências, quando for o caso. Sobre o currículo pleno, as diretrizes permitem que os cursos jurídicos definam, “com autonomia, em seus projetos pedagógicos - os quais, recomenda-se, sejam fruto de uma reflexão e de um esforço coletivos no âmbito da instituição -, o conteúdo curricular de modo a atender a três eixos interligados de formação: fundamental, profissional e prática”. No dizer de Horácio Wanderlei Rodrigues & Eliane Botelho Junqueira, “um currículo deve ser orgânico, sistematicamente integrado na organização de seus componentes. O conjunto de disciplinas deve estar distribuído de forma a propiciar uma visão integrada e integral do fenômeno jurídico e ao mesmo tempo uma formação profissional voltada ao mercado de trabalho e às necessidades locais e regionais”. 36 Deve o currículo proporcionar formação profissional e humanista aos acadêmicos, conduzindo-os à compreensão (visão) crítica do fenômeno jurídico, adestrando-os e incentivando-os à incessante e renovada busca pelo conhecimento. Além da formação profissional, a educação jurídica deve conduzir os educandos ao exercício da cidadania, como enuncia o artigo 36 RODRIGUES, Horário Wanderlei & JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Ob. cit., p. 53. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 37 205 da Constituição Federal. Logo, os cursos jurídicos devem formar cidadãos (bacharéis) técnica (cientificamente) capacitados para o enfrentamento das exigências do mundo globalizado, conscientes do contexto em que vão atuar e da importância de suas ações para o progresso social. Nada obstante, o impugnado parecer nº 146/2002 do MEC, o currículo pleno dos cursos jurídicos deve ser construído de conformidade com as regras contidas na Portaria MEC 1.886/94, compreendendo as matérias fundamentais, as profissionalizantes e as práticas. Como dito, o currículo pleno deve atender as diretrizes curriculares do MEC, as quais traçam linhas gerais “para os cursos jurídicos estruturarem seus projetos pedagógicos de forma autônoma e criativa, segundo suas vocações, demandas sociais e mercado de trabalho, objetivando a formação de recursos humanos com elevado preparo intelectual e aptos para o exercício técnico e profissional do Direito”. 37 Ainda segundo as diretrizes, A educação jurídica tem sido excessivamente centrada no fornecimento do maior contingente possível de informações. Todavia, esse modelo informativo de ensino não capacita o operador técnico do Direito a manusear um material jurídico cambiante, em permanente transformação, nem a desenvolver um adequado raciocínio jurídico. Os cursos deverão, portanto, privilegiar o que é essencial e estrutural na formação dos alunos, tomando-os os currículos como totalidades vivas de uma ampla e sólida formação que expressem o núcleo epistemológico de cada um. E, nesse sentido, as diretrizes curriculares sinalizam para a necessária flexibilização que permita o favorecimento à elevação da qualidade. De início trabalha-se o eixo de formação fundamental, com as seguintes matérias, dentre outras: Ciência Política (com Teoria do Estado); Economia; Filosofia (geral e jurídica; ética); Introdução ao Direito; 37 As diretrizes “não constituem prescrições fechadas e imutáveis, mas parâmetros a partir dos quais os cursos criarão seus currículos em definitiva ruptura com a concepção de que são compostos de uma extensa e variada relação de disciplinas e conteúdos como saberes justapostos ou superpostos e que não passam de repetição do já pensado”. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 38 Sociologia (geral e jurídica). Segundo as diretrizes curriculares, “o eixo fundamental tem por objetivo integrar o estudante no campo do Direito, sob a perspectiva de seu objeto, apontando ainda para as relações do Direito com outras áreas do saber, pertinentes à compreensão de seu método e finalidades”, podendo incorporar ainda outras disciplinas, como, p.ex., Hermenêutica Jurídica; História do Direito; Metodologia da Pesquisa e do Trabalho Jurídicos. A importância da formação fundamental é destacada por Álvaro Melo Filho: Estas matérias fundamentais conglobam as pré-noções indispensáveis à inteligência das leis e do genuíno sentido delas, configurando-se como pré-requisitos para que os discentes ingressem no ciclo profissional, porquanto visam a preparar o aluno para o estudo do Direito, facultando-lhe conhecer seus pressuposos sócio-econômico-político-filosóficos, ensejando-lhe o domínio terminológico da ciência jurídica, a par de colocar o Direito a um tempo, como causa e efeito das transformações da sociedade. 38 Segue-se o eixo de formação profissional, com, no mínimo, as seguintes matérias: Direito Administrativo; Direito Civil; Direito Comercial; Direito Constitucional; Direito Internacional; Direito Penal; Direito Processual; Direito do Trabalho; e Direito Tributário. Conforme as diretrizes curriculares, “os conteúdos mínimos do eixo de formação profissional, ao preparem o estudante para aprender sempre mais, deverão, para além do enfoque dogmático, preocuparse em estimular o discente a conhecer e aplicar o Direito, com rigorosidade metódica e adequada interlocução com os conteúdos de formação fundamental”. Às disciplinas arroladas nas diretrizes como de formação profissional, podem (devem) ser agregadas outras, como p.ex., Direito do Consumidor; Direito Previdenciário; Direito Agrário; Direito Ambiental; e Direito Urbanístico. 38 MELO FILHO, Álvaro. Currículos jurídicos: novas diretrizes e perspectivas. In: OAB Ensino jurídico. Novas diretrizes curriculares. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996, p. 27-28. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 39 As matérias profissionalizantes, diz Álvaro Melo Filho, “cogentemente estarão ‘contidas em uma ou mais disciplinas do currículo pleno de cada curso’, as quais devem ser ofertadas em quantidade e extensão requeridas pela realidade jurídica do País, constituíndo o núcleo homogêneo de conhecimentos essenciais e indispensáveis à adequada formação do futuro bacharel em Direito, nominadas de ‘materias troncales’ nos currículos jurídicos espanhóis”. 39 De acordo com as diretrizes, as matérias de formação fundamental e de formação profissional “podem ser desdobradas ou agrupadas em uma ou mais disciplinas, na forma como dispuserem os currículos plenos dos cursos”. Ainda conforme as diretrizes, “a oferta das demais matérias, em disciplinas obrigatórias ou optativas, deve ocupar uma parcela significativa do remanescente da carga horária total do curso, assegurando-se plena liberdade para cada instituição de ensino, tanto na composição de seu elenco quanto na escolha do regime acadêmico (seriado, créditos) adotado”. Finalmente, trabalha-se o eixo de formação prática, o qual, de conformidade com as diretrizes, “deve almejar a integração entre a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais eixos, além da implementação, no âmbito da iniciação profissional, das atividades relacionadas ao estágio de prática jurídica”. O eixo de formação prática proporcionará aos acadêmicos integração entre teoria e prática das atividades didáticas e desenvolvimento das atividades do estágio de prática jurídica. A formação prática objetiva prepara os acadêmicos para o exercício dos ofícios jurídicos nas jurisdições civil, criminal, trabalhista (e outras), com estágio de prática congregando atividades (simuladas e reais) dos vários ofícios jurídicos. Logo, as matérias práticas devem proporcionar aos acadêmicos condições técnicas para o exercício de qualquer profissão jurídica, uma vez que, os bacharéis cumpram as exigências de lei (exame de ordem, concurso público, etc.). 39 Idem, p. 28-29. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 40 Na formação prática destaca-se o estágio de prática jurídica: As atividades simuladas e reais do estágio de prática jurídica, supervisionadas pelo curso, são obrigatórias e devem ser diversificadas, para treinamento das atividades profissionais de advocacia, ministério público, magistratura e demais profissões jurídicas, bem como para atendimento ao público [...] Essas atividades, simuladas e reais, devem ser exclusivamente práticas, sem utilização de aulas expositivas, compreendendo, entre outras, redação de atos jurídicos e profissionais, peças e rotinas processuais, assistência e atuação em audiências e sessões, visitas relatadas a órgãos judiciários, treinamento de negociação, mediação, arbitragem e conciliação, resolução de questões de deontologia e legislação profissional [...] A finalidade do estágio curricular é proporcionar ao aluno formação prática, com desenvolvimento das habilidades necessárias à atuação profissional. A concepção e organização das atividades práticas devem se adequar aos conteúdos dos eixos de formação fundamental, profissional e concentrada, quando houver, trazendo ao discente uma perspectiva integrada da formação teórica e prática. (diretrizes curriculares) Em síntese, os cursos jurídicos devem contemplar currículo pleno que ultrapasse o conteúdo mínimo exigido, construído para atender a recomendação de Paulo Luiz Neto Lôbo: O curso jurídico, para bem desempenhar suas finalidades, deve atingir, de modo interdependente, a tríplice função de: a) formação fundamental e sócio-política, que forneça ao aluno uma sólida base humanista e de capacitação crítica; b) formação técnico-jurídica, que o capacite ao exercício competente de sua profissão, reconhecendo que as disciplinas dogmáticas admitem espaço à reflexão crítica; c) formação prática, oferecendo-lhes os meios para aplicar os conhecimentos obtidos.40 Além das matérias do currículo pleno, os acadêmicos dos cursos jurídicos devem realizar atividades complementares, as quais “têm por finalidade propiciar ao aluno a oportunidade de realizar, em prolon40 NETO LÔBO, Paulo Luiz. O novo conteúdo mínimo dos Cursos Jurídicos. In: OAB Ensino jurídico. Novas diretrizes curriculares. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996, p.11. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 41 gamento ao currículo pleno, uma trajetória autônoma e particular, com conteúdos extracurriculares que lhe permitam enriquecer o conhecimento jurídico propiciado pelo curso”. 41 Mediante as atividades complementares, os acadêmicos terão acesso à informações provenientes de fontes diversas (conferências, cursos, workshops, estágios, monitoria, pesquisa, etc), fortelecendo a base de conhecimentos jurídicos e sociais. A INTERDISCIPLINARIDADE E SUA PRÁTICA Ao tratar dos desafios atuais da educação, escreve Edgar Morin: Há inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários. Em tal situação, tornam-se invisíveis: os conjuntos complexos; as interações e retroações entre partes e todo; as entidades multidimensionais; os problemas essenciais. De fato, a hiperespecialização impede de ver o global (que ela fragmenta em parcelas), bem como o essencial (que ela dilui). Ora, os problemas essenciais nunca são parceláveis, e os problemas globais são cada vez mais essenciais. Além disso, todos os problemas particulares só podem ser posicionados e pensados corretamente em seus contextos; e o próprio contexto desses problemas deve ser posicionado, cada vez mais, no contexto planetário. 41 As diretrizes curriculares dispõem ainda que as atividades complementares “devem observar o limite mínimo de 5% (cinco por cento) e máximo de 10% (dez por cento) da carga horária total do curso, devendo ser ajustadas entre o corpo discente e a direção ou coordenação do curso, a qual tornará público as modalidades admitidas, de sorte a permitir a sua livre escolha pelo aluno. Atividades podem incluir projetos de pesquisa, monitoria, iniciação científica, projetos de extensão, módulos temáticos (com ou sem avaliação), seminários, simpósios, congressos, conferências, cursos livres (como, por exemplo, informática e idiomas), além de disciplinas oferecidas por outras unidades de ensino e não previstas no currículo pleno do curso jurídico, não se permitindo o cômputo de mais de 50% (cinqüenta por cento) da carga horária exigida em uma única modalidade.” Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 42 Ao mesmo tempo, o retalhamento das disciplinas torna impossível aprender ‘o que é tecido junto’, isto é, o complexo, segundo o sentido original do termo. Portanto, o desafio da globalidade é também o desafio de complexidade. 42 A construção do conhecimento interdisciplinar é orientada por pressupostos e métodos que se diferenciam diametralmente daqueles que orientam a construção do conhecimento disciplinar especializado. Ivani Fazenda, tratando do tema, esclarece que “um projeto interdisciplinar de trabalho ou de ensino consegue captar a profundidade das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas”: No projeto interdisciplinar não se ensina, nem se aprende: vive-se, exerce-se. A responsabilidade individual é a marca do projeto interdisciplinar, mas essa responsabilidade interdisciplinar, mas essa resposabilidade está imbuída do envolvimento – envolvimento esse que diz respeito ao projeto em si, às pessoas e às instituições a ele pertencentes [...] O que caracteriza a atitude interdisciplinar é a ousadia da busca, da pesquisa: é a transformação da insegurança num exercício do pensar, num construir. 43 Para o curso jurídico, a visão ampla e o trabalho interdisciplinar devem andar juntos para a boa formação acadêmica, sendo a interdisciplinaridade “de rigor”, como escreve o renomado educador Paulo Luiz Neto Lôbo: A interdisciplinaridade é de rigor. Na dimensão interna ela é alcançada com a integração efetiva das matérias constantes do currículo pleno e, principalmente, com pesquisa e extensão. É inadmissível que os professores desenvolvam suas atividades pedagócias com inteiro desconhecimento ao que realizam seus colegas e aos avanços da ciência jurídica. A tendência do Direito, inclusive legislado, é a interdependência multidisciplinar nas matérias legais [...] A interdisciplinaridade, na dimensão externa ao saber dogmáticojurídico, enlaça-se com matérias que contribuem para a formação 42 43 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. Repensar a reforma. Reformar o pensamento, cit., p. 13-14. FAZENDA, Ivani C. Práticas interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez, 1991, p. 17-18. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 43 do profissional do Direito, notadamente estimuladores da reflexão crítica e da atuação político institucional, que a sociedade cada vez mais dele reclama.44 Na mesma direção aponta José Eduardo Faria: Os fatos nos mostram que não mais se deve confinar a cultura jurídica aos limites estreitos e formalistas de uma estrutura curricular excessivamente dogmática, na qual a autoridade do professor representa a autoridade da lei e o tom da aula magistral permite ao aluno adaptar-se à linguagem da autoridade. Não se trata de desprezar o conhecimento jurídico especializado. Trata-se, isto sim, de conciliá-lo com um saber genético sobre a produção, a função e as condições de aplicação do direito positivo. Como solução alternativa à cultura jurídica vigente, tal conciliação exige uma reflexão multidisciplinar capaz de desvendar as relações sociais subjacentes às normas e às relações jurídicas, e de fornecer aos juristas não apenas novos métodos de trabalho mas, igualmente, informações novas e/ou reformuladas.45 O curso jurídico deve atentar, especialmente, para a integração e o engajamento dos professores num trabalho conjunto de interação das disciplinas curriculares, e destas com a realidade social. Tudo visando a superação do ensino fragmentado, propiciando-se formação integral para os acadêmicos. No plano docente deve-se valorizar o trabalho em equipe, incentivar a interlocução entre os professores e ensejar o questionando a respeito do próprio conhecimento e da forma como ele é produzido e trabalhado. Do ponto de vista metodológico, os cursos jurídicos devem estar, permanentemente fundados na interdisciplinaridade, com metodologia pluralista para: a) estabelecer ligação de disciplinas entre si; b) estabelecer linguagem e orientação comuns; c) integrar o ensino à realidade; d) superar a fragmentação do ensino promovendo a formação global e crítica dos acadêmicos. 44 NETO LÔBO, Paulo Luiz. Ob. cit., p. 09-10. FARIA, José Eduardo. A cultura e as profissões jurídicas numa sociedade em transformação. In: NALINI, José Renato (org.) Formação jurídica. São Paulo: RT, 1994, p. 15-16. 45 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 44 A concretização da interdisciplinaridade pode ocorrer também nas disciplinas práticas, mediante o estágio curricular de prática jurídica ou de estágios extracurriculares. A interdisciplinaridade também se estabelece a partir de uma contínua interinfluência de teoria e prática, visando o recíproco enriquecimento. Pensar e agir pela interdisciplinaridade revela que nenhuma fonte de conhecimento é completa em si mesma. O diálogo entre os conhecimentos manifestam desdobramentos na compreensão da realidade e da representação. Para tanto, os cursos jurídicos devem promover atividades (como, p.ex., seminários temáticos) a fim de que um mesmo tema seja tratado sob o enfoque de duas ou mais disciplinas, possibilitando a instauração de diálogo entre várias disciplinas, buscando a unidade do saber. A interdisciplinaridade deve estar presente ainda em projetos de pesquisa e/ou de extensão, permitindo aos acadêmicos a percepção dos nexos existentes entre as áreas do conhecimento e entre vários ramos do saber jurídico. Propicia-se, assim, amplo entendimento da realidade social e jurídica, de maneira integral, holística. Portanto, a interdisciplinaridade deve ocorrer nos cursos jurídicos a partir de uma ótica pluralista das concepções de ensino e de pesquisa, com o confronto entre pontos de vista, em permanente e construtivo diálogo. O ENSINO DO DIREITO - AULAS TEÓRICAS E PRÁTICAS A educação jurídica ofertada pelas IES (públicas e privadas) ocorre (geralmente) mediante aulas teóricas e práticas, seminários, palestras, debates, estudos em grupo, pesquisas. Mediante os mais variados recursos metodológicos, pretendese conduzir os acadêmicos à reflexão crítica dos conhecimentos adquiridos e à participação ativa no processo de construção do saber. A lição de San Tiago Dantas, invocada por Aurélio Wander Bastos, é exemplar, pois “o importante para o estudante de Direito não é aprender a pensar com o Código, mas é aprender a pensar o Código”: Modernamente, a reflexão jurídica não pode restrigir-se ao Código, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 45 à correlação de normas entre si, é preciso pensá-las também em função da lógica jurídica, da hermenêutica, dos recursos sociológicos e de dinâmica da própria sociedade. A compreensão dogmática da norma oferece um resultado e a sua compreensão sociológica ou história ou mesmo sistemática outro efeito de conhecimento do fato juridicamente relevante. 46 Nos cursos jurídicos, as aulas teóricas devem primar pela interlocução entre docentes e discentes, afastando-se do monólogo no qual o professor muitas vezes repete lições pinçadas em doutrina cristalizada, expondo teorias desfocadas das grandes questões atuais do ordenamento jurídico. Maria Isabel da Cunha, em texto intitulado “aula universitária: inovação e pesquisa”, refere-se à aula universitária como a tradutora das ambigüidades e dos desafios do ensino superior: A aula universitária é sempre síntese. Não pode ser vista apenas numa perspectiva fracionada, própria da visão tecnicista. Quando nos propomos a estudar a aula universitária estamos entendendo que ela é o espaço revelador de intencionalidades, carregada de valores e contradições. Nela é que se materializam os conflitos entre expectativas sociais e projeto de cada universidade, sonhos individuais e compromissos coletivos, transmissão e produção do conhecimento, ser e vir-a-ser. 47 Ao preparar sua aula, o professor deve buscar o despertar do interesse dos acadêmicos a respeito da disciplina ministrada, vista não só em si mesma, mas em relação com as demais, presente a interdisciplinaridade. José Wilson Ferreira Sobrinho, dissertando sobre “a aula em Direito”, afirma ser necessário “que se faça a junção da teoria com a prática sob pena de se plantar confortavelmente nas alturas teóricas, sem conhecimento de como a teoria funciona na prática”. 48 46 BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas – Uma recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro. In: Ensino jurídico OAB – 170 anos de cursos jurídicos no Brasil. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1997, p. 48-49. 47 CUNHA, Maria Isabel da. Aula universitária: inovações e pesquisas. In: MOROSINI, Marília (org.) Universidade futurante. Campinas: Papirus, s/d, p. 81. 48 FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Didática e aula em direito, cit., p. 65. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 46 Aliás, sobre a aula prática, assinala o autor: Aula prática, portanto, será aquela que, direta ou indiretamente, utilizar o conhecimento transmitido pela aula teórica, como ponto de partida ou, se se quiser, como material de trabalho. Uma aula prática não precisa necessariamente consistir em copiar uma petição inicial qualquer, de um livro de formulários forense qualquer. Poderá ser uma visita ao Fórum para assistir uma audiência, por exemplo.49 As aulas práticas (bem como o estágio de prática jurídica) devem pautar-se pela dialética (teoria x prática), ensejando que os acadêmicos percebam a realidade social e jurídica e suas condicionantes. As aulas práticas e de estágio devem ser realizadas em ambientes próprios (as salas de aula, os laboratórios, os auditórios, as bibliotecas), e também em espaços que extrapolam os muros da IES. Aulas tais proporcionariam aos acadêmicos a aplicação e a transferência dos saberes adquiridos (construídos) nos bancos escolares. As aulas representam momentos, nos quais os acadêmicos (futuros bacharéis) terão a oportunidade de (com efetiva supervisão e orientação docente), experimentar, verificar, comprovar, analisar, reformular, treinar, praticar, refletir e repensar o papel que lhe caberá na sociedade. A relação teoria-prática deve ocorrer em processo contínuo, para que a teoria fundamente a prática e esta, por sua vez, igualmente informe e subsidie a teoria, numa dinâmica de construção e constante reconstrução do conhecimento. Entretanto, a despeito de os melhores esforços serem empreendidos pelos professores para que as aulas sejam produtivas, a verdade é que nem sempre os estudantes tiram o melhor proveito dos trabalhos, porque, de regra, não dominam a “arte de estudar”. 50 49 Idem, p. 69. A advertência é feita por Henrique Cristiano José Matos, para quem “nem sempre o estudante mesmo em nível de pós-graduação! - colhe frutos maduros e satisfatórios de seus anos acadêmicos, apesar dos consideráveis investimentos financeiros (estudar entre nós é caro e ainda um privilégio de poucos) e dos esforços pessoais empreendidos. Não são poucos os que, uma vez concluído o curso, nem querem se lembrar mais daqueles livros, provas, professores exigentes e salas de aula abarrotadas. Consideram o fim dos anos escolares como uma verdadeira libertação. Temos aqui as reações 50 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 47 Para Henrique Cristiano José Matos, Estudar é ir à procura da verdade. Trata-se de um processo dinâmico de ‘saber, buscar, saber de novo e recomeçar para buscar ainda mais’. A meta é chegar a aprender, a ver com os próprios olhos, e não por ouvir dizer; a expressar-se com as próprias palavras e a pensar com a própria cabeça. Forma-se, assim, um sadio espírito crítico, que sabe ponderar as coisas e avaliá-las em seu verdadeiro sentido. A pessoa liberta-se paulatinamente das opiniões vultares, das bazófias, dos simples modismos e de todo posicionamento inverídico. Um estudo qualificado leva a fundamentar as próprias sentenças e pareceres - sempre que possível - em ‘fatos’ e ‘evidências’, conhecidas de primeira mão e comunicáveis a outros. Estudar seriamente faz com que alguém se torne uma pessoa ponderada, aberta, respeitosa frente a outras opiniões e expressões. O estudo apresenta-se, deste modo, como um fator significativo de aproximação dos homens e das culturas. 51 Portanto, impõe-se que os acadêmicos contribuam para que as aulas nos cursos jurídicos (teóricas ou práticas) sejam produtivas, o que será possível com dedicação e criatividade dos docentes, e pelo empenho e seriedade dos discentes. Freqüentemente, observa-se que muitos discentes têm uma visão equivocada da educação jurídica, nomeadamente das aulas, pois imaginam que é função do professor transmitir-lhes um saber pronto e acabado, preferencialmente, de tal maneira que o esforço para a apreensão do conhecimento seja o mínimo possível. No seio acadêmico sempre há os que preferem pautar sua conduta pela lei do menor esforço, pela qual o mínimo é o máximo que dão de si em prol dos estudos. Impõe-se a vigilância para que esses não exerçam influência sobre os acadêmicos realmente interessados e comprometidos com a educação séria e produtiva. Mais do que impedir que os despreocupados exerçam influência sobre os interessados, impõe-se uma política de motivação dos acade um estudo mal feito, normalmente porque faltaram uma boa introdução e um correto acompanhamento na ‘arte de estudar’”. MATOS, Henrique Cristiano José. Aprenda a estudar, 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 13. 51 Idem, p. 14. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 48 dêmicos, bem assim de nivelamento, a fim de que todos possam usufruir (mais ou menos) os benefícios da educação. É necessário que tanto discentes quanto docentes saibam desempenhar seus papéis no cenário educativo. Os docentes ensinando a partir do exemplo. Os discentes aprendendo pelo esforço (individual e coletivo). Todos devem estar comprometidos com a boa qualidade da educação. Para tanto, o ensino ministrado por intermédio das aulas (teóricas e práticas) revela-se importante, mas a boa educação deve emanar ainda de outras fontes, especialmente da pesquisa e da extensão. A PESQUISA E O CONHECIMENTO EM CONSTRUÇÃO “O estudo orienta-se para a pesquisa, ou seja, uma atividade voltada para a solução de ‘problemas’ através do emprego de processos científicos e procedimentos metodológicos”, lembra Henrique Cristiano José Matos.52 Tratando dos desafios do ensino superior, Pedro Demo ressalta a pesquisa como fator essencial para a boa formação superior. Para o educador, “pesquisa significa diálogo crítico e criativo com a realidade, culminando na elaboração própria e na capacidade de intervenção. Em tese, pesquisa é a atitude do ‘aprender a aprender’, e, como tal, faz parte de todo processo educativo emancipatório”.53 A clareza e a precisão do autor merecem destaque: Pesquisa funda o ensino e evita que este seja simples repasse copiado. Ensinar continua função importante da escola e da universidade, mas não se pode mais tomar como ação auto-suficiente. Quem pesquisa, tem o que ensinar; deve, pois, ensinar, porque ‘ensina’ a produzir, não a copiar. Quem não pesquisa, nada tem a ensinar, pois apenas ensina a copiar [...] Pesquisa acolhe, na mesma dignidade, teoria e prática, desde que se trate de dialogar com a realidade. Cada processo concreto de pesquisa pode acentuar mais teoria, ou prática; pode interessar-se mais pelo conhecimento ou pela intervenção; pode insistir mais em 52 53 Idem, ibidem. DEMO, Pedro. Desafios modernos da educação, 6 ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 128. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 49 forma ou em política. Todavia, como processo completo, toda teoria precisa confrontar-se com a prática, e toda prática precisa retornar à teoria.54 Vale lembrar ainda de Ivani Fazenda : “fazer pesquisa significa, numa perspectiva interdisciplinar, a busca da construção coletiva de um novo conhecimento, onde este não é, em nenhuma hipótese, privilégio de alguns, ou seja, apenas dos doutores ou livres-docentes na universidade”.55 Na educação superior, a pesquisa deve ser o instrumento para a emancipação intelectual dos acadêmicos. Para além de um conhecimento pronto e acabado, tornam-se os pesquisadores (professores e acadêmicos) sujeitos na construção e na contínua reconstrução do conhecimento, o qual não pode ser rotulado como verdade absoluta (eterna e imutável), um saber contingente, maleável. O destacado educador paranaense, Dirceu Antonio Ruaro, estuda “os sete saberes necessários à educação do futuro de Edgar Morin”, em pesquisa produzida no Curso de Doutoramento em Educação na Unicamp, demonstrando a relevância das interrogações para a construção do conhecimento. Reportando-se ao pensamento do notável pensador francês, escreve Ruaro: Pôr em prática as interrogações é o grande oxigênio de qualquer proposta de conhecimento, pois a incerteza mata o conhecimento simplista e desintoxica o conhecimento complexo. A educação deve ser a ferramenta capaz de fornecer o apoio indispensável para se inquirir o conhecimento do conhecimento que se torna, assim, para a própria educação, um princípio e uma realidade. [...] “O dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez” (p. 33). Traça, assim, o grande ponto de discussão: preparar o ser humano para a lucidez. Reside aí o grande problema para a educação do século XXI. Para isso, muitas coisas precisam mudar. Concepções, paradigmas, idéias, mitos, ideologi54 55 Idem, p. 128-129. FAZENDA, Ivani C.A . Ob. cit., p. 18. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 50 as. É o papel reservado aos educadores do novo tempo. 56 Também questionando o papel da pesquisa como geradora de certezas, Maria Isabel da Cunha trata da “relação entre ensino e pesquisa”, asseverando que “pesquisar é trabalhar com a dúvida, que é o seu pressuposto básico”: O erro e a incerteza é que gabaritam os caminhos da investigação. Os conhecimentos construídos são sempre provisórios, não há certezas permanentes. A repetição é punida, mesmo que simbolicamente. O pensamento divergente qualifica e enriquece os processos de trabalho e a emancipação é o que torna um investigador qualificado. A indissociabilidade do ensino e da pesquisa terá de ter esta tensão analisada, sob pena de não tornar-se real. Para pensar o ensino com pesquisa será preciso reverter a lógica do ensino tradicional e tentar formulá-lo com base na lógica da pesquisa.57 Confira-se ainda o pensamento de Maria Francisca Carneiro, para quem “a cidadania gestada na universidade tem como característica mais notável a de poder instrumentalizar-se mais que outras, no manejo e na produção do conhecimento. Esse tipo de competência alimenta-se crucialmente da pesquisa”.58 É em tal contexto que se afirma ser a pesquisa fundamental para os cursos jurídicos, impondo-se que as IES reconheçam que a educação jurídica deve aliar, em caráter contínuo e permanente, a pesquisa ao ensino. Ademais, segundo as diretrizes curriculares, o curso jurídico deve incentivar as atividades de pesquisa jurídica, própria ou interdisciplinar. Nesse sentido, a instituição deve propiciar, de forma direta ou mediante intercâmbio: a formação de grupos de pesquisa com participação discente em programas de iniciação científica; a integração da atividade de pesquisa com o ensino; e a 56 RUARO, Dirceu Antonio. Os sete saberes necessários à educação do futuro de Edgar Morin: apontamentos para uma possível reflexão. Texto produzido para o Curso de Doutoramento em Educação da Unicamp. São Paulo: Unicamp, sem publicação. 2001, p. 07-08. 57 CUNHA, Maria Isabel da. Ob. cit., p. 83. 58 CARNEIRO, Maria Francisca. Metodologia da aprendizagem e pesquisa jurídica. Curitiba: Juruá, 1999, p. 85. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 51 manutenção de periódicos para publicação da produção intelectual de seus corpos docente e discente. Também como atividade de pesquisa a ser desenvolvida, obrigatoriamente, pelos acadêmicos dos cursos jurídicos, destaque-se a monografia final, também chamada trabalho de conclusão de curso (TCC), a qual, pelas diretrizes, deverá ser realizada por cada acadêmico (individualmente), “sustentada perante banca examinadora, com tema e orientador escolhidos pelo aluno”.59 Não basta, entretanto, ressaltar a importância da pesquisa sem efetivá-la na prática diária do processo educativo. Nas atividades docentes, é comum que os professores exijam de seus discentes atividades de pesquisa, com a entrega dos resultados por escrito: os chamados trabalhos. Sabe-se que muitas vezes tais trabalhos são adquiridos por encomenda dos discentes, havendo até quem ofereça tais serviços (escrever trabalhos) em murais de IES públicas e particulares. Na internet (fonte inesgotável para o plágio de trabalhos acadêmicos) encontram-se sites especializados em disponibilizar (às vezes gratuitamente) monografias sobre os mais variados temas. Logo, nem sempre a entrega de um trabalho escrito por parte do acadêmico significa que tenha sido ele o pesquisador, o que pode passar incólume pelo professor, pois é possível (e acontece) que o docente (assoberbado) sequer dispense aos trabalhos (dezenas ou centenas) a devida atenção. O ideal seria aferir se o discente realmente pesquisou, inquirindo-o sobre os métodos utilizados e questionando-o acerca da temática pesquisada. Afirma-se a importância da pesquisa, inclusive por trabalhos acadêmicos de avaliação parcial das disciplinas dos cursos jurídicos. Nada obstante, recomenda-se que a pesquisa seja conduzida com responsabilidade e seriedade, a fim de que os acadêmicos tirem o melhor proveito. Impõe-se que o docente avalie com atenção a atividade de 59 Ainda conforme as diretrizes curriculares, “a instituição deve regulamentar os critérios e procedimentos exigíveis para o projeto, a orientação, a elaboração e a defesa da monografia final, podendo admitir a orientação e a participação na banca de profissional não docente”. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 52 pesquisa que solicitou. Atualmente é corrente a reclamação de falta de tempo para dedicação aos estudos. Nada obstante, convém lembrar que parte da carga horária das disciplinas dos cursos jurídicos pode ser dedicada a atividades de pesquisa. A sala de aula pode servir não só como espaço de lições orais transmitidas pelos docentes, senão como ambiente propício para a pesquisa e a construção do conhecimento. P.ex., poderiam os professores (com criatividade e bom senso) incentivar atividades de pesquisa bibliográfica ou jurisprudencial, com posterior apresentação dos resultados por escrito ou oralmente. Para tanto, além da sala de aula, podem ser utilizados outros espaços da IES, em especial a biblioteca, ambiente visitado por muitos acadêmicos somente em épocas de avaliações periódicas (provas bimestrais, exames finais). A biblioteca guarda tesouros que merecem a exploração e a descoberta pelos acadêmicos. Deve-se incentivar a pesquisa como meio de libertação intelectual das pessoas. Além da pesquisa desenvolvida pelos acadêmicos impõe-se que os professores fundamentem sua docência na pesquisa, pois assim, muito mais do que a mera reprodução do conhecimento, o saber transmitido é constantemente construído e reconstruído. Para tanto, é indispensável que as IES criem e mantenham Núcleo de Pesquisa congregando seus docentes e discentes, incentivando projetos de pesquisa a respeito de temas previamente eleitos, conforme linhas institucionais de pesquisa. Por igual, é fundamental que os cursos jurídicos mantenham instrumentos de divulgação dos resultados da pesquisa, destacandose revistas especializadas (impressas e/ou eletrônicas) para a publicação de artigos dos docentes e outros profissionais e para a divulgação de textos de autoria de acadêmicos. Enfim, mediante o ensino os discentes conhecem os fundamentos das disciplinas ministradas. Mediante a pesquisa os acadêmicos fortalecem a base de conhecimentos e emancipam-se intelectualmente. Mediante a extensão os cidadãos contribuem para melhorar o meio social. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 53 AS ATIVIDADES DE EXTENSÃO E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA Uma educação jurídica, contextualizada socialmente, deve promover e incentivar atividades de extensão, indispensáveis ao despertar da consciência social dos acadêmicos, futuros bacharéis em Direito. As atividades de extensão podem ser as mais diversificadas, como p.ex.: a) a prestação de assistência judiciária à população carente, mediante o Núcleo de Prática Jurídica (NPJ); b) a promoção de eventos (palestras, congressos, seminários, workshops) destinados à difusão do conhecimento jurídico; c) a participação em promoções de outras entidades (governamentais e não governamentais) em benefício da comunidade. Inicialmente, ressalte-se a importância de os corpos docente e discente participarem da vida comunitária, pois é certo que os cursos jurídicos devem cumprir uma função social. O conhecimento criado e reproduzido no âmbito do curso jurídico deve extrapolar os muros das IES, para beneficiar as pessoas que vivem na localidade onde esteja funcionando o curso. Ao mesmo tempo em que as atividades de extensão geram benefícios para a comunidade, os acadêmicos que delas participam despertam consciência sobre a importância dessa interação social, não só na perspectiva de aplicação ou aperfeiçoamento do conhecimento jurídico, mas pela possibilidade de ser socialmente útil. Segundo as diretrizes curriculares, A extensão, cuja finalidade consiste em propiciar à comunidade o estabelecimento de uma relação de reciprocidade com a instituição, não se confunde com o estágio de prática jurídica e pode ser integrada nas atividades complementares. Ela deve ser promovida de forma permanente, proporcionando um efetivo envolvimento de seus docentes e discentes com a comunidade, por meio de programas de assessoria jurídica, convênios, atividades de formação continuada e eventos extracurriculares periódicos. Segundo João Ribeiro Júnior, “o exercício da extensão é a Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 54 manifestação mais concreta do compromisso da universidade com o contexto social, não apenas como devolução do investimento nela feito, mas como expressão da consciência do destino social do conhecimento que produz”. 60 Dentre as diversas atividades de extensão possíveis em um curso jurídico, destaque-se a atuação dos docentes e dos discentes que participam da formação prática mediante os trabalhos do NPJ. Para as diretrizes a extensão “não se confunde com o estágio de prática jurídica”, porém, logo em seguida, o mesmo documento oficial refere-se a “programas de assessoria jurídica” como atividade de extensão. Em geral, os cursos jurídicos mantêm assistência judiciária gratuita em favor de pessoas carentes, beneficiando os jurisdicionados e proporcionando condições de os acadêmicos melhorarem sua formação prática. A contribuição oferecida pelos cursos jurídicos em prol da prestação jurisdicional deve ser ressaltada, pois há localidades, nas quais a única assistência judiciária gratuita possível é ofertada por IES públicas ou particulares. Sabe-se que o povo brasileiro está carente (também) de justiça, dado que o acesso ao Poder Judiciário é ainda bastante elitizado, nada obstante as iniciativas valiosas para a democratização da Justiça, como ocorre com os Juizados Especiais (Civis e Criminais), por exemplo. A assistência jurídica às pessoas necessitadas é dever do Estado, como emana do artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal, mas a omissão (ausência) estatal deixa à margem do Poder Judiciário grande parte da população brasileira. É para suprir tais lacunas que a prestação de assistência judiciária gratuita revela-se com importante atividade de extensão para que os cursos jurídicos atuem em prol da comunidade, ajudando a construir uma sociedade melhor. 60 RIBEIRO JÚNIOR, João. A formação pedagógica do professor de Direito. São Paulo : Papirus, 2000, p. 14. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 55 Logo ao ser instalado o NPJ de um dado curso jurídico, a oferta de serviços poderia restringir-se a uma determinada área do Direito, com o atendimento, por exemplo, só de casos envolvendo Direito de Família, ampliando-se depois para outras áreas (defesas criminais, e outras), havendo disponibilidade de recursos materiais e humanos. Mas além dessa assessoria jurídica, muitas outras atividades de extensão podem ser realizadas em prol da comunidade acadêmica e da sociedade em geral, promovidas pela IES ou por outras entidades (públicas ou privadas). O importante é, que durante o curso sejam oferecidas aos acadêmicos condições de participação em atividades de extensão, como complemento indispensável a uma formação jurídica e humanística integral. Desta forma, com a participação ativa na comunidade, os acadêmicos e os professores estarão sendo agentes construtores da cidadania. O PERFIL DO CORPO DOCENTE Nilda Teves Ferreira, no excelente livro “cidadania: uma questão para a educação”, escreve que a atividade profissional do professor, envolve aspectos políticos, econômicos e sociais e, mais do que isso, tem uma dimensão ética, cuja legitimidade está ligada a esses fins. A prática educativa traz em si uma filosofia política, tenha o educador consciência disso ou não. Trata-se de um problema filosófico de imensa importância, que remete para a necessidade de se buscar o significado individual e coletivo do próprio trabalho. Na luta pela efetivação desses fins, educando e educador aprendem a superar dificuldades reais e a resolver problemas cotidianos que ultrapassam os muros da escola. Elaboram projetos, traçam estratégias de trabalho. A consciência dos fins que orientam sua atividade coloca o homem diante da possibilidade de identificar em outros homens os seus próprios propósitos, colocando-os todos em condições de comunhão, no melhor sentido do termo. A partir daí é possível pensar em uma causa comum, como por exemplo tornar humano o mundo, fazer da escola um espaço de construção coletiva de conhecimento - um espaço de encontros e disputas, mas sempre Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 56 de crescimento das pessoas. 61 Ao tratar do perfil do professor de ensino superior, Pedro Demo salienta a necessidade de o ensino ser fundado na pesquisa, afirmando que o docente deve assumir a “postura de um orientador, definindose como alguém que, tendo produção própria qualitativa, motiva o aluno a produzir também”.62 João Ribeiro Júnior, após constatar que muitas vezes o corpo docente dos cursos jurídicos é formado por profissionais horistas e “sem o devido preparo para o exercício do magistério”, aduz, Já é tempo de mudar essa forma de simplesmente transmitir conhecimenos ou pretendidas verdades, que torna ilusória a realização dos valores. O ensino do Direito é algo mais do que proferir lições em torno das suas várias disciplinas. É, sobretudo, despertar a consciência jurídica, mas não pelo conhecimento do Direito abstrato, dogmático, a-histórico, ineficiente, desconectado da realidade social na qual vai ser utilizado, e sim pelo conhecimento de um novo Direito, contextualizado, em consonância com a sociedade concretamente existente. Em suma, um saber jurídico que viabilize as novas práticas exigidas pela modernidade.63 Questionado sobre “que sugestões daria aos professores dos cursos de Direito a fim de melhorarem a qualidade do ensino jurídico no Brasil”, respondeu Elias de Oliveira Motta: Creio que cada professor sabe muito bem que deveria ser melhor a cada dia e ensinar tanto com suas aulas quanto com seu exemplo como profissional do Direito. A atualização permanente é indispensável e questão de honestidade intelectual, de postura profissional, pois o professor não é só um transmissor do conhecimento dos estudantes. Deveria ser formador não só de profissionais competentes, mas também de seres humanos responsáveis e cidadãos atuantes.64 As IES devem conceder atenção especial ao corpo docente de seus cursos, pois “há de se repensar o papel do educador”, como afir61 FERREIRA, Nilda Teves. Cidadania: uma questão para a educação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 05-06. 62 DEMO, Pedro. Obra citada, p. 130. 63 RIBEIRO JÚNIOR, João. Ob. cit., p. 23-24. 64 OLIVEIRA MOTTA, Elias de. “Século XXI será o século da educação”. Entrevista cit.. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 57 ma o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira ao tratar da postura do educador e do universitário: Há, em suma, de se repensar o papel do educador. A transmissão dele reclamada já não se centra no repositório do conhecimento técnico, senão na experiência de vida. O educador há de ser sobretudo um estimulador, para que o estudante saiba não só se valer do conteúdo de informações postas à sua disposição, mas também selecionar dentre elas as mais úteis, uma vez que a multiplicação de informações, como se tem alertado, pode até ser prejudicial à inexperiência da juventude. Muito mais importante, ainda, será a capacidade de o educador transmitir emoções e caráter. Essa, a sua missão primeira e mais relevante, quando se sabe que a estrutura do nosso conhecimento clássico está alicerçada na razão. Nós, os educadores, em regra, somos formados e continuamos fiéis aos esquemas do racionalismo. Precisamos descobrir, agora, a ‘epistemologia da existência’, o existir como condição para ver o mundo, que inclui, em primeiro lugar, a emoção, a cultura do coração. Porque se a razão reduz a força de descobrir, é a emoção que nos leva a ser originais. 65 Essa reclamada postura do professor de cursos superiores, a de ensinar pelo exemplo, de estimular o interesse dos acadêmicos para a vida de estudos, liga-se à ética na educação e à responsabilidade dos docentes em relação aos acadêmicos, como escreve Nestor Luiz João Beck: Se eu partir da compreensão de que a vida, o futuro dos meus alunos é minha responsabilidade, e eu sou responsável por eles, então eu tenho que me colocar nas suas chinelas, eu tenho que ver as coisas a partir da perspectiva deles. Eu tenho que ver como é que estão percebendo ou não aquilo que estou apresentando, se estão ou não compreendendo a minha linguagem, se o conhecimento que os desafio a consquistar, está ou não está nas suas possibilidades, neste momento da história, neste momento da sua evolução pessoal. 66 65 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A universidade: compromisso com a excelência e instrumento de transformação. In: Revista Forense nº 354. Rio de Janeiro: Forense, março e abril de 2001, p. 415. 66 BECK, Nestor Luiz João. Educar para a vida em sociedade. Estudos em ciência de educação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 102. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 58 José Wilson Ferreira Sobrinho, após cuidadoso diagnóstico dos problemas que afligem a docência jurídica traça um tríplice perfil para um bom professor de direito, levando em conta a qualidade técnica, didática e ética, afirmando que “estes três momentos do docente não são estanques e não podem ser compreendidos isoladamente”: Um Professor de Direito deverá ter preparo técnico, didático e indiscutível padrão ético. De nada adiantará ser um excelente técnico se for um ignorante das coisas da didática e um desqualificado ético. Tampouco terá valia um professor que saiba tudo sobre didática, mas não saiba nada de Direito. Como ele ensinará aquilo que não sabe? Tarefa inviável, sem dúvida. [...] O que se revela importante é a presença desses três momentos, de forma conjugada. Eles é que, verdadeiramente, darão suporte para o professor. 67 Luiz Flávio Gomes, em ensaio sobre a crise no ensino do direito, assim se manifesta: Professores e faculdades, na atualidade, se querem sobreviver, têm que saber desenvolver competência, que “é a capacidade do sujeito de mobilizar recursos cognitivos visando a abordar uma situação complexa” [...] O novo método de ensino deve partir da situação complexa para em seguida escolher os meios (os conteúdos, as teorias, as leis, os princípios etc) adequados para sua abordagem e solução. Como se vê, é preciso inverter a crença convencional de que devemos primeiro adquirir conhecimentos para depois usá-los [...] A distância (abismal) entre a provecta metodologia do ensino jurídico e a realidade fica mais do que evidenciada quando vemos a artificialidade de muitos dos problemas jurídicos enfocados em salas de aula ou em concursos públicos [...] Bom professor hoje (especialmente em cursos de graduação ou de extensão universitária) é o que parte da definição de um problema concreto, reúne tudo quanto existe sobre ele (doutrina, jurisprudência, estatísticas etc.) e transmite esses seus conhecimentos com habilidade (que requer muito treinamento), em linguagem clara, direta, objetiva e contextualizada, direcionando-a (adequadamente) a cada público ouvinte. Além de 67 FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Metodologia do ensino jurídico e avaliação em direito, cit., p. 39-40. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 59 tudo isso, ainda é fundamental administrar o controle emocional (leiase: deve estar motivado para transmitir tudo que sabe, e um aluno que deve ser motivado para aprender).68 Enfim, a lição de Maria Francisca Carneiro: Cabe lembrar que qualquer professor, ao executar a sua tarefa de educar, tem sempre um conjunto de expectativas - e deve realmente ter e mantê-las - que transcendem a mera transmissão de informações acadêmicas e didáticas. Além do aprendizado puro e simples, o professor e a escola estimam que os alunos sejam interessados, disciplinados, que estejam aptos a trabalhar em grupos, que sejam sociáveis e cooperativos entre si, para com o professor e para com a escola; enfim, que apresentem prontidão cognitiva, afetiva e psicomotora. Quanto à absorção dos conhecimentos, uma das expectativas mais comuns do professor em relação aos alunos, é a transferência dos conteúdos para outras situações, em termos de aplicação prática e/ ou associações teóricas. Como se vê, essas expectativas são bastante amplas e seu significado é impregnado de axiomas. Na verdade, o que as instituições e os professores podem almejar dos alunos é a internalização desses valores e o compromisso com eles, ou seja, uma postura ética, uma maneira de estar no mundo, advinda da percepção que os próprios educandos têm, elaborada a partir da parcitipação e vivência na cultura, acrescida da capacidade de promover transformações. 69 Nada obstante, essas valiosas lições, a realidade que se verifica nos cursos jurídicos é a de que os professores, de regra, não têm formação para a docência. São advogados, magistrados, promotores e outros profissionais do Direito, pinçados de seus ofícios e submetidos à docência jurídica, por vezes sem o menor preparo didático-pedagógico. Obviamente o exercício das profissões jurídicas representa experiência profissional importante para o exercício da docência, dado 68 GOMES, Luiz Flávio. Crise no ensino: ser diplomado não significa ser capacitado. In: Revista Consultor Jurídico, 08/07/2002. http://par.ad.uol.com.br 69 CARNEIRO, Maria Francisca. Reflexões sobre a cultura, educação e currículo (ou um resgate idealista). In: Ob. cit., anexo 1, p. 95. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 60 que os conhecimentos dos docentes, neste caso, não se limitam à teoria, senão são exercitados na prática diuturna da advocacia, da magistratura ou de outra função jurídica. Quanto à formação acadêmica, é certo que os programas de pós-graduação em Direito, geralmente, têm disciplinas voltadas para o ensino jurídico. Mas é verdade, também, que o acesso dos profissionais em programas dessa natureza ainda é bastante restrito, em especial em cursos stricto sensu (mestrado e doutoramento). Destarte, sem embargo da boa vontade dos professores em desenvolver uma docência séria e responsável, o fato é que a ausência de conhecimentos didáticos e pedagógicos é fator que limita o desempenho docente. A lacuna deve ser preenchida pelas IES, as quais devem manter política de capacitação docente, inclusive com treinamento didático-pedagógico mediante cursos, seminários, conferências, e outros eventos voltados à boa qualidade dos serviços ofertados. Os professores, por seu turno, além de sólido conhecimento jurídico, em especial na(s) disciplina(s) ministrada(a), devem buscar no saber pedagógico o indispensável apoio para a docência responsável e produtiva. O trabalho dos docentes deve estar voltado para a integral formação dos discentes, impondo-se aliar o ensino à pesquisa e à extensão. O ensino, por seu turno, deve romper com o modelo tradicional da aula expositiva, ainda que esta tenha seu intrínsico valor. Além da exposição em sala de aula, que se constitui no fundamento do ensino jurídico no Brasil, são válidos outros métodos de estudos, os quais devem ser fomentados pelos docentes. Para as disciplinas, propriamente jurídicas, um bom exemplo é o estudo de casos, podendo o professor incentivar a análise jurisprudencial acerca dos temas objeto das disciplinas. Enfim, é importante que os docentes tenham consciência da importante função que desempenham, buscando desenvolver seu trabalho com responsabilidade e criatividade, ensinando pelo exemplo, como ressaltam os estudiosos antes citados. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 61 Mais do que um repetidor de lições cristalizadas, o professor deve ser um orientador dos estudos dos acadêmicos, e estes, por sua vez, devem contribuir para que o trabalho dos docentes seja, de fato, profícuo. O PERFIL DO CORPO DISCENTE O educador e magistrado Sálvio de Figueiredo Teixeira, formulando a questão “o que se espera do universitário?”, escreve: Consciência universitária, uma vez que a parcela dos privilegiados que alcança os bancos da Universidade tem um compromisso com aqueles que ficaram à beira do caminho [...] Participação, na medida em que a Pátria é uma construção diuturna, a cada dia subtraída pelas defecções, omissões, descaso ou desalento, mas também das ações positivas individuais e coletivas. Cada gesto positivo acrescenta um saldo à sua edificação. Cobrança, porque o envolvimento em um projeto nacional legitima o estudante a cobrar de seus dirigentes uma postura compatível com as exigências da nacionalidade. 70 As novas demandas da sociedade contemporânea exigem profissionais que saibam articular com organicidade competências científicas e técnicas, inserindo-se politicamente e agindo eticamente na vida pessoal e no mundo negociável. A formação dos operadores do Direito deve integrar-se em visão holística da realidade atual, emanando sólida formação técnicocientífica, capacidade de análise, interpretação e reflexão crítica sobre a essência multidisciplinar do Direito. Os egressos dos cursos jurídicos devem desenvolver habilidades de manipulação dos referenciais teóricos básicos, amealhados pela familiaridade com os fundamentos que sustentam cada área do conhecimento. Deverão estar aptos a transitar em múltiplas direções e habilitados a gerar e a superar desafios, aperfeiçoando aptidões para o exercício profissional qualificado e polivalente, comprometido com a socie70 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Ob. cit., p. 417. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 62 dade em construção, procurando fazê-la mais justa e fraterna. Assim, o curso jurídico não pode ser visto só como uma instância de transmissão e aquisição de informações, senão deve ser encarado como um locus de construção e produção de conhecimentos, tendo por meta a formação global (holística) dos acadêmicos, sujeitos ativos do processo educacional. O aprender e o recriar (aprender a aprender) impõe-se como ideal pedagógico diante dos desafios da sociedade contemporânea. A educação não deve esgotar-se nos métodos tradicionais de reprodução do saber. Para tanto, o curso jurídico deve transpor os estreitos limites da mera profissionalização, propiciando a aquisição de competências de longo prazo, com o domínio de métodos analíticos, de códigos e de linguagens. Toda atividade (profissional) humana ocorre em uma dada realidade social, impondo-se a educadores e educandos (em cursos jurídicos) compreender as condicionantes socio-econômicos e técnicocientíficos do exercício das profissões jurídicas. A necessária dimensão política e humanística no processo de formação dos operadores do Direito deve propiciar posturas éticas, dirigidas à concretização do princípio dignidade da pessoa humana, direito natural e fundamento da cidadania. No tocante à formação profissional, as atividades de ensino, de pesquisa e de extensão devem ser indissociáveis, pois o ensino com pesquisa dá o domínio dos instrumentos mediante os quais as profissões jurídicas são exercidas, e o ensino com extensão oportuniza que a comunidade acadêmica interaja com a sociedade civil. O curso jurídico deve, pois, preparar os futuros operadores do Direito para o exercício de profissões jurídicas que exijam dos profissionais capacidade de análise, de interpretação, de reflexão e de crítica sobre a essência multidisciplinar do Direito e suas conseqüências sociais. Os cursos jurídicos devem almejar que seus egressos estejam aptos ao exercício de qualquer profissão jurídica, uma vez preenchidos os requisitos legais específicos (exame de ordem para a advocacia e concurso público para a magistratura). Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 63 Ainda que os bacharéis não exerçam ofícios jurídicos, o estudo do Direito propicia a profissionais de outras áreas conhecimento amplo sobre a engrenagem social moldada e movida pelo ordenamento jurídico. Sabe-se que o valor do conhecimento jurídico é valioso em algumas carreiras, sendo inegável a importância que teve o bacharelismo brasileiro, isto é, “a influência do Bacharel na organização política, econômica e social”. 71 Ainda que, atualmente, o cunho profissionalizante tenha sido acentuado nos cursos jurídicos, estes devem almejar de seus discentes as seguintes características em sua futura vida profissional: a) permanente formação humanística, técnico-jurídica e prática, indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do Direito e da sociedade; b) conduta ética de responsabilidade profissional e de responsabilidade social, compreendendo a causalidade e finalidade das normas jurídicas, lutando pela dignidade humana e em prol do aprimoramento social; c) capacidade de apreensão, transmissão crítica e produção criativa do Direito mediante a pesquisa e a reflexão; d) capacidade para equacionar problemas e buscar soluções harmônicas com as demandas individuais e sociais; e) capacidade de desenvolver formas judiciais e extrajudiciais de prevenção e de solução de conflitos individuais e coletivos; f) capacidade de atuação individual, associada e coletiva no processo comunicativo próprio ao seu exercício profissional; g) domínio da gênese, dos fundamentos, da evolução e do conteúdo do ordenamento jurídico vigente; h) consciência dos problemas de seu tempo e de seu espaço. 72 Para que os egressos dos cursos jurídicos possam atingir tais 71 Para Pedro Paulo Filho, “sem o Direito, sem o jurista, sem o advogado, não há desenvolvimento”. PAULO FILHO, Pedro. O bacharelismo brasileiro: da Colônia à República. Campinas: Bookseller, 1997, p. 12-15. 72 Segundo as Diretrizes Curriculares do Curso de Bacharelado em Direito - MEC. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 64 desideratos, impõe-se fomentar nos discentes o desenvolvimento às seguintes habilidades: a) leitura, compreensão e elaboração de textos e documentos; b) interpretação e aplicação do Direito; c) pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina e de outras fontes do Direito; d) utilização escorreita da linguagem, com clareza, precisão e propriedade, fluência verbal e escrita, riqueza de vocabulário; e) desenvolvimento do raciocínio jurídico, da argumentação, da persuasão e da reflexão crítica; f) fortalecimento do senso de julgamento e de tomada de decisões; g) domínio de tecnologias e métodos para melhor compreensão e aplicação do Direito. 73 Nada obstante a enunciação desses ideais e propósitos, a realidade que se apresenta, muitas vezes, é de boa parcela de acadêmicos desinteressados da vida de estudos, desejando tão só concluir o curso da maneira mais fácil possível, sem um efetivo comprometimento com a apreensão e a construção do conhecimento. Ainda que tal realidade não se apresente absoluta, pois há acadêmicos realmente dedicados, o fato é que por vezes aqueles que prestam processo seletivo (vestibular ou outro) nem sempre sabem realmente o que desejam, principalmente os acadêmicos com pouca idade e parca experiência. Muitas vezes as pessoas têm uma visão equivocada do estudo do Direito, pois não sabem que para o bom aproveitamento do curso é imperiosa a dedicação verdadeira, a disposição e a disciplina em prol de uma vida de estudos, a postura ética e comprometida com o crescimento (intelectual, cultural) individual e coletivo. Atualmente, vive-se um paradoxo: jamais a humanidade teve tanto acesso ao conhecimento, pelos mais diversos meios, impressos, televisivos, radiofônicos, eletrônicos (internet), e outros. Entretanto, o nível 73 Conforme as Diretrizes Curriculares do Curso de Bacharelado em Direito - MEC. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 65 cultural da juventude encontra-se em descompasso com a evolução tecnológica e a profusão do saber. A mídia, nomeadamente por meio da televisão (dos canais abertos), incute nos jovens os superficiais e descartáveis valores do capitalismo: o modismo e o consumismo desenfreado; o afrouxamento da ética e a deturpação dos costumes; dentre outros. É comum que os jovens iniciem na educação superior com fraca base cultural e ausência de um projeto de vida. Por vezes os acadêmicos adentram no curso jurídico por simples imposição de familiares, e por outras imaginam que a educação jurídica é caminho fácil para um futuro sucesso profissional, principalmente no tocante ao desempenho financeiro. No mais das vezes, as pessoas ignoram os desafios que irão enfrentar para concluir com êxito seu curso de Direito, olvidando-se de desafios ainda maiores, como a inseração e a afirmação profissional no mercado de trabalho que lhes espera após a formatura. Impõe-se a transformação dessa realidade. É preciso que as IES busquem conscientizar a comunidade acadêmica (tanto discente quanto docente) acerca dos verdadeiros desideratos da educação jurídica. É imperioso que se faça um trabalho de esclarecimento, até mesmo vocacional, a fim de que os pretendentes à educação jurídica saibam (ou ao menos tenham uma noção) dos possíveis desafios que lhes reserva a trajetória entre o ingresso e a conclusão do curso. Enfim, é indispensável que os acadêmicos, para além de formação técnica- profissionalizante, sejam preparados para o enfrentamento da vida, despertando-se-lhes valores éticos, sociológicos, filosóficos, tudo ensejando que sejam agentes de transformação social, verdadeiros construtores da cidadania. CONCLUSÃO Questionando o papel dos cursos jurídicos, escreve Luiz Fernando Coelho: A vitória da concepção dogmática do direito é também o triunfo do ensino jurídico profissionalizante. Para que juristas, conhecedores daquilo que outrora pretendeu ser “ciência” do direito, quando um Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 66 técnico em processamento de dados é muito mais útil para o acesso à legislação e à jurisprudência? Em que a leitura de Kelsen, Hart, Clóvis ou Reale pode auxiliar o profissional do direito, seja ele advogado, magistrado, promotor ou delegado, a ser mais eficiente? A otimização profissional, a competição em termos de resultado econômico, passa a ser o denominador comum da atividade pedagógica ligada ao direito. O repensar do ensino jurídico resgata assim a figura algo desgastada do professor dogmático, aquele que comenta os textos legais de maneira brilhante, mas sem aprofundar-se na mínima exigência de cultura doutrinária, esse mesmo professor cujas aulas não passam de comentários tendo por tema sua experiência profissional no próprio escritório de advocacia ou no cargo público ou emprego; e as velhas e mesmo as novas faculdades de direito tendem a privilegiar os estágios profissionais, em escritórios-modelos na sala de aula.74 É fato incontestável que se vive hoje sob a égide do mercado, o qual impõe às IES certas demandas mercadológicas, exigindo a formação de profissionais (bacharéis) aptos ao exercício dos vários ofícios decorrentes dos cursos superiores. Nada obstante tal realidade, a educação completa (holística) deve transpor os limites do mero adestramento técnico, impondo-se resgatar a formação humanística e a consolidação dos valores éticos dos acadêmicos dos cursos superiores, em especial dos cursos jurídicos.75 76 74 COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro: transmodernidade, direito, utopia. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001, p. 58. 75 Sérgio Nogueira Reis cita conceito de holística de Pierrre Weil : “Holística vem do grego ‘holos’, que significa ‘todo’, ‘inteiro’. Holística é, portanto, um objetivo que se refere ao conjunto, ao ‘todo’, em suas relações com suas ‘partes’, à inteireza do mundo e dos seres”. REIS, Sérgio Neeser Nogueira. Uma visão holística do Direito: manual prático para o jurista do terceiro milênio. Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997, p. 24. 76 Ainda sobre os sete saberes necessários à educação do futuro de Edgar Morin, escreve Dirceu Antonio Ruaro: “A educação do futuro tem a tarefa de articular, unir as realidades de forma multidisciplinar, transversal, multidimensional, transnacional, global e planetária, o que até agora vinha sendo feito de maneira desarticulada, disciplinar e compartamentalizada [...] Ao organizar o conhecimento é preciso situar as informações e os dados em seu contexto para que adquiram sentido. O contexto, envolve o global, que é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional. É necessário entender as partes para recompor o todo. Além disso, unidades complexas como o ser humano ou a sociedade são multidimensionais. A nova educação precisa levar em conta esse fator. O conhecimento pertinente deve reconhecer o caráter multidimensional e perceber o processo de interretroação permanente entre as partes que compõe um todo.” RUARO, Dirceu Antonio. Ob. cit., p. 09-10. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 67 A educação jurídica deve ser realizada mediante atividades integradas de ensino, pesquisa e extensão. No ensino, as disciplinas devem ser ministradas em abordagem interdisciplinar, proporcionando aos discentes visão ampla do Direito e de suas relações com as outras ciências sociais. Além disso, é válida a proposição de uma abordagem holística do Direito, como propõe Sérgio Nogueira Reis no excelente livro “uma visão holística do Direito: manual prática para o jurista do terceiro milênio”, no qual o autor relaciona o Direito com a Religião, com a Arte, com a Natureza e com a Filosofia, dentre outras possibilidades. 77 A multiplicidade de dimensões pelas quais manifesta-se o fenômeno jurídico indica que a formação dos Bacharéis deve ser necessariamente aberta. O conhecimento jurídico deve ser plural. O Direito deve ser conhecido, a partir de disciplinas articuladas entre si, prevalecendo a interdisciplinaridade. Valiosa a mensagem de Luiz Edson Fachin, dirigida aos calouros e acadêmicos de Direito: É o momento de fazer subir ao palco da vida três dimensões do exercício profissional pelo bacharel em Direito. Numa primeira angulação emerge a dimensão ética, em face da qual por isso mesmo esse tempo é realmente singular e sem par, porque esta década redesenhou o estatuto ético das carreiras jurídicas e trouxe para o primeiro plano da cena pública a função social do exercício profissional. [...] Precisamente desse viés é que emerge a dimensão política do exercício profissional. O operador do Direito não convive com a cegueira social, não se cala diante das injustiças, nem pode sucumbir à desesperança. [...] 77 Idem, p. 47-79. FACHIN, Luiz Edson. Aos calouros e acadêmicos de Direito. In: O Estado do Paraná, Direito e Justiça. Curitiba: O Estado do Paraná, 27/04/2003, p. 2. 78 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 68 Ao lado das duas dimensões, a ética e a política, se aninha também, num terceiro e último patamar, o horizonte jurídico do exercício profissional, o qual conjuga nos verbos ser e agir, consciência e solidariedade. O jurídico que está no sentido e na razão de ser do Direito mostra ser imprescindível o apuro técnico do conhecimento e a atilada formação instrumental. 78 O momento exige a reflexão e a crítica (construtiva), o planejamento e a ação. Impõe-se a vigilância e o trabalho para que a qualidade dos cursos jurídicos não seja aviltada diante de visão equivocada (distorcida) da educação jurídica. Os estudantes de hoje (futuros bacharéis em Direito) integrarão os quadros das profissões jurídicas, dentre elas: a) a magistratura e a segurança pública (agentes do estado); b) o ministério público (agentes defensores da sociedade); c) a advocacia pública ou particular, atividade indispensável à administração da justiça (artigo 133 da Constituição da República). Ou seja, os operadores jurídicos de amanhã (atuando em qualquer dos ofícios jurídicos) necessitam de sólida formação técnica (profissional e prática), além de formação humanística e ética, pois serão eles os administradores da justiça. Além disso, observando o público que busca a educação jurídica na atualidade, verifica-se a presença de pessoas que não têm a pretensão ao exercício de qualquer profissão jurídica após a conclusão do curso, pois já estão consolidados no mercado de trabalho por outra carreira, como: a) empresarial; b) médica(s); c) de engenharia; d) do funcionalismo público; e) da classe política; dentre outras. 79 A doutrina brasileira diverge em relação ao problema de o ordenamento jurídico nacional ter ou não incorporado a doutrina do numerus clausus. Sem a pretensão de indicar uma extensa lista de escritores apresentamos apenas dois expoentes do direito civil: Washington de Barros MONTEIRO afirma que: “Outros direitos reais poderão ser ainda criados pelo legislador, ou pelas partes desde que não contrariem princípios de ordem pública”. (Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1982, p.12. v. 3: Direito das Coisas.). A possibilidade de terceiros criarem direitos reais parece superar a doutrina do numerus clausus e sugere que o professor adotou o numerus apertus em matéria de direitos reais. De outro lado, Orlando GOMES, assevera: “O Proprietário da coisa pode constituir apenas os direitos reais especificados na lei. Não tem a liberdade de criá-los, devendo conformar-se com os tipos regulados legalmente e com conteúdo que a lei lhes atribui. Outras espécies que não as definidas na lei são inadmissíveis”. Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1991, p. 10. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 69 Nada obstante, mesmo aqueles que não pretendem exercer ofícios jurídicos anseiam por uma educação jurídica de boa qualidade, sendo certo que, a despeito de voltada à formação profissional e técnica, a educação jurídica pode e deve contribuir para o melhoramento da base cultural das pessoas, despertando-lhes os valores da cidadania. Enfim, lembre-se que a construção de uma sociedade melhor, pluralista e democrática, justa e fraterna, como enuncia o texto constitucional brasileiro, é responsabilidade de todos. Para tanto, a educação jurídica serve como instrumento fecundo para o despertar da consciência cidadã e para fomentar o trabalho em prol de uma sociedade melhor. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Plauto Faraco de. OAB – Ensino Jurídico. In: OAB Ensino jurídico. Diagnóstico, perspectivas e propostas. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996. BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas – Uma recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro. In: Ensino jurídico OAB – 170 anos de cursos jurídicos no Brasil. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1997. BECK, Nestor Luiz João. Educar para a vida em sociedade. Estudos em ciência de educação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. BOAVENTURA, Edivaldo. A educação brasileira e o Direito. Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997. 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Ressalta o autor que atualmente os direitos fundamentais englobam direitos de liberdade, sociais, econômicos, culturais, os quais interessam a todos os membros da sociedade. O texto assinala que tais direitos são direitos fundamentais por constarem na Constituição, gozando de uma supremacia constitucional. ABSTRACT The article is about the origins of the fundamental rights, since the American and French revolutions, pointing to the inclusion of this category in Constitutional texts and in Bill of Rights. The author says that, actually, the fundamental rights include the liberty, social, economic, and cultural rights, the ones that interest to the members of a society. The text says that such rights are fundamental rights because they are in the Constitution, which gives them the Constitutional Supremacy. PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; direitos fundamentais; direitos do homem; declarações de direitos. “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los”.(Norberto Bobbio). A utilização da expressão “direitos fundamentais” é bastante recente. Por muitos anos as expressões predominantes foram “direitos do homem”, “direitos naturais” ou até “direitos inatos” ou também “direitos originários”. Das revoluções americana e francesa até o início do século XX, quando do surgimento do Estado Social, também chamado de Estado Bem Estar, Estado Intervencionista ou, como preferem alguns, EsRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 76 tado Providência, isto é, quando surgem as Constituições chamadas sociais da 1ª Grande Guerra Mundial, a linguagem corrente dentre os doutrinadores, bem como, no texto das Constituições da época, era a usual utilização das expressões direitos do homem, direitos naturais ou direitos inatos. Estes direitos eram os que o homem tinha por força da própria natureza, daqueles que se opunham ao Estado, daqueles que quanto menos o Estado intervisse mais respeitados seriam. Eram direitos decorrentes do próprio direito natural, produtos da razão, que a sua inclusão em textos legais ou mesmo nas Constituições limitar-se-iam a reconhecer e garantir. A partir da 1ª Guerra Mundial, de 1914 a 1918, as Constituições elaboradas sob uma nova concepção estatal, as Constituições denominadas sociais, como a do México de 1917, a alemã de Weimar de 1919, a da Espanha de 1931, a de Portugal de 1933, a nossa de 1934 e após a 2ª Guerra Mundial com as Constituições da Itália de 1947, da Alemanha Ocidental de 1949, a da Venezuela de 1961 e outras como as mais recentes de Portugal de 1976, a da Espanha de 1978, passaram a utilizar a expressão “direitos fundamentais”. É esta a expressão que foi adotada pelo constituinte quando da elaboração do nosso texto vigente de 1988. É importante salientar que a alteração ocorrida já naquela época se produziu por duas razões. A primeira, face a modificação nas concepções filosóficas e ideológicas a respeito dos direitos do homem. As concepções jusnaturalistas que antes se ligavam aos direitos do homem deixaram de ser aceitas com passividade, bem como, outras surgiram. A segunda, por decorrência de que desde o início da século XX passou-se a visualizar e a tomar consciência que ao lado destes direitos provenientes da própria natureza, outros direitos haviam decorrentes da vida em sociedade, da vida cultural, da vida econômica, etc. e que sobre eles se projetavam certas condicionantes do próprio país. Verificou-se, ainda, conscientemente, que era necessário, muitas vezes, os préstimos do Estado para que intervisse e agisse de forma positiva de modo a atender aos anseios e desejos da sociedade na busca de melhor proporcionar o bem-estar social. Não bastava peRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 77 dir ao Estado que nada fizesse, muitas vezes era necessário pedir ao Estado que muito fizesse, mesmo no domínio da liberdade. Além do mais, os documentos da época do Estado Liberal, como as Constituições e as Declarações de Direitos limitavam-se a enumerar um elenco pequeno de direitos, como a mais conhecida delas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da França de 1789, que continha somente 17 artigos, enumerando em regra, apenas a liberdade, a segurança e a propriedade. As Constituições posteriores, as do século XX, muitas delas vigentes ainda nos dias de hoje, trazem uma lista de direitos, extraordinariamente, extensa que, em paralelo, aumenta também o número de artigos que tratam de tais matérias. No século XIX, os direitos do homem eram, por definição, os direitos do homem individual. Já no século XX e também, neste primeiro início de século, os direitos fundamentais, agora sob esta nova denominação, não são apenas direitos individuais, mas também, direitos de grupos, de sindicatos, de instituições, dos consumidores, etc., enfim direitos da coletividade. Desta forma, a expressão “direitos fundamentais” , que hoje, é acolhida pela doutrina, substituindo a expressão “direitos do homem”, não se coloca apenas diante dos princípios do direito natural, mas alarga, amplia o seu acolhimento de modo a agasalhar as exigências dos homens atuais, individualmente, e dos grupos, ou seja, da sociedade no seu todo perante o Estado e, porque não dizer, perante a própria sociedade civil ou ainda a comunidade internacional. Os direitos fundamentais correspondem hoje aos direitos da tradição liberal clássica, acrescidos dos novos direitos, os econômicos, os sociais, os culturais, etc. Estes são direitos fundamentais por constarem na Constituição, na Lei Magna de um país. São fundamentais por terem uma relação direta com a Constituição, por gozarem de uma supremacia constitucional, que decorre do fato de se encontrarem estabelecidas no âmbito do próprio texto da Lei Maior. São direitos fundamentais por estarem, constitucionamente, consagrados dentre os direitos dos membros da comunidade política, frente ao Estado. São direitos que se contrapõem entre a pessoa, o indivíduo e o grupo de um Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 78 lado e o Estado do outro. Tais direitos fundamentais, somente existem, quando há distinção entre a pessoa, individual ou institucionalmente, e o Estado. Para que existam estes direitos necessita-se que ocorra uma margem de autonomia tanto da pessoa quanto da sociedade civil perante o Estado. Se não há, portanto, autonomia nem da pessoa e nem da sociedade civil perante o Estado, ou ainda se a liberdade se confundir com a autoridade, seja sob qualquer argumentação de ordem filosófica, ideológica ou qualquer outra não haverá direitos fundamentais. Assim, não haverá direitos fundamentais em regimes absolutista ou totalitário, onde a pessoa humana não é o ponto capital de atenção da entidade estatal. Os direitos fundamentais do século XIX significavam os direitos do homem, ou mais propriamente, estes últimos, traduziam os direitos de liberdade, como elementos de relação contra o Estado absoluto, contra as formas corporativas que perduraram até a Revolução Francesa, contra enfim aos interesses que serviam a classe burguesa. Estes direitos de liberdade (liberdade de imprensa, de reunião, de expressão e outras) que serviam a classe burguesa tem sido tentado pelos autores marxistas e também pelos não marxistas a associar os direitos, constitucionalmente, declarados no século XIX, com direitos ligados a determinada classe. Esses direitos de liberdade correspondentes aos interesses da burguesia se contrapunham a situação vivida à época de exploração e de opressão em que viviam os trabalhadores. A verdade é que se tais direitos apareceram conexos com os interesses de certa classe dominante, uma vez declarados, garantidos, eles adquiriram autonomia, vieram pois, servir não apenas aos interesses daquela classe, como em especial a todas as classes. A liberdade de associação não serviu apenas a burguesia, mas também aos interesses da classe operária. Outras liberdades como a liberdade de expressão, direito ao sufrágio, não eram somente direitos particulares ou de determinada classe, mas eram verdadeiros direitos universais, possíveis de serem invocados por todos os homens, independente da classe a que pertencessem. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 79 As Constituições têm concebido, quer os direitos de liberdade, os sociais, econômicos, culturais, como direitos de todos os homens, que interessam a todos os membros da sociedade e não apenas como direitos de classes ou ligados a determinada classe. Também no plano internacional, com o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direitos Civis e Políticos, estes são concebidos como direitos de todos os homens e não só a certa categoria ou classe de pessoas. Os direitos fundamentais são colocados em um dualismo, de um lado os direitos da liberdade e de outro os direitos econômicos, sociais e culturais. Todavia, se estamos diante de direitos de todos os homens, com certeza seria melhor pensarmos em uma só categoria, que interligasse os direitos de liberdade aos direitos sociais ou os direitos sociais aos direitos de liberdade. Nestes últimos 200 anos, o Estado se concebe em três tipos conhecidos: Estado Liberal, Estado Marxista e Estado Social. No primeiro, no Estado Liberal, os direitos chamados sociais não existem ou quando muito a sua existência se reconduz a direitos de liberdade. No Estado Marxista, ao contrário, os direitos de liberdade não existem ou são reconduzidos a direitos sociais. Estes últimos Estados, nos marxistas-lelinistas, o ponto fundamental circula em torno do primado da economia; afirmam-se ainda o direito ao trabalho, à educação ou à proteção da saúde e outros; as liberdades, quando aparecem, são sempre condicionadas à realização dos objetivos do socialismo e do comunismo. No Estado Social, como o previsto na Constituição alemã de Weimar, de 1919 e nas demais mais modernas (a da Itália, da Alemanha, da Espanha, de Portugal, da Venezuela, do Peru, a nossa vigente ou as nossas a partir de 1934) é insuprimível o contraste entre direitos sociais e liberdade. Ambos são direitos fundamentais. No tipo constitucional de Estado Social de Direito, direitos de liberdade e direitos sociais são direitos fundamentais, pois constando da Constituição não ficam mais a mera vontade do legislador ordinário. Entretanto, são direitos de estrutura diversa e de eficácia bem difeRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 80 rentes. Os direitos de liberdade são direitos negativos, mas não são puros direitos negativos, uma vez que em relação a muitos desses direitos de liberdade há consciência de que não basta ao Estado respeitar ou abster-se ao não fazer para que a liberdade possa ser exercida ou garantida. O Estado tem uma obrigação de manutenção de ordem pública, de dar segurança á sociedade. Esta é uma obrigação positiva do poder público. Quando o Estado afirma que garante direitos de liberdade, deve o mesmo, garantir condições de segurança para que a liberdade seja exercida. Em alguns dos direitos de liberdade o Estado tem obrigações específicas de caráter positivo. Quanto à liberdade de religião, por exemplo, não basta o Estado respeitar a liberdade de culto. Deve ainda assegurar àqueles que pretendem utilizar-se de tal direito. Quanto à liberdade de manifestação, o Estado não deve apenas assegurar a possibilidade dela ser exercida, juridicamente, mas deve, isto sim, garantir, positivamente, a manifestação, de modo a impedir fatos que não permitam a livre manifestação. À liberdade de comunicação, é outro dos direitos que o Estado assume a responsabilidade pelo asseguramento das condições necessárias para a seu pleno exercício. Os direitos econômicos, sociais e culturais são, em contrapartida, muitas vezes, direitos positivos. Positivos no sentido de que exigem do Estado posições ativas de agir, de prestar serviços, enfim comportamentos positivos. De certa forma esta contraposição, entre direitos positivos e direitos negativos pode ser aceita. Ora, se os direitos de liberdade nem sempre são, exclusivamente, direitos negativos, também os direitos sociais não são, sempre, exclusivamente, direitos positivos. Não são pura e simplesmente direitos positivos porque não dependem apenas do comportamento paternalista que o Estado possa vir a assumir. Assim, por exemplo, os direitos à saúde, à educação, ao trabalho, etc. inserem-se no campo da competência atribuída ao Estado de fazer, todavia, não deve ele assumir sozinho tal tarefa. É importante Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 81 e também necessária nestas matérias a presença da participação dos particulares, entretanto, o fazer destes não deve ser de tal porte a ponto de comprometer a liberdade dos cidadãos. O Estado não é o único destinatário das normas sobre direitos fundamentais, inclusive sobre direitos sociais, uma vez que também a sociedade, os grupos, as associações, etc., têm força e poder, bem como responsabilidade, preponderante no alcance e promoção de tais direitos. Os direitos sociais não se esgotam na mera relação entre pessoas e Estado. Eles devem vir com as pessoas, com a sociedade civil e o Estado. Alguns para designar o papel que o Estado deve ter na realidade dos direitos sociais mencionam a existência do “princípio da subsidiariedade”. Parece que a expressão utilizada pode não ser das mais felizes, porquanto o Estado poderá ter uma retração na sua atuação, levando-o a uma presença que não seja a esperada. O mais perfeito talvez seja a utilização da expressão “princípio da solidariedade”, onde a ação deva ser solidária entre a sociedade civil e o Estado na concretização desses direitos. De nada ou pouco adianta dizer que o Estado não é o único titular, o único destinatário das normas sobre direitos sociais. É importante a participação ativa da sociedade civil também neste processo, bem como a participação de todos os interessados. O princípio do Estado Social com o comando democrático em sua gestão, deve ser, na medida do possível, com a participação dos próprios interessados, na busca da concretização dos seus direitos. Assim, o Estado em vez de ter apenas uma posição estatista na concretização dos direitos fundamentais deve ainda, promover abertura à sociedade civil para que esta possa ter um espaço de efetiva e real participação. Liberdade e direitos sociais têm estruturas diferentes. Os direitos de liberdade são de aplicabilidade imediata, constam de normas preceptivas. A sua eficácia independe de quaisquer condições econômicas, sociais e culturais. São normas aplicáveis, independentemente da lei. O princípio básico no domínio das liberdades é que a lei é que tem de se conformar com as liberdades. A lei é que se move no âmbito Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 82 das liberdades e não as liberdades no âmbito da lei. Quanto ao domínio do direito das liberdades constantes da Constituição, a perfeição será tanto maior quanto menos precisar de lei para tornar-se obrigatória e eficaz. Muitas vezes a exigência da lei é mais por razões de segurança e certeza jurídica do que propriamente por complementação necessária. Se assim o é, quanto aos direitos de liberdade, ao contrário pode ocorrer quanto aos direitos sociais, isto é, os denominados direitos fundamentais prestacionais que exigem uma conduta positiva do destinatário. Gomes Canotilho esclarece que “os direitos a prestações significam, em sentido estrito, direito do particular a obter algo através do Estado (saúde, educação, segurança social). É claro que se o particular tiver meios financeiros suficientes e houver resposta satisfatória do mercado à procura destes bens sociais, ele pode obter a satisfação das suas “pretensões prestacionais” através do comércio privado (cuidados de saúde privados, seguros privados, ensino privado)”. Estes direitos sociais prestacionais que são de cunho programático, não gozam da máxima efetividade, sujeitando-se, portanto, ao limite da reserva do possível, uma vez que só podem ser concretizados através de condições econômicas, sociais e culturais que fogem a alçada do constituinte e, também do legislador ordinário. Muitas vezes necessitam, inclusive, da presença do Executivo para sua efetividade, em especial, indicando as fontes de recursos que irão fazer frente às despesas decorrentes da execução de tal programa. Assim, de nada adianta apenas haver uma lei ou uma norma constitucional que pretenda declarar o direito ao trabalho, à educação, para que todos possam alcançar tais direitos, para que todos possam ter trabalho, escola, emprego. Os direitos econômicos, sociais e culturais dependem de uma realidade. Enquanto os direitos de liberdade são direitos incondicionados, os direitos sociais são direitos condicionados. Os direitos sociais são de conteúdo incompleto necessitando pois de ser preenchido pelo legislador ordinário, enquanto que os direitos de liberdade já estão definiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 83 dos em sua essência desde logo na Constituição. Entre os direitos no Estado Social o primeiro é o valor liberdade. Neste Estado ambos são direitos fundamentais, apenas que em primeiro lugar estão os direitos de liberdade. Não admite o sacrifício da liberdade em prol dos direitos sociais. É o inverso do que ocorre com os Estados marxistas. No Estado Social o legislador não deve ser livre na confirmação dos direitos de liberdade. Sua função é apenas regulamentadora, quando não ampliativa. Só pode ser restrita nos termos previstos expressamente na Constituição e de acordo com o princípio da proporcionalidade. O legislador, assim, não é livre no domínio da liberdade. Quanto aos direitos sociais o legislador tem uma margem de liberdade. Não tem o legislador o poder de inverter, na prática, o direito constitucionalmente assegurado, mas deve ser ele o concretizador do conteúdo de cada direito social. Os direitos sociais estão, intimamente, conjugados com a organização econômica. O constituinte não pode criar uma rigidez tal quanto aos direitos sociais, que impeça o legislador ordinário de concretizar cada um desses direitos de diferentes formas. O excesso de rigidez posto pelo constituinte sobre o legislador ordinário quanto aos direitos sociais retira a opção de liberdade de ação, bem como cerceia também a liberdade do próprio povo, uma vez que este é que legitima politicamente, o legislador. Desta forma, portanto, as normas de direitos sociais não devem ser de tal sorte vagas que não tenham nenhum sentido, mas também não devem ser normas, excessivamente, detalhadas, minuciosas, que cortem qualquer possibilidade de escolha por parte do legislador. Assim, enquanto em matéria de liberdade o ideal é a precisão; em matéria de direitos sociais é necessária a abertura, a liberdade de conformação no quadro dos valores básicos da ordem constitucional. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 84 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 85 TEORIA DAS JANELAS QUEBRADAS: E SE A PEDRA VEM DE DENTRO? JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ & COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO. ADVOGADO NO ESTADO DO PARANÁ & CONSELHEIRO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, SECCIONAL DO PARANÁ. EDWARD ROCHA DE CARVALHO ADVOGADO NO PARANÁ. RESUMO O artigo trata da “política da tolerância zero” e de sua matriz ideológica, a “teoria das janelas quebradas”, pela qual pequenos delitos, se tolerados, podem levar à prática de delitos maiores : “quando uma janela está quebrada e ninguém conserta, é sinal de que ninguém liga para o local; logo, outras janelas serão quebradas”. Os autores criticam a política de tolerância zero, afirmando que a mesma é marcada pelo excesso do soberano e pela desumanidade das penas, e, além disso, tal política não prega a reforma do “desordeiro”, mas tão-só sua punição, sua exclusão. ABSTRACT The article is about the lack of tolerance and the “theory of broken windows” , in which small torts, if tolerate , can lead the person to bigger torts. “When a window is broken and nobody fixes it, it’s a sign nobody cares to the place; soon, other windows will be broken”. The authors criticize the politic of lack of tolerance , saying that it is marked by the excess of soberany and by penalties without humanity, and , besides , this way of behavior doesn’t make reformation in the person, but only his/her punishment, exclusion. PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; criminologia; teoria das janelas quebradas; política de tolerância zero. “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais.” (Saramago, 2002, p. 119). INTRODUÇÃO Tem-se indagado, com seriedade, no seio do Movimento Antiterror, as reais causas – para além dos interesses politiqueiros que Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 86 saltam aos olhos – da insistência na construção de uma legislação de pânico para o Brasil, denegando-se a Constituição da República. Que são multifárias poucos duvidam mas, sem dúvida, resplandece dentre elas a ingênua adoção de um pensamento marcado pela política da Tolerância Zero e sua matriz ideológica, a chamada Broken Windows Theory (Teoria da Janelas Quebradas), invencionice americana vendida aos incautos como panacéia no mercado da segurança pública mundial. Fazse, todavia, tão-só um mis-en-scène e, sendo matéria mercadológica, alguns haverão de pagar a conta, naturalmente. Muitos dos argumentos, porque destinados a mexer com o imaginário, não são de hoje: “A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos graves é punir muito severamente as mais leves faltas”. Este trecho de “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault (1987, p. 257), não fala da Nova York do auge da Tolerância Zero, tampouco do Brasil desejado por muitos, no futuro próximo, ou no presente corrente. É ambientada em 22 de janeiro de 1840, em Mettray, a prisão juvenil mais rigorosa da França daqueles tempos. Em julho de 1994, o prefeito recém-eleito de Nova York, Rudolf Giuliani, e seu chefe de polícia, William Bratton, começaram a implantar uma estratégia de policiamento, baseada na manutenção da ordem, enfatizando o combate ativo e agressivo de pequenas infrações – a grande maioria, quando muito, meros atos desviantes, como estudados na criminologia – contra a qualidade de vida, como pichação, urinar nas ruas, beber em público, catar papel, mendicância e prostituição. A política, que ficou conhecida como “a iniciativa de qualidade-de-vida” (quality-of-life initiative), foi baseada nos escritos e estudos de James Q. Wilson, George L. Kelling e Wesley G. Skogan. Os dois primeiros são autores do artigo “Broken windows: the police and neighborhood safety”, publicado na edição de março de 1982 do periódico Atlantic Monthly. O último foi autor, em 1990, de um estudo (Disorder and decline: crime and the spiral decay in american neighborhoods) que amparou a teoria. Já se tinha, porém, uma experiência anterior do modelo. Em junho de 1992, a cidade de Chicago implantou um decreto de vadiagem antigangues proibindo cidadãos de se reunirem em público “sem Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 87 nenhum propósito aparente”. Não obedecer tal disposição implicava no pagamento de uma multa de até US$ 500,00, ou prisão por até seis meses, ou prestação de serviços à comunidade até 120 horas, ou todas as três penas combinadas (§8-4-015 do Código Municipal de Chicago). No período de 1993 a 1995, foram expedidas mais de 89.000 ordens de dispersão e foram presas mais de 42.000 pessoas sob a vigência do decreto. A festa discriminatória acabou quando a Suprema Corte declarou, em 1999, inconstitucional (unconstitutionally vague) referido decreto, no caso City of Chicago v. Morales (527 U.S. 41). Em Nova York, a iniciativa produziu de 40 a 85 mil (dependendo da estatística) novas prisões – pelas tais infrações menores – no período de 1994 a 1998 (Estado de Nova York, Relatório da Divisão de Serviços de Justiça Criminal de 2000). Para lembrar o frenesi punitivo, basta saber que na disputa para a Prefeitura da cidade em 1993 (David Dinkins versus Rudolf Giuliani), o tema central sobre a segurança girou em torno dos squeegeemen, aqueles “garotos perigosos” que jogam água no vidro do carro quando estão parados, lavam-nos e, depois, pedem dinheiro. Ora, isso é pura hipocrisia, não fosse antes canalhice porque se sabia de antemão o que se queria ouvir. De qualquer forma, esses dois exemplos servem para demonstrar uma política de manutenção de ordem que emergiu nos anos 80, focada a partir do maior contato da polícia com o cidadão, tudo como um modo de criar e manter a ordem e assim diminuir a quantidade de crimes graves. O modelo original era o inglês community policing (polícia comunitária; polícia de proximidade). Assim, a base de tal política é o policiamento comunitário, que vem acrescido de fiscalização ativa e Tolerância Zero; todas idéias que têm como mentor intelectual a Nova Escola de Chicago (que substituiu a antiga Escola, formada por Guido Calabresi, Ronald Coase, Richard Posner e outros, nas décadas de 60 e 70), a qual se fundamenta nas normas sociais, muito próximo do pensamento de Emile Durkheim, em especial nas significações sociais capazes de alterar a sociedade em si. Tolerância Zero, enfim, é “incarceration mania”, a mudança do Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 88 welfare state (perto do qual nunca se passou no Brasil) para o penal state (Garland, 1996 e 2001; Becket, 1997; Caplow e Simon, 1998; Wacquant, 2001). Parafraseando os discípulos da teoria, mas agora contra ela, faz-se hora de restabelecer a ordem nesse caos de ignorância e absurdos. O CAMINHO DA MANUTENÇÃO DA ORDEM A Broken Windows Theory foi articulada no artigo supracitado de James Wilson e George Kelling, sendo baseada na premissa de que “desordem e crime estão, em geral, inextricavelmente ligadas, num tipo de desenvolvimento seqüencial” (Wilson e Kelling, 1982, p. 31). Segundo eles, pequenos delitos (como vadiagem, jogar lixo nas ruas, beber em público, catar papel e prostituição), se tolerados, podem levar a crimes maiores. A idéia não é complexa e faz adaptação do ditado popular “quem rouba um ovo, rouba um boi” (Wacquant, 2001, p. 25): se um criminoso pequeno não é punido, o criminoso maior se sentirá seguro para atuar na região da desordem. Quando uma janela está quebrada e ninguém conserta, é sinal de que ninguém liga para o local; logo, outras janelas serão quebradas. É, em suma, de se fazer prevalecer a ordem sobre a desordem; porque os desordeiros estão contra os ordeiros. As pessoas desordeiras incluem “pessoas não respeitáveis, turbulentas ou imprevisíveis: catadores de papel, bêbados, viciados, adolescentes arruaceiros, prostitutas, vadios e os perturbados mentais” (1982, p. 30). São – acredite-se, se for possível – os “bêbados fedorentos” e os “pedintes inoportunos” (1982, p. 34). Nós contra eles, num verdadeiro labelling approach (etiquetamento) antecipado: os desordeiros de dentro precisam ser controlados; os de fora, excluídos. De acordo com o artigo, são os “forasteiros” ou “estranhos” que cometem crimes (1982, p. 36). Os “regulares”, por sua vez, tendem a não causar problemas. Controlando os desordeiros, prendendo-os, excluindo-os, o problema estará resolvido. A ordem voltará a reinar e o crime desaparecerá. Tudo é muito ingênuo, mas é esta a idéia, sem mais. O problema é nela crer! Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 89 UM EMPIRISMO DE FALSAS PREMISSAS A espetacular queda do crime em Nova York é apontada como prova irrefutável de que a teoria funciona. Entretanto, ela diz muito pouco, senão nada, sobre a Broken Windows Theory. Basta ver que outras grandes cidades ao longo dos EUA experimentaram uma queda notável da criminalidade ao longo dos anos 90. Muitas delas – incluindo Boston, Houston, Los Angeles, St. Louis, San Diego, San Antonio, San Francisco e Washington, D.C. – com índices maiores que os de Nova York, sem que tivessem implementado a mesma política. Nova York teve uma queda de 51% na taxa de homicídios no período de 1991 a 1996; Houston, 69%; Pittsburgh, 61%; Nova York ficou em quinto lugar (Joanes, 1999, p. 303). O que é marcante é que nenhuma dessas cidades implantou a política Wilson e Kelling. Algumas, aliás, fizeram o contrário. Entretanto, a taxa de homicídios em Nova York vem aumentando desde 1998, de 633 para 671 em 1999, um acréscimo de 6% (Relatório Preliminar Anual Uniforme de Crimes, 1999, p. 5). Mais importante, todavia, é notar que a política de Tolerância Zero não foi a única implantada em Nova York, sendo que outros fatores contribuíram para a queda nos índices de crimes, no período de 1993 a 1998: a duplicação do número de policiais nas ruas; a mudança no consumo de crack para heroína; um orçamento do NYPD de 2,6 bilhões de dólares; condições econômicas favoráveis nos anos 90; novos sistemas computadorizados; a queda no número de jovens de 18 a 24 anos e a prisão de grandes gangues de traficantes (Karmen, 1996; Fagan, Zimring e Kim, 1998; Butterfield, 1998). Por outro lado, a fundamentação empírica da teoria surge da aceitação plena do estudo precitado de Wesley Skogan, no qual foram aplicados cinco testes, dos quais quatro não vinculam em absoluto a desordem e o crime. Estatisticamente – e só por isso –, não é apto a fundamentar qualquer teoria, ainda mais se se considerar que no quinto estudo (talvez o único aproveitável, vinculando desordem e roubo), foram incluídos cinco bairros de Newark (cidade objeto da pesquisa, onde quarenta foram pesquisados), que, se excluídos, a Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 90 imprestabilidade restaria patente (Harcourt, 2003, p. 78). Por que, então, a sedução pelas provas “irrefutáveis” de que a teoria foi a responsável pelo que aconteceu em Nova York, se os dados indicam o contrário? PESSOAS DESORDEIRAS, NÃO RESPEITÁVEIS E IMPREVISÍVEIS O que é ordem? O que é desordem? Se a linha é tão clara quanto os mentores da Broken Windows dizem, por que a arbitrariedade – que insistem chamar discricionariedade, embora não se amolde ao conceito usual (Giannini, 1970, vol. I, p. 485; Piras, 1964, p. 477): taking informal or extralegal steps (tomando medidas informais ou extralegais) – policial é tão necessária? A regularidade – ordem – nas ruas depende da prática irregular – rectius: ilegal – da polícia? Regularidade, obviamente, somente nas escolhas dos suspeitos. O embasamento da teoria sobre as duas categorias – ordem e desordem – também diz muito pouco. Aos criadores da Broken Windows, a última quer dizer que o bairro perdeu as rédeas e que se não preocupa com o crime. Ela, porém, como se sabe, pode ter muitos significados, afora o pregado por Wilson e Kelling: uma greve, um evento artístico, um estilo de vida alternativo, um local de vendas; ou pode significar somente pobreza, desemprego e desespero. O bairro pode, por outro lado, não perder as rédeas, desde que comandado por Dom Corleone, como no Poderoso Chefão, de Mario Puzo/Francis Ford Copolla; ou um bicheiro; ou um traficante (Dadinho/Zé Pequeno, em Cidade de Deus, de Paulo Lins/Fernando Meirelles). Por outro lado, uma comunidade “ordeira” pode ter outros significados: presença forte da criminalidade – mais ordem que usar terno e gravata, com colarinho branco, impossível –, da máfia, de pontos de tráfico de drogas, de locais de prostituição, de criminosos, enfim, que não querem chamar a atenção para si; ou, aqui também, riqueza, presença da polícia e, por óbvio, como querem eles, brutalidade policial. A ordem, portanto, seria um conceito natural, orgânico, criando assim uma nítida separação entre ordeiros e desordeiros, seguidores da lei e criminosos. Ora, as categorias em si podem ser produto dos mesmos proRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 91 cessos de punição que, pelo avesso, “legitimam a sociedade”. É desnecessário dizer que, com os esclarecimentos do labelling approach (teoria do etiquetamento), é elementar que essas punições acabem criando as categorias (Baratta, 2002, p. 85 e ss.). Para tanto, basta ler um pouco de Juarez Cirino dos Santos, Alessandro Baratta, ou ouvir um tanto de Racionais MC’s. Aqui um dos problemas: a Broken Windows somente cria essas categorias para delas se utilizar. Não se preocupa, porém, com a reabilitação, dado que propõe a punição pela punição: o homem como objeto de demonstração exemplar (Roxin, 1997, p. 176 e ss.). Punindo o desordeiro, estar-se-ia estabelecendo um padrão, uma norma social com o recado do que é certo e do que é errado e de que este último não é aceitável numa sociedade “normal”. Isso poderia ter, como argumento, alguma validade – mas não tem! – se houvesse perfeita transmissão e, nela, recepção, o que não ocorre nos EUA e muito menos no Brasil, onde a estatística oficial garante a presença, para começar, de dezessete milhões de analfabetos. A política de Tolerância Zero, símbolo maior da Broken Windows, é marcada pelo excesso do soberano e desumanidade das penas; um funcionalismo bipolar, um tudo ou nada; culpado ou inocente; um sistema binário, muito a gosto de uma pós-modernidade reducionista e maniqueísta. Basta lembrar que nos EUA, diversas cortes e Juízes têm aplicado penas mais que vexaminosas. Um jornal de Tacoma noticiou que uma pessoa condenada por furtar carros foi obrigada a andar com uma camisa dizendo “Sou um ladrão de carros”; um homem condenado em Ohio por importunar sua ex-mulher foi condenado a deixá-la cuspir em sua face (Polner, 2000; Deardoff, 2000a e 2000b). Não é de se estranhar que Dan Kahan, um dos maiores apóstolos atuais da Tolerância Zero, apóie abertamente a idéia (Kahan, 1996 e 1998, p. 615). Afinal, para ele, lei boa é a de Talião, felizmente já superada pelo grau de civilidade alcançado no mundo ocidental; e porque ninguém pode atirar a primeira pedra, mormente em estruturas de hiperinflação legislativo-penal. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 92 A Broken Windows Theory, assim, não prega a reforma do “desordeiro”, mas tão-só sua punição, sua exclusão. Julga-o não somente por dar a ele um antecedente criminal, tampouco por condenálo, mas por tornar o indivíduo alguém que precisa ser controlado, removido e observado. A categoria do “desordeiro” permite a Tolerância Zero, e esta o abuso do Estado e a barbárie do Soberano. A desordem do Estado, enfim, garante a ordem. A violência policial é necessária; um meio para um fim maior. Os bêbados, os catadores de papel, os flanelinhas, entre outros, são as verdadeiras ameaças, os “projetos de Fernandinho BeiraMar” com os quais se deve dar cabo agora, antes que vier coisa pior. Acaba-se com eles e se acaba com os estupros, com os roubos, com os homicídios. O perigo de tal afirmação – não fosse a ingenuidade – é evidente, na medida em que transforma o guri da esquina (que está lá ao invés de estar na escola, maldito!) em um maníaco do parque; o mendigo que dorme sob a marquise (porque quer, obviamente!) em uma ameaça para a sociedade (quem não dorme melhor quando não vê um mendigo em tais condições?!). Os pedintes, então, enojam, assustam, enchem todos de medo: fazem com que se saia das ruas e se fique trancado em casa. E o medo, como que numa osmose criminosa, é percebido pelos ladrões-desordeiros, que passam a roubar; um círculo vicioso do apocalipse da desordem: desordem gera medo, medo gera crime, crime gera desordem. É o reino, por evidente, da manipulação das premissas. É a filosofia Caco Antibes aplicada ao Direito! Efetuar tal maniqueísmo é somente mais uma forma – se é que isso é possível – de dividir e estratificar a sociedade, causando mais males do que se tem. É, além, mais uma forma de liberar aquilo que, falando desde o inconsciente, produz medo: dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos (Saramago, 2002, p. 262). De outra parte, a Broken Windows Theory prega uma atividade maior do policial e o uso do seu “bom senso inerente”, que deve perceber as situações e ponderá-las, tudo para manter a ordem. De bom senso se sabe desde Descartes; inclusive sobre a sua indeterminação. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 93 Eis por que, v.g., um homem de terno e gravata dormindo na rua gera a conclusão de que está doente ou estafado; um maltrapilho, por outro lado, tende a produzir a imagem de estar criando a desordem e gerando homicídios, embora disso possa ele nada saber. Eis por que para se manter a ordem são necessárias leis “abertas”, “generosas” (Hobbes?), que permitam ao “bom homem” prender um grupo de negros que conversa na rua sem motivo aparente ou um bêbado cantarolando pelas ruas da cidade. Nas palavras de um “bom” policial, a tática é: “we kick ass” (a gente bota prá quebrar). Quando Kelling e Wilson se referem à desordem, obviamente dizem sobre ela nas ruas; não nos distritos policiais ou nos camburões. A INEFICIÊNCIA DO ESTADO: TOLERÂNCIA ZERO Ficou evidente que todas as preocupações dos corifeus e apóstolos da Broken Windows Theory se resumem à ordem e sua manutenção. Entretanto, é por demais ingênuo (embora a proposta possa ser uma representação narcísea) pensar que ao tirar a criança do semáforo e o mendigo da rua o problema estará resolvido. O que acontece com eles depois disso – afinal, o raciocínio é simples: se eles não estão lá, é porque não existem – não é problema dos “teóricos”. Do ponto de vista intelectual, beira-se à fraude. Enquanto a postura do Estado for neoliberal, assumindo o “ter” como prioridade ao “ser”, estará o mundo fadado à proliferação de teorias impossíveis de verificação e ineficazes desde o próprio nascimento. Basta pensar que se tem um Estado Mínimo e para fazer viva a Tolerância Zero é preciso um Estado Máximo. Há uma contradição – diria Aristóteles: algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo – e, com segurança, a verdade fica fora. De resto, a inconstitucionalidade do pregado pela Broken Windows Theory salta aos olhos. Ora, a Constituição da República diz que deve haver – e há – infrações de menor potencial ofensivo, demarcando, para não deixar dúvida, a legalidade. Afirmar o contrário, como quer a dita Teoria, passando uma tábua rasa sobre todas as infrações, para considerar a mendicância igual ao homicídio – pior: a Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 94 causa dele!, afronta os mais comezinhos princípios estabelecidos por uma já sofrida Carta. A saída não é tão obscura quanto parece, ou quanto querem fazer parecer: um Direito penal mínimo, verdadeiramente subsidiário e que atenda à Constituição (que segue e deve seguir dirigente); educação e saúde para todos: como exigir do mendigo que “seja educado, não atrapalhe e não feda”, se não se dá a ele, sequer, ensino e saneamento básico? É hipócrita dizer, afinal, que “todo mundo tem o direito de dormir embaixo da ponte”. Abalou-se, na estrutura, a ética, sem a qual em perigo está a própria democracia. Claro, tais propostas vão de encontro ao que existe de mais sagrado na política da terra brasilis: o voto, símbolo maior da perpetuação das capitanias hereditárias e motor de arranque de quase todas as idéias. Enquanto os apóstolos da Tolerância Zero não entenderem que ela deve alcançar – isso sim – a corrupção, com a má-fé e o mau uso do dinheiro público, continuar-se-á vivendo nesta terra encantada de valores e moral em que Alice nos conduz; de imbrogli retóricos. Isso eles não entendem, ou não querem entender. Não querem perceber que quando alguém de dentro quebra as janelas, pouco resta a fazer com os que estão lá fora (aliás, a pedra cai na cabeça deles!). REFERÊNCIAS BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Trad. de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BECKET, Katherine. Making crime pay: law and order in contemporary American politics. New York: Oxford University Press, 1997. BUTTERFIELD, Fox. Reason for dramatic drop in crime puzzles the experts. In New York Times, 29 de março de 1998. CAPLOW, Theodore; SIMON, Jonathan. The incarceration mania: a preliminary diagnosis. Paper apresentado no New England Political Science Association Annual Meeting em Worcester, Mass., 1998. DEARDOFF, Julie. For shame: courts using humiliation as punishment. In Salt Lake Tribune, 23 de abril de 2000(a). Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 95 _________. 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ABSTRACT The article studies the question of numerus clausus and the vagueness doctrine of the right in rem in the new Brazilian Civil Code. The author analyses the issue under the principle of legal reserve and the principle of vagueness doctrine. The work also points to the relation of right in rem numerus clausus with the principles of economics and public order. PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; direitos reais; novo Código Civil brasileiro. INTRODUÇÃO O numerus clausus é uma das características do Novo Código Civil no que concerne ao estatuto da apropriação de bens imobiliários. Um código fechado para vida (ainda que embebido em gotas de óleo social), amarrado por uma doutrina que afasta as criações sociais e que incorporou uma armadura que excluiu algumas manifestações espontâneas do povo. Recepciona o Código, uma metodologia que põe o conceito no cimo do sistema. A técnica do numerus clausus pode ligar-se com o princípio da reserva legal. Isso quer dizer que apenas o legislador pode criar novas Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 98 figuras com a textura de direito real.79 Dois pontos, entretanto, destacam-se e não podem ser confundidos: o primeiro, vincado pelo conceito da tipicidade, para o qual não basta a criação de lei para que cientificamente ocorra uma figura de direito real. É necessário que o instituto criado tenha um conteúdo com as características desse direito. O segundo ponto revela que a figura do legislador não se restringe ao Parlamento, novos tipos de direito real poderão ser criados por outros centros de poder v.g., o Executivo. É preciso considerar que, o numerus clausus, além de ser um conjunto de direitos determinados pelo legislador, está vinculado precipuamente a princípios de ordem econômica.80 Outros afirmam que o atrelamento ocorre com princípios de ordem pública. O atrelamento a princípios de ordem pública não se mostra como a melhor forma de entender a técnica. Nesse rumo, José de Oliveira ASCENSÃO afirma que, em sede de direito real, a principal linha de defesa contra o numerus apertus e a favor do numerus clausus é a contrariedade daquele e a conformidade deste à ordem pública. Mas o que é ordem pública? “Da manipulação de princípios de extrema generalidade não se pode tirar nenhuma conclusão”.81 Reiteramos, o suporte do numerus clausus é de ordem econômica, e esta não se confunde e não preenche por inteiro da Ordem Pública. Esta técnica serve, como afirma Oliveira ASCENSÃO, para perpetuar situações econômicas consolidadas. Desmistificando a sua vinculação com a ordem pública, tem-se uma determinada opção econômica a lhe sustentar. Cabe ressaltar e reafirmar que a sua predominância parece implicar uma opção sistêmica que tolhe as construções espontâneas, o que pode desaguar em flagrantes injustiças. Considera-se que o princípio da tipicidade pode ser utilizado para, sem a violação do sistema, minimizar a sua rigidez e incorporar construções sociais ao ordenamento jurídico. A doutrina e jurisprudência dominantes entendem que no Estatuto Privado, atual, prevalece o 80 Segundo Pietro TRIMARCHI: “O número fechado dos direitos reais se justifica primeiro porque a pluralidade de direitos reais sobre uma mesma coisa reduz a possibilidade de modificar a sua destinação; segundo porque auxilia na circulação dos bens”. Istituzioni di diritto privato. Milano : Giuffrè, 1991, p. 122-123. 81 ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. Lisboa : Petrony, 1968 p. 87. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 99 princípio do numerus clausus, e que este determina que direitos reais apenas poderão entrar na ordem jurídica através da lei. Nada impede, entretanto, que o intérprete com o recurso da tipicidade, busque mediante a subsunção, novas figuras de direito real que se encontram postas na lei, de modo não muito claro. O princípio do numerus clausus pode, desse modo, ser vazado através da tipicidade.82 Essa prática deve ser orientada para a proteção do homem e não para “revelação” de direitos reais que mais se prestam a construir uma camisa de força que exclui e isola. Ônus reais, servidões, a tutela do meio ambiente, de bens históricos, turísticos, paisagísticos, direitos de minorias, como é o caso dos índios, apontam uma interessante vereda metodológica pela qual pode transitar o intérprete, sem que com isso venha violentar o sistema. Com a tipicidade orientada para a proteção do homem, e não apenas como um método de encarceramento das relações, é possível buscar direitos reais que estão “escondidos” no direito positivo. Essa orientação é interessante porque, para a doutrina clássica, os direitos reais oferecem aos seus titulares uma garantia diferenciada e mais potente do que a que se tem nos direitos pessoais. A tipicidade direciona-se para o conteúdo dos direitos reais, para os elementos que lhes conferem identidade. Nessa perspectiva, a recepção da doutrina que percebe o direito real como um tipo aberto é fundamental: “As notas características indicados na descrição do tipo não precisam, pelo menos algumas delas, de estar todas presentes; podem nomeadamente ocorrer em medida diversa”.83 Com a presença dessas notas fundamentais em determinadas figuras previstas em lei, mostra-se coerente a vinculação destas ao sistema que disciplina os direitos reais. Nesse plano é necessário ter cuidado para que não se transformem figuras de direito pessoal em direito real. Verificase a existência de determinadas categorias que se encontram na fronteira dessa forma de ordenação do direito (direito real/pessoal) como é 82 Id. ibid., p. 102. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência Jurídica 2.ª edição, tradução José Lamego Lisboa : Calouste Gulbenkiann, 1989, p. 260. 83 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 100 o caso das obrigações propter rem.84 Retomando os motivos que engendram o numerus clausus, é necessário precisar o aspecto da ordem pública. Ao perfilhar a idéia de que a orientação econômica é o substrato da técnica, não se descarta a ordem pública, como um suporte a dar certa substância ao conceito. Essa substância pode ser encontrada no princípio da reserva legal85 que, conectado à matéria do direito real, coloca a questão da ordem pública, ao assimilar a idéia de que essa espécie de direito submete terceiros com o efeito erga omnes.86 Uma tão poderosa conseqüência afetaria a organização das relações civis se se deixasse a criação de direitos à plena autonomia da vontade dos cidadãos.87 Interessante destacar que o numerus clausus e a autonomia da vontade, “têm a mesma matriz liberal que pretendem, no regime jurídico revolucionário, franquear o tráfego jurídico, fomentando a celeridade de negócios cri84 Segundo F.C. de Santiago DANTAS, as obrigações propter rem não são direitos reais. São obrigações que o sujeito assume pelo fato de sua posição de titular de determinado direito real. O conflito de vizinhança e sua composição. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 117. 85 O numerus clausus, conforme doutrina aqui perfilhada, é uma técnica que se fundamenta principalmente em motivos econômicos e, em certa medida, às questões de ordem pública. A perspectiva que se apresenta é a determinação de quem seja o Legislador. O princípio da reserva legal não se confunde com o princípio da reserva do Parlamento: “Segundo a doutrina tradicional do duplo conceito de lei, lei em sentido formal é todo o ato parlamentar revestido de forma de lei, independentemente do seu conteúdo. Lei em sentido material é a regra de direito[...]. Significa isto que para a lei em sentido material a forma de lei não é necessária nem suficiente: as leis formais podem representar leis em sentido material, mas os regulamentos também o poderão ser”. VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva da lei : a causa da lei na Constituição portuguesa de 1976. Porto : [s.e.], 1992, p. 17-18. Destaca-se da doutrina tradicional que apenas o Legislador, nesse plano, referido como o Poder Legislativo poderia modificar o numerus clausus. Ocorre que o princípio da reserva da Lei é diferente do princípio da reserva do Parlamento: “O verdadeiro alcance da reserva da lei, como expressão do princípio da legalidade, ultrapassa a distribuição orgânico-funcional do poder legislativo e questiona as relações da lei perante outros atos estaduais não legislativos. Trata-se não de organizar uma função estatal, mas de delimitar as funções estatais. Reserva da lei é aqui diferente de reserva do Parlamento, do mesmo modo que conceito de lei material é diferente do de lei formal”. VAZ, op. cit., p. 34. Não sendo pois idênticos o princípio da reserva de lei e reserva do Parlamento, cumpre questionar se o elenco de direitos reais consignados em nosso ordenamento poderia ser alterado por normativas que não oriundas do Parlamento. Parece que o ordenamento jurídico brasileiro admite a idéia de que o elenco de situações jurídicas, taxativamente, definidas em lei, possa ser alterado por dispositivos normativos oriundos de outros centros de poder, sem ter portanto o status de lei em sentido formal. Nesse passo, normas do Executivo poderão alterar o elenco de direitos reais acrescentando novas modalidades. 86 TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o código civil, a legislação ordinária e a Constituição. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, p. 83-84, 1989. 87 Destaque-se que a plena autonomia não se aplica nem aos contratos, veículo por excelência da vontade dos sujeitos de direitos. No direito agrário há um amplo complexo de normas cogentes que não podem ser afastadas pela vontade. O mesmo se verifica nos contratos de consumo. Há, ainda, em algumas circunstâncias, a obrigatoriedade de contratar quando se está em determinadas situações jurídicas e.g., proprietários de automóveis, cuja situação exige o seguro obrigatório para a proteção de terceiros. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 101 ados pelas partes e com força de lei entre elas, expressão da filosofia individualista [...]”.88 Por outro lado, o seu contrário, que é o numerus apertus, segundo José de Oliveira ASCENSÃO, também tem uma estrita vinculação com o princípio da autonomia da vontade.89 Evidenciada a técnica do numerus clausus, é preciso considerar que sua utilização poderá se direcionar para produzir injustiças. A realização da leitura do numerus clausus sem considerar a tipicidade de algumas figuras de direito real, propiciou o isolamento do sujeito de direito e contribuiu para a manutenção de injustiças sociais. Isso ocorreu durante um bom tempo, na jurisprudência brasileira, que não considerava o contrato não registrado de promessa de compra e venda de lotes urbanos como direito real.90 Pode-se aferir que a armadura conceitual montada no Código Civil brasileiro, com aspirações sistêmicas de um positivismo científico neutro, contribuiu para afastar o direito da vida, encarcerando-a em conceitos abstratos. Nesse momento da vida nacional a Constituição Federal,91 no que concerne ao Estatuto da apropriação de bens imóveis urbanos e rurais, desempenha um papel fundamental, isto porque, os institutos que nela foram encartados encontram-se perpassados por uma doutrina que tem o homem como o centro do sistema. A PREEMPÇAO UM DIREITO REAL? UMA LEITURA PARA ALÉM DO CÓDIGO CIVIL E UMA PERSPECTIVA DO ESTATUTO DA TERRA O Novo Estatuto Civil, no seu artigo 1.225, estabelece dez tipos diferentes de Direitos Reais. Na toada da técnica dos numerus clausus não existem outros direitos reais para além daqueles consignados no artigo. Sabe-se, entretanto, que o Código, como instrumento de definição sistêmica do Direito Civil, não estabeleceu com exclusividade os 88 TEPEDINO, Gustavo, op. cit., p. 83-84. ASCENSÃO, A tipicidade ..., p. 87. Nesse sentido, consultar a excelente monografia de Marcelo DOMANSKI. Posse : da segurança jurídica à questão social. (Na perspectiva dos limites e possibilidades de tutela do promitente comprador através dos embargos de terceiros). Rio de Janeiro : Renovar, 1998. 91 A posição que adotada para o vocábulo Constituição perfilha a idéia transcrita por José Joaquim Gomes CANOTILHO: “Constituição é uma ordenação sistemática e racional da comunidade política plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o poder político”. O direito constitucional entre o moderno e o pósmoderno. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, n. 9, p. 78, 1990. 89 90 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 102 Direitos reais, ou que apenas serão considerados como tais aqueles que se encontram no seu bojo. Outros direitos reais campeiam no sistema jurídico. Um dos mais relevantes está contido no Decreto-Lei 271, de 28 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre loteamento urbano, responsabilidade do Ioteador, concessão de uso e espaço aéreo. Esta normativa cria um Direito real sobre bens públicos e particulares. Trata-se de um Direito real resolúvel, que pode ser instituído de modo gratuito ou oneroso, por tempo certo ou indeterminado, e é transmissível por atos intervivos, por sucessão legítima ou testamentária. A concessão de uso de bens públicos e particulares é Direito Real tanto pelo fato de constar na Lei como tal (princípio do numerus clausus), como também por preencher os requisitos da tipicidade destes direitos e.g., seqüela, poder direto sobre a coisa, erga omnes, exclusividade, transmissibilidade mortis causa, etc. Não restam dúvidas, portanto, de que a Concessão de Uso prevista no Decreto-Lei 271/1967, efetivamente, é um direito real. O mesmo não ocorre com a Preempção ou Preferência92 . De início é preciso destacar que a Preempção ou Preferência é classicamente entendida como um direito pessoal na doutrina civilista. Isto é correto em determinados contextos93 . Nada obstante, quando se ultrapassa o plano civilista e se adentra nas relações jurídicas do Direito Agrário se constata algo diferente e que proporciona uma outra leitura quanto à natureza jurídica deste Direito. O Estatuto da Terra, Lei 4.504, de 30 de novembro de 1934, estabelece no § 4º, do artigo 92, que o arrendatário a quem não se notificar a venda poderá, depositando o preço, haver para si o imóvel arren92 Neste Artigo não se adentra na distinção doutrinária entre Preferência e Preempção para quem a primeira é espécie da segunda. O novo Código Civil as colocou como sinônimo. Para maiores detalhes acerca das diferenças cf PONTES DE MIRANDA .Tratado de Direito Privado, vol. XXXVIII, p. 383 93 O Código Civil de 2002 regula o instituto da Preferência ou Preempção é regulada entre os artigos 513 a 520. Nesta Lei o artigo 518 estabelece: Art. 518. Responderá por perdas e danos o comprador, se alienar a coisa sem ter dado ao vendedor ciência do preço e das vantagens que por ela lhe oferecem. Responderá solidariamente o adquirente, se tiver procedido de má-fé. Com isto o Código determinou que a Preferência ou Preempção é um direito pessoal e não um direito real. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 103 dado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar da transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis. A diferença desta normativa (Estatuto da Terra) para com o Decreto-Lei 271/1967 é a de que neste a Concessão de Uso sobre bens públicos e particulares é expressamente reconhecida como Direito Real, ao passo que no Estatuto não ocorreu tal reconhecimento. Em razão disto diverge-se na doutrina, acerca da natureza jurídica do direito consignado no Estatuto. Para muitos é um direito pessoal com eficácia real, para outros um mero direito pessoal ou ainda um genuíno Direito Real94 . O busilis doutrinário pode e deve ser enfrentado com as chaves de interpretação hermenêutica propiciadas pela tipicidade. O direito posto no Estatuto da Terra contém todos os elementos dos Direitos Reais, inclusive um dos mais relevantes que é o direito de seqüela ou o poder de buscar a coisa aonde ela estiver e na posse de quem ela se encontrar. No mais o Código de Processo Civil ao estabelecer no seu artigo 461, a tutela específica parece também oferecer subsídio e substância para o fortalecimento da tese. CONCLUSÃO A técnica do numerus clausus e o princípio da tipicidade dos direitos reais são instrumentos que podem, quando manejados com as vistas centradas na pessoa humana e nos seus direitos, propiciar uma efetiva tutela dos Direitos. Estas duas técnicas apenas terão sentido jurídico se incorporadas ao processo de repersonalização do Direito Civil a que alude o Professor Orlando de Carvalho.95 94 Encontra-se jurisprudência que reconhece a Preempção nos contratos agrários como Direito Real desde que estes contratos estejam averbados no Registro de Imóveis. 95 CARVALHO, Orlando de. Teoria da Relação Jurídica Civil, Centelha, 1981. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 104 REFERÊNCIAS BARROS, Washington de. Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. TRIMARCHI, Pietro. Istituzioni di diritto privato. Milano: Giuffrè, 1991. ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. Lisboa: Petrony, 1968. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência Jurídica. 2.ª edição, tradução José Lamego Lisboa: Calouste Gulbenkiann, 1989. DANTAS, F.C. de Santiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva da lei: a causa da lei na Constituição portuguesa de 1976. Porto: [s.e.], 1992 TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o código civil, a legislação ordinária e a Constituição. Revista Forense, Rio de Janeiro, 1989. DOMANSKI, Marcelo. Posse: da segurança jurídica à questão social. (Na perspectiva dos limites e possibilidades de tutela do promitente comprador através dos embargos de terceiros). Rio de Janeiro: Renovar, 1998. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O direito constitucional entre o moderno e o pós-moderno. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, n. 9, p. 78, 1990. CARVALHO, Orlando de. Teoria da Relação Jurídica Civil, Centelha, 1981. =============================================================== Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 105 A NORMA FUNDAMENTAL HOMAR PACZKOWSKI ANTUNES PINTO PROFESSOR DE FILOSOFIA JURÍDICA NO CESCAGE. DOUTOR EM DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO PELA UNIVERSIDADED DE LAS ISLAS BALEARES (PALMA DE MALLORCA, ESPANHA). ADVOGADO NO PARANÁ. RESUMO O artigo trata da “norma fundamental”, dimensionando-a como um princípio frente a Filosofia do Direito, não se confundindo com o Direito Natural e tampouco com os ordenamentos jurídicos positivos que variam de povo a povo, de lugar a lugar. O estudo da norma fundamental é realizado em perspectiva ampla, iniciando com a visão da “mitologia jurídica”; perpassando a análise das “leis herméticas”; estudando a norma como idéia; tratando da “norma racional”, da “norma divina” e da “norma como coisa em si”, para chegar à “norma absoluta”. Enfim, o autor discorre sobre os atributos da norma fundamental e o problema da relatividade da justiça. ABSTRACT The article is about the ‘Fundamental Statute”, putting it as a principle in Philosophy of Law, not the National Law and neither the positive Legal System that varies from people to people,place to place.The study of the Fundamental Statute is made in big perspective, beginning with a vision from “Juridic Mytology”, going to the analysis of “Hermetic Law”; studying the law as an idea; about the “racional law”, “divine right of kings” and the Law itself, to find the “Absolute Law”. At last, the author talks about atributes of the Fundamental Satute and the problem of relatively in justice. PALAVRAS CHAVE - Filosofia do Direito; Kelsen; norma fundamental. O POSICIONAMENTO DA NORMA FUNDAMENTAL NA FILOSOFIA DO DIREITO Não se pode iniciar um discurso sobre Direito sem antes invocálo no seu aspecto mais sutil, e que, no decorrer deste artigo, usaremos como paradigma; pois o Direito, hoje, vigente nos seus mais variados aspectos, nada mais é que uma das expressões do que Hans Kelsen, na sua Teoria Pura do Direito, nomeou de Norma Fundamental, a qual podemos, perfeitamente, comparar com a Coisa em Si de Immanuel Kant96. Admitindo esta Norma Fundamental não como uma conseqüência do 96 BENTON, Willian Kant. Chicago: University of Chicago, 1984, v.42 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 106 Direito Positivo, mas sim, como uma lei maior, precursora de todo o Direito (Natural e Positivo). A Coisa em Si é definida como “aquilo que independe de mim ou de qualquer outra coisa”, “aquilo que subsiste em si mesmo”. A Coisa em Si é um juízo sintético a priori, pois o seu conceito não está contido no sujeito e não existe um juízo analítico anterior. Tal como a Coisa em Si, é a Norma Fundamental e certamente Kant a chamaria de Norma Transcendental enquanto que os gregos a representariam por Têmis, a guardiã da ordem do cosmos e São Tomás de Aquino97 como Lex Aeterna. Podemos assim dimensionar a Norma Fundamental como sendo o princípio, não se confundindo com o Direito Natural e muito menos com os Direitos Positivos que variam de povo a povo, de lugar a lugar. Kelsen tem a Norma fundamental como sendo de validade pressuposta, hipotética ou fictícia, o que no decorrer deste trabalho discordaremos de modo que, a ordem do cosmos, a grande lei que, indiretamente, prescreve o respeito às Constituições e dá validade a todo e qualquer conteúdo, desde que este tenha eficácia por tempo razoável e em determinado lugar, é uma norma posta. Aprioristicamente, podemos analisar esta Norma Fundamental do ponto de vista de Hans Kelsen, colocando-a como uma espécie de subsídio para inspirar, alimentar e, principalmente, fundamentar a validade dos Direitos Nacionais de cada país, ou seja, o Direito Positivo de cada Estado independente e, é este conjunto de direitos diferentes o responsável pela existência do Direito Internacional, que, por outro lado, é o que está destinado a regular as diferenças entre estes vários direitos. Assim sendo, essa subsidiariedade é recíproca, pois não existe Direito Internacional sem os Direitos Nacionais e estes últimos não podem coexistirem sem uma mediação do primeiro. O mesmo vem a acontecer com as outras facções dentro da escala hierárquica das Pessoas Jurídicas (vide gráfico). Ora, os Direitos Nacionais, ou seja, os Estados, só existem em detrimento das Pessoas Jurídicas de Direito Público, através das quais exercem os seus 97 BENTON, Thomas Aquinas. Chicago: University of Chicago, 1984, v.s. 19, 20. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 107 poderes, mantêm a soberania e a ordem e, principalmente nelas se alicerçam para fazerem a sua soberania respeitada por outros Estados Nacionais. As Pessoas Jurídicas de Direito Público existem por que são a personificação da delegação de normas dentro de uma ordem jurídica e também pelos insumos vindos das Pessoas Jurídicas de Direito Privado que dão a estas um determinado amparo e razão de existir juntamente com as Pessoas Físicas. Por fim as Pessoas Jurídicas de Direito Privado só existem graças a iniciativa das Pessoas Físicas, que as idealizam e criam para servir outras Pessoas Físicas. E qual seria a origem desta iniciativa, o desejo de dar e receber, de servir e ser servido. Alguns responderiam que é o instinto e, o que não é o instinto senão uma das grandes regras da natureza que é regida por uma Lei, a qual podemos chamar de Norma Fundamental. Certamente que não aquela estabelecida por Kelsen para fundamentar a validade de uma determinada ordem jurídica, mas uma Norma Fundamental Única. POSICIONAMENTO DA NORMA FUNDAMENTAL Disto podemos concluir que, toda a organização humana está baseada num desejo de ordem, de harmonia, benesse, bondade, beleza, enfim, de perfeição. Nisto sim, podemos concordar que a Norma Fundamental é hipotética, pois não temos um paradigma de perfeição justamente por ela ser relativa, assim como tudo dentro do Direito. Por outro lado, sabe-se que existe e procura-se cada vez mais acercar-se desta perfeição, mesmo que relativa. Assim sendo, compara-se o que afirmamos há alguns parágrafos atrás, que a Norma Fundamental Única é uma Lei Cósmica que subsidia a qualquer desejo de organização, lei esta que por cada qual merece uma diferente interpretação, mas que existe enquanto conceito e enquanto coisa em si, anterior e superior a qualquer outra lei, ou mesmo sempiterna. Em suma, é a ordem do Todo que está presente em cada ser, cada elemento, pois o homem está em meio a uma constante busca de que é certo, do que é “direito”. E é esta ordem que inspira as formas de governo de cada Estado, que nada mais são que diferentes formas de interpretação e aplicação do Direito, aplicaRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 108 ção esta que acontece através da delegação de competência para criar normas estatutárias das quais as Pessoas Jurídicas são formas de personificação, e, juntamente, com os atos das Pessoas Físicas, a personificação de normas jurídicas ou leis. É aí, então que o círculo se fecha num constante intercâmbio simbiótico O QUE DIZ A MITOLOGIA JURÍDICA Se faz imprescindível que antes de nos adiantarmos em qualquer análise mais profunda, façamos algumas considerações sobre o modo que os gregos, um dos povos precursores dos estudos de direito, ubicavam a sua noção de lei. Desde há muito tempo, até os dias atuais, o Direito tem Têmis como sua deusa, ou melhor, Têmis é a deusa da Justiça e é até paramentada como tal. Para que não nos enganemos sobre esta personificação, façamos uma pequena análise em Têmis e sua filha Diké, também dita deusa da Justiça. Têmis é uma das divindades míticas mais antigas e podemos dizer, concordando com o nobre jurista Luís Fernando Coelho98 , que o seu conceito é muito mais abrangente que a idéia hodierna de Lei, fundada em normas positivadas que, sem sombra de dúvida, trazem em seu bojo algumas nuanças do Direto Natural, ou seja, elas nada mais são do que a prudência humana transformada em paradigmas ou regras de conduta que servem como exemplo e devem ser cumpridas. Se assim, aprioristicamente afirmássemos, estaríamos atribuindo à Têmis, alguns dos atributos de Diké. Filha de Gaia e Urano, Têmis é irmã de Cronos e Réia, pais de Zeus, de quem é esposa, sendo assim denominada de Titânida. Opositora ao espírito de conquista, luta e guerra por ser feminina. Têmis também representa que a sabedoria e a ponderação é guardada pelas mulheres, assim sendo ela personifica a vitória do espírito sobre a carne, da idéia sobre o fenômeno. Têmis corporifica uma substância mais sutil que transcende os conceitos de Lei e de Justiça, embora seja ela a responsável pela criação de oráculos, ritos e leis, justamente porque estas últimas exis98 COELHO, Luis Fernando. Introdução histórica à filosofia do direito. Rio de Janeiro, Forense, 1977. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 109 tem para manter o equilíbrio. Têmis é aquela que alerta que os extremos são perigosos; que tudo o que é demasiado não é bom e o que está de menos também assim o é, por isso traz na mão esquerda a balança. Em suma ela indica o equilíbrio entre as polaridades, entre a matéria e o espírito. Devido à sua sabedoria, Têmis é a guardiã da ordem cósmica, podendo ser considerada a própria ordem cósmica ou uma síntese da ordem universal, organizadora e transformadora do caos, sendo responsável pela afinidade e sincronia, dentro das quais, todas as coisas funcionam interagindo em prol de um Todo. Por isso Têmis personifica também a União. Têmis tem as suas atenções voltadas para o ser humano, que é o único elemento da natureza conhecida que põe em risco a paz, constância e ordem cósmica devida à sua imprudência. Se nos reportarmos a algumas linhas atrás, não precisaremos nos esforçar para encontrarmos em Têmis um dos fulcros nos quais nos baseamos ao teorizarmos sobre a Norma Fundamental Única. Como Têmis é anterior a qualquer Lei positivada e a qualquer conceito, podemos nos unir a Kant e em coro afirmamos que Têmis é coisa em si e sendo ela a responsável pela ordem do Todo, suas características se coordenam com as noções da Lex Aeterna, pregada na Patrística e principalmente na Escolástica, por São Tomás de Aquino. Têmis unida a Zeus teve seis filhas. As Moiras responsáveis pelo fio do destino. Sendo Cloto a que tece, Láquesis a que distribui e mede e Átropos que implacavelmente corta. As Moiras são irmãs de Eunomia, a ordem legal; Eirene, a paz; e Diké, a Justa Retribuição. Podemos assim observar que Têmis é a soma dos atributos de suas filhas, principalmente das três últimas que espelham os objetivos da Justiça em latu sensu. Já em strictu sensu, podemos visualizar a Justiça que os textos legais tentam garantir como a Justa Retribuição pelos atos praticados, ou seja, aquele que pratica o bem é recompensado e o que pratica o mal é punido, ou seja, aquilo que Aristóteles denominou de Justiça Distributiva e Corretiva. É justamente neste ponto que paramos para pensar se a Justiça que se pratica hoje não recai somente nas inerências de Diké, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 110 sendo personificada por ela própria. O nome Diké deriva dos termos Dikaion que significa o Justo e dizakein, ato de julgar. A princípio Diké é mensageira, portando o sentimento de Aliança, emanado de sua mãe Têmis, para a Terra. Sendo a responsável por manter este Direito entre os homens, enfrentando nesta tarefa três forças antagônicas principais: Éris, a discórdia, mãe de todas as dores, do esquecimento e da fome; Bia, a personificação do poder tirânico que gera a violência e Hybris, a imoderação, o exagero que transforma o Direito em arbitrariedade carecendo de senso de medida, por fim transformando-se em injustiça. Este antagonismo separa e nunca confunde o Direito com o poder reinante e o coloca num patamar acima das legislações tiranas. Esta é, essencialmente, a separação do Direito em si, do Direito Positivo, e é nela que buscaremos suporte até o fim deste trabalho. O conceito de Diké, retira de sua mãe Têmis, seus fundamentos basilares que a definem como sendo o equilíbrio entre os extremos, algo dimanado da natureza das coisas, configurando a ordem natural a que devem estar submetidas as ações humanas. Para que sintamos a profundidade e a transcendência deste quesito, definamos Diké como o germe do Direito Natural e sendo ela filha de Têmis subentende-se que Têmis é quem inspira ou gera o Direito Natural que dentro da sua evolução, vai mais tarde partejar o Direito Positivo. Segundo Hesíodo, Têmis ou ordem universal se divide em dois setores: A ordem para a natureza irracional e a ordem para a natureza racional que é a dos homens e portanto está imbuída de limites que não devem ser ultrapassados. É neste momento que Têmis precisa da interferência de Diké, que ajuda o homem a compreender que obedecer o Direito que está fundado na essência de cada um, ou seja, cada qual tem o seu livre-arbítrio e é responsável pelos seus atos, de modo contrário é Diké quem vai pesar e medir os atos. Diké aliada à suas outras cinco irmãs assegura que o destino e a Justiça constituem a ordem da racionalidade, sendo o destino inexorável e a Justiça envolvendo a possibilidade da sua infração. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 111 Isto nos leva a concluir que esta submissão à lei do destino antecede a concepção romana de que o Direito Natural é descoberto pela razão, de que ele dimana da natureza das coisas, e que, ainda prescinde da existência de elemento metafísicos. Enfim, nas linhas anteriores admitimos que Têmis é o princípio, o elemento primordial representando o equilíbrio que é uma das forças basilares do universo. Têmis é um eco do Verbo pronunciado ou do Logos, a idéia. Diké já é um efeito colateral do “verbo que se fez carne”, ou seja Diké é Têmis posta em prática, ou, põe em prática os preceitos de Têmis personificando o Direito Concreto na sua praxis e especificidade cujo teor é intrínseco ao ser humano, pois viver conforme o Direito corresponde ao ser do homem, tal qual já apregoava Verdross99 . A NORMA HERMÉTICA Talvez aquilo que Hans Kelsen disse, nas entrelinhas de modo tácito, mas se furtou de dizer, expressamente, negando-se de ir além na definição da Norma Fundamental, já tenha sido dito há 4.700 anos atrás, no Egito, através das Sete Leis Herméticas de Hermes Mercurius Trismegisto100 . Estas Leis são genéricas e dizem respeito principalmente, à Harmonia Cósmica, mas se comparadas com a Norma Fundamental podem elucidála de uma maneira bastante peculiar e ao mesmo tempo ampla. TRANSCRIÇÃO DAS 7 LEIS HERMÉTICAS 101 O TODO É MENTAL: O UNIVERSO É MENTAL Isto pode indicar já de início sobre o fato da Norma Fundamental se prolongar até os bastidores da mente humana assumindo o caráter de consciência. Por outro lado, se todo o universo é mental, a Norma Fundamental que o ordena também o é, e assim o atributo “hipotética” acaba tendo cabimento, tão bem quanto os atributos mística e fictícia, que a tratariam como mera criação da mente humana. 99 VERDROSS, Alfred, Abendländische Rechtsphilosophie, Viena, Springer Verlag, 1963, 2ª edição. TRISMEGISTO, Hermes. O Kaibalion. Egito: 2700 a.c. 101 MEDRANO, Roberto. Pitágoras e seus versos dourados. São Paulo: Aduaneiras Gráfica. 1993 100 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 112 O QUE ESTÁ EM CIMA, É COMO O QUE ESTÁ EMBAIXO, E O QUE ESTÁ EMBAIXO É COMO O QUE ESTÁ EM CIMA Iremos simplesmente dimensionar o macrocosmo e o microcosmo, o universo e o homem. Se fizermos uma análise comparativa entre ambos, baseada em Física, notaremos as semelhanças entre um átomo e um sistema planetário, uma molécula e uma galáxia e aí por diante. Destarte, a mesma Norma que rege o macro, rege o micro, simultaneamente, e com os mesmos princípios, isto demonstra que todos os sistemas normativos são meras facetas de uma mesma Norma Fundamental onipresente. NADA ESTÁ PARADO, TUDO SE MOVE; TUDO VIBRA Isso nos reporta ao fato de a Norma Fundamental estar constantemente ordenando, vibrando e inspirando, gerando assim normas menores, dentro dos seus três aspectos, o estático, o mecânico e o dinâmico. Ainda podemos comparar esta Lei com a Dialética Negativa e o eterno vir-a-ser propostos por Hegel. TUDO É DUPLO, TUDO TEM POLOS; TUDO TEM O SEU OPOSTO; O IGUAL E O DESIGUAL SÃO A MESMA COISA, OS OPOSTOS SÃO IDÊNTICOS EM NATUREZA MAS DIFERENTES EM GRAUS. OS EXTREMOS SE TOCAM; TODAS AS VERDADES SÃO MEIASVERDADES; TODOS OS PARADOXOS PODEM SER RECONCILIADOS Sem sombra de dúvida, esta Lei, nos leva, diretamente, ao que já falamos sobre a relatividade na maneira em que a Norma Fundamental é evocada e aplicada, gerando a relatividade da Justiça e a insondabilidade da única verdade que é um dos atributos da Norma Fundamental na sua natureza, onde ela é a mesma; o momento em que os extremos se tocam e formam a esfera que representa o infinito e que foi denominada de Mônada por Pitágoras. Olhando-se, por outro prisma, quando a Lei diz que tudo é duplo, isto nos reporta as polaridades que são a razão de ser do Direito e da Justiça, pois é justamente neste ponto em que a Norma Fundamental se manifesta, no mundo do fenômeno, e se dualiza, assim as morais Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 113 já revestidas de Ética entram em conflito formando uma relação de tese e antítese, sendo que a Justiça surge para solucionar esse conflito e transformá-lo em síntese e posteriormente em lei. TUDO TEM FLUXO E REFLUXO, TUDO TEM SEUS MARES; TUDO SE MANIFESTA POR OSCILAÇÕES COMPENSADAS; A MEDIDA DO MOVIMENTO À DIREITA É A MEDIDA DO MOVIMENTO À ESQUERDA, O RITMO É A COMPENSAÇÃO Onde houver uma falha que prejudique a Harmonia Natural, a Norma Fundamental inspirará para que essa falha seja reparada. Quando houver a falta de um dos “dentes da grande engrenagem”, a Norma Fundamental, pelo simples fato de existir, a suprirá. Para o Direito, este é o preceito de que quem perde deverá ser compensado de alguma maneira para que o Equilíbrio e a Harmonia sejam mantidos. TODA CAUSA TEM SEU EFEITO, TODO EFEITO TEM SUA CAUSA; TUDO ACONTECE DE ACORDO COM A LEI (leia-se Norma Fundamental). ACASO É SIMPLESMENTE UM NOME DADO A UMA LEI NÃO RECONHECIDA (Norma Fundamental); HÁ MUITOS PLANOS DE CAUSALIDADE; PORÉM NADA ESCAPA À LEI (Norma Fundamental) Também já falamos, antes, sobre o fato de uma das maiores características e um dos atributos da Norma Fundamental ser a Lei da Causa e do Efeito que existe, justamente, em detrimento do livre-arbítrio conferido ao ser humano. Em se realizando uma análise exegética bastante sóbria e cautelosa, poderíamos concluir que nada foge ao controle da natureza, portanto mesmo que não houvesse o Direito para mediar, a Harmonia seria mantida a qualquer preço, justamente pela existência da Lei de Causa e Efeito. Poderíamos dizer que o Direito só existe para apressar as coisas e, às vezes, o faz de maneira errônea por não saber o real significado da grande verdade contida na Norma Fundamental, que cedo ou tarde intervirá de maneira sutil e natural. Basta que tenhamos olhos de ver e que simplesmente observemos que nada foge aos olhos da grande Justiça, a qual podemos chamar de Norma Fundamental. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 114 O GÊNERO ESTÁ EM TUDO; TUDO TEM SEU PRINCÍPIO MASCULINO E SEU PRINCÍPIO FEMININO; O GÊNERO SE MANIFESTA EM TODOS OS PLANOS Novamente as polaridades que devem existir para que se forme o único perfeito e inteiro, a síntese. O ideal seria que esta união acontecesse naturalmente, mas o homem ainda precisa criar leis para preservar o curso harmônico dos acontecimentos. “Para toda tampa existe uma panela, não importa qual seja o seu formato”. A Norma Fundamental, justamente, representa esta síntese, pois ela é completa por deter em si ambos os gêneros, metaforicamente falando. A Norma Fundamental inspira para que haja essa união entre os elementos de modo a sempre preservar a Harmonia. Por outro lado, esta é uma Lei que nos leva a perceber que muitos dos nossos sistemas normativos deveriam reavaliar os seus valores e as suas leis para aplicá-las de maneira mais justa, principalmente no que se refere à Moral e à conduta do ser humano. Uma norma tipificada e transformada em lei, não pode impor à um indivíduo uma natureza diferente da sua, e é isto que vem acontecendo em muitos países de regimes ditatoriais. Fala-se aqui de discriminação racial, religiosa e, principalmente, no que diz respeito à orientação sexual. Por exemplo, se alguém é de orientação homossexual e assim nasceu, esta é a sua natureza e ela não poderá nunca ser mudada, mas sim aceita como uma manifestação do gênero e por fim da natureza que é sempre correta e harmônica, pois ela é a própria expressão da Norma Fundamental. A HIPOSTASIAÇÃO DA NORMA FUNDAMENTAL Por várias vezes já mencionamos e relacionamos a Grande Mônada estabelecida por Pitágoras como uma alegoria da Norma Fundamental. É claro que a numerologia de Pitágoras não era voltada somente às leis, mas sim a todo o universo. Esta Mônada seria a premissa maior de toda a criação, assim como para Kelsen e para nós, neste nosso trabalho é a Norma Fundamental em relação ao Direito como um todo. Quando se fala em Mônada e em símbolo de uma grande unidade, a primeira representação que nos vem à mente é o número um (1); mas se levarmos em conta a Mônada como causa inicial Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 115 e conseqüência final de todas as polaridades, concluiremos que em algum lugar, assim como professa Hermes Trismegisto, esses opostos ou polaridades se tocarão formando então uma esfera e representando algo cujo fim está no seu próprio início ou vice-versa. Pelo que já discorremos sobre a Norma Fundamental podemos concluir que se tivemos de representá-la por algum símbolo, este seria também uma esfera, pois ela desempenha a função da Grande Mônada. Os opostos da Norma Fundamental que se tocariam, seriam o momento em que ela inspira a Moral humana e o momento em que ela fundamenta a validade de um sistema de Direito Internacional; do menor para o maior, fisicamente falando.Admitindo-se como parâmetro a axiologia Pitagórica102 , podemos então elencar dez leis maiores que chamaremos de manifestações primárias e imediatas da Norma Fundamental, ou seja, as primeiras normas menores decorrentes da primeira vibração ou inspiração da Norma Fundamental que caracterizam de maneira peculiar o seu momento mecânico; normas estas que concomitantemente, representam e sustêm a Norma Fundamental como um fim em si mesma; pois estas leis dimanam da Norma Fundamental e a completam simultaneamente. Assim sendo, a seguir adaptaremos à realidade jurídica as dez leis que Pitágoras estabeleceu como sendo as regentes de todas as coisas. A LEI DA UNIDADE: É a unidade integral, ou o que acabamos de descrever como Norma Fundamental ou Mônada Jurídica em linhas anteriores. Se assim admitirmos, poderemos afirmar que ela é a norma que preside todas as normas menores que, participam da Unidade Suprema das Relações Naturais ou Humanas, sejam elas instintivas ou naturais, pois aqui estamos ignorando as barreiras impostas pela Recta Ratio ou pelo direito natural. Em suma, esta lei representa o que já descrevemos como Norma Absoluta. A LEI DA OPOSIÇÃO: Tudo quanto é finito – tal qual as normas menores em relação à conduta humana – é produto dessa oposição gerada no seio da Norma Fundamental que é ingênita e infinita. Todas as condutas finitas são compostas de duas ordens de ser, no mínimo. No momento que se desenrolam as relações humanas, se102 MEDRANO, Roberto. Pitágoras e seus versos dourados. São Paulo. Aduaneiras Gráfica. 1993 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 116 guindo uma dialética negativa, as condutas que as compõem interagem expressando-se através de todos os pares de contrários que constituem os pólos, não só de todo o arcabouço jurídico como também de todas as mais primárias classificações humanas. Esta relação, imediatamente, nos reporta a uma outra, a da Dialética Negativa de Hegel, estabelecida pelo trinômio: TESE X ANTÍTESE = SÍNTESE (a qual não deixa de ser admitida como uma nova tese). Esta relação representa a realidade jurídica na sua tentativa de buscar leis cada vez mais perfeitas e capazes de atender às relações humanas cada vez mais complexas e sofisticadas. A LEI DA RELAÇÃO: A lei da relação é, pois, aquilo que denominamos Norma Fundamental Menor(genuinamente kelseniana), ou seja, a premissa maior de cada sistema normativo, pois as suas estruturas existem devido à correlação entre as normas que regem condutas opostas. É dessa correlação que surge um Direito Positivo e finito, pois este se expressa de uma determinada forma, durante um determinado tempo e dentro de um determinado espaço. Esta é uma relação principal, pois sem ela o Direito Positivo não surge, assim, nenhum Direito pode ser devidamente conhecido se não for considerado do ângulo da Unidade, das oposições intrínsecas e das relações entre as posições que lhe dão origem, ou seja, a lei da relação complementa a lei da oposição revelando como fruto da última, a síntese, que para nós é o Direito representado pela Justiça. A LEI DA RECIPROCIDADE: Em todas as condutas consideradas em sua oposição intrínseca (Ética) e extrínseca (Política), nas relações que se formam entre os opostos, há uma interação (Justiça), uma reciprocidade interativa. Estamos aqui no mundo das normas que compõem o nosso Universo Jurídico, assim, se a princípio todas as normas podem ser vistas unitariamente ainda no contexto da Norma Fundamental, podem também ser dualmente, ternariamente (como feixe de relações, e também como tendo um começo, meio e fim) e, quaternariamente, como resultado da interação dos opostos. Se a lei da relação é a que rege as condutas como séries, a lei da reciprocidade rege a evolução primária e fundamental das normas finitas. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 117 A LEI DA FORMA: Todas as normas são determinadas como tais pela conduta que regem ou pelo Direito que dizem, mas a reciprocidade que se dá entre os opostos realiza-se dentro de uma lei de proporcionalidade intrínseca à conduta (Moral), pois o seu atuar e o seu sofrer são proporcionais à sua natureza (Lei da Causa e Efeito/Justiça Proporcional de Beccaria). Estas cinco leis, até então examinadas, regem, concomitantemente, todo o arcabouço jurídico que nada mais é que o “sutil material” que corporifica a Norma Fundamental, no que diz respeito à sua influência, nas relações humanas, que provocam a invocação do Direito. Tais leis também regem-se simultaneamente, pois toda norma tem uma forma e uma reciprocidade que surgem das relações entre os opostos, que constituem os aspectos manifestáveis da sua criação e do seu fim último, que são a Norma Fundamental. A LEI DA HARMONIA: Como já dantes dito, a Harmonia se confunde com a Norma Fundamental, sendo um dos seus principais atributos e impera também como um dos escopos do Direito, que nada mais é do que a ferramenta utilizada para preservar esta Harmonia, e que se vale da Justiça quando é preciso restabelecê-la. Num aspecto mais profundo afirmamos que, quando qualquer fato rompe essa Harmonia, tal rompimento é apenas aparente, porque, propriamente, rompe a Harmonia de um conjunto, para integrar-se na Harmonia de outro, sendo que ambos os conjuntos são manifestações da Norma Fundamental. Mas a lei da Harmonia que rege o universo jurídico, proclama que as funções subsidiárias das normas menores componentes, são ordenadas no conjunto das oposições que funcionam obedientes a uma norma maior, que é dada pela totalidade da Norma Fundamental. Sendo as normas menores finitas, vigendo dentro de um determinado tempo e de um determinado espaço, há entre elas graus de ser, e graus de Harmonia e também a própria desarmonia, que se dá quando há a quebra ou a deficiência da norma principal, pela ação contrária das funções subsidiárias. A Harmonia, implica assim, numa espécie de assentamento de camadas que gera uma certa desarmonia entre as normas menores, as quais entram em atrito e passam a integrar novas e distintas harmoRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 118 nias dentro de uma mesma totalidade que é a Norma Fundamental. A LEI DA MUTALIBILIDADE: A Norma Fundamental como toda unidade, é o produto de uma reunião de pólos opostos, que em seus relacionamentos interagem-se realizando uma forma de conduta natural, que dá a norma para as funções subsidiárias dos elementos componentes, que tendem a novas formas de conduta ou formas normativas que evoluem. O que uma norma ou um sistema de normas são, atualmente, em sua forma, não é tudo quanto esta norma ou este sistema de normas são na sua virtualidade. Por exemplo, uma Constituição, este conjunto de normas tipificados em leis, não é como Constituição tudo quanto é, pois há em seu bojo disposições prévias para ser de outras formas, que não a desta determinada Constituição vigente em determinado território e durante um determinado espaço de tempo. Cumprida a sua função, esgotadas as suas possibilidades que estão constituídas no seu processo, por dessuetude intrínseca ou por fatores extrínsecos, as leis que a compõem serão decodificadas para mais tarde formarem uma nova Constituição(por meio de recepção), o que caracteriza uma evolução ou uma mutação, dentro dos moldes do devir de Hegel. A LEI DA EVOLUÇÃO SUPERIOR: Tendo como patamar a base estabelecida pela lei da mutabilidade, esta lei é alcançada por um novo equilíbrio acima da anterior. Seria o que poderíamos chamar de uma supra-norma, pois todos os direitos aspiram para atingir ao supremo direito, totalmente perfeito e justo que é a mais pura manifestação da Norma Fundamental, estando a ela, está integrado. A LEI DA INTEGRAÇÃO: Podemos considerá-la como a lei de hipostasiação da Norma Fundamental, através da qual todas as outras normas e sistemas de normas se integram na ordem cósmica ou em Têmis, por sua trajetória teleológica rumo ao Supremo Direito. Essa é também a lei da participação onde todas as normas com seu inerente poder e valor formam parte da própria Norma Fundamental que é, em última análise, uma unidade de simplicidade, pois as normas que dela dimanam e que simultaneamente a compõem não estão separadas umas das outras porque têm a mesma fonte ou origem coRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 119 mum, interligando-se assim, e objetivando o mesmo escopo que nada mais é que o retorno à origem, à Norma Fundamental. A LEI DA SÍNTESE: Sendo dentro do universo jurídico, não só a fonte, mas também a síntese ou unidade, a Norma Fundamental, geradora de todas as normas e sistemas de normas é em si a própria lei da síntese. A NORMA FUNDAMENTAL COMO IDÉIA Não poderíamos, nesta nossa viagem histórica, deixar de nos determos na filosofia platônica, que através de seus métodos pode nos dar uma visão mais simplificada do que seja a Norma Fundamental, tão bem quanto o seu papel, na vasta seara jurídica. Platão partiu do método socrático103 , que restabelecera para a ciência o seu valor de verdade objetiva, mediante a elaboração indutiva de conceitos, cujas características são a universalidade, a necessidade, a imutabilidade e a eternidade, tendo como ponto de partida a tentativa de estabelecer o elo de ligação ou o Demiurgo entre os conceitos e a realidade. Pois bem, é esta a grande oportunidade de trazermos para o mundo prático, a nossa Norma Fundamental que ainda jaz no mundo idealístico. Se a Norma Fundamental é um conceito, este já é o primeiro passo para que ela deixe de ser hipotética, fictícia ou até mesmo inexistente, pois se já é provida de um conceito, ela é alguma coisa. Acreditamos que até este ponto do nosso trabalho, não deixamos dúvidas de que a Norma Fundamental é universal existindo onipresentemente, em todos os momentos do Direito, desde os primeiros lampejos de instintos e condutas egóisticas até os mais elaborados sistemas de normas; portanto podemos atribuir à Norma Fundamental a característica da universalidade. Quanto à necessidade, não há dúvidas de que a Norma Fundamental é um elemento imprescindível dentro do Direito e da própria organização natural, pois basta que nos reportemos à sua gênese e denotaremos que existe nela uma razão de ser e uma fonte donde partem 103 COELHO, Luis Fernando. Introdução Histórica à Filosofia do Direito. Rio de Janeiro, Forense. 1977 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 120 todos os instintos, condutas e morais, tão bem como já foi dantes afirmado. Existe um fim maior para o Direito, que é a mantença da Ordem e da Harmonia que são atributos da Norma Fundamental. Assim sendo, como se parte da Norma Fundamental e a ela se retorna, não há como negarmos a necessidade da sua existência. A Norma Fundamental vibra incursionando no mundo dos fatos e inspirando condutas e direitos, que conduzem o homem para uma integração total com a Ordem Cósmica, destarte, podemos afirmar que ela não muda jamais, mas apenas manifesta-se através de facetas que nada mais são do que todas as searas do Direito até então conhecidas; portanto, está claro que, outra característica da Norma Fundamental é a imutabilidade, tal qual a energia elétrica que se manifesta das mais variadas formas sem nunca deixar de ser a mesma energia. A Norma Fundamental antes de estar presente em todos os recônditos das relações humanas, ela é. Seria uma visão conformista e obtusa se admitíssemos que a Norma Fundamental tem a sua gênese nas teorias dos juristas de todos os tempos. Pelo contrário, estes mesmos juristas têm sempre que dela partir e no final, a ela vão alcançar, pois a Norma Fundamental reside justamente onde lhes faltam as respostas. Assim também não há como deixar de lha atribuir a característica da eternidade. Consideremos, agora, que o mundo, onde a Norma Fundamental age, através das mais variadas formas de direitos, é um mundo individual, contingente e transitório, assim, se a verdade da Ciência do Direito é objetiva, isto é, se o conhecimento corresponde à realidade, deve existir “outro mundo”, dotado de características idênticas aos conceitos. Desta forma a Norma Fundamental faria parte do mundo das idéias ou formas, que é o ponto onde deixamos de nos preocupar com o Direito Histórico, contingente e com a realidade humana e social que se fenomeniza na história, para nos ocuparmos com o Direito ideal, isto é, a idéia hipostosiada de que os direitos praticados em todos os sistemas de normas, até então conhecidos não, passam de sombras ou reflexos do Supremo Direito que a Norma Fundamental Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 121 inspira, para que por fim o homem social funda-se à sua ordem e com ela interaja. Neste ponto, mister se faz que nos reportemos ao Mito da Caverna104 onde através de uma fábula nos é retratada esta realidade. O homem que vive na escuridão e se volta para a luz que sempre buscou; isto nada mais representa, na seara jurídica, a busca pela sociedade perfeita, que um dia, não mais carecerá de Direito e Justiça. E é esta realidade perfeita que a Norma Fundamental inspira, pois em uma sociedade, onde não mais se precisa de Direito ou Justiça, claro está que os seus elementos estão em perfeita Harmonia com a natureza, Harmonia e Ordem propostas pela Norma Fundamental.Por fim, concluímos esta parte com a teoria do Direito Natural de Platão105 , a qual nada mais é do que uma definição muito própria para a Norma Fundamental, pois Platão lhe dá fundamento metafísico e a Justiça é considerada como idéia eterna, tal qual a Norma Fundamental; assim, o Direito Natural é interpretado de maneira universalista, como Harmonia de um todo, onde cada indivíduo e cada classe devem cumprir uma tarefa diferenciada (tal qual os “dentes da engrenagem” por nós mencionada). O Direito Natural, é pois, a ordem jurídica do Estado Ideal, implicando a identificação entre o Direito e a Moral; entretanto, essa concepção metafísica acarreta a atribuição ao Direito Natural da condição de critério para a crítica do Direito Positivo e também de fundamento apriorístico deste, condição esta que em nosso trabalho só poderia ser atribuída à Norma Fundamental, pois a admitimos como precursora do Direito Natural, inspirando-o e este então, a posteriori, engendrando e fundamentando o Direito Positivo. Ainda dentro do platonismo podemos, trazendo este conceito para a realidade jurídica, definir a Norma Fundamental como Demiurgo ou força criativa que origina e outorga poder a todas as demais normas existentes, sendo o próprio elo de ligação entre o mundo fenomênico e o mundo das idéias, por através de Diké, importar do último para o primeiro a inspiração legada por Têmis. 104 105 PLATÃO. A República. 6ª ed. Atenas. 1956 p. 287-291. PLATÃO. A República. 6ª ed. Atenas 1956. P. 462 I.V,X. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 122 A NORMA RACIONAL Continuando com a nossa viagem através da história, não poderíamos deixar de nos deter na efervescente cultura romana e observar como, com o seu modo prático de agir, eles admitiram a premissa maior de toda a sua elaborada construção jurídica. É bem verdade que, no campo de construções sistemáticas, a contribuição romana é pequena e singela, tendo em vista a magnitude e a profundidade do pensamento grego. Os romanos, materialistas que eram, simplesmente se apossaram de todo o direito pensado pelos gregos, organizaram-no e tipificaramno para que este viesse a solucionar os seus problemas do dia-a-dia. Por um lado, esta contribuição é valiosa porque embasa o Direito Ocidental hodierno, por outro, ela está destituída pelo ideal de Harmonia entre o homem e a natureza, tão almejado pelos gregos. Por isso, nada mais justo, tal como veremos mais adiante, do que atribuir aos gregos a gênese do Direito Ocidental, tendo os romanos como aperfeiçoadores do mesmo. Ao contrário do que acontece hoje, quando os juristas e filósofos não conseguem proclamar um único e comum Direito Natural, mas vários Direitos Naturais, diversos e contraditórios entre si (levando em conta propriedades individuais ou coletivas), os romanos, talvez pelo seu embasamento pseudo-estóico o fizeram. O Direito Natural era concebido então como a própria Natureza, ou mesmo como as grandes leis que a regem com valores de princípio universal. Diante deste Direito Natural, preconizado, principalmente por Ulpiano106 , homens e animais, se tornaram comuns e neste patamar iguais. É essa a idéia de que todos os seres vivos estão sujeitos a uma Lei, logos, ratio ou pnêuma, que pode muito bem ser interpretada como aquilo que nós, neste trabalho, chamamos de Norma Fundamental Única, pois não deixa de ser uma premissa maior, também aos moldes kelsenianos. 106 DIGESTO, I, 1-3 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 123 O acima descrito não significa que Ulpiano e os outros jurisconsultos reconhecessem a existência de um Direito para os animais, porém, somente que a idéia do Direito Natural é inerente à idéia de Ordem que governa todas as criaturas, tida para nós como Norma Fundamental Única. Corroborando o estoicismo de Ulpiano e combinando-o com o socratismo, Cícero107 procurou restabelecer a convicção de uma fundamentação absoluta para o Direito e a Justiça, consubstanciando esta lei na razão e fundamentando o Jus Naturale, do Jus Gentium e do Jus Civile, não havendo, portanto, oposição entre estas três expressões do Jus, pois cada uma delas correspondem a nuanças ou determinações graduais do mesmo princípio, a recta ractio108 , ou, a centelha que desperta a consciência, ou razão, responsável pela gênese do discernimento moral, para nós, como já dantes visto, a Norma Fundamental Única. É a própria asserção de Cícero no seu De República que corrobora o nosso discurso e assevera, indiretamente, a propriedade de Hans Kelsen e diretamente a nossa, ao elencar a Norma Fundamental como a premissa maior: “Existe uma verdadeira lei, a reta razão, conforme a natureza, difusa em todos, imutável e sempiterna”. Concluindo então esta breve passagem pela glória romana, podemos, seguramente, afirmar que aquilo que Ulpiano admitiu como um Direito Natural comum a todas as criaturas, é em essência uma nuança da Norma Fundamental, que abrange todo o contexto preexistente aos sistemas normativos humanos. Assim, concluímos que a Norma Fundamental Única inspira e permeia este Direito Natural, a principio como o próprio instinto e posteriormente, já no campo da consciência, vai revesti-lo de razão adquirindo a característica da recta ratio que enfim, inspira o homem na criação da sua própria Moral e faz com que ele deixe de agir instintivamente. Isto nos reporta ao famoso elo perdido, momento em que a centelha da razão brilha no ser fazendo com que ele deixe de ser animal para tornar-se um ser hominal. 107 CÍCERO, De República, III, 2 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito, trad. De Antônio José Brandão Coimbra. A. Amado, 1959. 108 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 124 Dentro da estrutura jurídica romana, esta Moral acima citada é a que vai, depois de uma escalada de caráter aperfeiçoador, gerar a célebre ubicação dos direitos consagrada pela Jurisprudência romana: Jus Naturale (já revestido de um caráter essencialmente humano), Jus Gentium e Jus Civili. E isto nada mais é que uma representação da refração da Norma Fundamental, tida aqui, como Direito Natural comum a todas as criaturas, em grandes sistemas de normas, que revestidos de razão pela própria Norma Fundamental admitida como recta ractio, originam o Jus Gentium, o Direito comum a todos os homens e o Jus Civile, o Direito voltado para os homens já paramentados de cidadãos. Com a subdivisão acima denotada pode-se detectar claramente um dos momentos históricos em que mais evidente se faz o instante em que a Norma Fundamental assume o seu aspecto mecânico, transformando-se, numa das suas vertentes em razão e, posteriormente assumindo o seu aspecto dinâmico, quando inspira sistemas de normas tais como a Jus Gentium e o Jus Civile. É também a partir de Roma, que mais claramente, a Norma Fundamental passa a ser compreendida de duas formas, uma filosóficareligiosa, quando admitida como Direito Natural, inerente a todas as criaturas; e outra racional e científica, quando evocada para convalidar Direitos Positivos que têm a sua eficácia comprovada pela prática. Esta Norma Fundamental Racional é limitada, até se fundir com a Norma Fundamental Única, que não é observada pela maioria dos positivistas que nunca atravessam as fronteiras do empírico e atualmente atribuem o seu embasamento a Hans Kelsen, que, ao contrário, como temos visto, referiu-se, mesmo que indiretamente, a algo muito mais amplo que somente os aspectos racional e dinâmico da Norma Fundamental. A partir de Roma e com o advento do cristianismo, a compreensão da Norma Fundamental passará a se dar sob três aspectos distintos, relacionados ao tripé ciência, filosofia e religião; aspectos estes que vão dividir o pensamento jurídico ocidental, tornando-o ineficiente na compreensão global dos fatos, pois sem a união e interligação dos aspectos acima citados, torna-se impossível percorrer o caminho de Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 125 descida entre o mundo das idéias e o mundo do fenômeno, entre o abstrato e o concreto. Destarte, eis também aí, o momento em que o Direito Ocidental perde o seu fio da meada assumindo três linhas de pensamento distintas e incompletas, pois cada qual carece das outras para se fazer entender plenamente. Outro aspecto muito mais sutil, no que diz respeito à compreensão da Norma Fundamental é o conflito que vai surgir entre o racional e o intuitivo. O primeiro limita-se a tudo aquilo que a mente jurídica compreende e explica tendo como plausível, refutando qualquer asserção do intuitivo ou mesmo emocional. Algo como: “Posso sentir ou intuir a Presença da Norma Fundamental mas não posso explicá-la lógica ou racionalmente, portanto ela não existe”. Neste momento os cientistas jurídicos parecem desconhecer que todo o arcabouço jurídico surgiu do pensamento inspirado pela Norma Fundamental, que nada mais é que a intuição a qual podemos seguramente admitir como atributo da mesma. A NORMA DIVINA Na Idade Média, a Norma Fundamental deságua em três vertentes de convalidação do Direito. A primeira é a baseada na razão, admitindo então o Direito como ciência e tornando-o falho e limitado. A Segunda convalida o Direito como religião, tornando-o dogmático. A terceira convalida o Direito como filosofia, tornando-o teórico e abstrato. Por se tratarem de vertentes da mesma Norma Fundamental, as três precisam de interação e isso não acontece tornando frágeis as bases dos estudos jurídicos e da sua conseqüente aplicação. Certamente, um dos pivôs desta separação foi o catolicismo que com a Teologia veio ofuscar a pura Filosofia, tida como pagã e a ciência, mais tarde, tomada como bruxaria. As bases, os alicerces e a lógica da argumentação humana, tão bem como a comprovação científica não foram páreo para as verdades eternas da Teologia, que combatiam a disseminação do conhecimento por ser este obra de Satanás a corromper os fiéis, mantendo assim ignorantes os crentes através do medo. Numa primeira pincelada, podemos encontrar neste momento Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 126 histórico a Norma Fundamental personificada por um Deus temperamental, vingativo e tirano. Um Deus que criou o homem sem saber ou não se ele queria ser criado. Um Deus que criou as normas de conduta que devem ser cumpridas ante a ameaça de castigos terríveis e do fogo do inferno. Um Deus que faz e desfaz sem dar maiores explicações estando escudado por uma porção de dogmas. Um Deus passional, seletivo e injusto que “escolhe” os melhores dentre os seus filhos. Um Deus que desvirtua a Norma Fundamental violando três dos seus principais atributos, a equanimidade, a harmonia e a justiça. Certamente que estamos falando do Deus “pintado” pela Igreja Católica Medieval. Percebendo essa disparidade, Santo Agostinho, tal como Platão, estabelece duas cidades ou mundos, a Civitas Dei e a Civitas Diaboli109 , correspondendo a primeira à Igreja ao mundo das almas perfeitas e sem pecado, similar ao mundo das idéias de Platão, e a segunda, ao mundo dos homens, o estado pagão que deve colocar o seu poder a serviço de Deus (leia-se Papado), similar ao mundo do fenômeno de Platão. Esta é a idéia central da Patrística. Talvez por ter levado uma vida pagã antes de se converter, Santo Agostinho teve uma visão mais ampla da interação existente entre o homem e a natureza e propôs assim a união entre as duas cidades (Civitas Dei e Civitas Diaboli), a qual caracterizaria rearmonização entre o homem e a natureza, restituindo então à Norma Fundamental o seu atributo de Harmonia. Com muita propriedade, Santo Agostinho estabelece uma Lex Aeterna e atribui a esta a ordem, definida no De Civitate DeiI, 19/13 como “a disposição de coisas iguais e desiguais, dando a cada uma o lugar que lhe corresponde”. E também estabelece a Justiça, que tal como Cícero define no De Finibus 5, 23, 67: é “a tendência da alma de dar a cada um o que é seu”. Quando Santo Agostinho fala em tendência da alma, imediatamente nos reportamos à intuição que é inspirada pela Norma Fundamental e que fala para o homem através de um animus, energia ou 109 AUGUSTINE. De civitate Dei. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 127 suposta alma. É esta aquela centelha inspiradora da qual falamos no início desta obra, é a presença ou extensão da Norma Fundamental Única dentro de cada ser humano. Indubitavelmente, pode-se aqui, tomar a ordem como Harmonia e Equanimidade e juntá-la com a Justiça para que obtenhamos a versão agostiniana da Norma Fundamental. Mesmo assim o próprio Santo Agostinho, dentro da sua discursiva, não consegue encontrar uma Justiça absoluta e perfeita, tal como deve ser admitida a Norma Fundamental, concluindo que esta Justiça só existirá se houver seres desiguais e coisas desiguais, o que nos leva, por outro lado, a concluir que se um dia houver igualdade e total Harmonia entre os seres, não haverá mais a necessidade de Justiça. Agostinho toma a Justiça como Eqüidade, e a eqüidade implica em certa igualdade que não existe na Civita Diaboli, mas sim somente uma eqüidade que é tomada como dar a cada um o que é seu o que implica numa certa distinção das coisas. Ora, como tal distinção não se alcança se todas as coisas forem iguais, daí conclui-se que a Justiça não seja possível sem uma certa disparidade e dessemelhança que se observa nas coisas110 . Assim, conclui-se que a Justiça, seguindo este caminho será, sempre, relativa e sua forma de virtude absoluta se encontra somente na Norma Fundamental Única. Seguindo a esteira deixada por Santo Agostinho, oito séculos depois, São Tomás de Aquino procura, através da Escolástica reunir num só arcabouço a razão ou ciência, a filosofia e a religião que mais do que nunca busca a razão. São Tomás corrobora também os preceitos de Santo Agostinho e da própria Norma Fundamental por nós proposta, quando assevera que “nada há no intelecto que não tenha estado nos sentidos”111 . Pois anterior à razão é a intuição que é uma inspiração ou manifestação da Norma Fundamental. São Tomás é bem claro quando expressa a existência de três espécies de Leis, que podem ser claramente denotadas como verten110 111 AUGUSTINE. De Quantitate animal, 9/15 THOMÁS AQUINAS. Suma Teológica, II Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 128 tes da Norma Fundamental estribadas no tripé Ciência, Filosofia e Religião. São elas: a Lex Aeterna, admitida como sendo de natureza divina e conhecida parcialmente pelo homem mediante as suas manifestações através do Direito Natural; a Lex Naturalis, conhecida pelo homem através da razão, o que representa uma tentativa de compreensão do Direito Natural e por fim da Norma Fundamental; e a Lex Humana, criada pelo próprio homem estruturando os mais variados sistemas de Direitos Positivos. Olhando-se por um outro prisma, pode-se também chegar à seguinte conclusão: Lex Aeterna , aspecto estático; Lex Naturalis, aspecto mecânico e Lex Humana, aspecto dinâmico da Norma Fundamental. Tendo em vista que estes três momentos da Norma Fundamental dependem um do outro, torna-se evidente a impossibilidade de conciliação e de retorno à Norma Fundamental, posto que os três momentos ou Leis entram em conflito, principalmente entre a Lei Humana, a Lei Eterna, pois a obediência à primeira não pode entrar em choque com a Segunda, tornando-a um dogmatismo. Quem deveria conciliá-las é a Lei Natural, mas não o faz por ser mal compreendida pelo homem. Poder-se-ia admitir a hipótese de se considerar a Norma Fundamental como sendo a própria Lex Aeterna, mas deste modo estaríamos dogmatizando-a. Sabiamente, baseado em Aristóteles e numa tentativa derradeira de conciliamento através dos Universais, São Tomás propõe que de certa forma, a Norma Fundamental inspira cada indivíduo de maneira diferente, fazendo de cada qual um microcosmo a parte, e que isto deve ser compreendido pelos preceitos da Lex Naturalis para que a Lex Humana reconheça essa individuação na prática e torne a convivência harmônica, o que não acontece. Estas diferenças se alargam ainda mais, quando Dante Alighieri separa de vez o Estado da Igreja no seu De Monarchia. Assim, a ciência e a religião tornam-se antíteses e a filosofia, torna-se marginalizada. Diante do acima exposto, conclui-se que na Idade Média a Norma Fundamental se personificou num Deus criador de uma Lei EterRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 129 na, não deixando de perder a sua definição kelseniana de premissa maior e fundamento de validade de uma ordem jurídica, mesmo não sendo isto admitido dentro de uma visão totalmente positivista. A NORMA COMO “COISA EM SI” Através do que temos discorrido até então, podemos perceber que os Sistemas de Normas, aos quais, hoje, chamamos de Direitos Positivos, derivam de um vasto conjunto de normas naturais e morais que, por sua vez, derivam de uma Lei irrestrita. O homem, que através da sua noção imperfeita do Justo cria o Legal, também é parte desta normativa irrestrita, derivada desta Norma Maior que, justamente, inspira aquilo que é legal, numa tentativa de aproximá-lo do Justo, que ainda foge da sua compreensão, devido às suas diferenças, diversos pontos de vista e variadas maneiras de entender a seidade do Justo, que acaba por se tornar relativo. Isto nos leva a concluir que estamos tratando de um universo normativo múltiplo e ao mesmo tempo uno, onde a lei maior e anterior a todas as outras, fundamentando-as e convalidando-as, é o que comungando com o termo empregado por Hans Kelsen, chamamos de Norma Fundamental. Em bem observando estas assertivas e conclusões, iremos perceber que entre o múltiplo e o uno existe uma relação de uma norma para muitas normas e vice-versa. Nesta visão de norma para norma e de norma para múltiplas normas, percebemos que o plano geral desse desenvolvimento necessita de uma norma superior, por nós chamada de Norma Fundamental. Mas que norma é essa, já que passamos por uma porção de seus aspectos, atributos e características, sem ainda chegar à sua unidade? Seria ela a Mônada Pitagórica? A Recta Ratio romana ou a Lei Aeterna dos tomistas? Ou todas elas são manifestações da Norma Fundamental? Para respondermos a essa pergunta, indo diretamente à Norma em si, valemo-nos de todo o constructo kantiano que de uma maneira mais objetiva e independente de muitas analogias, leva-nos ao limiar de uma fronteira gnoseológica. Através do glossário kantiano podemos começar a classificar Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 130 a Norma Fundamental, independentemente, dos seus atributos, aspectos e manifestações, tomando-a como pura, o que, na terminologia kantiana é aquilo que independente da experiência, sendo a experiência a percepção sensível. Ora, a Norma Fundamental não pode ser experimentada por sensações ou comprovada pela prática. Ela não é empírica e sua constatação pode se dar de uma maneira muito mais sutil e imperceptível aos cinco sentidos, sendo que ela pode ser sentida como uma inspiração ou uma intuição; assim a Norma Fundamental torna-se o objeto de estudo de uma estética transcendental, ou seja, “a percepção sensível daquilo que existe em si e por si, de modo absoluto, independente de mim”112 e de qualquer outro fator, pois qualquer que seja o modo de como um conhecimento possa relacionar-se com os objetos, aquele em que essa relação é imediata e que serve de meio a todo pensamento, chama-se intuição. Mas esta intuição não tem lugar senão sob a condição de nos ser dado o sujeito, e isto só é possível, para o homem, modificando o seu estado de espírito, de certa maneira. Quando falamos em mudança de estado de espírito, nos referimos a uma abertura mental e perceptiva, um pouco maior, e que abranja não só aquilo captado pela razão, mas também o que é captado pela emoção que recebe representação dos sujeitos, segundo a maneira como eles nos afetam, denominado-se sensibilidade. Os sujeitos e os objetos de estudo nos são dados mediante a sensibilidade e somente ela é que nos fornece intuições; mas é pelo entendimento que elas são pensadas, sendo que dele surgem os conceitos. Concluindo, há então uma escala axiológica para a compreensão daquilo que é transcendental, tal qual a Norma Fundamental, e ela inicia, num primeiro e principal momento na intuição, passando depois pela sensibilidade e por último pelo crivo da razão, para que possa então ser emitido um conceito. Evidentemente que esta intuição não é empírica, pois a Norma Fundamental não nos afeta através de sensações e portanto ela não é um fenômeno, já que não pode ser percebida pelos sentidos, mas sim noumeno a coisa em si, subsistindo em si mesma. 112 MEREGE, J. Rodrigues de, (Trad.). Kant, Crítica da razão pura. Rio de Janeiro. Ediouro. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 131 De acordo com os preceitos da estética transcendental113 , a Norma Fundamental existe em si e por si, independente de mim e do conhecimento do mundo externo, sendo ela um dado obtido pela experiência do espírito. É portanto um objeto da intuição mediante as duas formas necessárias dessa intuição que são inerentes ao nosso espírito, sendo suas características ou até modos de manifestação. Estas formas são o tempo e o espaço, que segundo a concepção kantiana não existem na realidade externa, pois são forma do espírito humano, porque tudo o que existe, existe no espaço e se o espaço fosse uma realidade ele poderia existir nele próprio, o que não acontece. Por outro lado, tudo quanto se passa, existe no tempo e o tempo não pode ser concebido como existindo nele próprio, a não ser como frações de tempo. Logo, espaço e tempo não existem no mundo externo, porque são formas do nosso espírito, necessárias para que possamos receber dados da sensibilidade, conformando-os com as duas formas que já estão no nosso espírito. A Norma Fundamental, como já foi dito em linhas anteriores é atemporal e aespacial, ou seja não está contida nem no tempo e no espaço, pois independe de ambos, mas é através deles que se explica, pois sendo coisa em si, tal como o tempo ela não pode existir em si mesma, a não ser frações dela como as normas fundamentais menores que fundamentam a validade de sistemas de normas, tal como uma massa de espuma, que seria a Norma Fundamental, contendo em si milhões de bolhas que seriam as normas fundamentais menores fundamentando a validade destes sistemas de normas, também bolhas; reportando-nos novamente à idéia de um universo normativo uno e múltiplo, onde existe a relação da Norma Fundamental para com todas as outras normas menores. Desta forma, a Norma Fundamental é noumeno, mas que não se apresenta para nós através do fenômeno, a intuição dos objetivos exteriores e a que o espírito tem de si mesmo, representada nas formas do espaço e do tempo, justamente pelo fato de a Norma Fundamental não poder ser representada no tempo e no espaço, sendo uma 113 BENTON, William. Kant. Chicago: University of Chicago, 1984. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 132 grandeza do mesmo quilate. Seria então a Norma Fundamental um juízo sintético a priori? Juízo, na terminologia kantiana é o ato mental pelo qual se afirma ou se nega algo de algo. Seria tal como uma opinião verdadeira ou falsa. Para que seja sintético, ele necessita de um atributo ou predicado que acrescente algo à compreensão do sujeito, diferente do juízo analítico, que prescinde da experiência, sendo independente dela ou a priori. A pergunta então seria, como podemos atribuir à Norma Fundamental predicados tais como a Verdade, a Justiça, a Harmonia, etc.? Através de qual experiência chegamos a estas conclusões? Ou seriam elas inatismos, idéias e princípios independentes da experiência, que já pertencem à natureza das criaturas e que as intuem à busca da Verdade, da Justiça, da Harmonia etc.; e que constituem-se como atributos da Norma Fundamental? Sendo a Norma Fundamental a formulação de um juízo sintético desvinculado da experiência, é então possível a existência de todo o arcabouço jurídico. Ao contrário, se impossível for tal formulação, é impossível também a existência mesma do que chamamos de Direito. Daí, conclui-se que a Norma Fundamental, é transcendental e é coisa em si, mas não pode ser percebida através do tempo e do espaço, sendo ela mesma uma forma do espírito humano. A Norma Fundamental não está em nenhum outro lugar, mas em nós mesmos, tal como um beep que nos direciona ao encontro da nossa própria moral superior, ou mesmo uma força que nos impele a atingir um estágio de consciência moral cada vez maior. A NORMA DIALÉTICA E A SUA RESPIRAÇÃO As bases do pensamento dialético se perdem nos tempos, pois que todo o processo de qualquer produção filosófica ou teórica está baseado, de certa forma, na Dialética. Temos no oriente, como seu precursor Lao-Tse e mais tarde na Grécia, vamos encontrar em Heráclito de Éfeso a afirmação do devir como essência das coisas, o que acarreta numa das principais contribuições dos juniores da escola Jônica para as construções filosóficas futuras. Heráclito preocupou-se em descobrir o elemento básico do universo e conciliá-lo com o princípio Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 133 da mutabilidade do ser. Assim, é possível, já de antemão, concluir que assim como em tudo, o ser humano é mutável também no seu modo de pensar e no seu comportamento, derivado de uma moral também mutável por excelência. Admitindo-se então a existência de um elemento básico que seja responsável por essa mutação; a essência pois que donde todas as diversas morais se originam, a centelha que as faz serem expressas no mundo exterior com maior ou menor intensidade. Eis mais uma vez a presença da Norma Fundamental como o ponto de partida, pois este logos de Heráclito tem sentido de proporção, lei ou princípio de medida e ordem que engendra a Harmonia das forças em oposição. Com esta visão, Heráclito inaugurou uma concepção bastante fecunda, ligando as noções de racionalidade, vida, ordem e equilíbrio ao princípio único do ser em perpétua mutação. O que são a Ordem e o Equilíbrio senão atributos da Norma Fundamental que os inspira ou intui através da racionalidade. Na escola Eleática essa visão, de certa forma, é corroborada por Parmênides que admite a essência do ser como idéia, o que para nós não deixa de ser também o berço da Moral, pois é através da idéia pensada que surgem as inclinações para isto ou aquilo, o que nada mais são do que atitudes morais. Estas inclinações são inspiradas pela Norma Fundamental através da idéia. Podemos parecer estar sendo por demais abrangentes ou mesmo abstratos, mas é realmente este o caminho que devemos tomar, pois desde o princípio desta obra temos afirmado que a Norma Fundamental inspira o agir que gera então o devir, que promove o confronto dos diversos agires mediante uma argumentação racional. Segundo Armstrong114 , a lógica de Parmênides constitui o ponto de partida da dialética platônica, da lógica aristotélica e de toda a tradição ocidental em matéria de raciocínio filosófico, tradição esta que temos seguido até então. A doutrina de Parmênides foi confirmada por seu discípulo Zenão de Eléia a quem se atribui hoje a paternidade da sofística, que não deixa de ser uma forma de dialética que sempre nos levará, ao fim das contradições e indagações a um princípio 114 AMSTRONG, A. H. Introducción a la Filosofia Antígua. Trad. De Carlos A. Fayard, Buenos Aires. Eudeba, 1968 p.17 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 134 intransponível, que para as ciências jurídicas é a Norma Fundamental. Dois mil e trezentos anos depois, com a sua Fenomenologia do 115 Espírito , Georg Wilhelm Friederich Hegel, mostra-nos a dialética interna do espírito até chegar ao começo do filosofar, o que para nós é de fundamental importância como indicativo de algo que incita essa dialética interna, fazendo-a produzir efeitos tais como o pensar e a própria Moral. Este pensar difere do conhecer que nada mais é que ver o que as coisas são, já que o pensar é um momento inicial, denominado anteriormente por Kant como conhecimento transcendental. A lógica de Hegel é uma dialética do ser, o que naturalmente evolui para uma dialética do agir, um logos do ente estruturado num constructo ternário composto por três momentos distintos, dinâmicos e sucessíveis: a tese, a antítese e a síntese; encontrando cada fase a sua verdade na seguinte e tornando-se afinal uma síntese que volta a ser o ponto de partida, ou seja, uma tese ou idéia é proposta até que para ela surja uma idéia contrária, uma antítese. Há então o conflito das duas até que venham a gerar uma síntese, que passa automaticamente a ser uma nova tese para a qual então surgirá uma antítese, e assim sucessivamente e infinitamente. No que se refere ao Direito e à nossa temática, este constructo não é diferente, pois a Norma Fundamental, através da razão, engendra a Moral, que ao ser exteriorizada e conformada aos padrões sociais então vigentes, transforma-se em Ética, ou seja, a moral intrínseca. Estes padrões sociais podem ser representados pela Política, a moral extrínseca. Quando então surge um conflito entre a Ética e a Política, ou seja, entre o indivíduo e a sua sociedade representada por um sistema normativo; é invocada então a Justiça para resolver esse conflito, ou seja, extrair a sua síntese a qual, devido à constante mutação dos costumes e dos sistemas de normas, não demorará para se transformar em tese em relação à um novo paradigma normativo. Corroborando ainda com os primeiros momentos deste nosso trabalho, a relação dialética ainda nos mostra claramente os três aspectos da Norma Fundamental, à medida em que ela se fragmenta no 115 BENTON, William. Hegel. Chicago: University of Chicago, 1984 v. 46 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 135 mundo dos fatos. Por si, a Norma Fundamental é o aspecto estático, em seguida, ao permear a razão e engendrar a Moral, ela se encontra já no seu aspecto mecânico. Finalmente, quando a Moral gera intrinsecamente a Ética e extrinsecamente a Política, atingimos então o patamar do aspecto dinâmico que se perpetua ante os conflitos, entre éticas e políticas e as soluções temporárias da justiça racional e positivista. É uma característica da filosofia hegeliana o estudo dos princípios básicos do Direito, investigando primeiro a lei decorrente da Moral e finalmente a Ética, no âmbito da qual Hegel descreve o Estado como realização culminante do Todo e como concretização da Ética na sociedade, em detrimento da Política. Tais conceitos são considerados por Hegel não abstratamente, mas sim dialeticamente em desenvolvimento, pois do seu ponto de vista, assim como do nosso, progredimos do Direito Abstrato116 para o Estado Concreto. Lei, Estado e Ética são expressões de um desenvolvimento histórico, o qual é a manifestação de um espírito ou norma natural racional; e esses espíritos ou normas naturais nacionais, em sua integridade, constituem manifestações do espírito universal tido para nós como Norma Fundamental. Por isto, os Estados finitos, tal como são tratados no Direito Privado, são contínuas aproximações em relação a um Estado desejável, cada vez mais harmônico com aquela perfectibilidade que a Norma Fundamental nos inspira a galgar, pois como disse o próprio Hegel sentenciando o senso comum: “Le plus grand ennemi du Bien c’est le Meilleur”117 . O Estado concebido por Hegel está fundamentado em três aspectos que emanam e fluem da e para a Norma Fundamental. O primeiro aspecto da sua idéia de Estado, tem realidade imediata na Constituição, ou o que Hegel designa por lei interior do Estado, para nós a lei nacional positivada. O segundo aspecto modela a relação entre Estados no Direito Internacional, e a isto chama Hegel de lei exterior dos Estados. O terceiro aspecto, é a idéia geral como espírito que se realiza no processo da história mundial. Por essas noções, o 116 117 FRIEDERICH, Carl J. Perspectiva Histórica da Filosofia do Direito. Zohar. Rio de Janeiro. 1963 The Philosofy of Hegel, ed. Friederich. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 136 Estado é não só visto como um todo modelado pelo Direito, mas é colocado num contexto cósmico de significado universal. A idéia legal do Estado constitui assim o poder espiritual que está legitimado por uma ordem superior do ser, a que chamamos de Norma Fundamental, que é o juiz absoluto, e todas as tentativas para formar uma corte supernacional estão , como uma paz duradoura, voltadas a ser apenas relativas e limitadas. Afirma Hegel que: “O único juiz absoluto, que sempre predomina e é contra todas as particularidades, é o espírito que está em si e por si mesmo e que se apresenta como o operador eficiente e geral da história universal”118. Esta seria então uma definição de Hegel para aquilo que chamamos de Norma Fundamental, e com ela Hegel dissolve todas as outras normas menores e vínculos fixos, e tudo aquilo que parecia tão seguro e legalmente ordenado se torna fluido, somente orientado para a possibilidade do êxito harmônico e perfectível, sendo sempre julgado a sua luz. É este um tapa de luvas na soberba dos racionais, agnósticos, materialistas, cépticos e positivistas que pretendem ser o homem o autor de uma harmonia e encadeamento de leis, que ele sequer entende na totalidade. O Estado como ordem jurídica do povo, é animado por este espírito que se designa espírito universal ou Norma Fundamental e ingressou inspirando na fase da história mundial. Por conseguinte, temos uma razão de Estado metafísica, que de certa forma o diviniza na premissa de que se trata daquele Estado que o espírito universal ou Norma Fundamental inspirou em determinado momento. O Estado é portanto, na visão hegeliana, um simples meio para a realização da idéia do espírito universal, que é a liberdade de galgar os degraus da Harmonia, da Paz, da Justiça, etc., encetando assim uma espécie de caminho de volta à seidade da Norma Fundamental ou espirito universal. Como Montesquieu, Kant e outros filósofos liberais do Direito, Hegel coloca à frente de toda a sua Filosofia do Direito, a idéia de que o homem deve ser livre, pois é essa a verdadeira essência humana, e, ao tornar-se consciente de sua verdadeira essência, o homem descobre o seu verdadeiro destino. Com isto ele corrobora uma vez mais o aspecto 118 The Philosophy of Hegel, ed. Friederich, p. 284. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 137 dinâmico da Norma Fundamental que é o caminho rumo ao Justo, onde a total liberdade do ser estará em total harmonia com a natureza cósmica, dispensando a existência da Justiça como é atualmente concebida. Tenha-se aqui, o Justo, como atributo da Norma Fundamental. Sedimentando as nossas palavras, Hegel acerta que: “A base da lei e do Direito é totalmente o espiritual, sendo seu ponto de partida a vontade (Moral) que é livre. A liberdade constitui sua substância e seu fim, e o sistema jurídico é o domínio da liberdade realizada, o mundo do espírito criado pelo espírito com sua segunda natureza”119 . Apesar de por alguns ter sido considerado como um representante da escola Histórica, Hegel postava-se em franca oposição à mesma, justamente por ela se basear no tradicionalismo e por não ir além das fronteiras da cultura do povo, da qual decorre o Direito, sendo esta uma atitude passiva, comodista e de certa forma segregacionista. Pois a escola Histórica tratava os espíritos nacionais como entidades fechadas em si mesmas, sem qualquer sujeição ao espírito universal ou Norma Fundamental, dado que, nesta escola teve lugar a virada para o positivismo histórico. De acordo com Savigny, existe “uma conexão orgânica entre Direito, natureza e caráter de um povo”, já que “o que os une num todo são as crenças comuns do povo, o mesmo sentimento de necessidade interior, que exclui toda a idéia de uma origem acidental e arbitrária”120 . Bem, o que Savigny chama de origem acidental e arbitrária nada mais é, do que a Norma Fundamental ou espírito universal; ele a denomina desta forma simplesmente por não admiti-la ou talvez por não conhecê-la, fazendo “das tripas coração” para resumir todo o arcabouço harmônico das leis de um povo à mera criação deste mesmo povo. Isto condiz com a empáfia dos positivistas em querer atribuir ao homem imperfeito a autoria do Justo, que ele nem ainda sabe exatamente o que é, e se o sente muito que parcialmente também não sabe explicar como isto acontece. Perguntar-se-ia, então, aos historicistas, de onde, então, vem essa inspiração cultural? O que move estes povos para que criem os seus Costumes? 119 120 BENTON, William. Hegel. Chicago. University of chicago, 1984. Geschichte des Romischen Rechts im Mittelalter (6 vol. 1815-31). Preâmbulo Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 138 A vontade moral, evidentemente. E de onde ela vem , senão de uma norma maior, a Norma Fundamental. A dialética proposta por Hegel, não é a atividade externa de um pensamento subjetivo, mas é a própria alma do conteúdo, que organicamente projeta seus ramos e raízes, tal conteúdo é a inspiração, o sopro do espírito universal. A ciência jurídica tem apenas a missão de tornar consciente essa racionalidade inerente dos objetivos e não querer ser a responsável pela sua criação. A dialética do Direito é o reconhecimento da alma da lei que permanece imutável enquanto em torno dela, as normas primárias por ela inspiradas evoluem num ininterrupto vir a ser, como que descendo para o mundo dos fatos e depois iniciando um caminho de volta para o âmago desta mesma Norma Fundamental e consigo levando aqueles a que a ela se harmonizam, mudando e aperfeiçoando as relações humanas na busca infinita do Justo. Assim, todas as formas de leis e todas as suas fases parecem estar em circuição; elas circulam pelo mundo dos fatos e regressam por rotas definidas (Harmonia, Justiça, Ordem, Bem). Estas emanações ativadas da Norma Fundamental Absoluta parecem sair e entrar em ciclos perenes e de proporções gigantescas. Toda a emanação que inspira morais, que engendram normas e que geram leis é uma coisa só, originalmente proveniente da Norma Fundamental. Esta emanação, depois de completar o seu circuito, no mundo dos fatos, para a sua fonte, retorna. A Norma Fundamental é o útero das várias formas de normas e leis respirando em ciclos de expansão e contração, sístole e diástole. Concluindo, o devir da Norma Fundamental sai dela e retorna para ela, sendo ela mesma. O Direito, é assim um processo em constante evolução. Todas as leis dimanadas do homem, no mundo externo são efêmeras e “aparentemente” finitas, pois não se extinguem, mas se transformam quando exurgem novos paradigmas legais. Isto nos faz reportar a Lavoisier, quando afirma que, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Em cada mutação permanece uma centelha, um núcleo perene que é a idéia da Norma Fundamental que participa da essência do infinito. Esta é a dinâmica da Norma Fundamental, sua dialética que em torno de si mesma forma uma espiral sempre crescente, dela saindo e a ela retornando: Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 139 A NORMA ABSOLUTA NOÇÕES PRELIMINARES Na sua obra Teoria Pura do Direito121 , sabiamente, Hans Kelsen admite ser a Norma Fundamental o fundamento de validade de uma ordem normativa, ou seja, o princípio de tudo, o conceito maior; um território pouco explorado, onde os juristas parecem se recusar a colocar os seus pés, “colher algumas amostras da terra” e tráze-la ao mundo dos fatos para que seja analisada. A confusão começa já pelo fato da Norma Fundamental fazer parte do “mundo das idéias” e isto gera um grande preconceito da comunidade jurídica, principalmente por parte daqueles que estão plenamente convencidos de que o Direito é uma ciência e se sentem muito incomodados quando são chamados a voltar os olhos para um lado mais profundo e ainda mais eclipsado pelas especulações, ora, segundo eles, não é ciência e trata-se de uma perda de tempo tentar descobrir “o sexo dos anjos”. Todo estudo que passa do patamar epistemológico para o gnoseológico gera esse tipo de crítica, pois através dos tempos a Metafísica tem sido marginalizada por todos as searas do conhecimento, mas, estupidamente, o que os cientistas parecem ignorar é que tudo principia neste campo, “maldito ou bendito”, e fatalmente nele terminará e assim é a Norma Fundamental. Por que será que o homem tem esse medo de buscar as origens, as origens de seu pensamento, o encontro consigo mesmo? Hans Kelsen parte da premissa de que o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma superior e assim sucessivamente. Mas até quando? Até sermos obrigados de nos defrontarmos com as fronteiras do desconhecido; sim pois qualquer norma, presume-se também que deve ser posta por uma autoridade e está ótimo, até o patamar em que esta autoridade é desconhecida. Para que não nos percamos em conjecturas inúteis, tomemos como exemplo a conduta do indivíduo, de onde vem ela? Certamente a resposta mais plausível seria que ela decorre do meio, principalmente dos seus pais e posteriormente dos seus educadores e daí por diante. Perguntar-se-ia então donde vem a conduta dos pais e educadores e Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 140 responder-se-ia que ela é advinda dos seus antecessores ou mesmo da Política do Estado e assim retroceder-se-ia até um determinado ponto, o início de tudo, se é que ele exista. É exatamente aí que entra a Norma Fundamental, hipotética ou não ela é uma convenção que marca a estaca zero, assim como o zero é para a Matemática. De qualquer modo podemos ir além, pois convenção ou não, temos que nos perguntar como a Norma Fundamental inspira tantos diferentes indivíduos a se conduzirem de tão diferentes formas, criando tantos diferentes sistemas, e leis, e correntes, e ideologias, e direitos que mais tarde, acabam por sufocar e tolher os seus próprios criadores. Muito bem, num determinado momento, acertadamente, concluímos que, a sociedade hodierna está estruturada por uma porção de paradigmas sociais que de certa forma conduzem o indivíduo a fazer isso ou aquilo, porque todos os outros também o fazem, ou seja, esses paradigmas impõem que se deve ser de determinada maneira, que pode muito bem ser diferente daquilo que se realmente é. Isto é injusto e sufocante, servindo ao Direito como uma luva, uma vez que se todo conjunto de normas provêm da Norma Fundamental, então, há sinal de que há algo muito errado com a sua interpretação ou então não haveria tantas Constituições diferentes e digladiando-se entre si, não haveria tantos indivíduos dissociados. Se a função do Direito é promover a Harmonia, então que se tente fazer da melhor maneira possível, e isto começa por se ver a Norma Fundamental por um novo prisma, como uma realidade cada vez mais presente. Assim como fez Hans Kelsen, tomemos como fulcro da nossa discussão, um dos mais conhecidos conjuntos de normas da história e um doa mais antigo que se tem notícia: Os Dez Mandamentos. Diz-nos a história que Moisés subiu ao Monte Sinai e lá permaneceu durante quarenta dias e quarenta noites para que Deus lhe passasse as leis máximas gravadas na pedra. De qualquer modo ninguém sabe o que realmente aconteceu lá e se realmente aconteceu, o que importa é que se admite a interferência de um poder “desconhecido e externo” no intuito de ajudar a conduta humana. A própria história admite tão bem este poder quanto o Direito que se fulcra, até os dias de hoje, em alguns dos Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 141 Mandamentos para elaborar alguns dos seus mais complexos sistemas jurídicos. Bem ou mal está se atribuindo à uma força exterior, um Deus, a autoridade competente que, automaticamente, se torna a sua Premissa Maior, a qual não é, cientificamente, ou empiricamente comprovada, neste momento, então, o Direito perde o seu atributo de ciência, pois mais a frente veremos que é impossível desvincular o Direito Positivo do Direito Natural, sendo o último pai do primeiro. Vamos então à hipótese de Deus não ter “ditado” para Moisés os Dez Mandamentos e vamos admitir que ele, cansado de tentar guiar um povo ignorante e indisciplinado, cansou-se e inventou toda essa história para colocar-lhes medo e melhor podê-los controlar; ainda assim resta uma “inspiração” que assaltou a idéia de Moisés e o fez redigir os Dez Mandamentos e é para esta inspiração que queremos chamar a atenção, é ela que talvez possa expressar em poucos traços o que seja um sopro da Norma Fundamental que inclina o indivíduo a agir, harmoniosamente, no seu modus vivendi, para que não prejudique o fluir natural das coisas; que o ensina que matar o próximo é errado pois estará infringindo uma lei natural, ou então se deve amar os seus inimigos tal qual disse Jesus centenas de anos mais tarde. Não havendo nenhum Deus para controlar, o indivíduo poderia se sentir muito à vontade para fazer o que bem entendesse e teria sido muito mais fácil para Moisés que ele tivesse abandonado o seu povo ou mesmo se aproveitado do seu poder por usar seus seguidores da maneira que bem entendesse, transmitindo-lhes mandamentos tais como: “O Mundo é dos Espertos”, “Quem não Almoça é Jantado”, “Matar o Próximo é um Ato de Coragem”, “Fornicar Faz Bem Para Saúde”, ou simplesmente “Sejam o Que São e Façam o Que Quiserem, que Estarão Agindo de Acordo com a sua Natureza”. Mas não, os Dez Mandamentos vieram justamente para indicar uma conduta para colocar os indivíduos em harmonia entre si e para com a natureza, daí podemos extrair um dos primeiros atributos inerentes à Norma Fundamental, a harmonia. uma de suas funções é promover a harmonia, isso se ela não for a própria harmonia. E por que será que a maioria prefere agir harmoniosamente Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 142 para se sentir de certa forma melhor? Por que obedecemos os Mandamentos de Deus? Por que faz bem obedecê-los e agir em conformidade com a harmonia da natureza? Temos livre arbítrio oras, e poderíamos muito bem obedecer os mandamentos do diabo, mas isto, de outra forma não estaria de acordo com os desígnios da nossa consciência, ou pelo menos de quem a tem. Podemos aí apontar outra nuança da Norma Fundamental ou um instrumento através do qual ela se manifesta: A Consciência. Talvez seja ela a responsável pela razão de o indivíduo obedecer os Mandamentos de um Deus que ele não tem certeza que existe e de se sentir bem por isto. Assim mesmo, Harmonia e Consciência não são suficientes para transmitir a idéia da magnitude da Norma Fundamental, pois ainda há muitas questões pendentes tais como: se a premissa maior é que a norma seja convalidada por uma Norma Superior ou ditada por uma Autoridade competente, cabe-nos perguntar: Quem ou o que dita as Normas e por que as dita? Qual é o seu interesse em ditar normas e por que a grande maioria cumpre estas normas? O que realmente se ganha com isto? Por mais absurdas ou remotas que estas perguntas possam parecer, certamente há um porquê e há também um limite até o qual existirão respostas, pois tal é a magnitude da Norma Fundamental que ela, por vezes, nos escapa à compreensão, justamente por também limitarmos a nossa exegese aos paradigmas científicos. Já nos reportamos à Norma Fundamental como infinita e onipresente, mas vale ainda enriquecer esta definição tão abstrata admitindo-a num aspecto estático como fonte da Ordem Cósmica, num aspecto mecânico como distribuidora desta mesma ordem e num aspecto dinâmico como aplicadora desta ordem que, através de um processo de infinita meiose se transforma em um sem número de normas. Todas as normas brotam desta fonte e de algum modo a ela regressam, promovendo a eterna dinâmica do vir a ser, pois trata-se da Norma Primordial da qual emanam todos os pensamentos revestidos de conduta. Ilimitada, ela nunca pára de criar, pois é dela que se extrai a harmonia e sua centelha dorme em cada ínfima facção da Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 143 natureza. Só a Norma Fundamental pode ser admitida como correta, enquanto intocada pela invocação dos homens imperfeitos, que através de suas diferenças transformam-na em normas menores inerentes ao seu status quo, alterando assim o curso dos conhecimentos; e podemos já concluir que ninguém a dita porque ela é ingenita e existe por si mesma. Estamos cientes que neste início de trabalho, a nossa retórica está assumindo características tomistas, mas este tipo de abordagem se faz necessária para o bom fluir desta memória. A Norma Fundamental não é um acidente cósmico e tampouco uma experiência em andamento, pois de algum modo só ela se auto avalia e contempla o seu fim escatológico, já desde o seu início. O Demiurgo122 a ponte entre a Norma Fundamental e o mundo dos fatos e que parte da sua própria essência existe em cada elemento da natureza, pois tal qual o dente de uma gigantesca engrenagem, cada ser, cada elemento é parte integrante e indispensável da realização última desta Norma Fundamental, assim todas as coisas têm em si um fim dentro de um objetivo maior. Nos seres humanos, essa essência da Norma Fundamental existe tal qual um dom e habita o pensamento de cada ser e os faz parte dela, como os dentes de sua engrenagem. Dentro de todo este contexto podemos comparar a Norma Fundamental com o cérebro humano que é responsável por todas as atividades do corpo, num aspecto mecânico e também pela função de todos os outros órgãos deste mesmo corpo, desde as vísceras maiores até os próprios átomos que o compõe; isto admitindo-se um aspecto dinâmico. Disto conclui-se de que se o cérebro não existir, ou morrer, o corpo deixará de exercer atividades dotadas de sentido e passará a viver, temporariamente, “através de aparelhos”, como que num último sopro de dinâmica. Se nos reportarmos à Metafísica, poderemos afirmar que a Norma Fundamental seja compatível com a energia, espírito ou ao Animus que habita e vivifica cada corpo. Daí admitimos que a Norma 122 BENTON, William. Plato. Chicago: University of Chicago, 1984 v.7 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 144 Fundamental está presente em cada elemento e o inspira para que caminhe rumo a um fim maior. Destarte, podemos admitir a Norma Fundamental como um círculo, sem princípio e sem fim, comparando-a com o zero da Matemática ou com a Nômada de Pitágoras. Enfim, a Norma Fundamental somos eu e você e a cumprimos instintivamente, porque dela fazemos parte, tal qual um dos dentes da engrenagem. Na sua Teoria Pura do Direito123 , Hans Kelsen parece vencer todos os obstáculos, abrindo na mata fechada do positivismo pragmático uma picada que conduz à clareira da compreensão maior da Norma Fundamental, ou pelo menos, até o início dela. Assim sendo, não se sabe porque Kelsen abre tantos precedentes e quando parece estar na iminência de uma conclusão surpreendente, ele nega o seu próprio raciocínio alegando que a sua investigação não pode se perder no interminável. Talvez o que Kelsen não tenha percebido, e se o fez não quis demonstrar, é que a Norma Fundamental é o próprio “interminável”. Por esta razão ele elege uma pressuposta última norma a ser posta por uma autoridade também pressuposta que teria se fundado numa norma ainda mais elevada; esta no caso seria hipotética ou fictícia, tal qual uma convenção (reportemo-nos novamente ao zero da Matemática), um conformismo do ser humano ante à realidade que o cerca, uma espécie de medo de ir além e de encontrar algo para o que não esteja preparado, de certa forma um medo de descobrir a sua própria verdade. Vale alertar, que até esta parte deste trabalho estivemos falando a respeito de uma Norma Fundamental Mater ou Única, mãe de todas outras normas, diferentes das várias outras normas fundamentais que convalidam normas menores formando diferentes sistemas de normas ou ordens normativas. Este tipo de norma fundamental menor é tratado por Kelsen como fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a uma mesma ordem normativa, sendo o seu fundamento de validade comum. Podemos concluir, rapidamente que estas normas fundamentais menores nada mais são do que facetas de uma mesma Norma Fundamental tida aqui por nós como Mater. 123 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 3ª ed. (edição brasileira), 1991 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 145 OS ASPECTOS DA NORMA Hans Kelsen postula dois princípios para a Norma Fundamental, segundo a natureza do fundamento de validade, o que distingue dois sistemas distintos de normas, o estático e o dinâmico. Como a nossa abordagem, neste início de trabalho tem sido até então voltada para a Norma Fundamental como um todo, vamos primeiramente, visualizá-la, dentro do mesmo discurso de Kelsen, só que num momento anterior e isto nos faz atribuir não princípios, mas sim aspectos da Norma Fundamental enquanto única, enquanto todo. Assim como o próprio universo tem seus aspectos, assim também a Norma Fundamental. Se nos reportarmos rapidamente à Teologia poderemos comparar a Norma Fundamental ao próprio Verbo por Deus pronunciado; estariam então embutidos neste ato dois aspectos, o estático e o mecânico que significa o ato de se fazer com que se crie. Assim temos o Logos Supremo como algo estático até que ele vibre e diga para que se crie – a aplicação de uma norma – o que podemos identificar como um aspecto ou momento mecânico. Posteriormente a isto teremos então o que passa a se criar e a se multiplicar. Do primeiro impulso, do primeiro toque passa a desenvolver-se uma série de processos de criação que prosseguem já, independentes, de que se tenha de pronunciar o Verbo novamente, este é o aspecto dinâmico. Aspecto porque tratamos aqui de um mesmo Universo cuja trajetória se divide entre o incriado e o criado, mas ambos dentro de um mesmo contexto. Na astronomia, não é diferente, supõe-se que havia uma espécie de ovo cósmico que, um dia após violentas pressões internas passou a se expandir, a partir do Big-Bang. Essa expansão tem continuado então até o presente e se prolongará até que toda essa massa em expansão sofra uma suposta resistência externa, sendo obrigada a recuar, o que é chamado de Big-Crush, para que então novamente seja condensada num ínfimo e pesadíssimo ponto que novamente sofrerá uma pressão interna e explodirá num novo Big-Bang. Expandindo e recuando, expirando e inspirando, eis aí então a respiração do universo. Disto então temos claros os seus três aspectos: o ovo cósmiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 146 co aspecto estático; a explosão, o aspecto mecânico; a expansão, o aspecto dinâmico. A dinâmica se perpetua enquanto toda a massa ou estelar, estiver se expandindo ou recuando. Tal qual o universo, a Norma Fundamental é única e também obtém estes três aspectos. Como existência perene, ingênita e infinita, ela se apresenta, num primeiro momento, como coisa em si, como Norma não interpretada e preexistente, assim este é o seu aspecto estático. No momento em que ela inspira qualquer tipo de ato ou de conduta, ou, por outro lado, fundamenta e convalida um ato, uma conduta, uma moral, podemos então avistá-la no seu aspecto mecânico, pois há uma ação direta, uma aplicação que importa em moção ou uma espécie de vibração ou movimento. É justamente o momento em que a Norma Fundamental, simultaneamente, fundamenta a validade e o conteúdo de outras normas. Onipresente, a Norma Fundamental está sempre ali e em tudo, assim depois da sua primeira invocação ela nunca mais deixará de inspirar e fundamentar tudo o que é dela advindo, não só as autoridades ou as normas que venham imediatamente abaixo dela como também as outras milhares de autoridades e normas que forem pelas últimas fundamentadas e convalidadas; e assim sucessivamente e infinitamente. Eis aí então o seu aspecto dinâmico, onde a Norma Fundamental funciona só como fundamento último de validade. Em suma, no aspecto estático é a própria existência da Norma Fundamental. O seu aspecto ou momento mecânico se dá quando é reproduzido o seu conteúdo e desta reprodução se produzem novas normas independentes, o que caracteriza o aspecto dinâmico. Cremos que a linha de pensamento acima apresentada não difere do que postula, Hans Kelsen. O que muda é só o vernáculo, pois ao invés de aspecto, ele usa o vocábulo princípio e os reduz a somente dois. Segundo Kelsen124 no principio estático a Norma Fundamental fundamenta e convalida a conduta (o que seria para nós já o aspecto mecânico). Em seguida esta conduta enquanto a idéia fundamentará e 124 Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martbns Fontes, 3ª Ed. (edição brasileira), 1991 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 147 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 148 pronuncia o Verbo, ou seja, a inspiração pela Lei; e finalmente atribuímos ao aspecto dinâmico a qualidade de Espírito, que pratica o Verbo, ou seja, a prática e o desenvolvimento da Lei. E a Lei inspirou o homem que desenvolveu a Moral. OS ATRIBUTOS DA NORMA FUNDAMENTAL A tarefa de atribuir qualidades à Norma Fundamental certamente, não é algo simples e talvez nem nos competisse, mas algumas nuanças se fazem claras e outras, em admitindo a sua pressuposta perfeição nos fazem especular a respeito de uma Norma que nunca recai na ambigüidade do que é relativo, pois como já mencionado antes é quase impossível extrair de qualquer seara do Direito nuanças que expressem a sua quintessência, livre dos fantasmas da relatividade. Portanto, extrapolando os limites do transcendental e do metafísico, passaremos a elencar alguns atributos que possam caracterizar a Norma Fundamental. Dentro de que entendemos como Ciência do Direito nada iguala a sua amplitude, entendimento e grandeza. Seus desígnios parecem, a principio, impenetráveis e tudo o que emana dela é igualmente infinito, transpondo barreiras de tempo e espaço, neles(tempo e espaço) apenas assumindo novas maneiras de se apresentar. Seu real julgamento do que é certo ou errado, bom ou mau, belo ou feio, é também impenetrável; tão bem quanto a sua noção acerca das polaridades, se é que elas existem no seu conceito(só há dualidade ou polaridade quando a Norma Fundamental se fenomenaliza), pois sendo única, perfeita e nunca relativa, a Norma Fundamental é a única norma absolutamente correta e aquela que expressa a exata noção do sujeito, pois a Justiça é também uma manifestaçãos. Impenetráveis também são os seus meios de julgar, fundamentar e convalidar outras normas. A única coisa que se sabe é que no Direito a Norma Fundamental é a fonte e a distribuidora universal. Todas as normas brotam dessa fonte e para ela regressam, até mesmo aquelas normas dadas como falhas ou geradoras de injustiças. É ela a Lei Primordial Suprema e Ilimitada da qual emanam todas as leis, todo o Direito criado e aquele por criar. Apesar de admitirmos “pressuposta” esta perfeição da Norma FunRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 149 damental, vale salientar que tratamos dela aqui como uma realidade e não como uma simples enteléquia. Do acima exposto, concluímos que a Norma Fundamental é infinita, perfeita e até certo ponto impenetrável. A Norma Fundamental é En Sich a não mudança, pois na condição da Lei Única Universal não existe possibilidade de variação. Somente no mundo fenomênico, onde há a dualidade, é que ela mesma promove o eterno vir-a-ser que dela parta e até que ela volta e, num círculo o qual já exemplificamos com a Mônada de Pitágoras. Destarte, nenhuma infração de qualquer norma do mundo dos fatos viola os desígnios da Norma Fundamental, mas, pelo contrário, a iniqüidade cumpre o seu papel. Como diria Immanuel Kant, as mudanças de forma, de lugar ou de tempo que parecem transformar a Norma Fundamental, são reflexos dos inúmeros, relativos, imperfeitos e falhos sistemas de normas espalhadas pelo mundo, estruturando mais de duzentos Direitos Nacionais; pois a Norma Fundamental Única é Imutável. A Norma Fundamental, como já foi dito antes, não é um acidente ou uma experiência, mas sim tem em si uma razão de ser, sendo reta em todos os caminhos, pois é só assim que ao final se obtém a Justiça. Tal é a sua retidão que ela se refrata existindo em cada ser como consciência, fazendo de cada qual o seu próprio juiz. Eis aí o grande julgamento e a grande Justiça da Norma Fundamental, que neste patamar, assume a nuança de Lei de Causa e Efeito, tendo como atributo a equanimidade que gera a equidade. Uma vez, cada qual tendo consciência dos seus atos e de que para toda causa existe um efeito, será capaz de realizar o seu próprio julgamento e criar a própria Justiça, é por isto que é tamanha a relatividade da Justiça humana comparada à verdade da Norma Fundamental. Se pudéssemos estabelecer um fundamento para a Justiça da Norma Fundamental, certamente seríamos obrigados a fundá-lo na Sabedoria e na Misericórdia, tomando todo o cuidado possível para não atribuir à Norma Fundamental, uma personalidade, pois ela não é ente, não é uma forma de inteligência, mas sim uma coisa em si dentro da mais precisa definição kantiana. Seria então essa Sabedoria infinita o juiz que determina as proporções da Justiça e a Misericórdia Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 150 que a cada qual correspondem, assim sendo, tal é essa Sabedoria que mesmo o mal pelo mal, o erro completo, o delito voluntário, o dolo e a iniqüidade pela iniqüidade também fazem parte da Sabedoria da Norma Fundamental tendo a sua razão de existir e conduzindo as relações humanas à um fim último, mas ainda desconhecido, intuindo o ser humano que o mal sobrevive em razão de uma misericordiosa tolerância, que serve às criaturas dotadas de vontade para que descubram por si mesmas, o que é justo e eqüitativo. Eis aí então outro atributo da Norma Fundamental, a Justiça. A Norma Fundamental faz da Justiça e da Misericórdia uma unidade, alcançando assim a Eqüidade. Pode parecer estranha a inserção do atributo Misericórdia à Norma Fundamental e principalmente o vínculo estabelecido entre essa e a Justiça, mas assim é, pois a Misericórdia não é, como aparenta, uma violação da Justiça; ao contrário, é uma compreensiva interpretação das exigências da Justiça, quando esta é aplicada com Eqüidade. A Misericórdia é um atributo que ajusta as imperfeições humanas que geram infrações, pois não há um só indivíduo igual ao outro e assim também são as suas morais, portanto cada caso é um caso e deverá ser julgado sempre em separado, pois cada qual tem a sua maneira de sorver e entender da Norma Fundamental, pois são também diversas as maneiras que ela inspira a conduta de cada qual, proporcionando a cada um a faculdade do livre-arbítrio. Devido à relatividade da Justiça humana, existe embutido na Norma Fundamental este atributo que é ferramenta para que bom uso dela se faça para que as normas não se tornem arbitrárias, a Misericórdia. Sendo a fonte de todas as leis morais, a Norma Fundamental implica em retidão e esta, retidão se esparge inspirando todas as condutas, desde as mais primárias e instintivas, transpondo as barreiras impostas pela Recta Ractio romana que é a zona limítrofe entre o instinto e a razão. Assim sendo, podemos atribuir à Norma Fundamental uma existência imanente em cada elemento da natureza, inspirandoos sempre para que preservem a harmonia e a ordem natural. No homem, ela é a chispa ou centelha da razão, o que podemos chamar de Consciência. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 151 Podemos arriscar a concluir que a razão de ser e a causa da existência da Norma Fundamental, é a perene harmonia, isto se ela mesma não for a própria Harmonia. Os últimos atributos que podemos conferir à Norma Fundamental são a Beleza e a Verdade, pois ambos se confundem de tal sorte que, dentro da totalidade da Norma Fundamental, não se sabe onde começa uma e onde termina a outra. a Verdade é bela porque é completa e simétrica, não se tratando de uma ilusão ou de uma enteléquia. A Verdade da Norma Fundamental que podemos chamar de uma Verdade Pressuposta e Desejada é tão certa e real quanto a própria Grande Norma. Como já foi dantes dito, o homem conhece somente pequenas partes desta Verdade e as interpreta relativamente identificando a Verdade com aspectos e conceitos limitados da realidade que o envolve, tal qual o seu sistema de normas vigentes, pois por mais que viva em sociedade, cada ser humano só está capacitado a descobrir algumas das milhares dessas verdades parciais inerentes à sua conduta e à sua individualidade. O fato, porém, é que nem fundindo essas miríades de verdades relativas, lograríamos a posse da Verdade última, inerente à Norma Fundamental. A Verdade e a Beleza fazem com que delas brote um atributo acessório, que poderíamos denominar Bondade, mesmo não sendo a Norma Fundamental um ente ou uma personificação, ela traz no seu bojo a noção de uma Bondade impessoal e desprovida de personalidade, inerente à sua perfeição como Norma Maior. A Verdade, a Beleza e a Bondade são realidades da Norma Fundamental que não podem ser separadas, pois toda Verdade é bela e boa. Toda Beleza, material ou intelectual, é boa e verdadeira e toda Bondade, quer se trate de moralidade pessoal, eqüidade social ou de ministério jurídico-normativo, é igualmente bela e verdadeira. É através da sua centelha imanente em cada ser que a Norma Fundamental inspira a verdade destes valores intuindo o homem a buscar uma felicidade e uma paz que só são encontradas dentro da Harmonia. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 152 A NORMA COMO CONSEQÜÊNCIA Em se admitindo os preceitos da escola histórica, concluiremos que cada povo tem um espírito ou alma, que se manifesta numa série de produtos do espírito popular, tais como a Moral e o Direito, que nascem, espontaneamente, sem a intervenção do legislador. Portanto a Moral e o Direito nascem do homem como fato natural. A Moral, como verificaremos a posteriori, é por nós tida como o embrião do Direito, sendo ela a responsável pela sua razão de existir. Muito bem, esta é uma linha bastante positivista, pois o princípio de tudo é o homem que através da sua razão desenvolve uma moral, a qual depois de passar pelos juízos de valor, vai assumir um caráter ético, tornando-se comum a todo o grupo e assumindo o caráter de norma. Um determinado povo cria então o seu sistema de normas e o adota, tipificando-o ou não, na forma de leis; eis então que se cria seu Direito Positivo Nacional, assim como outras sociedades, já devidamente, politicamente, organizadas, o fazem também. Para medir as diferenças entre estes vários Direitos Positivos Nacionais, surge então o Direito Internacional, o qual buscará uma Lei Equânime e equivalente para todos estes povos. Se o Direito Internacional, fosse realmente eficaz, não haveria mais guerras, portanto conclui-se que ele ainda não atingiu a sua quintessência e tenta ser único e comum, buscando inspiração em uma norma superior justa, equânime, verdadeira e única para todos os povos. Esta seria, então, a Norma Fundamental Única por nós admitida. O que estamos demonstrando aqui, é a hipótese contrária, admitindo a Norma Fundamental como o produto mítico ou hipotético do “inconsciente moral coletivo”, que gera normas menores, que se transformam em normas cada vez maiores, até chegarem num ponto culminante, onde o Direito não mais responde e do qual não é possível se ir além. Assim a Norma Fundamental seria um produto da moral humana e uma barreira final e intransponível para o Direito, ao contrário do que admitimos neste trabalho, enfocado na Norma Fundamental kelseniana que é uma premissa maior e anterior a toda e qualquer forma de Direito. A proposta aqui é não consentir outra Norma Fundamental, senão a personificação das normas secundárias, formadoras dos sisteRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 153 mas de normas maiores, numa conseqüente Norma Fundamental antropomórfica, que na verdade não é premissa maior e nem geratriz, mas sim o resultado de uma infinidade de poderes criadores humanos, que, coletivamente, formam uma norma comum e eterna, cuja essência é inescrutável, e daí que não seja objeto de especulação para nenhum filósofo verdadeiro. Em se nos reportando aos arcaicos da escola atomística na Grécia antiga, podemos, através de analogia, conceber que o elemento básico do Direito seria a Moral, isto é, a primeira forma de conduta racional, a qual se diferencia de homem para homem, dependendo da sua localização no tempo e no espaço. Assim do turbilhão decorrente dos entrechoques destas morais formar-se-iam as normas e organizar-se-iam os sistemas jurídicos, pelo princípio da afinidade entre morais de natureza similar, e a conseqüente expulsão das morais diferentes. E assim sucessivamente até atingirmos o Direito Internacional e por fim a Norma Fundamental, a qual podemos chamar aqui de Norma Conseqüente, ou mesmo região limítrofe. Contentar-nos-íamos com tal hipótese tão racional e positivista se não nos viesse à mente a pergunta: Donde vem a Moral? A resposta então seria: ela nasce do homem. É um produto da mente humana. Mas e a mente humana? Empiricamente falando ela é matéria(massa encefálica) e a Moral um tipo de pensamento, raciocínio ou intuição submetida aos juízos de valor. É enfim uma espécie de animus ou energia. Seria cabível então afirmar que tal energia provém da matéria? Então ter-se-ia de afirmar também que a matéria é antecessora da energia e não uma forma densificada da mesma. A pergunta continua, de onde vem a Moral? Ela vem da razão que, de certa forma, racionalizou o instinto. Então, por que houve essa transformação, este elo tão mal explicado? De qualquer modo, donde vem o instinto? É uma lei natural, responderiam alguns. E o que é ou donde vem tal lei natural? Para encerrarmos esta especulação teríamos de nos deter novamente numa premissa maior, numa Norma Fundamental, o que nos faz descartar desde já, a possibilidade de a Norma Fundamental ser um produto meramente histórica ou cultural. Isto revelaria muita ignorância e mediocridade. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 154 Podemos, ao contrário, completar a nossa teoria com o fator histórico, o qual não deixa de ser uma ferramenta ou um acessório para o desenvolvimento de um Direito, anteriormente, inspirado. O que se constata ainda, é que não importa para onde se vá, para frente ou para trás, o encontro com a Norma Fundamental é inevitável, pois como veremos no decorrer deste trabalho, é dela que surge o Direito e é a ela que o Direito busca como sua realização máxima. A RELATIVIDADE DA JUSTIÇA Como Hans Kelsen preza por abordar a pureza da norma, não poderíamos encerrar este capítulo sem esta pequena análise sobre o papel das normas advindas da Norma Fundamental dentro das relações humanas e na preservação da Harmonia entre estas. Em linhas anteriores escrevemos sobre como a Norma Fundamental inspira a conduta humana, gerando o livre-arbítrio de cada indivíduo que o expressará diante de outros milhares de indivíduos, cada qual com o seu livre-arbítrio gerando conflitos de ordem moral, ética e política. Para tentar solucionar estes problemas surge então a Justiça, mas será que ela é eficaz? A relatividade é, sem sombra de dúvida, a maior fraqueza da Justiça, pois os fatos geradores de normas mudam de lugar para lugar, povo para povo, tempo para o tempo, pessoa para pessoa. A Justiça, como produto de uma relação dialética, está sujeita à temperamentalidade e aos caprichos do eterno vir a ser, pois cada Pessoa Física ou Jurídica, interpreta as nuanças da Norma Fundamental de maneira peculiar, assim sendo, o que é certo, politicamente correto, ético, moral ou justo para um, não o é para outro. Basta que nos detenhamos para analisar o panorama jurídico dos diversos Estados independentes do mundo e veremos que a norma não consegue de fato ganhar o adjetivo pura, pois sua interpretação é sui generis e totalmente influenciada por uma vasta quantidade de elementos, tais como as religiões, os preconceitos, os Costumes, enfim, tudo o que vem a formar o arcabouço chamado de Direito Natural.Nada mais natural, pois, seria impossível fazer com que a mente e o comportamento humano destilassem uma Norma Pura, no que diz respeito à sua Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 155 suscetibilidade ao vir a ser e ao ponto de vista de quem a aplica. Se nos reportarmos à Francis Bacon125 , no seu Novum Organom encontraremos os elementos que “poluem” a Justiça. É claro que Bacon se refere à Ciência, mas basta que a substituamos pela Justiça. Francis Bacon nos dá cinco grupos de elementos capazes de macular a pureza de qualquer conceito. São eles: idola tribus, idola specus, idola teatri e idola fori . Para melhor ilustrarmos, basta colocarmos a Justiça como o núcleo destes elementos, que em torno dela gravitam. Primeiro os idola tribus, que podem muito bem representar toda e qualquer influência das idéias comuns, como os Costumes, os paradigmas e a Política; são interferências de caráter extrínseco. Já os idola specus são as influências pessoais e psicológicas de cada Pessoa Física - principalmente juristas e jurisconsultos – sobre o conceito de Justiça, tais como as diversas morais, os preconceitos, as crenças pessoais, os medos, os desejos, os sonhos, etc. Enfim, são as impressões pessoais ou o ponto de vista que cada qual tem acerca da norma e sua eficácia. Estas são interferências de caráter intrínseco. Podemos classificar os idola tribus e os idola specus como principais, e os idola teatri e idola fori como acessórios devido à sua subsidiariedade em relação aos primeiros, pois os idola teatri nada mais são do que o desvirtuamento das correntes, transformando-as em ideologias de toda sorte. São as armadilhas do intelecto contra si mesmo e não podemos deixar de fora todas as formas de fanatismo, politicagem e demagogia que nada mais são que dramatizações que desfocam e viciam o verdadeiro sentido do Justo. Por fim os idola fori representam a traição da palavra ao conceito, principalmente no que se refere à interpretação e à confusão que se faz ao definir e distinguir a Moral da Ética, ambas da Política e as três da Justiça. Assim sendo as doutrinas, as teorias e os próprios Direitos Positivos acabam por se perder na distinção e na tipificação do que é imoral, antiético, politicamente incorreto ou por fim, injusto. Podemos concluir que é, humanamente impossível extrair um 125 BENTON, William. Francis Bacon/ Novun Organum Chicago: University of Chicago 1984 V.30. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 156 conceito único e comum de Justo. Resta-nos assim que nos reportemos aos objetivos da Justiça tão bem como aos paradigmas imutáveis que ela almeja, que são o Bem, o Bom, o Correto, o Belo, a Harmonia, a Paz, o Justo, enfim o Perfeito. Bem sabemos que o ser humano não é perfeito e o que vem dele também não pode sê-lo, de qualquer modo como já afirmamos em linhas anteriores há uma Norma Fundamental que “hipoteticamente” detém todos esses atributos e que inspira o indivíduo a buscar uma forma cada vez mais aperfeiçoada de aplicação e interpretação da Justiça. Podemos dizer que Têmis ainda está longe de se deixar compreender e envia sempre Diké como sua porta-voz, sendo a última o canal, a ponte entre sua mãe e os mortais. Enquanto houver homens diferentes, haverá justiças diferentes e enquanto se tentar torná-la comum, haverá sempre um lado da balança que pesará mais. E como solucionar este problema? Considerando que cada caso é um caso, é único, assim como cada indivíduo o é, e a Justiça deve ser aplicada com igual distinção, mantendo-se “una” e ao mesmo tempo nos apresentando uma nuança específica para julgar cada ato e principalmente para dizer o Direito. REFERÊNCIAS AMSTRONG, A. H. Introducción a la Filosofia Antígua. Trad. Carlos A. Fayard. Buenos Aires: Eudeba, 1968. BENTON, William. Hegel. Chicago: University of Chicago, 1984. BENTON, William. Plato. Chicago: University of Chicago, 1984. BENTON, William. Francis Bacon - Novun Organum. Chicago: University of Chicago, 1984. BENTON, Willian. Kant. Chicago: University of Chicago, 1984. BENTON, Thomas Aquinas. Chicago: University of Chicago, 1984. COELHO, Luis Fernando. Introdução Histórica à Filosofia do Direito. 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MESTRE EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA RESUMO O texto trata de uma modalidade de trabalho terceirizado mas carente de regulamentação legal, o qual vem sendo utilizado no mercado de trabalho de forma cada vez mais freqüente. O autor revela, no trabalho, preocupação com esses trabalhadores terceirizados, os quais estariam sendo fraudados em seus direitos trabalhistas. O texto denuncia a falácia neoliberal segundo a qual a flexibilização do Direito do Trabalho e o afastamento do Estado das relações entre capital e trabalho são medidas emergenciais necessárias para solucionar o problema do desemprego no Brasil. ABSTRACT The text is about a way of third labor but that doesn’t have legal laws, which has been used in labor area frequently. The author reveals, in the study, worry about these third workers, who would be being frauded in their rights. The text accuses the new liberal idea in which the flexibilization of the Labor Law and keeping away the Satate from the relation between capital and labor would be emergencial necessary ideas to solve the unemployment in Brazil. PALAVRAS CHAVE - Direito do Trabalho; trabalho terceirizado; flexibilização do Direito Trabalhista. O respeito aos direitos do cidadão não depende só das leis. Ele é conquistado por uma postura individual reivindicatória e pela ação organizada das forças populares que possibilitem, entre outras coisas, a superação da mentalidade do ‘levar vantagem’, expressa até nas pequenas atitudes do dia-a-dia, segundo a qual todo abuso do espaço alheio é legítimo. Marly Rodrigues, In: A Década de 80 Apesar da ausência de regulamentação legal para a modalidade de trabalho terceirizado126 , este tipo de prestação laboral tem sido utilizado no mercado de trabalho de forma cada vez mais freqüente. 126 Por iniciativa do Poder Executivo foi criado o Projeto de Lei nº 4.302/98, o qual dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de trabalho temporário e na empresa de prestação de serviços a terceiros. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 160 Segundo o professor Amauri Mascaro NASCIMENTO (1999, p.170), sob o prisma empresarial, a necessidade de especialização, o desenvolvimento de novas técnicas de administração para melhor gestão dos negócios e aumento de produtividade, e a redução de custos, fomentam a contratação de serviços prestados por outras empresas, no lugar daqueles que poderiam ser prestados pelos seus próprios empregados, expediente que tem ensejado inúmeros conflitos na Justiça do Trabalho. Terceirização designa o processo de descentralização das atividades da empresa, no sentido de desconcentrá-las para que sejam desempenhadas em conjunto por diversos centros de prestação de serviços e não mais de modo unificado numa só instituição. Os processos de terceirização do trabalho, decorrentes da competitividade interna e externa e das crises cíclicas do capitalismo, parecem acenar para o retorno a sistemas de locação de serviços e de empreitada do Direito Civil, embora sob outros rótulos (locação de serviços, parceria, cooperativas...). Este retrocesso é visível, nas relações de trabalho, quando do incremento da utilização de contratos típicos do Direito Civil como o de parceria, onde o trabalho é prestado de modo autônomo (pessoa física), ou como pessoa jurídica, para uma empresa, participando do seu processo produtivo de modo independente, ou na locação de serviços, onde a contratada compromete-se a locar a sua atividade à contratante, mediante um preço. Acontece que este tipo de relação de trabalho tem suscitados inúmeros problemas quanto à eficácia protetiva do Direito do Trabalho. A possibilidade para-legal da terceirização das relações de trabalho, convalidada através do Enunciado 331 do TST127 128 , tem contribuído 127 Enunciado 331: I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso do trabalhador temporário (lei 6.019, de 3-1-74) II – A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional (37, II, da Constituição da República) III- Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20-6-83), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividademeio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV- O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 161 sobremaneira para “quebrar” a necessária rigidez na tutela aos direitos mínimos consagrados ao trabalhador, colaborando para aumentar os crescentes índices de precariedade das relações de trabalho no país, e também, dificultando a prestação eficiente da laboriosa Justiça do Trabalho. Entre outros prejuízos aos trabalhadores, é imprescindível salientar que esta modalidade de trabalho afeta o núcleo do contrato individual de trabalho da CLT129 . Reduz direitos do empregado, já que a ele não se aplicam vantagens salariais concedidas aos trabalhadores com vínculo direto com a empresa principal que se utiliza do serviço, consequentemente, excluindo os trabalhadores terceirizados de eventuais promoções, prêmios e demais vantagens salariais e de jornada de trabalho decorrentes de dispositivos convencionais da categoria.130 Afora essas lesões, frustra-se a aplicação da legislação trabalhista, quando a Justiça do Trabalho, no cumprimento de seus julgados se depara com a responsabilidade apenas subsidiária do tomador de serviços quanto aos créditos trabalhistas. Isto repercute numa morosidade cruel na efetivação dos direitos dos trabalhadores que se vêem duplamente lesados, pelo não cumprimento de seus direitos mínimos por parte da empresa terceirizada e pela dificuldade na execução de seus créditos, que na maioria das vezes, tem caráter alimentar.131 Em primoroso artigo acerca das perniciosidades do trabalho terceirizado, Euclides Alcides ROCHA (1995, p. 86-87) alerta que: O trabalhador brasileiro, a par das inúmeras mazelas que distinguem administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666/93). 128 O Enunciado 331 foi aprovado pela Resolução Administrativa nº. 23/93 de 17/12/1993, tendo sido publicado no Diário da Justiça da Administração Pública de 21 de dezembro de 1993. 129 “O contrato individual de trabalho tem uma estrutura na qual é fundamental a subordinação, entendendo-se como tal a situação em que uma pessoa física se põe, na qual se compromete a prestar serviços para outra, que tem o poder de direção sobre a sua atividade, independentemente do resultado dela; presente a subordinação ficam afastadas as outras figuras”. (NASCIMENTO, 1999, p. 171) 130 “O alijamento do trabalhador da empresa contraria de frente o ordenamento jurídico brasileiro, encontrando óbice em princípios e normas constitucionais esculpidos com clareza contundente”. (LEITE, 1979, p.73) 131 Fato corriqueiro na Justiça do Trabalho é o desaparecimento da empresa terceirizada, que tem domicílio ficto, razão social forjada e se estabelece sazonalmente para determinados contratos, posteriormente se esquivando das responsabilidades de caráter trabalhista. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 162 (às vezes, vergonhosamente) a sociedade nacional, como a má distribuição de renda e da riqueza, o desemprego e o igualmente degradante e nefasto: sob variadas denominações (locação de mãode-obra, prestação de serviços, intermediação de trabalho, sublocação de trabalhadores, etc.), tem-se praticado no Brasil, escancaradamente e irresponsavelmente, a pura e simples comercialização do trabalho humano. O contingente humano que tem sido alvo dessa degradante modalidade de mercancia situa-se geralmente na base da pirâmide social, constituído de trabalhadores humildes, desqualificados profissionais e culturalmente, desorganizados ou frágeis sindicalmente. São zeladores, ascensoristas, vigias, telefonistas, porteiros e outros, que formam o quadro dos que se transformam em objeto de uma nova e nefasta atividade empresarial. Lesam-se os trabalhadores, que muitas vezes batem às portas da Justiça do Trabalho para obter o pagamento de salários e indenizações por extinção dos contratos. Não raro, as citações e, notificações são cumpridas por edital, porque a ‘empresa’ desapareceu. As execuções, com freqüência, permanecem inconclusas nas prateleiras dos juízos, inviabilizadas pelo sumiço do empregador. Lesam-se os cofres públicos, não apenas pela inexecução de contratos celebrados com entes dessa natureza, mas especialmente pela não satisfação de obrigações fiscais, previdenciárias e sociais. A intermediação ou a colocação do trabalho alheio a serviço de terceiros tem propiciado exploração e lesividade a significativa parcela da população, constituindo-se num instrumento de agravamento dos níveis de injustiça social. No mesmo sentido, ainda que analisando a legislação acerca do trabalho temporário, José Martins CATHARINO (1982, p. 2) discorre sobre essas modalidades de espoliação dos direitos mínimos assegurados aos trabalhadores, recuperando o significado da mais valia: “Esta contratação transforma o empregado, duplamente, em mera peça de engrenagem produtiva (não escolhe sequer a quem aderir) e faz com que ele seja duas vezes espoliado, submetido àquela tensão de interesses entre duas empresas que buscam lucro e necessitam, pois, intensificar a exploração da sua força de trabalho, cuja mais-valia biparte-se em favor de dois patrões”. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 163 Afora os problemas já suscitados, no cotidiano da Justiça do Trabalho, facilmente nos deparamos com vários litígios em que se observa um evidente desvirtuamento do disposto na parte final do inciso III do Enunciado 331 do TST – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20-683), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta – onde sob o escudo desta possibilidade, frauda-se e flexibiliza-se direitos inequívocos de trabalhadores cuja atividade funcional não se diferencia dos trabalhadores com vínculo direto com a tomadora de serviços.132 Ao admitir-se que a terceirização é um processo inexorável na moderna economia globalizada, não se deve olvidar que a sua utilização incontida tem acarretado enormes prejuízos à classe trabalhadora. Não sendo possível, ao menos de imediato, expurgar essa forma de intermediação, ou expropriação, de mão-de-obra, faz-se urgente a regulamentação dessas atividades, no sentido de implementar critérios rígidos e restritivos para sua contratação, onde se faça presente a solidariedade entre prestadora e tomadora de serviços e vê-se de forma absoluta a terceirização de atividade fim da empresa, implementandose multas significativas aos fraudadores da futura legislação. As transformações no mundo do trabalho são as mais inquietantes e as que mostram mais urgência na busca de uma nova organização social. O momento é de reflexão, porém isso não significa retrocesso, pois se devem encarar as novas imposições da economia e da tecnologia, com fulcro no ser humano e não única e, exclusivamente, no capital.133 Devemos desmistificar a falácia neoliberal de que a flexibilização do Direito do Trabalho e o afastamento do Estado das relações entre capital e trabalho constituem medidas emergenciais necessárias para solucionar o 132 Há um desvirtuamento das possibilidades previstas no Enunciado 331, quando até mesmo para realização de atividades fim da empresa tomadora tem se utilizado da modalidade de trabalho terceirizado; ainda com evidente ocultação da presente subordinação direta e pessoalidade, requisitos inafastáveis da relação jurídica de emprego. 133 “Se é verdade que o mundo se move e se desenvolve eternamente, se é verdade que o desaparecimento do velho e o nascimento do novo são leis de desenvolvimento, está claro que não há regimes sociais imutáveis, princípios eternos de propriedade privada e de exploração; que não há idéias eternas de submissão do camponês, ao proprietário de terras, do operário, ao capitalista.” (POLITZER, 1953, p. 50) Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 164 problema do desemprego vertiginoso que tem assolado o Brasil. Não se gera emprego com políticas de redução de direitos da classe trabalhadora. O problema central do desequilíbrio social que alguns países têm enfrentado, no mundo globalizado, passa por questões conjunturais e estruturais de amplitude bem maior, com destaque para a dificuldade de se adequar aos avanços tecnológicos, a ausência ou ineficácia de políticas públicas voltadas às questões sociais, a submissão dos governos ao interesse do capital nacional e transnacional, que acabam por dominar o cenário político do país, e a impossibilidade de expansão econômica e crescimento do mercado em conseqüência de juros altos, os quais estimulam o capital volátil-especulativo que circula nas economias periféricas, em prejuízo aos investimentos no sistema produtivo. Portanto, do ponto de vista social, é mero simplismo debitar os problemas do não-incremento do mercado e da diminuição dos postos de trabalho aos direitos mínimos consagrados aos trabalhadores. Tenta-se passar ao povo, com muita propaganda, os maiores absurdos, frutos de uma ideologia de exploração e colonização. É preciso questionar o discurso do governo, principalmente no que respeita ao processo de globalização, dando conta de que temos que aceitar os custos sociais decorrentes.134 Ainda que se admita que a globalização é inevitável, disto não decorre, naturalmente, que devemos aceitar passivamente os efeitos negativos que ela produz em nossa organização social. Deve-se buscar uma ruptura neste sistema concentrado e realizar uma sociedade mais igualitária no que concerne aos meios e direitos básicos indispensáveis para uma vida digna à população. Deixemos claro que a defesa de um Direito do Trabalho consolidado, amparado num Estado intervencionista e sob a égide do princípio de proteção ao trabalhador, reveste-se de certo conservadorismo, porém se parte da premissa de que um povo que não consegue manter os direi134 “Alertam as vozes dos governantes que as reformas proclamadas e propostas são necessárias em razão da perspectiva da globalização econômica, que se põe como ponto indiscutível. Mas se globalizar é integrar numa única economia, de padrões transnacionais e insuscetíveis de serem experimentados, respeitando-se as culturas políticas, sociais, administrativas, financeiras de cada povo, por que apenas os países pobres e endividados curvam-se à adaptação de suas idéias de Justiça, estratificadas em sistemas de Direito, ficando os Estados ricos nas mesmas condições jurídicas, políticas e econômicas tuteladoras de suas soberanias nacionais?” (ROCHA, 1998, p. 101) Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 165 tos que conquistou a duros fardos é incapaz de vislumbrar novos direitos. Parece que a terceirização do trabalho não tem contribuído para atenuar o problema de desemprego crescente que vem assolando o país, contrariamente, aumenta as estatísticas da precarização do mercado de trabalho. Esta afirmativa coaduna-se com o real intuito da legitimação do trabalho terceirizado: de um lado a fornecedora de serviços, procurando conquistar fregueses, através de preços atrativos, somente se os seus custos forem mais baixos, de outro, a tomadora de serviços, procurando obtê-los baratos, com custo inferior ao que teria se os obtivesse contratando empregados135 . Tudo isso sem que se leve em consideração os valores humanísticos do trabalho. Disso decorre ser necessário implementar um regramento rígido para a utilização do trabalho terceirizado, visando coibir a sua prática desmesurada e anular as fraudes a legislação trabalhista. REFERÊNCIAS CHATARINO, José Martins. Empregados de Empresas de Trabalho Temporário e sua proteção jurídica. Estudos LJF. E. Revista Legislação e jurisprudência fiscal, pág. 2. São Paulo. 1982 DINIZ, M. H. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998. 4v. FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Folha de São Paulo; Nova Fronteira, 1995. LEITE, João Antonio Pereira. Estudos de Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. Ed. Síntese, 1979. MELHADO, R. Terceirização, Globalização e Princípio da Isonomia Salarial. In: Revista de Direito do Trabalho, nº 95, p. 10-25, set. 1996. 135 Exemplo claro se evidencia nas terceirizações ocorridas nas atividades de empresas públicas ou nas antigas estatais, como de energia elétrica, água e saneamento, telefonia e bancarias. Onde este tipo de contrato proporcionou a substancial redução do valor da mão de obra, a precariedade do contrato de trabalho, a maximização dos lucros e não obstante uma enxurrada de ações trabalhistas pela não observação de direitos trabalhistas. Conforme atesta Reginaldo MELHADO (1996, p. 15) “a terceirização, muitas vezes imprescindível, enseja distorções mais graves, são ilustrativas do quadro caótico em que ela se inscreve essas emblemáticas declarações do Chefe de Polícia do Rio de Janeiro (publicadas no Jornal Folha de São Paulo, em 09.10.1995, p. 02): ‘a polícia paga R$ 1.200,00 para cada faxineiro que trabalha lá, contratado por uma firma particular. Sabe quanto o faxineiro recebe? Só R$ 100,00. Para onde vai o resto do dinheiro? Assim fica difícil convencer o policial de que ele não deve ser corrupto.’”. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 166 NASCIMENTO, A. M. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho; relações individuais e coletivas do trabalho. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1998. _______. Iniciação ao Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 1999. POLITZER, G. Princípios fundamentais de filosofia. Tradução de João Cunha Andrade. São Paulo: Hemus, 1953. ROCHA, Euclides Alcides. Prestação de serviços por empresa – terceirização. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho, v. 64, p.85-87, 1995. RODRIGUES, M. A década de 80 Brasil: quando a multidão voltou às praças. 3. ed. São Paulo: Ática, 1999. SUSSEKIND, A. Flexibilização do Direito do Trabalho: um bem ou um mal? In: Revista Jurídica Consulex, v. 6, n. 123, p. 15-24, fev. 2002. =============================================================== Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 167 As normais constitucionais que tratam do mandado de segurança coletivo frente à garantia do acesso à justiça José Eduardo Ferreira Ramos PROFESSOR DE DIREITO DO TRABALHO & DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO NA FACULDADE MATER DEI. MESTRANDO EM DIREITO PROCESSUAL E CIDADANIA PELA UNIVERSIDADE PARANAENSE (UNIPAR). JUIZ DO TRABALHO NO PARANÁ. RESUMO O artigo trata do mandado de segurança coletivo como instrumento de acesso à justiça. Ao retirar do legislador a possibilidade de excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, a Constituição Federal assegura o amplo acesso à justiça, garantia imprescindível para a instituição do Estado Democrático de Direito, permitindo o livre exercício dos direitos e garantias fundamentais. Neste contexto destaca-se o mandado de segurança coletivo como remédio constitucional destinado a proteger direitos coletivos e difusos, que potencializam, em tese, milhares de litígios submetidos ao Poder Judiciário. Destarte, urge o reexame das restrições estabelecidas pelo legislador constituinte no que toca à legitimidade dos partidos políticos e das associações para impetrar o mandado de segurança, para extirpar qualquer obstáculo capaz de impedir ou dificultar a sua plena utilização pelas entidades referidas no inciso LXX do artigo 5º da Constituição Federal. ABSTRACT The article deals with the coletive injunction as an instrument to acssess Justice. When they take out, from the legislator, the possibility to exculpate the appreciation of the Judiciary any threatto the right, the federal Constitution assures access to the Justice, necessary guarantee to the institution of a Democratic State of Law, permiting the free exercise of Fundamental Rights and Guarantees. In this context the coletive Injunction comes as a Constitutional medicine with the destiny to protect coletive and difuses rights, which cover, in tesis, thousands of litigations under the Justice Department. This way, it’s urgent the reexamination of the restriction stablished by the legislator about the truth of Political Parties and associations to stop a injunction, to take off anything able to difficult its use by entities said in piece LXX of article 5th of the Federal Constitution. PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; mandado de segurança coletivo; acesso à justiça. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 168 INTRODUÇÃO No bojo do presente trabalho serão desenvolvidas algumas reflexões acerca das normas constitucionais atinentes ao mandado de segurança coletivo que dificultam o amplo acesso à justiça, principalmente no que diz respeito às restrições introduzidas pelo legislador constituinte para a aquisição da legitimidade ativa pelas entidades coletivas referidas no inciso LXX do artigo 5º da Constituição da República. Qualquer discussão nesse sentido passa, necessariamente, pela compreensão da amplitude da garantia do amplo acesso à justiça, sabidamente encartada no inciso XXXV do artigo 5º da Carta Constitucional, inserido no Título que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais. O estudo desta temática revela, com absoluta nitidez, que a doutrina e a jurisprudência pátrias não mais se contentam com o circunscrito significado, outrora atribuído à garantia constitucional, ora em comento, que a equiparava a mero sinônimo de acesso formal ao Poder Judiciário. Na verdade, impera, hodiernamente, a noção de que o acesso à justiça ultrapassa o conceito formal supra aludido para, à luz dos princípios fundamentais consagrados no Título I da Constituição Federal, compreender a entrega de uma prestação jurisdicional efetiva, capaz de assegurar a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a conseqüente erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais. Neste contexto, não paira qualquer dúvida a respeito da importância do mandado de segurança coletivo, introduzido pelo legislador constituinte de 1988, enquanto remédio específico de tutela destinado à proteção dos direitos coletivos e difusos, que, indiscutivelmente merecem especial atenção da ordem jurídica. No entanto, a despeito de inovar no aspecto em comento, criando instrumento eminentemente democrático e indispensável para a solução de conflitos de amplitude coletiva, paradoxalmente o legislador constituinte estabeleceu condições insustentáveis para a sua utilização pelos partidos políticos e pelas associações legalmente constituídas. As exigências de representação no Congresso Nacional para Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 169 os partidos políticos e de funcionamento há pelo menos um ano para as associações, instituídas no inciso LXX do artigo 5º da Carta Constitucional, por si só revelam a infelicidade em que incorreu o legislador da época, na medida em que os requisitos ora mencionados inegavelmente restringem a possibilidade de uso do mandado de segurança coletivo, em nítido descompasso com a garantia de amplo acesso à justiça. Afigura-se oportuno lembrar que, na defesa dos direitos líquidos e certos, não amparados por habeas corpus ou habeas data, avulta a importância do mandado de segurança, enquanto remédio que notoriamente permite a prestação de tutela célere, adequada e eficaz, não obstante a sumariedade da respectiva cognição. Os breves comentários até aqui expendidos fundamentam, em síntese, a conclusão lançada ao final, que sugere, em última análise, o aprimoramento da norma constitucional em relevo, com a conseqüente eliminação das infundadas restrições criadas para o manejo do mandado de segurança coletivo, sob pena de irremediável prejuízo ao processo de pacificação, atualmente vindicado pela sociedade. A Garantia Constitucional do Amplo Acesso à Justiça. Prescreve o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Em primeiro lugar, impende recordar que o dispositivo constitucional supra aludido consagra o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que nitidamente proíbe a criação de quaisquer obstáculos capazes de impedir ou dificultar o caminho do cidadão na busca dos seus direitos perante o Poder Judiciário. Ao analisar o significado do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, esclarece Rui Portanova136 : Quando o inc. XXV do art. 5º da Constituição Federal diz que a lei não pode “excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito”, verdadeiramente está abrindo o Judiciário a todo tipo de discussão. 136 PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p.p. 82-83. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 170 Esta abertura, no Brasil, é até maior do que aquela existente na Europa. Nosso sistema é misto do sistema romano-germânico com o sistema anglo-saxão. Assim, temos uma base predominantemente legal como o primeiro, mas acesso a discussões de caráter público como o segundo. É o que Cappelletti (...) chama de constitucionalismo moderno ou justiça constitucional. É a nova e grande revolução que, abandonando a idéia da rígida separação dos poderes, busca responder à trágica experiência de um poder político incontrolado, corrupto e tirânico. Constituições como a nossa confiam a órgão jurisdicionais, independentes e imparciais, o sistema de controle e atuação da legitimidade constitucional. ‘A Constituição brasileira se insere, portanto, em muitos aspectos, na vanguarda de uma grande tendência evolutiva contemporânea, uma tendência que . . . tem mudado profundamente a ‘forma de governo’ dos países liberal-democráticos modernos. Prudente realçar, no entanto, que o enfoque restrito até aqui desenvolvido, não se presta a explicar, satisfatoriamente, o verdadeiro alcance e tampouco a esgotar o conteúdo do dispositivo constitucional alhures transcrito. Lembre-se que qualquer interpretação literal merece indiscutível repúdio, porquanto, flagrantemente, divorciada da nova ordem jurídica, instituída pela Constituição da República de 1998. A respeito do tema, esclarece Cláudio Teixeira da Silva137 : Cumpre extrair desse dispositivo constitucional não apenas o significado de que a todos é assegurada a possibilidade de ingresso em juízo (acesso ao Poder Judiciário). Impõe reconhecer incrustada no conteúdo do princípio analisado a garantia de efetiva realização judicial do direito substantivo (acesso à justiça). Nos dias de hoje, não se pode mais admitir o entendimento que o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional proíbe tão-somente a elaboração e a promulgação de leis que excluam formalmente da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 137 SILVA, Cláudio Teixeira da. Mandado de Segurança – O Princípío da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional e o Prazo de Impetração. In RJ n.º 230. Dez/1996. p. 10. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 171 Tal interpretação superficial do princípio significaria aceitar como constitucionais normas de lege ferenda que condicionassem o ajuizamento de ações judiciais ao pagamento de custas elevadas, ou, então, que estabelecessem absurdamente o prazo de vinte anos para a prolação de decisão em causas cuja discussão fosse o ressarcimento de danos causados por autoridade pública no exercício de suas atribuições. Sucede que a regra inscrita no inciso XXXV do artigo 5º da Magna Carta, a par de contemplar o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, simultaneamente, resguarda a garantia do amplo acesso à justiça, com a qual o primeiro guarda estreita sintonia. Salienta Rui Portanova que138 : A preocupação com o acesso à justiça no Brasil, que informa o princípio da inafastabilidade, é uma filosofia libertária, aberta para o social e para a realidade, que busca, imperativa e ingentemente, métodos idôneos de fazer atuar os direitos sociais e uma justiça mais humana, simples e acessível. Enfim, é um movimento para a efetividade da igualdade declarada e consagrada pelo Estado Social. (...) A sociedade brasileira, recém-saída de período extremamente autoritário, ainda vê disseminados resquícios de autoritarismo ... O Judiciário tem sido o local onde se busca evitar pequenas ditaduras. A questão do amplo acesso à justiça traz indiscutível finalidade educativa, de verdadeira adaptação de comportamento a tempos democráticos. Ademais, permite pôr em questão a superação de eventual descompasso entre uma lei antidemocrática e a dinâmica da vida. O Judiciário é acessível, ainda, a demandas que evitem um tratamento exageradamente individualista, na busca de um enfrentamento coletivizado do direito. Assim, prevalece menos o ponto de vista do Estado produtor do direito (legislador/lei, juiz/Judiciário), e prevalece mais a ótica do cidadão consumidor do direito e da justiça. Na seqüência, reportando-se a Horácio Wanderlei Rodrigues, 138 PORTANOVA, Rui. op. cit. p.p. 83-84. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 172 conclui que a vagueza da expressão acesso à justiça permite fundamentalmente, dois sentidos139 : “O primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e conteúdo que o de Poder Judiciário, torna sinônimas as expressões acesso à justiça e acesso ao Judiciário; o segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão justiça, compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano”. A formulação do princípio optou pela segunda significação. Justificase tanto por ser mais abrangente, como pelo fato de o acesso à justiça, enquanto princípio, inserir-se no movimento para a efetividade dos direitos sociais. Nelson Nery Júnior partilha da noção destacada pelos doutrinadores antes citados, alertando que140 : Pelo princípio constitucional do direito de ação, todos têm o direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Não é suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela seja adequada, sem o que estaria vazio de sentido o princípio. (...) Nisso reside a essência do princípio: o jurisdicionado tem direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. A lei infraconstitucional que impedir a concessão da tutela adequada será ofensiva ao princípio constitucional do direito de ação. Proveitoso recordar que o Estado, ao taxativamente proibir a possibilidade de autotutela privada, obrigando os cidadãos, em contrapartida, a submeterem as suas pretensões ao Poder Judiciário, por mero corolário atraiu para si a incumbência de solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses que lhe são colocados à apreciação, com a prestação da tutela almejada pelos titulares dos respectivos direitos substantivos141 . 139 PORTANOVA, Rui. op. cit. p. 112. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.p. 100-101. 141 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O Direito Constitucional à jurisdição. As garantias do cidadão na justiça. Coordenador Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo: Saraiva, 1993. p.p. 31-51 passim. 140 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 173 Não se olvide, a propósito, que a simples proclamação do direito não pode ser interpretada como entrega da prestação jurisdicional quando desacompanhada de tutela capaz de garantir e assegurar, de modo adequado e efetivo, a plena satisfação do direito substancial vindicado. Daí a advertência de Cláudio Teixeira da Silva142 , no sentido de que o processo, enquanto instrumento pelo qual o Estado equaciona os litígios, há de ser concebido pelo legislador ordinário, compreendido pelo jurista, manejado pelo advogado e aplicado pelo magistrado como instrumento verdadeiramente adequado à proteção e realização dos direitos subjetivos previstos abstratamente no ordenamento jurídico. (...). Resulta, então, que o princípio expresso no art. 5º, XXXV, da CF, além de vedar as edições de leis que excluam da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, proíbe, também, que o legislador ordinário elabore normas que restrinjam ou retirem a adequação e efetividade dos instrumentos processuais constitucionais criados com o fim específico de proteger e garantir determinadas espécies de direitos. Afinal de contas, nos tempos atuais, a jurisdição indubitavelmente, assumiu, na definição de Jônatas Luiz Moreira de Paula143 , o status de agente de transformação social, de maneira que É preciso que a doutrina e a práxis jurídica deixem a posição cômoda de “comentar leis”, para criar e realizar o direito objetivo. Para tanto, é preciso redefinir a figura da atividade jurisdicional frente a realidade que ele se encontra. (...) Não é novidade falar das “responsabilidades sociais” da atividade judiciária. Essas “responsabilidades” estão previstas até mesmo no plano normativo, como se pode observar do artigo 5º, da Lei de In142 SILVA, Cláudio Teixeira da. op. cit. p. 10 PAULA, Jônatas Moreira de. A jurisdição como elemento de inclusão social. São Paulo: Editora Manole Ltda, 2002. p. 197. 143 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 174 trodução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657/42). Este dispositivo é expresso em proclamar: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Lamenta-se que a jurisprudência, neste aspecto, não se tem revelado “tão normativista”, pois tal desídia acaba por fulminar interesses sociais maiores que os interesses governamentais. Só assim a jurisdição conseguirá alcançar as finalidades e os objetivos jurídicos, sociais e políticos que lhe são afetos, nos moldes da ordem jurídica construída pelo legislador constituinte de 1988, nitidamente edificada sob os pilares do Estado Democrático de Direito. Nesse cenário, resta insubstituível a advertência lançada por Kazuo Watanabe144 , no sentido de que a problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa. Enfim, é evidente que a garantia consagrada no preceito constitucional ora sub examen exprime-se sob facetas distintas, porém umbilicalmente, sintonizadas e conduzidas, na sua essência, para o acesso à ordem jurídica justa, que, além de outras garantias conexas, compreende: a ampla possibilidade de ingresso em Juízo, vedando-se a criação de quaisquer obstáculos capazes de impedir ou dificultar a postulação dos direitos, abstratamente conferidos, perante o Poder Judiciário; o acesso efetivo a uma ordem de valores e de direitos fundamentais, indispensáveis para a sobrevivência do ser humano e para a pacificação social; a extirpação de eventuais normas legais destinadas a restringir ou retirar a efetividade dos mecanismos processuais criados, inclusive no plano constitucional, com o fito de proteger e garantir determinadas categorias de direitos; e 144 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido; WATANABE, Kazuo (org.). Participação e processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1988. p.p. 128-135 passim. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 175 a atuação da jurisdição voltada para a concessão de tutela justa, adequada, eficaz e célere, de forma a viabilizar a pronta realização dos direitos subjetivos abstratamente consagrados no ordenamento jurídico pátrio. Tudo sob pena de prevalecer a mera retórica, sem qualquer correspondência no plano da realidade, em total desprestígio ao movimento jurídico, social e político que hodiernamente impera, sabidamente direcionado para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, capaz de assegurar a dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais, com a conseqüente erradicação da pobreza. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO GENERALIDADES Apoiando-se em Alfredo Buzaid, José Carlos Barbosa Moreira, Carlos Alberto Menezes e outros doutrinadores, destaca Luís Roberto Barroso145 que o mandado de segurança, consagrado pela primeira vez no artigo 133 da Constituição Federal de 1934, é uma criação tipicamente brasileira, com inspiração no juicio de amparo do Direito mexicano. Surgiu como síntese da interpretação construtiva dos tribunais, a partir da doutrina brasileira do habeas corpus. Seu processo de maturação remete ao Império e aos primeiros tempos da República, época caracterizada por uma grande carência de meios de proteção do cidadão contra o Poder Público. Com exceção da Carta de 1937, editada em época de anormalidade democrática, todas as Constituições subseqüentes fizeram referência expressa ao remédio processual em epígrafe, inclusive a atualmente vigente, que prevê as suas duas espécies (individual e coletivo) nos incisos LXIX e LXX do seu artigo 5º, destinando-as a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, contra ato abusivo ou ilegal de autoridade pública ou de agente de pessoa jurídica no exercício de atri145 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 4. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 185. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 176 buições do poder público. É importante lembrar que o mandado de segurança coletivo representa saudável inovação introduzida pelo legislador constituinte de 1988, na esteira do movimento que se desenvolveu à época para a proteção dos direitos difusos e coletivos, que culminou na ampliação da legitimação ativa conferida, originariamente, ao individual, com o conseqüente alargamento do seu raio de ação146 . Acentua Michel Temer147 que A criação do mandado de segurança coletivo tem dois objetivos: a) fortalecer as organizações classistas e b) pacificar as relações sociais pela solução que o Judiciário dará a situações controvertidas que poderiam gerar milhares de litígios com a conseqüente desestabilização social. Nas palavras de Paulo Bonavides148 A Constituição manifestou com a ampliação da garantia o apreço que vota à defesa coletiva dos direitos, nomeadamente quando ocorre uma imbricação do direito subjetivo individual com o interesse não menos subjetivo do ente político, sindical ou associativo, legitimado doravante para impetrar o referido mandado. Porém, para que as afirmações antes lançadas não sejam interpretadas, equivocadamente, convém esclarecer que não se está diante de um instituto totalmente novo, uma vez que, conforme adverte Luís Roberto Barroso149 , A Constituição tão-só ampliou o elenco dos legitimados à propositura do mandado de segurança tradicional (de cunho individual), para tanto utilizando a técnica da substituição processual. Ao invés de se exigir que cada sujeito, isoladamente, ou em litisconsórcio, atue na defesa de direitos próprios, concebeu-se a solução inteligente e prática de permitir que a entidade que os aglutina, mediante um só ‘writ’, obtenha a tutela do direito de todos. Facilita-se, assim, o acesso à justiça e permite-se que pessoas coletivas, por vezes mais apare146 VELLOSO, Carlos. Mandado de segurança: uma visão de conjunto. In Mandados de Segurança e de Injunção. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 1990. p. 106. 147 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 203. 148 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 506. 149 BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p.p. 195-196. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 177 lhadas e menos sujeitas a retaliações, patrocinem os interesses de seus membros. De parte isto, evita-se, ainda, a multiplicidade de demandas idênticas e suprime-se a possibilidade de decisões logicamente conflitantes. Hely Lopes Meirelles150 conceitua o mandado de segurança como o meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça (CF, art. 5º, LXIX e LXX; Lei n. 1.533/51, art. 1º). A propósito, malgrado a vacilação que ainda perdura na jurisprudência e na doutrina pátrias, atualmente predomina a corrente que atribui ao mandado de segurança, a despeito de sua previsão constitucional, a natureza jurídica de ação, que se diferencia das demais espécies de ações cíveis pela especificidade do seu objeto e pela sumariedade do seu procedimento151 , possibilitando a concessão de prestação jurisdicional rápida e eficaz, capaz de assegurar o exercício do direito violado. LEGITIMAÇÃO ATIVA Estabelece o inciso LXX, do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil: LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: partido político com representação no Congresso Nacional; organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados. Anote-se, em primeiro lugar, que o dispositivo constitucional em 150 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p.p. 21-22. MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit. p. 31 152 BARBI, Celso Agrícola. Mandado de Segurança na Constituição de 1988. In Mandados de Segurança e de Injunção. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 1990. p. 69. 151 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 178 tela confere legitimação anômala152 -153 às entidades nele referidas, autorizando-as a postular direito alheio em nome próprio (CPC, art. 6º), na qualidade de substituto processual. Desta opinião partilha Luís Roberto Barroso154 : É preciso ter em linha de conta, todavia, que se trata de instituto que opera no plano coletivo, devendo o objeto da tutela jurisdicional amoldar-se a esta dimensão transindividual. Vale dizer: os direitos e interesses protegidos não pertencem a um único indivíduo, mas a uma pluralidade deles, que em lugar de agirem cada um de per se, são substituídos no plano processual pela entidade respectiva. Dessa forma, presentes os requisitos para a impetração do writ individual, o mandado de segurança coletivo poderá ser direcionado à tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. (...) Trata-se, como já afirmado, de hipótese de substituição processual. E isto ocorre sempre que alguém, por autorização legal, pleitea, em nome próprio, direito pertencente a outrem (CPC, art. 6º). Os direitos tuteláveis, em qualquer de suas modalidades, não se encontram no patrimônio da entidade impetrante do mandado de segurança coletivo, mas são titularizados pelos seus associados e filiados. Neste sentido reiteradas decisões proferidas pelos Tribunais Pátrios, a exemplo daquelas retratadas nas ementas que seguem: MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL – AUTORIZAÇÃO EXPRESSA – CF, ART. 5º, LXX; XXI – Não se exige, tratando-se de segurança coletiva, a autorização expressa aludida no inciso XXI do art. 5º da CF, que contempla hipótese de representação. A legitimação das organizações sindicais, entidades de classe ou associações, para a segurança coletiva, é extraordinária, ocorrendo, em tal caso, substituição processual. CF, art. 5º, LXX155 . 153 SANTOS, Ernani Fidélis dos. Mandado de segurança individual e coletivo. In Mandados de Segurança e de Injunção. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 1990. p.p. 129-130 154 BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p.p. 196-‘97. 155 STF – RE 212.707/DF. 2ª Turma. Rel. Min. Carlos Velloso. DJU 20.02.1998. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 179 MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – ENTIDADE SINDICAL – EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM EXAME DO MÉRITO – AUSÊNCIA DE PROCURAÇÃO DE CADA SINDICALIZADO – DESNECESSIDADE – ART. 5º, XX, DA CF – SUBSTITUTO PROCESSUAL. 1 – Tratando-se de mandado de segurança coletivo impetrado por entidade sindical, atua esta como substituto processual, na forma do artigo 5º, inciso LXX, da Constituição Federal. E, nestes termos, ajuíza ação em defesa de direito alheio, mas em nome próprio, razão pela qual não se exige a autorização dos seus sindicalizados, nem procuração neste sentido, como exige o art. 37, do CPC. 2 – Não há que se confundir esta legitimação extraordinária do sindicato com a previsão contida em outro preceito constitucional, artigo 5º, inciso XXI, que versa sobre representação das entidades associativas, em que é necessária a autorização para a defesa em juízo, já que não se atua em nome próprio (...)156 . No entanto, por mais que se tente dilatar a interpretação do dispositivo constitucional retro citado, forçoso concluir que somente as entidades nele, explicitamente, referidas, têm legitimidade para impetrar o mandado de segurança em sua versão coletiva. PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL – MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – LEGITIMIDADE PARA IMPETRAÇÃO – LITISCONSÓRCIO – CONDIÇÕES DA AÇÃO – CONHECIMENTO. I – A teor da literalidade do art. 5º, LXX, da Constituição Federal, o mandado de segurança coletivo, instituto da denominada jurisdição constitucional, especificamente, do Direito Processual Constitucional, constitui a ação civil de rito sumário especial hábil para a proteção de direito coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus e habeas data, lesado ou ameaçado de lesão por ato de autoridade. II – Detém legitimidade ativa para o mandamus coletivo apenas o partido político com representação no Congresso Nacional, a organização sindical, a entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano (art. 5º, LXX, da Constituição Federal). (...)157 . 156 157 TRF 2ª Reg. – MAS 97.02.18508-4/RJ. 4ª Turma. Rel. Des. Fed. Benedito Gonçalves. DJU 25.10.2001. TRF 2ª Reg. – MAS 028855. 1ª Turma. Rel. Des. Fed. Ney Fonseca. DJU 23.01.2001. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 180 MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – ILEGITIMIDADE ATIVA – EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO – Se o impetrante não tem legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo, por não ser partido político com representação no Congresso Nacional, nem organização sindical, entidade de classe ou associação, nos termos do artigo 5º, LXX, da Constituição Federal, o processo deve ser extinto, sem julgamento do mérito. Recurso desprovido158 . A propósito, convém relembrar que os Tribunais Pátrios já decidiram que o Estado-membro e o Ministério Público não dispõem de legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo, nos moldes das ementas que seguem: MANDADO DE SEGURANÇA. QUESTÃO DE LEGITIMIDADE ATIVA: IMPETRAÇÃO POR ESTADO-MEMBRO CONTRA ATO DO PRESIDENTE DE REPÚBLICA QUE APROVOU PROJETO INCENTIVADO DE INDÚSTRIA PETROQUÍMICA, A INSTALAR-SE EM OUTRA UNIDADE DA FEDERAÇÃO, SOB ALEGAÇÃO DE PREJUÍZO AO PÓLO PETROQUÍMICO A INSTALAR-SE NO ESTADO IMPETRANTE. (...). II. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO: QUESTÃO DE LEGITIMIDADE EXTRAORDINÁRIA DO ESTADO-MEMBRO EM DEFESA DE INTERESSES DE SUA POPULAÇÃO. AO ESTADO-MEMBRO NÃO SE OUTORGOU LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA PARA A DEFESA, CONTRA ATO DE AUTORIDADE FEDERAL NO EXERCÍCIO DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO, SEJA PARA A TUTELA DE INTERESSES DIFUSOS DE SUA POPULAÇÃO – QUE É RESTRITO AOS ENUMERADOS NA LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA (L. 7.347/85) -, SEJA PARA A IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO, QUE É OBJETO DE ENUMERAÇÃO TAXATIVA DO ART. 5º, LXX DA CONSTITUIÇÃO. (...)159 . 158 159 a a TJMG – AC. 000.250.387-8/00. 1ª C. Cív. Rel . Des . Maria Isabel de Azevedo Souza. j. 27.03.2002. STF – MS 21059/RJ. Pleno. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. j. 05/9/1990. DJ 19/10/1990. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 181 Mandado de Segurança Coletivo. Ministério Público. Concurso Público. O Ministério Público não tem legitimidade, nos termos do art. 5º, LXX, da Constituição Federal, para impetrar o mandado de segurança coletivo visando à nulidade do concurso160 . De outra sorte, em que pese a cizânia jurisprudencial originariamente instalada a respeito da questão, atualmente, resta consolidado o entendimento no sentido de que as entidades discriminadas no inciso LXX, do artigo 5º, da Magna Carta, não dependem de autorização expressa dos seus associados para a impetração do mandado de segurança coletivo. Não se ignora que o inciso XXI, do artigo 5º, da Carta Constitucional, condiciona a legitimidade da entidade associativa para representar seus filiados à expressa autorização dos respectivos interessados. No entanto, não se pode olvidar que tal regra versa sobre o instituto da representação, inocorrente na espécie e sabidamente inconfundível com o da substituição processual. Dita orientação é maciçamente predominante nos Tribunais Pátrios, consoante evidenciam as ementas abaixo transcritas: EMENTA: CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. AUTORIZAÇÃO EXPRESSA. DESNECESSIDADE. (...) I – A legitimação das organizações sindicais, entidades de classe ou associações, para a segurança coletiva, é extraordinária, ocorrendo, em tal caso, substituição processual. CF, art. 5º, LXX. II – Não se exige, tratando-se de segurança coletiva, a autorização expressa aludida no inc. XXI do artigo 5º, CF, que contempla hipótese de representação processual. (...)161 . CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – ASSOCIAÇÃO – DEFESA DOS INTERESSES DOS ASSOCIADOS EM LITÍGIO – AUTORIZAÇÃO EXPRESSA – DESNECESSIDADE. I – A associação re160 161 TJ/PR – Ac. 9711. 1ª C. Cív. Rel. Des. Francisco Muniz. j. 30/11/1993. DJPR 17/12/1993. STF – MS 22132-1/RJ. Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. DJ 18/10/1996. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 182 gularmente constituída e em funcionamento pode postular em favor de seus membros ou associados, não carecendo de autorização especial em assembléia geral. II – A legitimação para manejar a ação de segurança é atribuída aos entes consignados no art. 5º, inciso LXX, da CF/88, e independe de autorização de quaisquer interessados (...)162 . Mandado de segurança coletivo. Associação de classe. Legitimidade para figurar no pólo ativo. Direito líquido e certo. Inexistência. As regras contidas no art. 5º, incisos XXI e LXX, da Constituição Federal, por terem compreensão diversa, devem ser interpretadas isoladamente, porquanto diferem, em essência, a legitimação da sociedade (ou associações) para impetrar mandado de segurança coletivo daquela pertinente à representação em juízo, ativa ou passivamente. A legitimação para manejar a ação de segurança é atribuída aos entes consignados no art. 5º, inciso LXX, da Carta Político, independe de autorização de quaisquer interessados, aos quais não se defere a intromissão no processo para postular em sentido contrário à atuação do substituto, porque eles agem em nome próprio, em defesa de direito de terceiros, por expressa autorização constitucional (...)163 . NORMAS OBSTACULIZADORAS DO ACESSO À JUSTIÇA Apoiando-se em Frederico De Castro, ensina Américo Plá Rodriguez, que os princípios de direito cumprem tríplice missão, nem sempre na mesma medida e na mesma intensidade, a saber164 : informadora: inspiram o legislador, servindo de fundamento para o ordenamento jurídico; normativa: atuam como fonte supletiva, no caso de ausência da lei. São meios de integração de direito, e interpretadora: operam como critério orientador do juiz ou do intérprete. Outrossim, ao tratar dos princípios que norteiam a chamada in162 a a a STJ – ROMS 7846/RJ. 2 Turma. Rel . Min . Laurita Vaz. DJU 22/04/2002. STJ – MS 5.466-7/RJ. 1ª Turma. Rel. Min. Demócrito Reinaldo. j. 04/10/1995. DJU 29/09/1997. 164 RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Trad. de Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr. Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. p.17. 163 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 183 terpretação constitucional, alude, Inocêncio Mártires Coelho,165 aos princípios da máxima efetividade e da força normativa da Constituição que, na sua concepção, devem ser entendidos do seguinte modo: c) princípio da máxima efetividade: na interpretação das normas constitucionais devemos atribuir-lhes o sentido que lhes empreste maior eficácia ou efetividade; (...) f) princípio da força normativa da Constituição: na interpretação constitucional devemos dar primazia às soluções que, densificando as suas normas, as tornem eficazes e permanentes. Por sua vez, ensina Konrad Hesse166 que: a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tabula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. As noções de máxima eficácia e efetividade, extraídas dos princípios comentados alhures que, vale a lembrança, cumprem tríplice missão – informadora, normativa e interpretadora – nas palavras de Américo Plá Rodriguez167 , inegavelmente, balizam a interpretação do dispositivo constitucional que trata do mandado de segurança coletivo, dada a sua indubitável importância no contexto social, especialmente 165 COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 91. 166 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991. p.p. 22-23. 167 RODRIGUEZ, Américo Plá. op. cit. p.17 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 184 no que tange à proteção dos direitos coletivos e difusos. Pois bem. A interpretação literal da alínea a do inciso LXX, da Constituição Federal, conduz à conclusão de que o partido político sem representação no Congresso Nacional não detém legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo, ainda que tenha sido regularmente criado e registrado168 . Neste aspecto o legislador constituinte incorreu em grave infelicidade. Note-se: ao invés de ampliar a legitimidade ativa para impetração do mandado de segurança, estendendo-a para todos os partidos políticos regularmente constituídos, sem qualquer justificativa plausível optou o legislador pela restrição, colocando à margem as agremiações políticas sem representação no Congresso Nacional, em flagrante descompasso com o movimento voltado para a garantia do amplo acesso à justiça. Proveitoso recordar que o partido político, enquanto pessoa jurídica de direito privado, destina-se a “assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal” (Lei 9.096/95, art. 1º). Diante das finalidades e dos objetivos que foram delegados aos partidos políticos pela Lei 9.096/95, condizentes, aliás, com os valores fundamentais consagrados nos artigos 1º e 3º da Magna Carta, nada justifica a manutenção da restrição imposta na parte final da regra constitucional em apreço. Ora, na medida em que o partido político regularmente constituído detém personalidade jurídica e plena capacidade, em tese, para demandar em juízo, ainda que não disponha de qualquer representação no Congresso Nacional, resta inadmissível a sua exclusão do rol de legitimados para manejar o mandado de segurança, mormente diante das incumbências que lhe foram estendidas pela Lei 9.096/95. Na realidade, a opção utilizada pelo legislador constituinte, de singelamente repetir a fórmula inerente à propositura da ação de 168 CRETELLA JUNIOR, José. Comentários a lei do mandado de segurança. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 10 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 185 inconstitucionalidade (CF, art. 103, inc. VIII), sem maiores digressões acerca da influência do mandado de segurança coletivo na proteção dos direitos coletivos e difusos, nitidamente contraria a idéia de amplo acesso à justiça pregada no inciso XXXV, do artigo 5º, da Carta Constitucional. É verdade que, um único representante no Congresso Nacional satisfaz o requisito constitucional em análise. Poder-se-ia argumentar, então, que o não preenchimento desta condição evidencia total ausência de representatividade do partido político, de modo a justificar a limitação imposta. Porém, eventual argumentação neste sentido esbarraria nos artigos 1º, inciso V, e 17, da Magna Carta, que cristalinamente asseguram o pluralismo político e a pluralidade partidária. Por outro lado, ainda gravita intensa controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca da abrangência dos direitos e garantias suscetíveis de tutela através de mandado de segurança impetrado por partido político, uma vez que a alínea a do inciso LXX, do artigo 5º, da Constituição não se valeu da alusão aos interesses dos membros e associados contida na sua alínea b, aplicável às organizações sindicais, às entidades de classe e às associações legalmente constituídas. Reportando-se a Carlos Mário Velloso, adverte Luís Roberto 169 Barroso que atualmente prevalece na jurisprudência o entendimento que defende a interpretação restritiva do preceito constitucional em análise, limitando a atuação dos partidos políticos à proteção de direitos de natureza política e em favor dos seus filiados. Neste diapasão reiteradas decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, espelhadas nas ementas que seguem: PROCESSUAL – MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – PARTIDO POLÍTICO – ILEGITIMIDADE. Quando a Constituição autoriza um partido político a impetrar mandado de segurança coletivo, só pode ser no sentido de defender os seus filiados e em questões políticas, ainda assim, quando autorizado por lei ou pelo estatuto. Impossibilidade de dar a um partido político legitimidade para vir a 169 BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p. 199. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 186 juízo defender 50 milhões de aposentados, que não são, em sua totalidade, filiados ao partido e que não autorizaram o mesmo a impetrar mandado de segurança em nome deles170 . MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – Tutela de Interesses individuais – Ilegitimidade de parte de PARTIDO POLÍTICO. Os interesses individuais não devem ser avocados pelos partidos políticos, quando no uso do mandado de segurança coletivo, pois a sua atuação nesse campo não tem a amplitude que pretendem. O mesmo ocorre com os sindicatos e outras entidades associativas171 . Entrementes, cumpre indagar: se a Lei 9.096/95 outorgou aos partidos políticos o encargo de garantir o regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defesa dos direitos fundamentais definidos na Constituição Federal, não parece mais sensato estenderlhes a legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança coletivo, na defesa dos direitos difusos e coletivos concernentes às esferas jurídicas acima citadas? A resposta positiva é medida que se impõe. Já no julgamento do MS 197/DF (ementa acima), levado a efeito no ano de 1990, advertiu o Relator, originariamente, designado, Min. José de Jesus Filho, em voto vencido: O legislador constituinte, ao assegurar aos partidos políticos o direito de impetrar mandado de segurança coletivo, desde que tenha representação no Congresso Nacional, está dando cumprimento à sua destinação e outorgando-lhes o instrumento legal, para o exercício de uma de suas finalidades. De outra parte, não se pode esquecer que o texto da nossa atual Constituição é, marcadamente parlamentarista, cujo regime, para sobreviver, exige a presença de partidos políticos fortes, e uma das formas de fortalecê-los é outorgando-lhes o direito de impetrar mandado de segurança coletivo em favor de determinado segmento social, sem representatividade ativa, cujo sucesso, sem dúvida, atrairá para suas hostes, se não novos filiados, pelo menos simpatizantes. Portanto, tenho para mim, com a devida venia, que os partidos estão legitimados ativamente, por lei, a ingressar em juízo na defesa do postulado que lhes cum170 171 STJ – MS 197/DF. 1ª Seção. Rel. Min. Garcia Vieira. DJ 20/08/1990. STJ – MS 1348-0/MA. 2ª Turma. Rel. Min. Américo Luz. j. 02/6/1993. DJU 13/12/1993. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 187 pre preservar e defender. Na espécie, o Partido dos Trabalhadores, ingressou em juízo na defesa de um dos direitos sociais humanos, fundamentais, inscritos na Constituição (art. 6º - previdência social) e direitos à aposentadoria (art. 7º, inciso XXIV). Assim pensando, rejeito a preliminar de ilegitimidade ativa, para a qual peço destaque. Aliás, se esta não fosse a intenção do legislador constituinte, será que a redação sugerida pelo Relator Bernardo Cabral e aprovada em primeiro turno, que incluía no caput do inciso LXX do artigo 5º da Constituição Federal a expressão “em defesa dos interesses de seus membros ou associados”, teria sido alterada na seqüência pelos constituintes? É lógico e evidente que não. Após chamar a atenção de que a Constituição não indica os titulares dos interesses que podem ser defendidos pelos partidos políticos pela via do mandado de segurança coletivo, esclarece José Afonso da Silva,172 o caminho percorrido durante a tramitação, de modo a elucidar a questão: As redações nas várias fases de elaboração constitucional: Anteprojeto Nelton Friedrich, art. 29 – “O mandado de segurança coletivo para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, pode ser impetrado por Partidos Políticos, organizações sindicais, órgãos fiscalizadores do exercício da profissão, associações de classe e associações legalmente constituídas e em funcionamento há, pelo menos, um ano na defesa dos interesses de seus membros ou associados”. Esta redação passou para o Projeto aprovado na Comissão de Sistematização (art. 6º, par. 50), com a supressão da cláusula “para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus”. A redação sugerida pelo Relator Bernardo Cabral, para o primeiro turno e aí aprovada, despertou a atenção para a delimitação do objeto do mandado de segurança coletivo dos partidos. Veio ela no art. 5º, LXXI: “conceder-se-á mandado de segurança coletivo, em defesa dos interesses de seus membros ou 172 SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 462. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 188 associados, por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, um ano”. A rigor, essa redação correspondia à que foi aprovada no Projeto de Sistematização. Houve, porém, reação ao enquadramento dos partidos nesses limites da legitimação, de onde, em negociação de lideranças, transpor-se aquela cláusula para o final da alínea b, vinculada apenas a entidades ali referidas. Lembra Luís Roberto Barroso,173 que parte da doutrina nacional, aí inseridos Ada Pellegrini Grinover, Celso Agrícola Barbi e Lucia Valle Figueiredo, defende a tese de que a legitimação ativa do partido político neste aspecto é ampla, sendo o mandado de segurança coletivo o meio colocado à sua disposição para a tutela dos direitos difusos e coletivos que se relacionam aos segmentos discriminados no artigo 1º, da Lei 9.096/95. Percebendo os problemas daí advindos, alguns Tribunais pátrios têm rechaçado expressamente a interpretação restritiva conferida pelo Superior Tribunal de Justiça ao dispositivo constitucional em tela. Atente-se: MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – Matéria tributária – LEGITIMIDADE ATIVA DO PARTIDO POLÍTICO configurada – ART. 5/ CF, LXX, a. O partido político é parte legítima para propor mandado de segurança coletivo em defesa dos contribuintes, posto que o art. 5º, inciso LXX, letra “a” da Carta Magna de 1988 ampliou de forma irrestrita a sua competência, que não se restringe apenas aos filiados do partido. A majoração da base de cálculo embutida no IPTU e cobrado no exercício de 1995, em relação ao de 1994, carece de respaldo legal, quando não decorreu de lei anterior, regularmente aprovada pelo Legislativo Municipal174 . A Constituição Federal (art. 5º, LXX, a) não restringe a iniciativa dos partidos políticos aos direitos da comunidade partidária em casos de mandado de segurança coletivo. A majoração do IPTU somente é possível quando exista lei que a autorize, escapando do poder da autoridade administrativa proceder sua correção mediante decreto 173 174 BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p.p. 198-199. TA/PR – Ap. Cív. 0087381-2. 4ª C. Cív. Rel. Juiz Clayton Reis. j. 19/6/1996. DJPR 22/11/1996. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 189 que altera o valor venal dos imóveis175 . Legitimação dos partidos políticos e entidade estudantil para ação mandamental coletiva. Têm os partidos e entidades estudantis direito de ação coletiva independentemente do interesse peculiar, posto que se constituem em instrumentos de participação ideologicamente organizados. Gratuidade da matrícula constitucionalmente garantida. Material escolar ou programas complementares de ensino – como atividades ligadas ao ensino público – são igualmente gratuitas. A esse propósito não se pode cobrar serem tais atividades integrantes do serviço público de ensino176 . Restrição similar foi criada pelo legislador constituinte na parte final da alínea “b” do inciso LXX do artigo 5º da Constituição, exigindo das associações legalmente constituídas o funcionamento pelo período mínimo de um ano para a aquisição da legitimidade para propor mandado de segurança coletivo na defesa dos interesses dos seus membros ou associados177 . A propósito, de imediato cumpre enfatizar que a limitação ora comentada não é aplicável às organizações sindicais e às entidades de classe, sob pena de iniludível ofensa aos princípios norteadores da interpretação constitucional – isto é, da máxima efetividade e da força normativa da Constituição – e de total menosprezo à garantia do amplo acesso à justiça. Idêntica linha de raciocínio foi externada pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em decisão do seguinte teor: RECORRENTE: UNIÃO FEDERAL. RECORRIDO: SINDICATO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DO TESOURO NACIONAL. MENTA: LEGITIMIDADE DO SINDICATO PARA A IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO INDEPENDENTEMENTE DA COMPROVAÇÃO DE UM ANO DE CONSTITUIÇÃO E FUNCIONAMENTO. Acórdão que, interpretando desse modo a 175 a TJ/PR – Ac. 3705. 3 C. Cív. Rel. Juiz Ivan Bortoleto. j. 15/9/1992. DJPR 30/10/1992. a a TRF 4 Reg. – MS 90.04.02703-3/RS. 3 Turma. Rel. Juiz Fábio Bittencourt da Rosa. DJU II 29/1/1992. 177 CRETELLA JUNIOR, José. op. cit. p. 21. 176 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 190 norma do art. 5º, LXX, da CF, não merece censura. Recurso não conhecido178 . Inclusive, da fundamentação do acórdão, de lavra do Min. Ilmar Galvão, extrai-se a seguinte lição: Como relatado, insurge-se a recorrente contra julgado que afastou a ilegitimidade sindical para a impetração de mandado de segurança coletivo ao entendimento de que a exigência quanto à constituição e funcionamento, há pelo menos um ano, prevista no art. 5º, LXX, da Carta, refere-se, exclusivamente, à associação, não abrangendo as demais entidades nele previstas. Colhe-se do voto condutor da acórdão a seguinte fundamentação, que tenho como incensurável: “Somente para a associação é que se exige que esteja em funcionamento, há pelo menos um ano. Entenderam, no entanto, o douto Juiz a quo e o Ministério Público que este pressuposto é exigível, também, do sindicato e da entidade de classe. A razão da exigência para a associação está em que esta não tem a estabilidade que tem o sindicato ou a entidade de classe, e, em face da facilidade com que pode ser criada. Assim, poderia ser instituída para uma eventualidade, como para impetrar mandado de segurança. A associação é uma mera união. Daí a exigência de que seja legalmente constituída e que esteja em funcionamento há mais de um ano. As associações são variadas e múltiplas. As formalidades para sua criação são mínimas, não tendo a solidez e a segurança das outras duas entidades”. José da Silva Pacheco constatou, com rara felicidade, o deslize cometido pelo legislador constituinte179 : Em vez de ser o remédio propiciado a todas as entidades personalizadas ou não, associações registradas ou não, permanentes ou eventuais, para a garantia de interesses comuns, como por exemplo as associações de bairros para a defesa do meio ambiente, o inciso LXX do art. 5º, da Constituição, de 1988, em lugar de estender a legitimidade, restringiu-a, no que concerne ao mandado de segurança. 178 STF - RE 198.919-0/DF. Rel. Min. Ilmar Galvão. j. 15/6/1999. DJ 14/9/1999. PACHECO, José da Silva. O Mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 308. 179 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 191 Analisando a questão, assim decidiu a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal: MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – PETIÇÃO INICIAL DESACOMPANHADA DE DOCUMENTO ESSENCIAL – FALTA DE COMPROVAÇÃO DE QUE A IMPETRANTE É ENTIDADE LEGALMENTE CONSTITUÍDA E EM FUNCIONAMENTO HÁ PELO MENOS UM ANO – IMPOSSIBILIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA – MANDADO DE SEGURANÇA NÃO CONHECIDO. – A ação de mandado de segurança – ainda que se trate do “writ” coletivo, que se submete às mesmas exigências e aos mesmos princípios básicos inerentes ao “mandamus” individual – não admite, em função de sua própria natureza, qualquer dilação probatória. É da essência do processo de mandado de segurança a característica de somente admitir prova literal pré-constituída, ressalvadas as situações excepcionais previstas em lei (Lei n. 1533/51, art. 6. e seu parágrafo único)180 . A propósito, preocupações ligadas ao uso indevido e abusivo do remédio processual em exame, de modo a viabilizar a construção de fraudes e o desvirtuamento da finalidade da lei, apesar de louváveis não justificam o obstáculo introduzido pelo legislador constituinte às associações, que não estejam funcionando pelo lapso de tempo mínimo de 01 ano. Ora, a legislação infraconstitucional está devidamente aparelhada para coibir atitudes porventura cometidas em detrimento dos princípios da lealdade e boa-fé processuais, que, sabidamente, norteiam a atuação das partes em Juízo, a exemplo das regras inscritas nos artigos 18 e 601, do CPC, que tratam da litigância de má-fé e dos atos atentatórios à dignidade da Justiça, respectivamente. Basta que os operadores do direito utilizem os mecanismos colocados à disposição, com a aplicação de sanções severas, inclusive a título educativo, para que condutas desta natureza sejam extirpadas. Agora, simplesmente, retirar das associações constituídas a menos de um ano a legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo na defesa dos interesses dos seus membros ou associados é 180 STF - MS 21098/DF. Rel. Min. Celso de Mello. j. 20/8/1991. DJ 27/3/1992 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 192 opção que, com absoluta nitidez, destoa da idéia de um Estado que pretende ser intitulado de democrático e de garantidor do amplo acesso à uma ordem jurídica justa. Em suma, diante do fundamental e obrigatório resguardo que o ordenamento jurídico pátrio deve conferir à garantia do amplo acesso à justiça, em atenção ao mandamento insculpido no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, exsurge, com absoluta clareza, a necessidade de alteração da norma constitucional que trata do mandado de segurança coletivo, com a conseqüente exclusão das limitações impostas aos partidos políticos – “... com representação no Congresso Nacional” – e às associações – “... e em funcionamento há pelo menos um ano...”. CONCLUSÕES 1. A garantia do amplo acesso à justiça encontra sustentáculo no inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal, que simultaneamente consagra o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. 2. Ao proibir a autotutela privada, obrigando os cidadãos a submeterem as suas pretensões ao Poder Judiciário, o Estado atraiu para si o mister de solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses instaurados, com a prestação da tutela almejada pelos titulares dos respectivos direitos substantivos. 3. A mera proclamação do direito, não pode ser interpretada como entrega da prestação jurisdicional, quando desacompanhada de tutela capaz de garantir e assegurar, de modo adequado e efetivo, a plena satisfação do direito substancial vindicado. 4. A jurisdição precisa assumir o seu papel de agente de transformação social e realizar, concretamente, o direito objetivo, sob pena de não alcançar as finalidades e os objetivos jurídicos, sociais e políticos que lhe são afetos, nos moldes da ordem jurídica construída pelo legislador constituinte de 1988, nitidamente edificada sob os pilares do Estado Democrático de Direito. 5. A garantia de acesso à justiça não se resume à mera noção de acesso formal ao Poder Judiciário, porquanto compreende, simultaneamente: a ampla possibilidade de ingresso em Juízo, sem quaisRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 193 quer obstáculos; o acesso efetivo a uma ordem de valores e de direitos fundamentais, indispensáveis para a sobrevivência do ser humano e para a pacificação social; a extirpação de normas legais que restrinjam ou retirem a efetividade dos mecanismos processuais criados com a finalidade de proteger determinadas classes de direitos e a atuação da jurisdição voltada para a prestação de tutela efetiva. 6. O mandado de segurança coletivo representa saudável inovação introduzida pelo legislador constituinte de 1988, voltada para a proteção dos direitos difusos e coletivos, de modo a fortalecer as organizações classistas e pacificar as relações sociais, mediante solução conjunta de várias situações controvertidas que, por serem idênticas, merecem ou podem merecer tratamento uniforme. 7. Na interpretação constitucional deve ser extraído o significado que empreste maior efetividade às normas constitucionais, de maneira a torná-las eficazes e permanentes, em consonância com a realidade social. 8. A limitação estabelecida na parte final da alínea a, do inciso LXX, da Constituição Federal, que reduz a legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional, choca-se com a garantia constitucional de amplo acesso à justiça. 9. Na medida em que o partido político, regularmente, criado e registrado detém personalidade jurídica e plena capacidade, em tese, para demandar em juízo, ainda que não disponha de qualquer representação no Congresso Nacional, nada justifica a sua exclusão do rol de legitimados para manejar o mandado de segurança coletivo, seja em virtude das finalidades e dos objetivos que lhe foram delegados pela Lei 9.096/95, condizentes com os valores fundamentais agasalhados nos artigos 1º e 3º, da Constituição Federal, seja porque o ordenamento jurídico pátrio, explicitamente, assegura o pluralismo político e a pluralidade partidária (artigos 1º, inciso V, e 17 da Magna Carta). 10. Se o artigo 1º, da Lei 9.096/95, atribuiu aos partidos políticos o encargo de garantir o regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defesa dos direitos fundamentais definidos Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 194 na Constituição Federal, o mandado de segurança coletivo pode ser usado, por tais agremiações, na defesa dos direitos difusos e coletivos concernentes às esferas jurídicas supra aludidas. 11. A restrição criada pelo legislador constituinte na parte final da alínea b, do inciso LXX, do artigo 5º, da Constituição, que exige das associações legalmente constituídas o funcionamento pelo período mínimo de um ano para a aquisição da legitimidade para propor mandado de segurança coletivo, na defesa dos interesses dos seus membros ou associados, agride a garantia de amplo acesso à justiça. 12. O requisito temporal previsto na alínea b, do inciso LXX do artigo 5º, da Constituição Federal, não é aplicável com relação às organizações sindicais e entidades de classe, sob pena de inegável ofensa aos princípios norteadores da interpretação constitucional – isto é, da máxima efetividade e da força normativa da Constituição. 13 A legislação infraconstitucional contempla mecanismos que permitem a repulsa de atitudes ofensivas aos princípios da lealdade e da boa-fé processuais, porventura praticadas em virtude da ampliação da legitimidade ativa para as associações em funcionamento, há menos de um ano, a exemplo das regras inscritas nos artigos 18 e 601, do CPC, que tratam da litigância de má-fé e dos atos atentatórios à dignidade da Justiça, respectivamente. 14. Diante do fundamental resguardo que o ordenamento jurídico pátrio deve conferir à garantia do amplo acesso à justiça, faz-se necessária a alteração do inciso LXX, do artigo 5º, da Carta Constitucional, para que sejam extirpadas as limitações impostas à legitimidade dos partidos políticos e das associações para a impetração do mandado de segurança coletivo. REFERÊNCIAS BARBI, Celso Agrícola. Mandado de segurança na Constituição de 1988. In Mandados de segurança e de injunção. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 1990. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 4. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 195 ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. BRASIL. 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Revista dos Tribunais, 1988. =============================================================== Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 197 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE DO ATO PROCESSUAL 181 ANDREY HERGET PROFESSOR NO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI & COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA. ESPECIALISTA EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL PELA UNOESC. MESTRANDO EM DIREITO PROCESSUAL E CIDADANIA PELA UNIVERSIDADE PARANAENSE. ADVOGADO NO PARANÁ. RESUMO O artigo trata do princípio da publicidade do ato processual em perspectiva histórica, estudado desde as origens romanas, passando pelas Ordenações, a Revolução Francesa, os movimentos constitucionais europeus e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O texto destaca a atual previsão constitucional da publicidade dos atos processuais no artigo 5º, inciso LX da Constituição Federal de 1988, e de suas possíveis restrições. O autor ressalta que tal princípio é essencial para o processo, refutando o autoritarismo, pois a democracia não se coaduna com regras que determinem a impossibilidade da ampla publicidade do ato processual. ABSTRACT The article is about the Marketing Principle of the Procedural Act in a Historical perspective, studying since its Roman origins, going through the System, the French Revolution, the Constitutional Europeans movements and The Universal Declaration of Human Rights. The text points to the actual constitutional predict of Marketing of the procedural act in article 5th, piece LX of the Federal Constitution of 1988, and its possible restrictions. The author says that this principle is essencial to the procedure, condening the authoritarism, because democracy doesn’t get along to the rules that determine the impossibility of big publicity of the procedural act. PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Processual; princípio da publicidade dos atos processuais. Em verdade, o que buscamos demonstrar em nosso modesto trabalho, comungando com a unanimidade dos adeptos do Princípio da Publicidade dos Atos Processuais, é de que sua presença faz parte, é da essência do processo, porque rebate com veemência todo e qual181 Monografia apresentada no Curso de Mestrado em Direito Processual e Cidadania, oferecido pela Universidade do Paraná – Unipar, com ênfase para o módulo História do Direito Processual Brasileiro. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 198 quer sistema que se funde na força, na exceção e no autoritarismo. A democracia, tão buscada historicamente pelos povos, tão pregada pela humanidade nos tempos atuais, não se coaduna com regras que determinem a impossibilidade da ampla publicidade do ato processual. A análise desta, deve se dar sob um prisma da maior amplitude possível. A investigação, como bem lembrado pelo ilustre jurisconsulto Rui Portanova, “ deve ser da publicidade do processo, e não só no processo182 “. Não foi por menos, que a construção histórica da necessidade da publicidade do ato processual ajudou sobremaneira na edificação doutrinária de Bentham, que sobre tal, manifestou-se no sentido de que “ a publicidade é a mais eficaz salvaguarda do testemunho e das decisões que do mesmo derivarem: é a alma da justiça e deve se estender a todas as partes do procedimento e a todas as causas “183 . Portanto, sob este enfoque procurar-se-á demonstrar a origem e a evolução histórica do Princípio da Publicidade dos Atos Processuais, na tentativa de não somente resgatar historicamente, mas temporaneamente, sua efetiva necessidade de observância e aplicação. INTRODUÇÃO O tema objeto de pesquisa, diz respeito à EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS, de empolgante discussão, principalmente dado ao fato de que, eleito como princípio constitucional pelo legislador, incerindo tal disposição no artigo 5º, inciso LX, da Constituição Federal de 1988, durante a fase histórica da construção do sistema processual, foi lembrado e esquecido, sistematicamente, justificando tal assertiva, sob o enfoque de que o Processo no Direito Romano, entendido tal como marco para análise da questão e elaboração do trabalho em apreço, tinha, mesmo que não expressado, legislativamente, efetivo enfoque público, até porque públicas eram as audiências. Mesmo nesta fase, a pesquisa nos demonstrou que oscilaram os entendimentos de que era necessária a ampla aplicação da regra 182 Rui Portanova, pg. 167 Jeremias Nentham, Tratado de las prueba judiciales, compilado por E. Dumont, trad. Do fr. Manuel Ossorio Florit, Buenos Aires, EJEA, 1971, v. I, pg. 140/6 183 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 199 da publicidade, principalmente levando-se em conta que, no Direito romano, nosso ponto de partida para a análise histórica do Princípio da Publicidade, houveram três períodos distintos, quais sejam, o das Legis Actiones; o da Per Formulas; e o da Cognitio Exraordinaria, os quais serão abordados em tópico sequencial, mas que já nos demonstraram, os dois primeiros, a aplicação da regra relativa à Publicidade dos atos processuais, iniciando-se, todavia, no terceiro período, uma fase restritiva ao mesmo, passando a seguir, por uma análise da evolução histórica do mesmo, recordando os principais pontos de referência em nosso ordenamento alienígena e, finalmente, buscando uma menção histórica do nosso ordenamento jurídico, representado pelos marcos relativos às Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, cujas quais, conforme se demonstrará, não pregaram de forma ampla a aplicação do Princípio em análise. Em que pesem entendimentos divergentes, alcançados através desta modesta incursão na evolução histórica do Princípio da Publicidade dos Atos Processuais, o tema se apresenta como algo de necessário e interessante estudo, inclusive em razão de que nosso texto Constitucional, determina como regra, a publicidade dos atos processuais, somente reconhecendo hipóteses de restrição quando o caso tratar-se de interesse social ou na defesa da intimidade, e naqueles casos expressados em lei, conforme, inclusive, proposta a menção neste trabalho. O estudo do tema apresentado, está calcado, num primeiro plano, na efetiva necessidade de se buscar a origem histórica da publicidade dos atos processuais, ou seja, pesquisar, mesmo que modestamente, a formação do sistema processual, e a partir de que momento histórico passou-se a adotar a publicidade dos atos processuais como regra, deixando a não atenção àquela, como exceção, considerando casos específicos e concretos, e num segundo plano, levando-se em consideração o fato de que encontra o mesmo, grande importância no sistema processual, a partir do momento em que a publicidade, conforme, anteriormente, mencionado, é pressuposto da 184 José Raimundo Gomes da Cruz, Estudos sobre o Processo e a Constituição de 1988, pg. 165 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 200 validade do ato, mais, é garantia do pleno e livre exercício da jurisdição, é condição, nas palavras de Mirabeau, em pronunciamento perante a Assembléia Constituinte Francesa, citado por José Raimundo Gomes da Cruz 184 , asseverando o mestre: “Daí-me qualquer juiz: parcial, corrupto, até meu inimigo; pouco importa, desde que ele só possa agir em face do público “. Em razão do até então exposto, é que procuramos em nosso trabalho, demonstrar a evolução histórica do Princípio da Publicidade dos Atos Processuais, e a relevância do conhecimento dos caminhos percorridos pelo mesmo, até seu reconhecimento, fora e internamento, como de absoluta necessidade de observância. ORIGEM HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS. Historicamente, e conforme proposto no presente trabalho, buscamos estabelecer a origem histórica da publicidade dos atos processuais, tomando como ponto de partida, o Processo no Direito Romano, o qual, na lembrança do mestre Jônatas Luiz Moreira de Paula, “ é visto em três períodos: o das legis actiones (vigorou desde a fundação de Roma – 754 a.C. – até fins da República), o da per formulas ( iniciado a partir do declínio da República, atingiu seu auge com a edição da Lex Aebutia, em 149-126 a.C., e da Lex Julia Privatorum, em 17 a.C., findando-se com o Imperador Diocleciano, entre 285-305 d.C) e da extraordinaria cognitio, iniciado a partir do principado em 27 a.C., encerrando-se com a queda do Império Romano do Ocidente ( 568 d.C.)”185 . Essa divisão, inclusive lembrada pelo ilustre mestre, não se apresenta de forma absoluta e seus períodos não se encontram nitidamente separados.186 Dentro do proposto, e da análise de cada um dos períodos acima mencionados, é possível estabelecer as características de cada qual, principalmente no que encontra-se relacionado à publicidade dos atos processuais, podendo concluir-se com segurança, que nos dois primeiros períodos – legis actiones e per formulas, os processos eram 185 186 Jônatas, livro – pg. 32/33 idem. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 201 gratuitos, orais e públicos, enquanto que no último – extraordinaria cognitio, o processo era escrito, portanto, formal, oneroso e secreto. Denota-se assim, que a partir deste último período, a publicidade dos atos processuais passou a experimentar a imposição de restrições. Com intuito de demonstrar as características de cada período, especificamente quanto a publicidade dos atos processuais, passaremos a analisar, neste aspecto, individualmente cada qual. PERÍODO DAS LEGIS ACTIONES Neste período, predominou a adoção de fórmulas orais e solenes, aquela, representada pela ampla publicidade dos atos processuais, inclusive com a possibilidade de se remeter a instrução e a solução de um caso concreto a um cidadão particular, denominado arbiter ou iudex, e esta, identificada como a necessidade da parte em “ repetir, cuidadosamente, na actio as palavras previstas na lei“ 187, objetivando a percepção da tutela postulada. Em decorrência desta situação, que determinava que deveria o autor “pronunciar a exata relação de tipicidade entre o fato e a fórmula legal “188, concluia-se que “o conteúdo da defesa deveria restringir-se à incidência ou não da fórmula legal ao fato descrito pelo autor “189 Outra característica deste período, a determinar a presença a publicidade dos atos processuais praticados, está ligada ao fato de que parentes ou amigos do réu (vades), deveriam prestar uma promessa solente de que o réu compareceria ao ato, na data determinada, sob pena de não o fazendo, incorrerem aqueles na obrigação de pagamento de determinada quanto ao autor. A defesa, neste período, era formalizada pelo réu de forma oral, inexistindo a figura da representação, ou seja, neste período, não era admitida, em regra, a presença de advogados. Em decorrência do excesso de formalismo, esse ligado ao fato de que para alcançar a tutela jurisdicional pretendida, deveria o autor 187 Jônatas...., mencionando TUCCI, pg. 36. Idem, pg.40 189 ibidem, 40. 190 Jonatas, pg. 45. 188 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 202 estabelecer a exata relação de tipicidade entre o fato e a fórmula legal, conforme antes mencionado, comportando ao ré, apenas defender-se no sentido de demonstrar a incidência ou não da fórmula legal ao fato descrito por aquele, tal período foi caindo em desuso, exatamente porque suas regras, “obstaculizavam o êxito da actio“190 . PERÍODO PER FORMULAS Igualmente público os atos processuais praticados neste período, distinguiu-se do primeiro em razão de que foram abolidas as solenidades naquele exigido, caracterizando-se “por ser um novo processo porque, ao abandonar a legis e permitir a elaboração de um modelo abstrato pelo pretor, resultou no enriquecimento e na ampliação dos direitos, dada à eclosão de novas fórmulas“ 191, ou seja, “enquanto que, no período das legis actiones, a litis contestatio fixava com precisão os termos do litígio, no período per formulas essa função perdeu importância, em vista dos termos do litígio estarem expressos na fórmula “192 . Afora características particulares, relativas a procedimentos, este período, no que diz respeito à publicidade dos atos processuais, foi, eminentemente, semelhante ao primeiro, supra citado. PERÍODO DA COGNITIO EXTRAORDINARIA Conforme mencionado, ao tempo que nos dois primeiros períodos a gratuidade, oralidade e publicidade dos processos eram regra, neste, passaram a ser exceção, constituindo-se como características a forma escrita, onerosa e secreta193 . A partir deste período, iniciou-se uma fase de restrição à publicidade dos atos processuais, “desaparecendo as fórmulas e a oralidade vai, paulatinamente, dando lugar à escrita, por influência oriental.194 As audiências não mais eram públicas, mas sim, limitadas às partes. As regras relativas aos atos processuais, neste período, iniciado em 27 a.C, encerrando-se, provavelmente, em 568 d.C., passou a sofrer alterações a partir de 527 d.C., quando Justiniano levou a efeito 191 VILLEY, citado por Jônatas, pg. 48 Jônatas, pg. 63/64. 193 Paula, Jônatas Luiz Moreira de Paula. Teoria Geral do Processo, p. 38, citação feita na obra do mesmo autor, História do Direito Processual Brasileiro, pg. 33. 194 Justo, Antonio dos Santos, citado por jônatas, pg. 72/73 192 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 203 ampla reforma nos institutos processuais, reestabelecendo, entre outras, o litis contestatio em audiência pública, bem como a prolação das sentenças igualmente em audiências públicas, revelando portanto, um sentimento no sentido de que a publicidade deveria ser a tônica nos atos processuais. Superada a fase da construção histórica da publicidade dos atos processuais no direito romano, é de relevo mencionar as influências observadas por força do direito processual Germânico, que igualmente, não acentuou a publicidade como regra, ao contrário, tinha-a como exceção. Franz Wieacker, citado por Jônatas Luiz Moreira de Paula, nos lembra que “O processo de autos levava então, de acordo com um princípio fundamental, ao caráter indirecto das alegações e da prova e a não publicidade do processo. Só a reforma processual do séc. XIX, surgida da Revolução Francesa, em ação conjunta com as reminiscências românticas e nacionalistas do antigo processo franco e alemão e com os ideiais democráticos burgueses, voltou a conduzir aos princípios da publicidade, sem no entanto, poder resolver a contradição interna de tal exigência com o espírito de uma jurisprudência racional, objectivada por escrito e especializada.“195 Conforme antes mencionado, a Revolução Francesa, datada de 1789, foi um marco mundial a estabelecer a publicidade dos atos processuais como regra, e a não observância de tal, apenas como exceção. Com tal amplitude, “não é difícil encontrar o princípio nas legislações da França, Alemanha, Japão, Estados Unidos e a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas “196 , e mais recentemente, sendo incerida no texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reza em seu artigo 10, que “todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele “. Enfim, fica presente que, a partir do século XIX, a observância 195 Wieacker, Franz. História do Direito Privado Moderno, 2ª edição, Tradução de ªM. Botelho Hespanha. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.200, citado po0r J6onatas Luiz Moreira de Paula, História do Direito Processual Brasileiro,, p. 97 196 Rui Portanova, Princípios do Processo civil, pg. 168 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 204 da publicidade dos atos processuais passou a constituir-se regra, e a não publicidade em exceção, apenas particularidades, desde que devidamente reguladas por lei. No Brasil, o marco inicial de nossa pesquisa, na busca da origem da publicidade dos atos processuais passa pela análise das Ordenações. Nelas, obtemos as informações necessárias a esclarecer um nexo de causalidade entre a origem da publicidade dos atos, e sua observância. ORDENAÇÕES AFONSINAS Com início e término de vigência compreendidos entre 1447 a 1521, pode ser considerada como a “primeira legislação processual em vigor na Terra de Santa Cruz. “197 Teve como característica básica a compilação, entendida como tal, a transcrição integral de outras fontes, anteriores, não podendo assim, ser considerada como um código, mas em verdade, mera sistematização de leis. Dentre os pontos a determinar que havia restrição à publicidade dos atos processuais nesta fase, extraímos informações relativas à estrutura básica do processo, que, entre outras, especificamente no processo penal determinava a “inquirição das testemunhas arroladas pelas partes sobre os artigos pertinentes e eventual depoimento de testemunha contraditada, desde que relevante “, e “abertura e publicação das inquirições para conhecimento das partes”198 , restando evidenciado que, por tal estrutura, a publicidade que se dava ao ato era, exclusivamente, entre as partes.Nesta fase, no que dizia respeito ao processo civil, não houve alteração do sistema, de sorte que igualmente mantida a dita publicação dos depoimentos, exclusivamente para as partes199 . ORDENAÇÕES MANUELINAS Com vigência entre os anos de 1521 a 1603, destacou-se tal Ordenação pelo fato de tratar-se “de uma das primeiras, senão a pri197 Jônatas, pg. 144 CAETANO, Marcello, História....p.555, citado por Jônatas Luiz Moreira de Paula, in História do Direito Processual Brasileiro 199 Ordenações Afonsinas, Tít. LXVI, p.242-247 198 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 205 meira das legislações codificadas empresas da Europa.“200 Tinha uma estrutura processual penal e civil, que se apresentava, aquela, pelo que nos informa o Título I, do Livro V, novamente repetindo o que determinou as Ordenações Afonsinas, no que dizia respeito a ”abertura e publicação das inquirições para conhecimento das partes “, determinando ainda, que “o segredo no momento da produção da prova testemunhal era visto como forma de defesa da justiçá penal do Reino “201 , ou seja, havia flagrante restrição à publicidade, e quanto a esta, repete o dispositivo, no Livro III, determinando mais uma vez que a “ aberura e publicação dos depoimentos das testemunhas para as partes “202 , ou seja, apresentando um quadro já estabelecido anteriormente, ligado à rstrição da ampla publicidade dos atos processuais. ORDENAÇÕES FILIPINAS Por fim, as Ordenações Filipinas, concluídas no ano de 1595, foram aprovadas por Lei de 05/06/1595, iniciando-se sua vigência em 1603, e consideradas o ” monumento legislativo mais duradouro em Portugal e no Brasil “203 , mas que em verdade, apresentaram poucas inovações processuais em relação às outras Ordenações abordadas, mantendo, como por exemplo, regras relativas à “abertura e publicação das inquirições para conhecimento das partes “, mencionando ainda que o “segredo no momento da produção da prova testemunhal era visto como forma de defesa da justiça penal do Reino“204 , ou seja, mais uma vez, denota-se que a regra à època era a restrição, e a publicidade, a exceção. A interferência do direito português, aliada à natural ingerência do direito romano, fez com que a restrição à publicicade dos atos processuais fosse a tônica. No Brasil, com a proclamação da Independência ( 07/09/1822), houve a natural necessidade de que fossem legisladas outras leis. De 200 jônatas, História,..p. 156. JÔNATAS, obra citada, p. 162 202 JÔNATAS, obra citada, p. 164, citando o Título XLVII, das Ordenações Manuelinas..., p. 174/176. 203 SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História.....p.285-286, e COSTA, Mário Júlio de Almeida. História..., p.288-289, citados por JÔNATAS.....obra, p. 166. 204 JÔNATAS,..ob citada, p. 173 201 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 206 concreto, nos interessa abordar os principais aspectos da Constituição de 1824 – 1ª Constituição do País, a qual, entre outras características relevantes, determinou, em seu artigo 159, “publicidade da inquirição das testemunhas e demais atos do processo, após a pronúncia, seriam públicos “ deixando evidente, mesmo porque, este era pensamento em vigor, que a publicidade passaria a ser regra em nosso ordenamento, apenas a restringindo em casos especiais, e em decorrência de lei. Na esteira do pensamento mais liberal, nosso legislador, aceitando a publicidade dos atos processuais como regra, terminou por elegê-lo como princípio constitucional, determinando em seu artigo 5º, inciso LX, que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais, quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem “, ficando presente que este é o pensamento e a vontade de nosso legislador, ou seja, de que a restrição somente poderá ocorrer, quando o interesse social ou a defesa da intimidade o exigirem, e desde que, por certo, esteja aí amparado em lei. HIPÓTESES DE RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS CONSIDERAÇÕES FINAIS O tema tratado, no decorrer do período em que foi estudado, foi-se nos tornando cada vez mais apaixonante. Paralelo ao crescente interesse pela matéria, observou-se com tristeza, que a doutrina faz reservas quanto ao tema “ publicidade dos atos processuais”, cremos, por certo, de forma equivocada, de sorte que tema em voga é de estrema relevância, de importância vital para a manutenção oxigenada de nosso sistema jurídico. Não se admite, em tempos atuais, que existam restrições à publicidade do ato processual, devendo tal ser regra, tão e somente comportando entendimenots divergentes em casos específicos, devidamente regulados por lei. Fica presente, após esta pequena infiltração na história de nosso direito, que a publicidade dos atos processuais foi alcançada com grande dificuldade. Ora mais presente, ora mais ausente, foi preciso um árduao caminho para se alcançar disposições como as mencionadas, entre outras, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 207 em nosso ordenametno tupiniquim, a esculpida no inciso LX, do artigo 5º, da CF. Ao mesmo tempo em que aprendemos sobre a publicidade dos atos processuais, por automático nos interamos mais do tema objeto deste curso - Direito Processual e Cidadania, e então, entendemos por que se afirma, e com muita propriedade, que “o direito geral nós aplicamos, e o direito processual, nós o vivemos”. De uma forma ou de outra, mesmo com as naturais dificuldades inerentes à elaboração de um trabalho como o presente, resultounos grande satisfação, porquanto observamos que a aplicação de forma geral da publicidade dos atos processuais é necessidade, é medida que se impõe, certos de que o secreto, o anônimo e o não divulgado, não se coadunam com ideais de Justiça, Liberdade e Democracia. REFERÊNCIAS ———, Os Limites Objetivos da Coisa Julgada no novo Código de Processo Civil, In Revista Forense n. 246. NENTHAM, Jeremias. Tratado de las prueba judiciales. Compilado por E. Dumont. Trad. Fr. Manuel Ossorio Florit, Buenos Aires, EJEA, 1971, v. I, pg. 140/6 OLIVEIRA, Antônio Carlos Mariz de. Embargos de Devedor, São Paulo, 1977. PORTANOVA, Rui, Princípios do Processo Civil. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. pg. 167. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil (col. Forense), v. III, 6a. ed., Rio de Janeiro, 1989. SHONKE. Derecho procesal civil, ed. Bosch, 1950, par. 50, IV, pág. 178. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 208 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 209 RECURSO EXTRAORDINÁRIO RETIDO E A AUSÊNCIA DE EFEITO SUSPENSIVO 205 ADRIANA TIMÓTEO DOS SANTOS PROFESSORA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL NO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA. MESTRE EM DIREITO ECONÔMICO E SOCIAL PELA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ. ADVOGADA NO PARANÁ. RESUMO O artigo aborda o tema do Recurso Extraordinário Retido e da ausência de efeito suspensivo, à luz da Constituição Federal e do Código de Processo Civil. A autora demonstra que a preocupação com a efetividade do processo decorre de situações em que o tempo é de fundamental importância, e que a demora da decisão pode comprometer o resultado do processo. O texto retrata que, apesar do posicionamento contrário do Supremo Tribunal Federal, os parágrafos 2º e 3º do artigo 542 do CPC devem sofrer aplicação menos rigorosa, pois o processo civil moderno norteia-se pelos princípios da efetividade e do devido processo legal. ABSTRACT The article is about the theme of Holded Extraordinary resource and absence of suspensive effect, to the light of the Federal Constitution and the Civil Procedure Code. The author demonstrates that the worry about the effectivness of the procedure comes from the situations in which the time is of fundamental importance, and that the delay of decision may change the result of the process. The text says that, even the Supreme Court of Brazil is against, the paragraphs 2nd and 3rd of the article 542 of the CPC must suffer application less strong, because the modern Civil procedure goes by the principles of effetiveness and legal procedure. PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Processual; recurso extraordinário. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO RETIDO Na sistemática do processo civil brasileiro, o Recurso Extraordinário, previsto na Constituição da República, artigo 102, III, alíneas a, b 205 Trabalho apresentado junto ao Mestrado em Direito Econômico e Social da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR na disciplina Meios de Impugnação às decisões judiciais ministrada pela Prof.ª Dra. Teresa Arruda Alvim Wambier. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 210 e c, terá cabimento quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da CF, declarar a incostitucionalidade de tratado ou lei federal ou julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da CF. É medida extrema que procura tutelar o sistema como um todo, sendo esta a função primordial do Supremo Tribunal Federal (exercer a guarda da Constituição Federal e também, desta forma, permitir a integridade do direito nacional). O § 3º, do art. 542, do CPC, disciplina a forma retida do recurso extraordinário quando interposto contra decisão interlocutória. Este sistema não apresentaria maiores problemas em situações, onde não há perigo de dano irreversível, oriundo do aspecto temporal. Porém, existem situações em que o tempo é de fundamental importância, sendo que a demora da decisão pode comprometer o resultado do processo. Esta preocupação é característica daquilo que se chama “efetividade do processo”, ou seja, hipóteses em que a celeridade processual é condição sine qua non para que a decisão tenha eficácia. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO206 , com propriedade, afirma que “... é preciso ter também um processo sem óbices econômicos e sociais ao pleno acesso à justiça; se queremos um processo ágil e funcionalmente coerente com os seus escopos207 , é preciso também relativizar o valor das formas e saber utilizá-las e exigi-las na medida em que sejam indispensáveis à consecução do objetivo que justifica a instituição de cada uma delas. Tudo o que já se fez e se pretende fazer nesse sentido visa, como se compreende, à efetividade do processo como meio de acesso à justiça”. Diante desta nova perspectiva do processo civil moderno, a doutrina tem criticado a redação do § 3º, do art. 542, introduzido pela lei 9756/98, e procurado meios de propiciar a subida dos recursos extraordinário e especial (mesmo quando interpostos contra decisão interlocutória) nos casos em que há urgência. 206 ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de, GRINOVER, Ada Peligrini e DINAMARCO, Cândido Rangel, Teoria Geral do Processo, 17ª ed., São Paulo, Malheiros, 2001, p. 44-45. 207 Sobre os escopos do processo (políticos, jurídico e sociais) ver p. 41 e seg. da referida obra. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 211 Veja-se a respeito, o comentário de GILSON DELGADO MIRANDA e PATRÍCIA MIRANDA PIZZOL208 : “situações práticas são verificadas em que a permanência dos recursos retidos nos autos já será mais do que suficiente para sepultar o exame da questão pelo órgão jurisdicional extremo (STJ e STF), notadamente, em se tratando de lesão grave ou de difícil reparação”. Exemplos citados pelos autores acima, onde o recurso especial e/ou extraordinário não deverá permanecer retido são quando interpostos contra decisão que opinou pela concessão ou denegação de liminar (cautelar ou tutela antecipada), deferimento ou indeferimento do pedido de ingresso em processo como assistente, ou, de intervenção de terceiro, admissão de prova obtida por meio ilícito, decisão que julga impedimento ou suspeição do juiz. Urge um mecanismo para afastar a incidência da norma, sob pena da violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Assim, toda vez que houver perigo de perecimento de direito ou de ocorrência de dano de difícil ou impossível reparação, dever-se-á admitir a imediata subida dos recursos. MEDIDA ADEQUADA PARA AFASTAR A INCIDÊNCIA DO ART. 542, § 3º CPC Para esta finalidade, a doutrina209 -210 e jurisprudência têm apontado dois caminhos: medida cautelar inominada211 - demonstrado o periculum in mora e o fumus boni iuris - dirigida ao STF ou STJ, ou interposição do agravo de instrumento previsto pelo art. 544 CPC, ressalvando-se também a possibilidade do próprio tribunal a quo determi208 GILSON DELGADO MIRANDA e PATRÍCIA MIRANDA PIZZOL. Algumas considerações sobre os recursos especial e extraordinário – requisitos de admissibilidade e recursos retidos. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 204. 209 Conforme menciona GLEYDSON KLEBER LOPES DE OLIVEIRA. O interesse em recorrer nos recursos extraordinário e especial retidos, instituídos pela lei 9.756/98. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 467. 210 Vide ainda WAMBIER, Luiz Rodrigues, TALAMINI, Eduardo e ALMEIDA, Flávio Renato Correia. Curso Avançado de Processo Civil. Vol 1, 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 709. 211 Também nesse sentido ZAIDEN GERAIGE NETO. Aspecto preocupante sobre o novo § 3º do artigo 542 do Código de Processo Civil e a possibilidade de excepcionar a regra (Lei 9.576, de 17.12.1998). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 694 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 212 nar a subida imediata dos recursos nos casos de urgência212 . Neste sentido afirma VICENTE GRECO FILHO213 : “no caso de inadequação da retenção em virtude da urgência, cabe à parte suscitála, o que deverá ser objeto de decisão do Presidente do Tribunal recorrido, que determinará o imediato processamento, ou não”. Também FLÁVIO LUIZ YARSHELL afirma que “poderia a parte interessada requerer, diretamente à presidência (ou vice-presidência), que, diante das circunstâncias excludentes da retenção, se passasse, diretamente, ao exame de admissibilidade dos recursos (vale dizer, que não se aplicasse a retenção). A presidência (ou vice), pensamos, teria – como tem – poderes para excepcionar a regra legal de retenção, ordenando o regular processamento do recurso”.214 E, mais adiante, prossegue o citado autor: “dessa forma, estando presentes os requisitos para a concessão da cautelar (para se conferir efeito suspensivo a recurso extraordinário/especial), na forma admitida pelo STF e pelo STJ, o deferimento da medida deverá: (a) atribuir efeito suspensivo ao recurso e (b) determinar que se afaste a retenção, viabilizando-se o exame da admissibilidade, como e por quem de direito (CPC, art. 541), dos recursos interpostos perante o tribunal a quo”215 . Analisando situação onde a aluna obteve, através de decisão judicial, matrícula, junto à instituição de ensino e, interposto recurso especial, o mesmo foi recebido no efeito suspensivo permanecendo retido, pronuncia-se JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA216 : “... para nós, em situações como a ora analisada, em que a demora do julgamento põe em risco a segurança e estabilidade das relações jurídicas, o novo procedimento criado para os recursos extraordinário e especial retidos deve ser afastado, permitindo-se sua interposição pelo modo tradicional”. E prossegue afirmando que 212 Ver ainda, sobre o tema : GILSON DELGADO MIRANDA e PATRÍCIA MIRANDA PIZZOL. Ob. Cit., p. 208. VICENTE GRECO FILHO. Direito Processual Civil Brasileiro, 2º v, 14ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 248. 214 FLÁVIO LUIZ YARSHELL. Ainda sobre a retenção dos recursos extraordinário e especial: meios de impugnação da decisão que a determina. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 169. (nota nº 25) 215 FLÁVIO LUIZ YARSHELL, Ob. Cit., p. 171. 216 JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA. Recurso extraordinário e especial “retidos” – aspectos problemáticos da novidade introduzida pela Lei 9.756/98, de 17.12.1998. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei nº 9.756/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, 374-375. 213 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 213 “a suposta inviabilidade procedimental não pode impedir a utilização da medida cautelar, com o intuito de suspender os efeitos da decisão recorrida, sob pena de inconstitucionalidade. Se se afirma que a medida cautelar não é cabível em virtude do regime de retenção do recurso extraordinário ou do recurso especial, deve-se, antes de afastar a medida cautelar (cujo cabimento é albergado na Constituição, como se viu) afastar o regime de retenção dos recursos extraordinário ou especial”. Ainda sobre o manejo da cautelar nessas hipóteses, cita-se o ensinamento de JOSÉ SARAIVA217 : “O mecanismo viável para essa finalidade consiste na aceitação, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, de medidas cautelares incidentais nos recursos retidos, ajuizadas diretamente naquelas Cortes, e que tais medidas, quando acatadas, possam inibir os efeitos da decisão recorrida e, com isso, evitar o desenvolvimento do processo em desconformidade com a “síntese axiológica” das normas constitucionais e legais fixadas, bem como em desacordo com a jurisprudência predominante nos mencionados Tribunais”. Desta forma, consoante a doutrina já mencionada, a medida cautelar é plenamente viável e estando presentes os seus pressupostos autorizadores, deve a mesma ser deferida, determinado-se que o recurso não permaneça retido, mas seja ordenado o seu processamento. O próprio STF admite que existem situações em que o § 3º, do art. 542, CPC deve ser afastado218 , porém, a aplicação deste entendimento é extremamente tímida na Suprema Corte. O argumento utilizado, de que, não emitido o juízo de admissibilidade do recurso pelo tribunal a quo impede a concessão da cautelar pois, configuraria “prejulgamento” pelo STF que tem sido criti217 JOSÉ SARAIVA. Os recursos extraordinários e especial – alterações da Lei 9.756/98. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei nº 9.756/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 415. 218 STF - Pet. Nº 1.834-6 – Rel. Min. Otávio Gallotti : “Procede, em princípio a reserva oposta pelo requerente à aplicação do novo do § 3º do art. 542 do Código de Processo Civil (...) quando se cuida da retenção de recurso extraordinário interposto contra acórdão prolatado em sede de medida liminar ou tutela antecipada” In Revista Forense vol 353, p. 275 a 277. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 214 cado pelo seu caráter “positivista” e totalmente divorciado do atual entendimento adotado pelo STJ, que melhor se harmoniza com o processo moderno. Veja-se a opinião de ATHOS GUSMÃO CARNEIRO219 : “No Supremo Tribunal Federal a jurisprudência é remansosa no sentido de que a demanda cautelar somente será cabível após o juízo positivo de admissibilidade do recurso extraordinário; portanto, durante o tempo de sobrestamento o Pretório Excelso não receberá tal demanda. Já no Superior Tribunal de Justiça, com observância da aludida norma legal, a orientação dominante é no sentido de que a medida cautelar pode ser proposta desde que interposto o recurso especial.” Também DONALDO ARMELIN220 ao analisar o tema afirma: “Na modalidade retida, agora, inaugurada pela Lei 9.756/98, tais recursos não apenas continuam carentes de efeito suspensivo como ainda não terão a sua admissibilidade apreciada, antes de sua reiteração tempestiva. Nem por isso, contudo, poderá ser inibido o poder geral de cautela direcionado a evitar a ocorrência de dano irreparável ou de difícil reparação. Para tanto, mister se fará inovar, a respeito, admitindo a ação cautelar incidental para se assegurar o efeito suspensivo a tais recursos, enquanto retidos e condicionados, no atinente ao seu processamento, à reiteração da parte que o interpôs. Considerando o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal acima reportado, a admissibilidade da ação cautelar, nessa hipótese, dificilmente será acolhida. Isto, de certo modo, implicará uma recusa à prestação a uma tutela adequada à ameaça de lesão de direito, assegurada, constitucionalmente”. Desta forma, ao indeferir o pedido cautelar e consequentemente inadmitir o processamento do Recurso Extraordinário, o STF desprestigia o princípio da efetividade da tutela jurisdicional. 219 ATHOS GUSMÃO CAREIRO. Requisitos específicos de admissibilidade do recurso especial. Admissibilidade do Recurso Especial. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei nº 9.756/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 126. 220 DONALDO ARMELIN. Apontamentos sobre as alterações ao Código de Processo Civil e à Lei 8.038/90, impostas pela Lei 9.756/98. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei nº 9.756/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 207. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 215 A CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO O art. 542, § 2º, do CPC dispõe que, o recurso extraordinário será recebido tão somente no efeito devolutivo. Outrossim, situações práticas demonstram que esta norma também deverá ter sua aplicação relativizada, pois, há hipóteses em que a interposição de recurso não dotado de efeito suspensivo, não “paralizando” os efeitos da decisão proferida, pode gerar dano irreparável ou de difícil reparação ao recorrente, que, encontra-se em situação difícil ante a sistemática recursal prevista. Para evitar situações como essa, a doutrina tem sugerido a utilização da cautelar para a concessão do efeito suspensivo a recursos destituídos pela lei de tal efeito. Em artigo sobre o tema, LUIZ RODRIGUES WAMBIER221 ensina que: “... a proteção que se dá imediata e diretamente ao objeto litigioso (ao direito da parte) tem como fim último proteger o próprio resultado útil do processo em que as partes controvertem a respeito daquele determinado bem. É óbvio que de nada adiantaria se considerar a necessidade de proteger o resultado útil do processo, sem que a isso se agregasse a necessária proteção àquilo que pelo processo se busca. (...) Presentes esses dois requisitos [o fumus boni iuris e o periculum in mora], isto é sendo provável o direito alegado e estando o mesmo sob ameaça, porque não é possível sua preservação até que o Poder Judiciário se pronuncie definitivamente naquele processo, está aberta a possibilidade do manejo da tutela cautelar”. Poder-se-ia argumentar do não cabimento da medida cautelar para conferir efeito suspensivo ao recurso, porém, ainda segundo LUIZ RODRIGUES WAMBIER222, na busca da efetividade do processo, ou seja, para que as partes possam receber do Estado, o pronunciamento judicial de modo que, seja possível realizar as transformações no mundo 221 LUIZ RODRIGUES WAMBIER. Do manejo da tutela cautelar para obtenção de efeito suspensivo no recurso especial e no recurso extraordinário. In Aspectos polêmicos e atuais do Recurso Especial e do Recurso Extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 365. 222 Ob. Cit., p. 368. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 216 empírico, tal como determinado na decisão, concebeu-se o manejo do processo cautelar, através do qual, se pudesse “obter a suspensão da eficácia do julgado que tenha sido impugnado mediante recurso desprovido de efeito suspensivo”. Tal expediente tem sido admitido na jurisprudência e doutrina, não configurando este procedimento, uso “indiscriminado e arbitrário” do processo cautelar, mas “processo de integração dos diversos microssistemas”223 (cautelar e recursal). Especialmente o STJ tem admitido a cautelar com este fim, ainda que o tribunal a quo não tenha realizado juízo de admissibilidade do recurso, face a urgência da situação e a presença dos requisitos autorizadores da medida. CASSIO SCARPINELLA BUENO224 noticia que, em Informativo do STJ veiculou-se nota no seguinte sentido: “... são possíveis as cautelares, desde que publicado o acórdão recorrido, porquanto, se assim não fosse, restaria desprotegida a parte pelo tempo, muitas vezes longo, para o exame da admissibilidade.” O STJ está, acertadamente, admitindo a medida cautelar para conferir efeito suspensivo a recurso, embora em algumas decisões não o tenha feito quando pendente o juízo de admissibilidade do recurso perante o juízo a quo. Veja-se a decisão do STJ, no Agravo Regimental nº 1.113225 julgado em 19.12.97, em que foi Relator o em. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, onde, por maioria, admitiu-se o exame de pedido cautelar pelo Presidente do STJ, mesmo pendente juízo de admissibilidade do Recurso Extraordinário, sob o fundamento que “não pode o Judiciário deixar de apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito (CF/88, art. 5º, XXXV)”, sendo a liminar deferida ad referendum do Supremo Tribunal Federal (conforme art. 21 do RISTF). Vale ressaltar do acórdão, o argumento do Sr. Min. Sálvio de 223 Ob. Cit., p. 368. CASSIO SCARPINELLA BUENO. Uma segunda reflexão sobre o novo § 3º do art. 542 do CPC (Lei 9.856, de 17 de dezembro de 1998). In Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 113 225 Revista Forense 353/275. 224 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 217 Figueiredo Teixeira que, sobre o voto do relator entendeu que “...o pensamento de S. Exa. está exatamente na linha da processualística contemporânea, sobretudo em termos de cautelar, sabido que o processo cautelar se arrima na prudência, buscando assegurar o êxito do processo principal. Por outro lado, quando o ordenamento jurídico não tem uma solução específica, a própria lei diz que o juiz pode utilizar-se da cautelar inominada, autorizando o juiz a construir a solução que melhor se ajuste ao caso concreto. Quanto ao problema da competência deste Tribunal, tenho aí que não há invasão, porque o Sr. Ministro Relator, com muita precisão, colocou a questão em termos de referendum. Destarte, se o Supremo Tribunal Federal entender diversamente, não ratificará a medida deferida cautelarmente. Por outro lado, o processo civil brasileiro atual tem uma norma, que está no art. 800, introduzida recentemente, prevendo que a medida cautelar deva ser apresentada ao tribunal e não ao juiz. Por isso é que, no caso, não há competência do juiz de primeiro grau, data vênia. Assim, no caso, a competência é do Supremo Tribunal Federal, mas, como estamos em face de um vazio, o que se está propondo é preenchê-lo provisoriamente, ad referendum daquela Alta Corte”. Este posicionamento se coaduna com a finalidade do processo cautelar e com a necessidade de encontrar meios hábeis a assegurar a efetividade do processo226 . Porém, o mesmo não ocorre no âmbito da Suprema Corte. LUIZ RODRIGUES WAMBIER227 critica a posição do STF enten226 Nesse sentido, conclui LUIZ RODRIGUES WAMBIER: “A concessão de medida cautelar, para imprimir efeito suspensivo a recurso que nem mesmo tenha sido submetido ao juízo de admissibilidade, implica plena eficácia aos textos normativos que disciplinam o processo cautelar, como mecanismo de preservação do resultado do próprio processo e se traduz em evidente medida de reverência ao princípio do devido processo legal, que, em última análise, significa que a parte tem direito a um processo, na conformidade do que a lei prevê, e a um processo completo, isto é, cujo resultado possa ser o de operar as transformações determinadas no provimento estatal”. In Da integração dos subsistemas recursal e cautelar nas hipóteses de recurso especial e recurso extraordinário. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunias, 2001, p. 751. 227 LUIZ RODRIGUES WAMBIER. Do manejo da tutela cautelar para obtenção de efeito suspensivo no recurso especial e no recurso extraordinário. In Aspectos polêmicos e atuais do Recurso Especial e do Recurso Extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 370. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 218 dendo que “retira toda ou quase toda a utilidade do pedido cautelar apresentado. Sendo, de fato, caso de deferimento da medida, parece insensato e injurídico submeter essa concessão à condição de o recurso já ter sido admitido no órgão a quo, já que exigir-se esse requisito no mais das vezes esvazia a função cautelar que seria, no caso, a de garantir o julgamento útil do recurso”. E conclui o mesmo autor: “melhor seria, e sem dúvida atenderia aos princípios que informam todo o sistema processual, como o da efetividade da prestação jurisdicional, se o Supremo Tribunal Federal admitisse, como já acontece no Superior Tribunal de Justiça, que, por simples petição, acompanhada dos documentos necessários à comprovação do estágio em que se encontra o processo, se pudesse deferir o pedido cautelar (se, é claro, estiverem presentes os seus pressupostos autorizadores: periculum in mora e fumus boni iuris)”228 . CONCLUSÃO Os parágrafos 2º e 3º do art. 542 CPC devem sofrer aplicação menos rigorosa, eis que o processo civil moderno norteia-se pelos princípios da efetividade e do devido processo legal. O meio adequado segundo a doutrina e a jurisprudência do STJ para obter-se tais resultados é o processo cautelar. A Suprema Corte tem adotado posicionamento contrário, entendendo que, enquanto pendente o juízo de admissibilidade do recurso, no juízo “a quo”, não é possível o deferimento da cautelar com objetivo de conferir efeito suspensivo ao recurso extraordinário e ordenar seu imediato processamento. Inobstante, tais argumentos, data vênia, discordamos de tal posição eis que a mesma vai de encontro aos princípios acima elencados e à efetividade do processo. Em síntese, que deve-se admitir o manejo de medida cautelar para conferir-se efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário bem como ordenar-se o seu processamento (a despeito da forma retida), quando presentes os requisitos autorizadores da cautelar. 228 Ob. Cit. p. 373. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 219 ANOTAÇÕES SOBRE O LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO CÉLIO ARMANDO JANCZESKI PROFESSOR DE DIREITO TRIBUTÁRIO NA FACULDADE MATER DEI. MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE DIREITO TRIBUTÁRIO & DO INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE DIREITO TRIBUTÁRIO. ADVOGADO & CONSULTOR NO ESTADO DE SANTA CATARINA. RESUMO O artigo cuida do lançamento tributário sob vários aspectos, tais como: a constituição do lançamento; as suas três modalidades (de ofício, por declaração e por homologação), como prevê o Código Tributário Nacional; o lançamento feito em razão de arbitramento, esclarecendo que não se trata de lançamento especial, mas apenas técnica do lançamento de ofício; do lançamento e da execução fiscal. O autor elucida a questão da irrevisibilidade do lançamento, explicando que o mesmo não pode ser modificado, substituído ou revisto por ato da administração pública, em prejuízo do contribuinte, com fundamento em mudança do critério jurídico. ABSTRACT The article cares about the tributary assessment under several aspects, such as: the constitution of the assessment; its three modals ( written, by declaration and by homologation), as it’s in the National Tax Code; the entry done with adjustment, clarifying that it isn’t special entry, but only a technique of entry, of entry and taxforeclosure. The author talks about the issue of not reversible entry, explaining that it can’t be modified, replaced or revised by an act of public administration, in loss to the taxpayer, with fundament in change of Juridic criteria. PALAVRAS CHAVE - Direito Tributário; Código Tributário Nacional; lançamento tributário. NOTAS INTRODUTÓRIAS O crédito tributário tem seu ponto de partida com o lançamento, conceituado pelo Código Tributário Nacional como “o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso propor a aplicação da penalidade cabível” (art. 142, CTN). A expressão procedimentos administrativos deve ser interpretada em sentido amplo, no sentido de atuação administrativa, já que detendo a Fazenda de todos os elementos necessários ao lançamento, o mesmo pode ser levado a efeito sem instauração de um prévio procedimento. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 220 A atividade administrativa de lançamento, que compete privativamente à autoridade administrativa, é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional (parágrafo único, do art. 142, CTN). Processo administrativo. Crédito garantido por depósito judicial. Lançamento para prevenir a decadência. Possibilidade. Multa de ofício. Pode a fiscalização formalizar exigência previamente questionada judicialmente, para evitar os efeitos decadenciais, devendo absterse, porém, de aplicar multa de ofício, estando o crédito tributário garantido por depósito judicial prévio, em seu montante integral. Recurso parcialmente provido.229 Processo administrativo. Opção pela via judicial. Constituição do lançamento para prevenir a decadência. Possibilidade. Normas processuais. Opção pela via judicial. Tendo o contribuinte optado pela discussão da matéria perante o Poder Judiciário, tem a autoridade administrativa o direito/dever de constituir o lançamento, para prevenir os efeitos decadências, ficando o crédito assim constituído sujeito ao que ali vier a ser decidido. A submissão de matéria à tutela autônoma e superior do Poder Judiciário, prévia ou posteriormente ao lançamento, inibe o pronunciamento da autoridade administrativa sobre o mérito de incidência tributária em litígio, cuja exigibilidade fica adstrita à decisão definitiva do processo judicial. Multa Incabível a aplicação da multa de lançamento de ofício quando o sujeito passivo se encontra sob a tutela do Poder Judiciário mediante obtenção de liminar que o favorece. Recurso parcialmente provido.230 Em vista das disposições do Código Tributário Nacional, Misabel Derzi231 conceitua lançamento, como o “ato jurídico administrativo vinculado e obrigatório, de individuação e concreção da norma tributária ao caso concreto (ato aplicativo), desencadeando efeitos confirmatórios-extintivos (no caso de homologação do pagamento) ou conferindo exigibilidade ao direito de crédito que lhe é preexistente para fixar-lhe os termos e possibilitar a formação do título executivo”. Notificação eletrônica. Nulidade. Falta dos requisitos do Lançamento. É de ser decretada a nulidade de lançamento efetuado através de 229 1º Conselho de Contribuintes, 5ª C., Ac. 105-12.835. Rel. Cons. Luis Gonzaga Medeiros Nóbrega, j. a 08.06.1999. DOU 1 31.08.1999, p. 05, in Repertório IOB de Jurisprudência, 2 quinzena de novembro de 1999, nº 1/14100, p. 631. 230 1º Conselho de Contribuintes, 8ª C., Ac. 108-05.721. Rel. Cons. Tânia Koetz Moreira. DOU-e 1 21.07.1999, p.12. 231 DERZI, Misabel Abreu Machado. Comentários ao Código Tributário Nacional. Coordenador Carlos Valder do Nascimento. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 355. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 221 meios informatizados eletrônicos que não preencha os requisitos previstos em lei, tais como a falta do nome e da assinatura do funcionário. Art. 142 do CTN, art, 11 do Dec. nº 70.235/72. Notificação de lançamento nula.232 IRPF. Notificação eletrônica. Nulidade. O Código Tributário Nacional em seu artigo 142, preconiza ser a atividade do lançamento privativa da autoridade administrativa, ao que estabelece o artigo 11 do Decreto nº 70.235/72 como requisito obrigatório à notificação a referência ao nome, cargo e matrícula do responsável. Consistindo a notificação do lançamento no ato de formalização da exigência do tributo, sendo essencial à formulação da defesa pelo contribuinte, é inadmissível a preterição dos requisitos essenciais quando de sua emissão, causa, portanto, de nulidade do lançamento. Por unanimidade de votos anular o lançamento.233 Com a lavratura do auto de infração, fica consumado o lançamento do crédito tributário, não havendo, pois, de se falar em decadência. A interposição de recurso administrativo pelo contribuinte tem o efeito, tão-somente, de suspender a exigibilidade do crédito tributário...234 O lançamento é de competência privativa da autoridade administrativa (art. 142 do CTN). Assim, qualquer que seja a modalidade (direito, por declaração ou por homologação), ele só se completa com a manifestação da autoridade. Até aí, corre o prazo de decadência; depois, começa o de prescrição.235 Crédito Tributário. A constituição definitiva do crédito não se dá com a inscrição, mas com o lançamento. Não basta, entretanto, o lançamento, pois sendo ele suscetível de impugnação pelo sujeito passivo, o crédito, a que o lançamento, se refere, não é definitivo antes de julgada a impugnação, se esta tiver sido oferecida no prazo legal. Recurso extraordinário conhecido e provido.236 232 1º Conselho de Contribuintes, 7ª C., Ac. 107-04.743. Rel. Conselheiro Antenor de Barros Leite Filho. DOU 1 23.06.1998, p. 34. 233 Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª T., Ac. 01-02.690. Rel. Wilfrido Augusto Rodrigues. DOU 1 16.08.1999, p. 05. 234 STF, 1 T., REsp. 91812. Rel. Min. Rafael Mayer. DJ 08.02.1980, p. 505. 235 TFR, 5ª T., Ag. 40981/RJ. Rel. Justino Ribeiro. DJ 20.08.1981, p.37. 236 a STF, 2 T., REsp. 85587. Rel. Min. Leitão de Abreu, j. 01.09.1978. RTJ 89:939. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 222 1. Tributário. Certidão negativa. Lançamento. Procedimento administrativo. Recurso pendente. Direito à certidão negativa. Enquanto pender recurso no procedimento de lançamento, o contribuinte tem direito à certidão negativa de débito fiscal – eis que não existe, ainda, crédito tributário exeqüível. (REsp. 202.830/Humberto). 2. Processual. Mandado de segurança. Certidão negativa. Dívida em processo de lançamento. Enquanto houver iliquidez e incerteza em relação à dívida fiscal, haverá liquidez e certeza no direito do contribuinte à certidão negativa. Mandado de segurança que se defere.237 MODALIDADES DE LANÇAMENTO Prevê, o Código Tributário Nacional, três modalidades de lançamento: de ofício, por declaração e por homologação. LANÇAMENTO DE OFÍCIO Ocorre lançamento de ofício quando o mesmo é realizado pela autoridade administrativa, com os dados que possui em seus registros ou naqueles que recebeu via informação do sujeito passivo, sem qualquer participação do sujeito passivo. Encontra previsão no art.149, do CTN: O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: I - quando a lei assim o determine; II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária; III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade; IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória; 237 STJ, 1ª T., REsp. 264.041/AL. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. DJU-e 1 04.06.2001, p. 63. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 223 V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte; VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária; VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação; VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior; IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade essencial. Aliomar Baleeiro, a respeito do tema assevera que, “o caput do art. 149 refere-se às hipóteses em que o lançamento, por determinação legal, deve ser efetuado de ofício pela autoridade administrativa (inc. I), o que acontece no Imposto Predial e Territorial Urbano, na contribuição de melhoria e em taxas diversas, como ainda às revisões e alterações feitas em relação a outros tributos, que originariamente deveriam ser lançados com base em declaração (Imposto Territorial Rural), ou por homologação (ICMS, IPI, IR, contribuições especiais em geral, etc.). É a lei da pessoa estatal competente que optará tecnicamente pela modalidade do procedimento para lançar. Qual a melhor alternativa? Dependerá da espécie de tributo a ser lançado. Em conseqüência, o art. 149, I, refere-se à determinação legal, que define a adoção do lançamento de ofício, como modalidade mais adequada à espécie de tributo. Mas o art. 149 (caput e itens de I a IX), disciplina também as hipóteses de substituição do lançamento com base em declaração ou por homologação, que deveriam ter sido efetuados originariamente sem vício, pelo procedimento de lançamento de ofício, total ou complementarmente (revisão ou alteração por iniciativa da autoridade administrativa). E o faz, como já vimos, de forma não exaustiva, numerus opertus, admitindo que a lei ordinária da pessoa política competente estenda o rol a outros casos não previstos no art. 149. É que o descumprimento Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 224 dos deveres de colaboração pelo sujeito passivo, presentes no lançamento com base na declaração e por homologação, não pode comprometer a gestão, administração e arrecadação dos tributos, de que depende o financiamento do Estado.”238 Processo administrativo fiscal. Lançamentos. Efeitos. O auto de infração é uma das modalidades de lançamento (lançamento de ofício) com efeito de constituir o crédito tributário, não implicando sua lavratura em exigência desse crédito, o que só se caracterizará com a execução. Portanto, referido ato não contraria decisão judicial que protege a parte contra “qualquer exigência de diferenças tributárias”. Instaurado com estrita observância das normas estabelecidas no Processo Administrativo Fiscal (Decreto n.º 70.235/72, com alterações da Lei nº 8.748, de 1993), improcede sua alegada nulidade. Recurso a que se nega provimento.239 IRPJ. Decadência. Lançamento de ofício. 1. O Imposto de Renda, antes do advento da Lei nº 8.381, de 30.12.1991, era um tributo sujeito a lançamento por declaração, operando-se o prazo decadencial a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, consoante o disposto no art. 173, do Código Tributário Nacional. A contagem do prazo de caducidade seria antecipado para o dia seguinte à data da notificação de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento ou da entrega da declaração de rendimentos (CTN, art. 173 e seu parágrafo único, c/c o art. 711 e §§ do RIR/ 80). 2. Tendo sido o lançamento de ofício efetuado na fluência do prazo de cinco anos contado a partir da entrega da declaração de rendimentos, improcede a preliminar de decadência do direito de a Fazenda Nacional lançar o tributo.240 Normas gerais de direito tributário. Omissão de receita. Interpretação benigna. 238 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 825. 239 2º Conselho de Contribuintes, 2ª C., Ac. 202-09312. Rel. Conselheiro Oswaldo Tancredo de Oliveira. DOU 12.12.1997, p. 29567. 240 Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª T., Ac. 01-02.577. Rel. Conselheiro Carlos Alberto Gonçalves Nunes. DOU 11.08.1999, p. 09. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 225 O lançamento de ofício há de ser celebrado de maneira precisa e induvidosa, de modo a assegurar que os fatos que o ensejaram constituem, efetivamente, infração à legislação tributária. Se houver dúvida quanto à correta identificação das circunstâncias e da qualificação dos fatos, impõe-se a solução mais favorável ao sujeito passivo, consoante estabelece o inc. II do art. 112 do CTN. Lançamentos decorrentes – PIS, COFINS, IRRF e CSLL – Julgado improcedente o lançamento principal (IRPJ) igual sorte colhe os lançamentos ditos decorrentes, face ao nexo de causa e efeito existente entre eles. Recurso voluntário provido.241 LANÇAMENTO POR DECLARAÇÃO O lançamento por declaração ou misto, é efetuado com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiro, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação (art. 147, do CTN). Recebido as informações, em vista delas, o fisco implementa o lançamento. IRPF. Decadência. Lançamento por declaração. A jurisprudência administrativa dominante é no sentido de que o prazo de caducidade, no imposto de renda de pessoa física, conta-se a partir da data da entrega da declaração de rendimentos do contribuinte. Tendo sido o auto de infração lavrado antes de decorrido o prazo de 5 (cinco) anos, contado da data da entrega da declaração de rendimentos do sujeito passivo, improcede a decretação da caducidade do direito de a Fazenda Pública lançar o tributo.242 LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO Também denominado de autolançamento, o lançamento por homologação “ocorre, quanto aos tributos, cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autorida241 1º Conselho de Contribuintes, 3ª C., Ac. 103-20.341. Rel Conselheira Lúcia Rosa Silva Santos. DOU 27.09.2000, p. 04. 242 Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª T., Ac. 01-02.979. Rel. Conselheiro Carlos Alberto Gonçalves Nunes. DOU 11.06.2000, p. 17. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 226 de, tomando conhecimento da atividade, assim exercida pelo obrigado, expressamente, a homologa”(art. 150, CTN). É uma das características predominantes da tributação nacional, já que a maior parte dos tributos utiliza esta sistemática. O pagamento antecipado pelo obrigado, extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação do lançamento (parágrafo 1o, do art. 150, do CTN), que se não fixado pela lei, será de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador. Como de regra, a Fazenda Pública, não se manifesta no prazo referido, considera-se tacitamente homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação (parágrafo 4o, do art. 150, do CTN). Tratando-se de lançamento por homologação, como a extinção do crédito tributário só se dá a partir da homologação e não do pagamento, somente a partir deste momento, é que iniciará o prazo extintivo do direito à restituição do tributo pago indevidamente. Como na prática a homologação, na quase totalidade dos casos, se dá tacitamente, a jurisprudência pacificou-se no sentido de que o direito do contribuinte buscar a restituição só ocorrerá após o transcurso do prazo de cinco anos, contados da ocorrência do fato gerador, acrescido de mais cinco anos, contados daquela data em que se deu a homologação tácita243 . Contribuição para o PIS (Decretos-leis nos 2.445/88 e 2.449/88): Inconstitucionalidade reconhecida no tribunal a quo. Compensação (Lei nº 8.383/91). Possibilidade. Recurso especial parcialmente provido. I – Os valores recolhidos a título de contribuição para o PIS, cuja exação foi considerada inconstitucional pelo STF (RE nº 18X.752-2RJ), são compensáveis diretamente pelo contribuinte com aqueles devidos à conta da mesma contribuição (LC nº 07/70), no âmbito do lançamento por homologação. Precedentes. II – Tributos, cujo crédito se constitui através de lançamento por homologação, como no caso, são apurados em registros da contribuinte, devendo ser considerados líquidos e certos para efeito de compensação, a se con243 Como já registrado no capítulo que trata da repetição do indébito tributário, na ação objetivando a restituição fundada na inconstitucionalidade da lei tributária, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que o prazo se conta a partir da decisão plenária do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 227 cretizar independentemente de prévia comunicação à autoridade fazendária (cf. art. 2º da IN/SRF nº 67/92), cabendo a essa a fiscalização do procedimento. III – Recurso especial conhecido e parcialmente provido.244 Contribuição previdenciária de autônomos e empresários (Lei nº 7.787/89 e Lei nº 8.212/91). Inconstitucionalidade (RE nº 166.772/ RS e ADIN nº 1.102/DF). Compensação: Possibilidade com a contribuição sobre a folha de salários. Precedente. Recurso conhecido e provido. I – Tributos, cujo crédito se constitui através de lançamento por homologação, como no caso, são apurados em registros da contribuinte, devendo ser considerados líquidos a certos para efeito, de compensação, a concretizar-se independentemente de prévia comunicação à autoridade fazendária, à qual compete a fiscalização do procedimento compensatório. II – Visto que a autora juntou ao seu pedido comprovante do que pagou sem amparo legal, é lhe permitida a compensação. III – Recurso conhecido e provido.245 Lançamento por homologação. Prévio pedido à receita federal para compensar. Dispensável. Tratando-se de contribuições submetidas ao lançamento por homologação, o pagamento é feito sem audiência prévia da autoridade administrativa, o que conduz à conclusão que a compensação requer iniciativa do contribuinte e independe de prévia manifestação do fisco. Este, a sua vez, terá o prazo previsto no parágrafo 4º do artigo 150 do Código Tributário Nacional para eventual lançamento ex-ofício por diferenças não pagas. Recurso provido.246 LANÇAMENTO FEITO EM RAZÃO DE ARBITRAMENTO Quando o cálculo do tributo tem por base, ou toma em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor 244 STJ, 2ª T., REsp. 118.873/MG. Rel. Min. Adhemar Maciel. DJ 17.11.1997, p. 59487. STJ, 2ª T., REsp. 110.942/MG. Rel. Min. Adhemar Maciel. DJU 04.05.1998, p. 137. 246 1º Conselho de Contribuintes, 7ª C., Ac. 107-05.315. Rel. Conselheiro Francisco de Assis Vaz Guimarães. DOU 24.11.1998. 245 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 228 ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado. Ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial (art. 148, do CTN). O arbitramento não se trata de lançamento especial, mas apenas técnica do lançamento de ofício. Sua aplicação depende da existência dos requisitos especificados pelo artigo citado, cujo ônus da prova caberá ao fisco. As deficiências a serem comprovadas pela Fazenda Pública, deverão refletir-se, absolutamente incontornáveis. Os elementos devem ser concretos, precisos e individualizados, não bastando a simples alegação de irregularidades. A adoção da prova indiciária em que o arbitramento se traduz pressupõe a prova de que os vícios isolados que afetam a escrituração tornam, absolutamente, impossível ao Fisco reconstituir, com base nela, o lucro real. Em tal caso, sim, a escrituração tornou-se imprestável para o objetivo a que visa e o vício ou vícios dos lançamentos individuais arrastam a desclassificação do conjunto. Não basta uma simples dificuldade ou maior onerosidade do exercício do dever de investigação em decorrência de vícios isolados da escrita, para exonerar o Fisco do dever de seu cumprimento funcional, autorizando-o desde logo ao recurso à prova indiciária. Enquanto essa possibilidade subsiste deve o Fisco prosseguir no cumprimento de tal dever, seja qual for a complexidade e o custo de tal investigação.247 Como comenta Sacha Calmon Navarro Coêlho248 , manifestando-se sobre o assunto, “o arbitramento é remédio que viabiliza o lançamento, em face da inexistência de documentos ou da imprestabilidade dos documentos e dados fornecidos pelo próprio contribuinte ou por terceiro legalmente obrigado a informar. Não é critério alternativo de presunção de fatos jurídicos ou de bases de cálculo, que possa ser utilizado quando o contribuinte mantenha escrita (mesmo falha ou imperfeita, porém retificável) ou documentação e seja correto em suas informações. 247 XAVIER, Alberto. Lançamento por Arbitramento Pressupostos e Limites. Revista de Direito Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 31, janeiro-março de 1985, p. 181. 248 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 666-667. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 229 Ao contrário. A Constituição Federal, no art. 145, § 1º, obriga à tributação de acordo com a capacidade econômica do sujeito passivo, segundo o princípio da realidade. Portanto, o art. 148 do CTN, somente autoriza a utilização do arbitramento em face das omissões ou atos de falsidade e desonestidade perpetrados pelo contribuinte ou terceiro, que tornem imprestáveis os dados registrados em sua escrita. Não sendo esta a hipótese, a contrario sensu, ficam vedadas as presunções e os indícios, pautas e médias levantadas, técnicas que afastam o lançamento da realidade dos fatos e da capacidade econômica do sujeito passivo. Além disso, não pode haver confusão entre mero atraso na escrita e fraude, sonegação, documento falso, enfim desonestidade, que são sempre dolosos e, de modo algum, podem ser presumidos.” Tributário. Lançamento de ofício. Montante tributável. Arbitramento. Escrita contábil-fiscal. Desclassificação. Legalidade. A Administração, constatando irregularidades, na escrita contábilfiscal de um estabelecimento, pode, e deve, fazer aferição indireta (arbitramento) do montante tributável, pois tal procedimento é imposto pelo § 6º, do art. 33, da Lei nº 8.212/91. O “agir” administrativo nada tem de ilegal, ou inconstitucional, na medida em que assegurados, ao contribuinte, o contraditório, e a ampla defesa. Em nome do princípio basilar do Direito Administrativo, a “soberania do interesse público sobre o particular”, está autorizada a auditoria fiscal, como a que ocorreu, na construtora, sopesando os dados relativos aos insumos, com o resultado das edificações, como forma de aferir a probidade dos dados, relativos às operações realizadas (com evidentes reflexos no recolhimento das contribuições devidas à Autarquia Previdenciária). Sentença reformada. Embargos à execução improcedentes. Remessa oficial, e Apelação do INSS conhecidas, e providas.249 Arbitramento. Constatada a ausência de documentação fiscal que comprove as demonstrações financeiras, o único meio de se alcançar a base tributável é através do arbitramento. Aumento de capital. Comprovação. 249 TRF, 4ª R., 1ª T., AC 1999.04.01.045231-6/SC. Rel. Juíza Maria Isabel Pezzi Klein. DJU-e 2 08.11.2000, a p. 56, in Repertório IOB de Jurisprudência, 1 quinzena de março de 2001, nº 1/15695, p. 119. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 230 Impossível, no caso em apreço, a tributação por falta de comprovação de origem e entrega de recursos, quando já efetuado o arbitramento pela absoluta ausência de documentos e demonstração financeira. A presunção pressupõe a prova anterior de omissão por indícios na escrituração, fato impossível quando inexistente a própria escrituração. A prova seria de todo impossível ou estar-se-ia cerceando o direito de defesa do contribuinte, transformando uma presunção juris tantum em ficção jurídica. Recurso parcialmente provido.250 IRPF. Acréscimo patrimonial a descoberto. Omissão de rendimentos. A presunção de omissão de rendimentos deve estar fundamentada em prova ou indícios veementes de falsidade ou inexatidão dos esclarecimentos prestados pelo contribuinte. A falta de apresentação de declaração de rendimentos, acompanhada de esclarecimentos insuficientes do contribuinte não foram arrolados pela lei como fundamento do arbitramento. Os elementos que se dispuserem, a que se refere o art. 678 do RIR/80, são aqueles que trazem em seu conteúdo prova e evidência substancial. IRPF. Sinais exteriores de riqueza. Lei nº 8.021/90. Aplicação – No arbitramento, em procedimento de ofício, efetuado com base em cheques ou ordens de pagamento, bancários, nos termos do art. 6º, e seus §§, da Lei nº 8.021/1990, é imprescindível que seja comprovada a utilização dos valores como renda consumida, evidenciando sinais exteriores de riqueza, visto que, por si só, não constituem fato gerador do imposto de renda, pois não caracterizam disponibilidade econômica de renda e proventos. Recurso negado.251 LANÇAMENTO E EXECUÇÃO FISCAL A execução fiscal pode reunir numa só cobrança, vários créditos tributários, inseridos em uma só certidão de dívida ativa, assim como possível que a execução seja instruída com mais de uma certidão. Nestes casos, a exclusão de uma parcela autônoma, não macula o procedimento executivo daquela remanescente, considerada devida. 250 1º Conselho de Contribuintes, 8ª C., Ac. 108-05.080. DOU 31.08.1998, p. 08. Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª T., Ac. 01-02.780. Rel. Conselheiro Remis Almeida Estol. DOU 06.12.2000, p. 12. 251 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 231 Processual. Executivo fiscal. Inscrições de dívidas ativas provenientes de taxa e imposto. Certidão relativa as duas inscrições. Embargos recebidos para declarar improcedente a dívida oriunda do imposto. Aproveitamento parcial da certidão. Continuação do processo executivo. Processo executivo fiscal instruído com certidão em que se comprovam duas inscrições em dívida ativa de origens diferentes: uma proveniente de imposto; outra, oriunda de taxa. Declarada incobrável a parcela resultante de imposto, a execução continuará, aproveitando-se a certidão, na parte relativa à taxa.252 Na hipótese da execução fiscal estar exigindo um só crédito, é facultado ao Fisco a emenda ou a substituição da Certidão de Dívida Ativa até a decisão de primeira instância (art. 2o, par. 8o, da Lei 6.830/ 80), que se não o fizer, impossibilitará ao Juiz, ao acolher parcialmente os embargos, determinar o prosseguimento da execução pela diferença que considere devida, já que o juiz não poderá fazer um lançamento tributário em substituição àquele tido como viciado, até porque o lançamento é procedimento privativo da autoridade administrativa. Neste sentido assinala Hugo de Brito253 que “na verdade, o que importa para saber, quando a execução deve prosseguir não é a inscrição, nem a certidão respectiva. O que importa é a identificação da relação obrigacional tributária e o correspondente lançamento, que a tornou líquida e certa, vale dizer, que a transformou em crédito tributário. Se o crédito é um só, resultado de um acertamento, evidentemente se é indevido em parte, torna-se ilíquido, sendo inadmissível o procedimento da execução. Se estão sendo cobrados dois ou mais créditos, ainda que tenham sido objeto de uma única inscrição e estejam documentados por uma única certidão, o desmembramento é possível, devendo a execução prosseguir pelo saldo.” IRREVISIBILIDADE DO LANÇAMENTO O lançamento não pode ser modificado, substituído ou revisto 252 STJ, 1ª T., REsp. 73.162/SP. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 11.10.1995. DJU 1 20.11.1995, p. 39566. MACHADO, Hugo de Brito. Lançamento Tributário, Execução Fiscal e Mandado de Segurança, in Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Oliveira Rocha Comércio e Serviços Ltda, nº 47, agosto de 1999, p. 59. 253 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 232 por ato da administração pública, em prejuízo do contribuinte, com fundamento em mudança do critério jurídico. Eventual erro de fato poderia fazê-lo, porém não o erro de direito, especialmente, porque a lei não pode admitir seja ignorada da autoridade fiscal encarregada de proceder ao lançamento. Ricardo Lobo Torres254 , manifestando-se sobre o assunto, apresenta a mesma orientação, ao defender que, a regra geral prevalecente no direito tributário, é a da irrevisibilidade do lançamento. “Nem o erro de direito na aplicação das leis fiscais, nem a sua injustiça legitimam a revisão do lançamento, eis que através dele se cria uma situação jurídica bilateral. Só a Administração Judicante pode revê-lo, se houver impugnação do sujeito passivo ou recurso de ofício; ou a Administração Ativa, se ocorrer uma das circunstâncias previstas no artigo 149 do CTN. Os critérios jurídicos utilizados para o lançamento pela Administração são inalteráveis com relação a um mesmo sujeito passivo, ainda que haja modificação na jurisprudência administrativa ou judicial. Este princípio, estampado no artigo 146 do CTN, emana da segurança dos direitos individuais e da proteção da confiança do contribuinte. Aplica-se, principalmente, nos casos de consulta sobre a existência da relação tributária: se a Administração firma determinado ponto de vista, favorável ao contribuinte, não poderá depois, nem mesmo em virtude de decisões administrativas ou judiciais, voltar atrás para exigir daquele contribuinte beneficiado o imposto devido por fatos pretéritos, apenas os fatos futuros ficarão sujeitos ao novo critério jurídico.” O mesmo ensinamento é defendido por Paulo de Barros Car255 valho , que registra haver “um critério que vem sendo amplamente observado, no que concerne aos limites da atividade modificadora dos atos de lançamento. A autoridade administrativa não está autorizada a majorar a pretensão tributária, com base em mudança de critério jurídico. Pode fazê-lo, sim, provando haver erro de fato. Mas como o direito se presume conhecido por todos, a Fazenda não poderá alegar desconhecê-lo, formulando uma exigência, segundo determinado crité254 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 227. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 278. 255 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 233 rio e, posteriormente, rever a orientação, para efeito de modificá-la. A prática tem demonstrado a freqüência de tentativas da Administração, no sentido de alterar lançamentos, fundando-se em novas interpretações de dispositivos jurídico-tributários. A providência, entretanto, tem sido, reiteradamente, barrada nos tribunais judiciários, sobre o fundamento explícito no artigo 146 do Código Tributário Nacional.” Duplo lançamento. Agravamento. Considerado o lançamento como ato, a sua ocorrência é una, não se confundindo com o procedimento que, normalmente, lhe é anterior. Uma vez lançado o contribuinte, com impugnação apresentada, deve ele ser apreciado sem modificações, pela autoridade julgadora.256 =============================================================== 256 1º Conselho de Contribuintes, 1ª C., Ac. 101-93.595. Rel. Conselheiro Celso Alves Feitosa. DOU 1 07.01.2002, p. 31. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 234 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 235 AS MÚLTIPLAS FUNÇÕES DO BEM JURÍDICO NO DIREITO PENAL PEDRO LUCIANO EVANGELISTA FERREIRA PROFESSOR DE CRIMINOLOGIA & DE DIREITO PENAL DO CESCAGE. MESTRE EM CRIMINOLOGIA E DIREITO PENAL PELA UCAM/RJ. ADVOGADO NO PARANÁ. RESUMO O artigo cuida das múltiplas funções do bem jurídico no Direito Penal, adotando para tanto, a concepção de bem jurídico como o objeto da proteção jurídica, representado por um interesse ou valor importante para a sociedade ou para o indivíduo. Para demonstrar tal importância, fundado em doutrina farta e especializada, o autor entabula algumas relações do bem jurídico, tais como: entre o bem jurídico e os princípios basilares do Direito Penal; entre o bem jurídico e a teoria do fato punível; e entre o bem jurídico e a Constituição, como limites à política criminal. ABSTRACT The article cares about the multiple functions of the juridic assets in Crimminal Law, adopting for it, the conception of Juridic Assets as an object of juridic protection, represented by an interest or important value to the society or to the individual. To demonstrate such importance,found in specialized doctrine, the author talks about some relations of the juridic assets,such as: between the juridic assets and the base principles of Crimminal Law; between the juridic assets and the theory of the punishing fact; and between the juridic assets and the Constitution, as limits to the Crimminal politics. PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; criminologia; bem jurídico penal. INTRODUÇÃO O conceito de bem jurídico é de suma importância a qualquer indagação jurídico-penal pois serve de substrato material e critério diretivo a todo processo de criminalização. A sua importância é tamanha que a precisa compreensão das características e peculiaridades de qualquer espécie de crime não pode prescindir de duas perguntas principais: Qual bem jurídico o legislador busca proteger? Quais as formas de lesão que o tipo penal procura evitar? Atento a estas questões mister dedicar o presente estudo para buscar uma precisa definição de bem jurídico e o seu esquadrinhamento de suas múltiplas funções dentro da sistemática jurídico-penal, pois como bem assevera MAURACH: Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 236 “El bien jurídico es el núcleo material de toda a norma de conducta y de todo tipo construido sobre ella. La interpretación de la ley penal - y com ella su conocimiento -, sin la directriz que le da la noción del bien jurídico, es simplesmente imposible.”257 O BEM JURÍDICO E A SOCIEDADE Há muito se tem asseverado não existir sociedade sem o direito e o direito sem a sociedade - afirmação contida no brocardo latino “ubi societas, ibi ius” - uma vez que a sociedade não representa mera justaposição de indivíduos em determinadas coordenadas espaço-temporais, mas pressupõe a formação de um grupo de indivíduos convivendo e interagindo entre si pelas mais variadas formas de relações. A formação do corpo social busca alcançar a coexistência harmônica de todos os seus integrantes, coexistência que só será conseguida por meio da coordenação e adaptação das atividades e interesses individuais entre si. Esta coordenação é obtida pelo ordenamento jurídico, pela ética e pela moral que são conjuntos de regras de conduta, mas ao contrário das normas éticas e morais, as normas jurídicas ocupam destacada posição haja vista não possuírem sua atuação circunscrita ao âmbito intra-subjetivo. Responsável por traçar os limites das atividades de cada indivíduo, o ordenamento jurídico impõe e garante a observância de seus preceitos por meio de sanções cujos efeitos ultrapassam a esfera da consciência individual acentuando sua força coercitiva. Não é exagero concluir que o Direito cria e regula a própria sociedade, considerada como um todo, ou em suas partes ou elementos que a constituem tanto pessoas físicas como pessoas jurídicas - do ponto de vista jurídico. Assim, sob certo ponto de vista, o homem, como sujeito jurídico, também não deixa de ser uma criação do Direito, que ora lhe atribui faculdades, ora as reduz, ora delas o priva. Sendo essa a causa do Direito pode se notar a existência de tantos ordenamentos quantas forem as formas de organização social, nada legitimando a afirmação de que o Estado é a sua única manifesta257 MAURACH, Reinhart. Derecho penal. Parte general - tomo I. Atualizado por Heinz Zipf. Tradução da 7ª edição alemã por Jorge Bofill Genzsch e Henrique Aimone Gibson. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1994. p. 339. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 237 ção. Pode-se dizer que ele é a manifestação mais recente já que foi antecedido por outras formas de organização social como as famílias, as tribos e os clãs. A própria Igreja é considerada como organismo autônomo, com ordenamento jurídico próprio (jus canonicum) e é tratada como qualquer outro Estado nas suas relações internacionais. As sociedades, companhias, sindicatos e corporações também se regem pelos seus próprios ordenamentos que estabelecem direitos e deveres para seus membros, e assumem, por esta razão, caráter eminentemente jurídico. Impende gizar a natureza do Direito como produto criado pelos agrupamentos sociais de acordo com a intensidade e direção das necessidades e interesses prevalentes em certo contexto histórico, em repulsa ás concepções ideológicas do Direito como algo natural e préexistente a toda a sociedade, fruto de noções, universalmente, válidas.258 Assim, desponta claro e evidente que não pode haver independência ou dissociação entre o estudo do Direito e o estudo do ambiente cultural em que ele se desenvolve.259 Porém, sob o ponto de vista dogmático, ou em função exclusiva das normas jurídicas, pode se afirmar que só há o Direito que promana do Estado uma vez que este, nos tempos atuais, é o poder absoluto dotado de soberania - nos limites de seu território -, sendo por meio do Direito que ele se constitui e representa a sua eficiência e força. Mas a realidade mostra que o Estado convive com outros ordenamentos ainda que enfeixe em suas mãos o ordenamento jurídico. Sobre o conjunto de relações sociais destinadas, em primeiro plano, à produção de condições materiais de existência do homem variáveis em razão do contexto histórico em que se desenvolvem e influenciando fortemente este último - é criada a superestrutura jurídica, fruto da sedimentação e adensamento da ideologia dominante em uma sociedade estratificada de classes, uma vez que, a atividade humana não só é responsável pela produção social, mas também pela produção 258 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 18. FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Direito Penal Português. Parte Geral. Tomo I. Lisboa: Verbo: Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. 1981. p. 23. 259 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 238 de idéias que desenvolvem e aperfeiçoam o modo de produção social.260 Buscando tornar possível a coexistência pacífica dos indivíduos em sociedade, o Estado irá defender e preservar os valores e interesses sociais, especialmente, relevantes segundo parâmetros escolhidos pelos interesses sociais hegemônicos, proteção que é efetivada por meio de todo um arsenal de normas jurídicas a serem executadas pelos órgãos oficiais. Todos os atos praticados pelo homem, que contrariem as normas jurídicas, serão denominados ilícitos jurídicos, são os atos que atacam ou colocam em perigo os interesses e valores protegidos pelo Direito. O objeto da proteção jurídica, representado por um interesse ou valor importante para a sociedade ou para o indivíduo recebe a denominação de “bem jurídico”, elemento central para a própria conformação e caracterização do Direito. Em sentido amplo, bem é tudo que possui utilidade e necessidade, enfim todas as coisas materiais ou imateriais que possuem valor e que em razão deste valor são procuradas, disputadas, defendidas e, por força do inevitável choque de preferências e interesses individuais, estão sujeitas a certas formas de ataque ou lesão das quais precisam ser defendidas.261 Todavia importa salientar que não são todos os valores e interesses sociais e individuais que são considerados bens jurídicos, mas apenas aqueles valores e interesses cuja relevância social torne indispensável o seu reconhecimento e a sua proteção pelo Direito. Desta forma o bem jurídico representa um interesse de vital apreciação comunitária ou individual que - por sua acentuada importância para a sociedade - recebe a tutela do ordenamento jurídico em razão das exigências da consciência geral ou das classes dominantes em determinado grupo social.262 Como se pronuncia autorizada doutrina, entende-se por bem jurídico todo o estado social representativo de um valor ético-social es260 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia da Repressão: uma crítica ao positivismo em criminologia. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 14. 261 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.15. 262 MAURACH, Reinhart. op.cit. p. 333 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 239 pecialmente, significativo, que o Direito busca proteger de lesões.263 Enquanto que coisa é o gênero que representa tudo que pode existir tanto no mundo exterior quanto no mundo interior do homem. O bem é a espécie, representando apenas as coisas que são ou podem ser objeto de um direito, de modo que, o ar atmosférico e as estrelas do céu não podem ser bens jurídicos enquanto que a honra, a vida e a propriedade podem. O termo “jurídico” surge a partir do momento que o bem não apenas é reconhecido, mas também tutelado pelo Direito. É oportuno esclarecer que, os bens jurídicos podem representar valores sociais permanentes que perduram pelo tempo ou ainda valores de conteúdo variável em razão das mutáveis concepções de vida.264 A esse propósito temos a liberdade e a honra, respectivamente. Mas ainda que o ordenamento jurídico seja definido como o conjunto total de normas emanadas do Estado, ele irá se dividir em vários ramos de acordo com a natureza das relações sociais que serão tratadas e com o objeto de sua proteção e de estudo, não obstante estes ramos manterem relações de interdependência, visando a formação harmônica, integrada e não contraditória, de todo o ordenamento jurídico. O BEM JURÍDICO E OS PRINCÍPIOS BASILARES DO DIREITO PENAL Dentre os vários ramos do Direito - cuja separação atende, principalmente, a fins didáticos - temos o Direito Penal que é responsável por defender os valores mais caros e essenciais para o corpo social ao regular a atuação estatal no combate dos ilícitos penais que representam a forma mais grave de ilícito jurídico.265 Assevera-se que o Direito Penal é o conjunto de regras jurídicas (jus poenali) que disciplinam o poder punitivo do Estado (jus puniendi), em razão dos fatos possuidores de natureza criminal e, 263 WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Busto Ramirez e Sérgio Yáñez Pérez. Santiago: Ed. Jurídica de Chile, 1970. p. 15. 264 BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral, Tomo 1º. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 30. 265 BRUNO, Aníbal. op.cit. p. 25. No mesmo sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, volume 1. 6ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 02. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 240 consequentemente, as medidas que são aplicáveis a quem os pratica266 . Outros, afirmam que o Direito Penal é compreendido pelo conjunto de normas e disposições jurídicas reguladoras do exercício do poder estatal sancionador e preventivo, estabelecendo o conceito de delito como pressuposto da ação estatal, assim como da responsabilidade do sujeito ativo e, associando com a infração da norma uma pena finalista ou uma medida asseguradora267 . As definições do que seja o Direito Penal são várias apesar de manter a mesma essência, valendo destacar que ele pode ser observado através de três prismas diferentes, mas relacionados entre si.268 Sob o prisma objetivo, o Direito Penal seria definido como o conjunto das normas jurídicas, pelas quais o Estado exerce a sua função de prevenir e reprimir a prática de fatos puníveis por meio da imposição de sanções aos seus autores269 (Direito Penal Positivo ou também Direito Penal Objetivo). Sob o prisma subjetivo o Direito Penal pode ser entendido como a faculdade que possui o Estado de considerar certas condutas como criminosas - mediante prévia tipificação legal - e de determinar, aplicar e executar as conseqüências jurídicas correspondentes (Direito Penal Subjetivo). Já sob o prisma científico, o Direito Penal pode ser definido como o conjunto de conhecimentos que orbitam em torno do Direito Penal - objetivo e subjetivo - com vistas a possibilitar sua melhor compreensão e aplicação (Direito Penal Ciência, Ciência do Direito Penal ou Dogmática Jurídico-Penal). Estão intimamente entrelaçados os conceitos de Direito Penal como ciência fundante e determinadora do exercício do poder punitivo do Estado e a definição do Direito Penal como conjunto de normas que regulam o poder punitivo, e ainda, de Direito Penal como faculdade exclusiva do Estado de exercer o poder punitivo em nome da sociedade. 266 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, volume 1. 34ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999. ASÚA, Luiz Jimenez de. La ley y el delito. Princípios de Derecho Penal. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Hermes, 1954. pp. 20-21. 268 BATISTA, Nilo. op cit. p. 50. 269 GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. Vol.I. Tomo I. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Max Limonad, 1954. p. 8; BRUNO, Aníbal. op.cit. p. 28. 267 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 241 O Direito Penal possui fundamental importância, uma vez que é responsável pela proteção dos interesses e valores mais importantes e essenciais para a sociedade. Esta proteção será realizada por meio da proibição de condutas humanas lesivas (real ou potencialmente) aos deveres ético-sociais elementares consubstanciados na figura dos bens jurídico-penais. Referidas proibições possuirão atreladas ao seu descumprimento reprovável a imposição de conseqüências jurídico-penais específicas, que se consubstanciam na aplicação de penas e medidas de segurança, conforme sistemática adotada pela maioria dos códigos. Neste sentido o conceito de bem jurídico representa um dos principais elementos, que constituem o arsenal teórico da dogmática jurídico-penal, desempenhando importantes funções. Pois bem, uma destas funções, por si só suficientes para marcar o papel de relevância do bem jurídico, dentro do Direito Penal, diz respeito ao próprio fim perseguido pelo Direito Penal. Não obstante, o Direito Penal representar o mais rigoroso sistema de controle e dominação social, cuja criação está vinculada à certas finalidades funcionais de manutenção/reprodução de um sistema social global em cumprimento de uma nítida missão política (ou como querem alguns, simplesmente, dizer “para combater o crime”), em razão de um dos princípios basilares do Direito Penal - o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos - este ramo do Direito nasce voltado para a promoção da defesa da sociedade (ou pelo menos parte dela270 ) pela proteção dos bens jurídicos que lhe são mais essenciais como a vida humana, a integridade corporal, a honra, a saúde pública, o patrimônio, etc. Vale ressaltar que a coordenação dos comportamentos humanos - muitas vezes antagônicos e colidentes - requer a utilização de critérios de decisão, uma vez que a resolução de conflitos supõe a eleição de interesses, predominantes ou a conciliação de interesses avaliados pela sua relacionação com os interesses superiores.271 Neste pon270 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999. p. 162; ANDRADE, Vera Regina Pereira de Andrade. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 205 e ss. 271 FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Op.cit. p. 37. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 242 to avulta a importância dos bens jurídicos, interesses e valores sociais importantes, modernamente, erigidos a esta categoria (bem jurídico) em consonância com os Direitos Humanos ou Direitos Fundamentais. Contudo, a legitimação da intervenção penal, no processo de disciplinamento dos comportamentos humanos em determinado contexto social, depende da danosidade real ou potencial destas condutas. Isto ocorre por força do princípio da lesividade que impede a criminalização de condutas puramente internas, que sejam apenas imorais ou diferentes. As conseqüências da adoção deste princípio, pelo Direito Penal, estão representadas na proibição da incriminação de atitudes, idéias, sentimentos internos, que não se manifestem em uma conduta externa, ainda que, em última análise se identifique com um comportamento omissivo. Vale gizar que o próprio tipo objetivo dos crimes dolosos necessita de um verbo a representar uma ação humana (matar, ocultar, induzir, etc.) como núcleo material, caso contrário, estaria criminalizando um estado de pensamento, uma atitude interna que, isoladamente, não representaria lesão a bem jurídico algum.272 Também são proibidas as incriminações de condutas que se restringem ao âmbito do autor, como os atos preparatórios previstos no art. 14, inc. II, do Código Penal Brasileiro, e, também, a situação do crime impossível ou tentativa inidônea, descrita no art. 17, do mesmo codex, porque estão enquadradas no rol das condutas que não representam lesão ou perigo de lesão de bem jurídico, ou ainda, em havendo a lesão de bem jurídico, que esta não ultrapasse a esfera do autor, como ocorre com o suicídio. Na mesma linha de raciocínio, são proibidas pelo princípio da lesividade, as incriminações de simples estados pessoais ou condições existenciais, como desejam os sectários do Direito Penal do Autor que toma como base, qualidades pessoais do agente para a imposição de pena. Hodiernamente, com o advento do Estado de Direito e em nome da certeza e da segurança jurídicas, nas legislações penais prepondera o Direito Penal do Ato como norte diretivo, utilizando a intensidade e a direção das ações humanas - efetivamente praticadas, não apenas 272 BATISTA, Nilo. Op.cit. p. 92. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 243 idealizadas - para fins de imposição de penas. Contudo, ainda subsistem resquícios do Direito Penal do Autor, inclusive na legislação brasileira que considera qualidades do autor na aplicação da pena, como pode ser visualizado com a reincidência. Por fim, são proibidas as incriminações de condutas desviantes que não danifiquem qualquer bem jurídico, o que abre espaço para o direito à diferença. Desta forma, certos comportamentos, ainda que estejam fora dos padrões escolhidos pela sociedade e recebam reprovação intensiva, não poderão ser criminalizados, se não representarem lesão ou perigo de lesão a qualquer bem jurídico alheio, o que destaca ainda mais a importância do conceito de bem jurídico. Assim, o bem jurídico exerce a sua função, impedir que o legislador tipifique como crimes, comportamentos humanos que não representem lesão ou perigo de lesão, constituindo verdadeiro limite material ao direito estatal de punir.273 Em se tratando do bem jurídico como critério legitimador e limitador da intervenção penal, precisas são as palavras de NILO BATISTA ao observar que: “O bem jurídico põe-se como sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega, ‘revelando’ e demarcando a ofensa.”274 Mas para nortear a criação e aplicação das normas jurídicopenais, não basta apenas o escopo de proteger determinados interesses ou valores socialmente relevantes. O Direito Penal só atua na proteção dos bens jurídicos considerados mais importantes e essenciais à sociedade,275 e ainda, apenas quando se verificarem contra estes a ocorrência - ou perigo de ocorrência - das formas mais graves de lesão e não contra todas as formas de agressão possíveis, conforme estabelece outro princípio de grande im273 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 40. BATISTA, Nilo. Op.cit. p. 95. 275 Não se olvide a relatividade dos bens tutelados penalmente, uma vez que os interesses essenciais seriam assim definidos de acordo com o sistema de valores e interesses dominantes em uma estrutura social estratificada porquanto o Direito Penal não representa (e defende) um sistema de valores e normas cuja aceitação social é unânime, mas sim o sistema de valores prevalentes no momento embriogênico das normas (legislador) e no momento de sua aplicação (juízes, polícia, penitenciárias, etc.) evidenciando a “dupla seletividade do Sistema Penal”. Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999. p. 75. 274 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 244 portância para o Direito Penal - o princípio da fragmentariedade - de modo que nem todos os bens jurídicos são protegidos pelo Direito Penal e nem todas as ações lesivas são por ele envolvidas.276 O caráter fragmentário do Direito Penal opõe-se à visão da “onipresença e onipotência da tutela penal”, tão bem aceita pelas legislações medievais, aplicada com vigor no sistema penal do absolutismo e ainda defendida por certos movimentos da política criminal contemporânea (“lei e ordem”). Definitivamente, o Direito Penal não é o detentor do monopólio no tratamento de todos os ilícitos existentes e não deve tratar dos mesmos de maneira minuciosa. É necessário que o Direito Penal deixe espaço para os instrumentos jurídicos não-penais agirem, quando estes forem por si só suficientes, caso contrário a atuação excessiva do Direito Penal retirar-lhe-á a legitimação da necessidade social. Em razão do Direito Penal ser responsável pela aplicação das formas mais severas de sanção existentes, dentro de todo o ordenamento jurídico, ele exige que sua estrutura seja, rigorosamente delimitada e definida, e ainda, que sua aplicação seja realizada apenas nas hipóteses em que outras formas de proteção de determinado bem jurídico, verbi gratia, os outros ramos do direito, tiverem falhado em sua função protetiva. Vale reforçar que, em razão do Direito Penal representar, desde os primórdios da civilização, a forma mais radical e contundente de intervenção na esfera individual, ele deve ser utilizado somente em razão última - ultima ratio - evitando a inflação penal para que o sistema penal não tenha apenas uma atuação simbólica, como estipula o princípio da intervenção mínima ou subsidiariedade que, aliás, pressupõe a fragmentariedade. A utilização dos instrumentos do Direito Penal, onde se mostra suficiente outra forma de atuação jurídica de natureza mais branda e amena é insensata e contraproducente porque se opõe aos fins do direito.277 A necessidade de defesa em relação a ofensa, precisa estar 276 277 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op.cit. p. 12 BATISTA, Nilo. Op.cit. p. 87. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 245 dotada de racionabilidade e para tanto não basta que a defesa seja capaz de prevenir ou fazer cessar a ação agressiva, mas é imperioso que a forma de defesa possa ser considerada, racionalmente, necessária para atingir tal desiderato. Dessume-se, portanto, que o Direito Penal não é um exaustivo sistema de proteção dos bens jurídicos, uma vez que não abarcará todos eles, e muito menos, alcançará todas as formas possíveis de ações que representem uma lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos defendidos. A função maior de proteção dos bens jurídicos, atribuída à lei penal, não é absoluta. Observadas e atendidas as ressalvas impostas pelos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, impende esclarecer que o bem jurídico desempenha outro papel de grande relevo, dentro do Direito Penal, que é o de figurar como delimitador do conteúdo material do injusto penal. Mas nem sempre este foi o entendimento adotado pela dogmática jurídico-penal, vez que, inicialmente, o crime era concebido como um pecado, uma afronta aos poderes divinos, uma desobediência que era punida com a expulsão do infrator como sacrifício para salvaguardar a coletividade e satisfazer aos deuses. Posteriormente o Iluminismo - com sua busca pela razão - formula uma noção de crime desvinculada dos preceitos religiosos/míticos, entendendo-o como lesão ou perigo de lesão aos direitos subjetivos. Ressalte-se que esta concepção é fruto da aplicação da teoria contratualista no direito penal em decorrência da ideologia liberal-individualista.278 Em seguida, é desenvolvido o conceito de crime como lesão ou perigo de lesão de interesses vitais279 , terminando por desenvolver a concepção material de crime como injustificada lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico que atualmente é um verdadeiro axioma.280 Deste modo, evidencia-se com translúcida clareza que o modo pelo qual o Direito Penal irá atuar está intimamente relacionado com o bem jurídico, já que dependerá - de maneira incontornável - da seleção 278 279 280 PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 22. TOLEDO, Francisco de Assis. op. cit. pp. 16-17. PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 24. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 246 de quais interesses e valores serão objetos de proteção, e ainda, estará inequivocamente, limitado pela escolha de quais formas de agressão que - mediante prévio e taxativo processo de tipificação legal - serão envolvidas pelo Direito Penal. A propósito, urge explicitar que, a parte especial dos Códigos Penais contemporâneos - em que, via de regra, estão elencadas as condutas consideradas criminosas - trata dos crimes em espécie, de acordo com certa classificação escolhida pelo legislador, quando utiliza o bem jurídico como critério de seleção, disposição e agrupamento de crimes. Observando a parte especial do Código Penal Brasileiro, atualmente, em vigor (Decreto-lei n.º 2.848, de 07 de dezembro de 1940) que se inicia no art. 121 e finda no art. 359, pode-se visualizar a previsão de 11 (onze) títulos em que estão agregadas e divididas as figuras delitivas de acordo com o bem jurídico protegido, exempli gratia, “dos crimes contra a pessoa”, “dos crimes contra a família”, “dos crimes contra o patrimônio”, “dos crimes contra a paz pública”, “dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos”, etc. Não se olvide que o bem jurídico, considerado um dos pólos do Direito Penal, ao lado da norma, também possui um papel de incomensurável importância no momento da interpretação teleológica de qualquer preceito e de todo o ordenamento jurídico, já que os seus fins inventivos e justificadores estão presentes no momento em que certos interesses são elevados à categoria de bem jurídico.281 Todavia, é oportuno esclarecer que, o conceito de bem jurídico não se confunde com o conceito de objeto material do crime, uma vez que este representa o objeto sobre o qual recai, diretamente, a ação lesiva praticada pelo agente (sujeito ativo) enquanto que o bem jurídico é o interesse ou valor cuja proteção é almejada pela norma penal. Ad exemplum, observe-se que, no crime de furto, o bem jurídico protegido, sempre será o patrimônio, enquanto que, o objeto material pode ser um livro, um relógio, um automóvel, uma valiosa obra de arte, etc. Estes motivos já seriam suficientes para demonstrar de maneira clara e precisa a penetrante propagação de efeitos do conceito de bem 281 ASÚA, Luiz Jimenez de. op.cit. p. 22; BATISTA, Nilo. op.cit. 96; PRADO, Luiz Regis. op.cit. p.41. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 247 jurídico na forma como é constituído, estruturado e aplicado o poder punitivo do Estado, mas a importância do bem jurídico é ainda maior. O bem jurídico também exerce sua influência sobre a pena que é a forma mais incisiva de intervenção estatal, na esfera individual uma vez que em razão do princípio da proporcionalidade das penas deve existir um justo equilíbrio entre a intensidade da ofensa praticada contra certo bem jurídico protegido pelo direito penal e a respectiva conseqüência jurídica a ser suportada pelo agente praticante do injusto penal reprovável, ou seja, é imprescindível analisar a natureza e importância do bem jurídico atacado, bem como a intensidade da ofensa ou lesão suportada (ou tentativa de lesão), para só então se tornar possível a análise da existência ou não de mencionada proporcionalidade. Deve também ficar registrada a existência do entendimento de que o bem jurídico desempenharia, ao mesmo tempo uma função individualizadora ao servir de parâmetro para a fixação concreta da pena atendida à proporcionalidade supramencionada.282 O BEM JURÍDICO E A TEORIA DO FATO PUNÍVEL Não bastasse a relação existente entre o bem jurídico e os princípios básicos do Direito Penal - fortes baluartes e precisos limitadores do poder punitivo estatal -, o bem jurídico ainda irá desempenhar respeitável papel dentro da teoria geral do delito. A teoria geral do delito, teoria jurídica do crime ou teoria do fato punível constitui o cerne do Direito Penal, “o segmento principal da dogmática penal,”283 porque destina-se explicar as características gerais e essenciais da conduta punível e de seu autor, assinalando os caracteres constitutivos gerais e comuns a todos os fatos puníveis284 , descobrir a “essência do conceito geral do delito”285 , tratando da chamada parte geral. Todavia, o trabalho do espírito para empreender a apreciação ou análise das características gerais do fato punível não se esgota no 282 PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 41. SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 01. 284 WELZEL, Hans. op. cit. p. 50. 285 MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Tradução e notas de Juarez Tavares e Luis Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 01 283 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 248 estudo da parte geral dos códigos, mas é um trabalho que exige por parte da doutrina, a investigação da parte especial dos códigos, porquanto a parte geral de vários códigos é por demais sucinta, limitada mais a questão da aplicação da lei penal do que da própria categorização e construção de um conceito de delito.286 A teoria geral do delito ou teoria do fato punível, conforme modernas orientações, considerada uma “disciplina lógica, intrasistemática, conceitual e de oculta vinculação com a realidade287 ” busca responder uma série de perguntas que orbita ao redor do seu objeto de estudo: o fato punível. Ocorre, no entanto, que muito pouco seria conseguido se houvesse a pretensão de responder tudo com uma só pergunta. Deste modo, as perguntas são conseqüências de uma análise que ocorre a passos sucessivos e ordenados, não se contentando apenas com a verificação ou não da ocorrência de um fato punível.288 A definição do fato punível pode variar dependendo do enfoque a ser utilizado pelo sujeito cognoscente, contudo, sem resultar em uma modificação do objeto cognoscível. Sob o aspecto formal - cujo ponto de referência repousa sobre o direito positivado - o fato punível passa a representar todo comportamento humano que contrarie a lei penal289 ; ou seja, “todo o crime resulta de definição legal”290 , repelindo-se pela experiência e pela lógica a idéia proposta por GARÓFALO da existência de um suposto “delito natural” como criminalidade substancial identificável em todos os tempos e lugares. A definição puramente formal de fato punível que o restringe a análise de sua contrariedade com o ordenamento jurídico-penal não é falsa, porém, se traduz em uma fórmula vazia.291 286 TAVARES, Juarez. Teorias do Delito: variações e tendências. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980. p. 06. 287 GOMEZ BENITEZ, José Manuel. Teoria Jurídica do Delito. Reimpression. Madrid: Civitas. 1988. p. 27. 288 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 384. 289 NORONHA, E. Magalhães. Op. cit. p. 96; BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 281; SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 02; MUÑOZ CONDE, Francisco. op.cit. p. 02 290 BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 282. 291 FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 195. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 249 Já sob o aspecto material, buscando-se a essência do crime em sua realidade fenomênica, a sua substância, o fato punível seria toda lesão ou perigo de lesão às condições existenciais do grupo social, manifestadas em realidades aptas a realizar a satisfação de necessidades humanas - individuais ou coletivas - que são objeto da proteção jurídica, em especial da tutela mais severa de todo o direito: a tutela penal.292 Assim, o conteúdo necessário de todo fato punível, não está representado por uma agressão a qualquer interesse humano, mas apenas a violação de determinado bem jurídico protegido pelo Direito Penal, pois “é sempre um bem jurídico o objeto da especial proteção que a lei confere com a cominação de pena, e a violação ou exposição a perigo deste bem é que constitui comportamento criminoso”.293 Porém, em última análise a lesão de um bem jurídico-penal não esgota o conceito de fato punível em sua totalidade, porque representa apenas um resultado essencial do crime.294 Tudo isto é certo, mas interessa, para objetivos práticos, saber quais características devem possuir um comportamento humano positivo (ação) ou negativo (omissão) para que só então seja considerado um fato punível. Buscando sanar as deficiências apresentadas pelos outros conceitos de fato punível, surge o conceito analítico, dogmático ou “operacional”295 que, não obstante encontrar-se no plano teórico-abstrato, possui incontestável eficácia prática de esclarecimento e elucidação ao definir, modernamente, o fato punível como toda conduta - ação ou omissão - típica, antijurídica e culpável 296 . Elaborado pela dogmática germânica, nos fins do século XIX e início do século XX, mediante esforço de investigação lógica e sistemá292 BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 282; TOLEDO, Francisco de Assis. op.cit. p. 80; SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 02. 293 BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 285. 294 FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 195. 295 SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 02 296 Pela visão conceitual adotada pelo sistema tripartido do fato punível, não olvidando a existência do sistema bipartido que trabalha com o conceito de tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade) e culpabilidade, conforme adiante alinhavado. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 250 tica das leis penais surge, inicialmente, o conceito clássico que adota a sistemática do esquema “objetivo-subjetivo” cunhado por VON LISZT e BELING, segundo o qual, crime seria o movimento corporal (ação) que produziria uma modificação no mundo exterior. Neste conceito não eram reconhecidas quaisquer valorações porquanto, seguindo o conceito causal-naturalista de ação297 , considerava-se a tipicidade sob aspecto objetivo-descritivo seguido de uma antijuridicidade objetivo-normativa, completada pela culpabilidade subjetivo-descritiva.298 Na seqüência - por força da influência da filosofia neokantiana - o conceito clássico adquire novas feições, buscando sanar algumas insuficiências e repelir as fortes críticas que lhe eram dirigidas sem, contudo, abandonar suas características fundamentais, como o conceito causal de ação.299 Passando a ser chamado de conceito neoclássico de delito, verifica-se agora, a consideração de elementos axiológicos e normativos por influência da chamada teoria teleológica do delito.300 A ação perde seus aspectos puramente biológicos e passa a ser definida de maneira mais geral e abrangente como conduta volitiva, voluntária ou humana.301 Na tipicidade ocorre a inclusão de elementos normativos e a consideração de elementos subjetivos no tipo, conquistas teóricas advindas dos estudos desenvolvidos por MEZGER, a partir das enunciações deste, de MAYER e de HEGLER. Ainda possuindo nítida natureza objetiva, a tipicidade deixa de ser apenas a descrição avalorativa, originalmente, proposta por BELING e passa a ser resultado de juízos de valor. Já o conteúdo da antijuridicidade não se restringe ao seu aspecto formal (contrariedade do fato com o ordenamento jurídico), mas requer um conteúdo material expresso na lesividade social da conduta. No que tange a culpabilidade, a teoria teleológica afasta a concepção puramente psicológica, recepcionando, definitivamente, os elementos 297 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 17. BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 139. 299 GOMEZ BENITEZ, José Manuel. op. cit. p. 59. 300 TAVARES, Juarez. op.cit. 41; BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 139. 301 TAVARES, Juarez. op.cit. 42 298 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 251 normativos concebidos, especialmente, por FRANK. A culpabilidade agora não representa apenas o liame psicológico existente entre o autor e o fato punível, mas perfaz a reprovabilidade do autor pela formação de vontade contrária ao dever. Todavia, a última grande modificação no conceito analítico do fato punível ocorre com o advento da doutrina finalista de WELZEL, que adequou o conceito jurídico de ação ao seu conceito ôntico-ontológico, identificando-o com o “exercício de atividade final”302 , como “fator de direção que sobredetermina o sucesso causal exterior e o converte, deste modo, na ação orientada para o objetivo”303 . Contudo é necessário observar que a terminologia utilizada por WELZEL em 1935 (Finalität), se interpretada literalmente, dá lugar a equívocos - especialmente nos crimes culposos como admite referido autor - uma vez que a concepção adequada de ação finalista não se resume apenas à finalidade, mas encerra as idéias de direção e orientação, de encaminhamento sob o ponto de vista biocibernético antecipado. Assim, o mais correto seria denominar a “teoria final da ação” de “teoria da ação cibernética”, porém a primeira expressão consagrou-se mundialmente e, observada a ressalva acima, atende aos objetivos propostos, desde que as principais atenções estejam centradas nas “descrições materiais de direção e do encaminhamento dos sucessos da ação”, como propõe WELZEL com especial argúcia.304 Desta forma não só a vontade, mas também o conteúdo da vontade passou a ser considerado no próprio conceito de conduta. Se conduta implica vontade, a vontade sempre leva (e se dirige) a uma finalidade porque não existe vontade de nada ou vontade para nada. Destarte, as conseqüentes modificações estruturais ocorridas na teoria do fato punível foram enormes, especialmente, no que diz respeito ao tipo e a culpabilidade. O dolo e a culpa migram para o tipo formando a figura do “tipo subjetivo”, já a culpabilidade passa a ter sua estrutura composta apenas por elementos normativos destinados a fundamentação do juízo de reprovabilidade, deixando o objeto de 302 WELZEL, Hans. op.cit. p. 53. WELZEL, Hans. A dogmática no direito penal. In Revista de Direito Penal nº 13/14, jan-jun 1974, p. 11. 304 WELZEL, Hans. op.cit. p 12. 303 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 252 reprovabilidade localizado no injusto penal, que a partir de então, adquire as características de injusto pessoal.305 Sobreleva notar-se que o tipo, descrição legal da conduta proibida - figura puramente conceitual - não é em si mesmo antijurídico, mas antijurídica é apenas a sua realização não justificada.306 Já a antijuridicidade é a contrariedade da realização de um tipo proibitivo (norma incriminadora) com o ordenamento jurídico consubstanciada pela ausência de situação justificante. Assim, segundo o sistema tripartido307 - que é dominante na dogmática moderna -, o fato punível seria todo o comportamento humano (ação ou omissão voluntária) típico (previsto em lei como crime), antijurídico (contrário ao ordenamento jurídico, lesivo socialmente) e culpável (reprovável ao seu autor). Não se olvide o sistema bipartido, de fato punível, composto pelo tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade, como o objeto de valoração) e pela culpabilidade (juízo de valoração de cunho subjetivo pessoal concreto), adotado por respeitados juristas contemporâneos como ARTHUR KAUFMANN, OTTO, SCHÜNEMANN e ENGISCH.308 É oportuno lembrar que, estratificado é o conceito de fato punível e não o fato punível, uma vez que não ocorre a soma de elementos, mas sim a consideração de características localizadas em planos conceituais distintos. Observada esta perfunctória exposição sobre o conceito analítico do fato punível, evidencia-se o importante papel desempenhado pelo bem jurídico, nas categorias conceituais, cuja presença cumulativa transmuta uma conduta em fato punível. Considerações acerca do bem jurídico estão presentes de maneira nítida e incontornável na tipicidade e na antijuridicidade Deixando de lado a conduta que é o substrato do fato punível, o 305 BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 141. WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Busto Ramirez e Sérgio Yáñez Pérez. Santiago: Ed. Jurídica de Chile, 1970. p. 76 307 Levando-se em conta os predicados da ação (ou quadripartido ao considerar também a conduta. Neste sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 136). 308 SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 04. 306 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 253 bem jurídico permeia o tipo que é a descrição legal da conduta (elemento logicamente necessário, núcleo do ilícito penal309 ) influenciando a tipicidade, que é atributo da conduta (considerada a mais importante categoria para fins jurídico-penais310 ), uma vez que o tipo é o arquétipo conceitual, onde está contida a descrição da lesão - ou perigo de lesão - de bens jurídicos.311 No que diz respeito a antijuridicidade, impende destacar que em algumas situações justificantes - como a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do ofendido - a sua ocorrência está vinculada à verificação de relações (diretas ou indiretas) com o bem jurídico, de modo que estas situações possam ter o efeito de excluir a ilicitude indiciada pela tipicidade.312 Primeiramente, analisemos a legítima defesa, situação justificante fundada nos princípios da proteção individual e da afirmação do direito, cuja definição legal313 prevê a utilização moderada dos meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Pois bem, não basta a existência de um comportamento humano que se direcione para uma lesão ou um perigo de lesão a determinado bem jurídico (agressão), e ainda, que este comportamento não seja autorizado pelo Direito e esteja se desenvolvendo ou em vias de efetivação para que o autor da reação defensiva à ação inicial de cunho agressivo esteja contemplado pela situação justificante da legítima defesa. Para tanto, há de se analisar a natureza do bem jurídico protegido, uma vez que, existe uma cisão doutrinária no que tange a aceitação da legítima defesa de bens jurídicos de natureza coletiva. 309 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 69. CONDE, Francisco Muñoz. op. cit. p. 41. 311 SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 03; COSTA, Álvaro Mayrink da. Teoria do Tipo. In Ciência e política criminal em honra de Heleno Fragoso, Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 64. 312 Em se tratando das relações existentes entre o tipo e a antijuridicidade, esta é a posição perfilhada pela Teoria Indiciária que é adotada pelo esquema finalista: tipicidade é indício de antijuridicidade (“ratio cognoscendi”). Cf. MUÑOZ CONDE, Francisco. op.cit. p. 43. Em sentido contrário: TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 161. 313 Art. 25 do Código Penal Brasileiro, in verbis: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” 310 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 254 Expressiva corrente doutrinária partilha da idéia de que a ação protetiva da legítima defesa é cabível - desde que, preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos da justificante - independente da natureza do bem jurídico envolvido.314 Aliás, entende-se até que entre os bens jurídicos suscetíveis de defesa estariam incluídos todos os bens jurídicos reconhecidos pelo Direito e não apenas os reconhecidos pelo Direito Penal.315 Entretanto, o entendimento oposto316 vislumbra a legítima defesa, apenas para bens jurídicos de natureza individual (vida, liberdade, patrimônio, etc.) ainda que - em um posicionamento mais estendido -, o titular deste bem seja uma pessoa jurídica ou o Estado. Repousam os argumentos desta corrente doutrinária, principalmente, sobre as afirmações de que a natureza e o fundamento da legítima defesa circunscrevem-se à esfera jurídica individual e que a agressão de bens suprapessoais, coletivos ou comunitários (paz social, ordem pública, etc.) não é suscetível de ser repelida em legítima defesa, uma vez que o zelo por estes interesses sociais seria atribuição policial, não se autorizando a atuação de particulares neste sentido. Atendidos todos os requisitos de ordem objetiva, observe-se, além disso, que sob o aspecto subjetivo um dos requisitos diz respeito à atuação do agente com vontade de defesa de bem jurídico para que só então reste configurada a excludente. Já no que tange ao estado de necessidade, outra espécie de situação justificante - prevista no artigo 24, do Código Penal Brasileiro317 -, vale observar que o bem jurídico também possui especial relevo, uma vez que, o estado de necessidade consiste em uma autorizada ação adequada de proteção necessária do bem jurídico em situação de ine314 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.186; NORONHA, E. Magalhães. op. cit. p. 200; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §26, n.12-13, p. 357 apud SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 162. 315 WELZEL, Hans. op. cit. p. 123. 316 FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 322; BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 379. GOMEZ BENITEZ, José Manuel. op. cit. p. 330; ASÚA, Luiz Jimenez de. op.cit. p. 313. PRADO, Luis Regis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p. 213. 317 Art. 24 do CP: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 255 vitável perigo, não provocado pelo agente. Uma exigência a ser atendida para a conformação da justificante em comento diz respeito a efetiva necessidade da ação de proteção, uma vez que, “de outro modo, não se podia evitar” que o bem jurídico - alheio ou próprio - sofresse a lesão oriunda da situação de perigo. Buscando fundamentação jurídica, surgem algumas teorias como a teoria do fim, que entende serem as ações protetivas de bens jurídicos verdadeiros “meios adequados para fins reconhecidos pelo Estado”. Já a teoria da ponderação de bens justifica ações que resguardem bens jurídicos de valor superior em detrimento de bens jurídicos de valor inferior. Contudo, de acordo com a teoria da ponderação de interesses que representa a posição contemporânea, a própria juridicidade da ação de proteção está vinculada a consideração de todas as causas e condições concretas relacionadas aos bens jurídicos em conflito, à natureza do perigo, etc. 318 Assim, há de se ter em conta a natureza dos bens jurídicos envolvidos na situação de perigo, já que no estado de necessidade é imperioso sacrificar um bem para preservar outro, caso contrário, ambos os bens jurídicos irão perecer. Não se olvide, que de acordo com seu respectivo substrato, os bens jurídicos podem representar interesses de natureza variada como uma relação vital (o matrimônio), um estado real (a tranqüilidade), um objeto psicofísico (a vida), um objeto espiritualideal (a honra) ou ainda uma relação jurídica (a propriedade).319 Todavia, ainda que a variegada natureza dos bens jurídicos permita sua avaliação e a conseqüente escolha do bem jurídico a ser sacrificado, insta esclarecer que em se tratando de situações envolvendo a “vida contra a vida” não há que se cogitar quaisquer diferenças de valor (verbi gratia, paciente com 30% de chances de sobrevivência versus paciente com 80% de chances de sobrevivência, ou, jovem versus idoso) ou de quantidade (exempli gratia, um veículo somente com o condutor versus um ônibus escolar com 40 crianças). 318 319 SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 175. WELZEL, Hans. op. cit. p. 15. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 256 O bem jurídico também desempenhará papel decisivo na esfera subjetiva do estado de necessidade, uma vez que, um dos seus requisitos é a ação do agente com vontade de salvar o bem jurídico, seja próprio ou alheio. Outra justificante que depende sobremaneira da análise do bem jurídico envolvido é o consentimento do ofendido; única situação que não está elencada no art. 23, mas é implícita e decorre de interpretação lógico-sistemática de todo ordenamento jurídico, considerada como uma causa supralegal de justificação.320 Consistindo na renúncia de bens jurídicos disponíveis tutelados por normas penais, o consentimento do ofendido pode ter como efeitos tanto a exclusão da tipicidade da conduta (se o consentimento for real e se o tipo protege a vontade do ofendido) como da antijuridicidade da conduta típica (se o consentimento for presumido e, se além da vontade o tipo protege interesses públicos).321 Porém, é ponto pacífico e sedimentado, em toda doutrina jurídico-penal, que a caracterização de determinada situação, dentro do conceito de consentimento do ofendido, exige que o bem jurídico envolvido seja plenamente disponível por parte de seu titular, verbi gratia, o patrimônio, caso contrário o consentimento - tanto real como presumido - será absolutamente ineficaz. Assim, mais uma vez há de ser analisada com maior detença a natureza do bem jurídico envolvido para que só então possam ter eficácia as especificações que giram em torno do próprio consentimento, como a sua anterioridade, a capacidade do ofendido para consentir e o conhecimento concreto daquilo que foi consentido tanto por parte do titular do bem, quanto por parte do agente que, esperase, esteja atuando dentro dos limites do consentido. O BEM JURÍDICO E A CONSTITUIÇÃO - LIMITES À POLÍTICA CRIMINAL Não bastassem as considerações enumeradas nos parágrafos anteriores, acerca das relações existentes entre o bem jurídico e os princípios basilares do Direito Penal, além do importante papel desenvolvido 320 321 TOLEDO, Francisco de Assis. op. cit. p. 214 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do Crime. São Paulo: Editora Acadêmica, 1993. p. 57. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 257 pelo bem jurídico dentro da teoria do fato punível, há de ser notada a íntima conexão verificada entre o bem jurídico-penal e a Constituição. Uma vez que o texto constitucional pátrio perfilha valores fundamentais como a liberdade e a dignidade humana, cujos desdobramentos se irradiam sobre todo ordenamento jurídico - cumprindo o papel de um norte diretivo -, há uma conseqüente delimitação e orientação da ação do legislador de modo a promover uma política criminal que não transforme o direito em mera força, mas obrigue os cidadãos em sua consciência, respeitadas as bases de um sistema democrático de direito. Nesta esteira de pensamento resta cristalino que o conceito de bem jurídico-penal nasce limitado ao conteúdo material das normas constitucionais, que lhe são hierarquicamente superiores e com as quais ele jamais pode confrontar. Assim esquadrinhado, desponta também evidente que, o conceito de bem jurídico-penal além de ser protegido pelo Direito Penal, precisa ser protegido do Direito Penal, restringido assim o poder punitivo a uma esfera, precisamente, limitada pelo Texto Maior, verdadeiro e legítimo indicador das linhas substanciais prioritárias já acolhidas na realidade social como um valor.322 O conjunto de valores encontrados no altiplano constitucional serve de baliza segura, não só para o momento embriogênico das normas penais - onde há a seleção e definição dos bens jurídicos a serem defendidos - mas também para o momento de interpretação e de aplicação destas mesmas normas. A propósito, norma alguma pode ignorar o conteúdo axiológico constitucional, devendo sempre ser examinada a luz deste conteúdo que confere o elemento normativo-material de todo ordenamento jurídico com vistas à realização da justiça material pela adoção de uma legalidade democrática. Contudo, mister destacar-se que não basta apenas a previsão constitucional de certo valor social para que seja autorizada de pronto a criação de instrumento sancionatório criminal para a respectiva proteção. Deve também ser notado o escalonamento existente entre estes valores, que observa o contexto histórico, ao qual encontra-se inserido, reforçan322 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 67. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 258 do ainda mais o caráter fragmentário da tutela penal que busca sua legitimação, não apenas em aspectos formais, mas também na valoração ético-social. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não obstante a atividade de seleção dos bens jurídicos esteja presa às necessidades sociais reais de determinado contexto histórico, busca-se imunidade contra possíveis manipulações ideológicas ao exigir-se a observância e o respeito dos limites constitucionais. Enfim, o papel desempenhado pelo bem jurídico-penal como critério de garantia individual e de limitação estatal não pode ser relegado a um segundo plano. Recorrentes avalanches ideológicas e tempestades políticas cientes desta importância insistiram em “soterrar” o bem jurídico-penal, com especial exemplo - mas não único - para os ataques sofridos pela dogmática no período do Terceiro Reich. As considerações ora realizadas são importantes e extremamente caras a todo jurista cônscio de que “o direito não é uma coisa, posta à mesa, como ‘fato’, para a refeição positivista. Direito e, portanto, crime, são elementos de um processo histórico-social e sociopolítico” relembrando as palavras do saudoso LYRA FILHO323 ; a todo jurista que não ignore - consciente ou inconscientemente - a gama de efeitos que a atuação penal tem proporcionado; a todo jurista que não queira limpar o sangue derramado com textos legais e que não deseje ser um mero títere na mão de interesses obscuros. 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O artigo destaca que a lei nova não revogou totalmente aquela, e que, portanto, permanecem vigentes dispositivos da lei anterior, no que não for incompatível com a nova legislação. ABSTRACT The author says some characteristics about toxic drugs, under protection of Act # 6.368/76, in opposition to the innovations brought by Act # 10.409/02. The article says that the new law didn’t revocate the other one, and that, some provisions of the first law are still ruling, if not incompatible with the new laws. PALAVRAS CHAVE Antes de adentrar-se no tema aqui proposto, de maneira bastante simples, necessário se faz trazer os conceitos de toxicomania e de entorpecente, como forma de introdução ao assunto.. Conceito de toxicomania: “é um estado de intoxicação periódico ou crônico, nocivo ao indivíduo e à sociedade, pelo consumo repetido de uma droga natural ou sintética”. (O.M.S.). Apresenta características próprias, tais como, vontade incontrolada de consumir a droga, chegando a crer que lhe é necessária; deve arrumar um jeito de encontrá-la de qualquer forma; com uso constante, passa-se ao aumento da quantidade da droga, sempre em escala crescente; com o passar do tempo (não muito), passa a sentir-se totalmente escravo da droga, tornando-se um dependente, esta dependência poderá ser de ordem física ou mesmo psíquica. Deve-se observar que o toxicomano, não é um viciado apenas em drogas naturais como Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 262 a maconha, (conhecida também como haxixe), cocaína, mas em outras de natureza sintética, tais como os psicotrópicos. É necessário ainda distinguir as drogas proibidas (entorpecentes) das drogas permitidas, tais como cigarros, chá, álcool, etc. Tal distinção veio a ocorrer após a OMS, considerar apenas como droga toxicômana, quando da existência de três requisitos: 1º)desejo ou necessidade (compulsion) de continuar com a droga; 2º)tendência a aumentar a dose; 3º)dependência física e/ou psíquica. Podendo-se acrescentar um quarto elemento: os malefícios causados ao agente e à própria sociedade. Conceito de Entorpecente: “venenos que agem eletivamente sobre o córtex cerebral, suscetível de promover agradável ebriedade, de serem ingeridos em doses crescentes sem determinar envenenamento agudo ou morte, mas capazes de gerar estado de necessidade tóxica, graves e perigosos distúrbios de abstinência, alterações somáticas e psíquicas profundas e progressivas”(in Italo Grasso Biondi, apud Greco Filho, Tóxicos). Valdir Snizk, escreve que “entorpecente, juridicamente, é toda substância que possui a capacidade de produzir alteração no intelecto ou na volição do indivíduo”. (in Comentários à Lei de Entorpecentes, Forense, p. 13). Não se pode esquecer que, embora não tenha sido a melhor solução, a nova lei, em seu artigo 8º, continua a exigir, assim como fazia a velha legislação no seu artigo 36, a inclusão da substância nas Portarias relacionadas pelo Órgão competente do Ministério da Saúde. Embora tenha recebido críticas tal modelo ainda na vigência da lei anterior, o certo é que trata-se de mais um caso de norma penal em branco. Veja-se o que diz o Professor GRECO FILHO: verbis: “No momento, se a droga nova, não relacionada pela Serviço Ncional de Fiscalização de Medicina e Farmácia, for difundida no Brasil, a despeito das piores e mais funestas conseqüências que possa gerar para a saúde pública, causando dependência física ou psíquica, não sofrerá repressão penal em virtude da nova sistemática introduzida pelo art. 36 da lei. O texto, porém, é claro e, por mais que, teoricamente, discordemos da solução dada, temos que nos curvar ante o império da lei. A Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 263 partir da vigência da Lei n. 6.368/76, somente drogas previamente relacionadas pelo Serviço Nacional de Fiscalização de Medicina e Farmácia ensejarão a aplicação das normas punitivas nela previstas”. (in Tóxicos, Repressão, Prevenção, Saraiva, 1.989, p. 173). No entanto, quer nos parecer, como advertido pelo mesmo autor, não há necessidade de que conste em tais listas, o nome comercial do remédio, produto ou substância, bastando apenas que traga a composição química dos mesmos, ficando a cargo do Perito ao elaborar o Laudo Toxicológico, apontar o ato administrativo que incluiu tal ou tais substâncias como capazes de causar dependência física ou psíquica. A Organização Mundial de Saúde(OMS) , passou a desconsiderar os termos “toxicomania’, “hábito”, “entorpecente”, pela expressão “dependência” e “ drogas que determinam dependência”. Abrange tal expressão ainda, o vício de substâncias alucinógenas, drogas que provocam delírios, visões, estados psicóticos e dependência, senão física, ao menos psíquica. O artigo primeiro da Lei 6.368/76, que não foi totalmente revogada pelo 10.409/02, dispunha - e a lei nova repete – o dever de toda pessoa física ou jurídica de colaborar na prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. A lei determina ainda que os Estados e os Municípios deverão criar estímulos fiscais e outros, destinados às pessoas físicas e jurídicas que vierem a colaborar na prevenção e produção, do tráfico e do uso de produtos que venham a causar dependência física ou psíquica. A Lei Nova, trata das medidas a serem aplicadas para o tratamento a ser dispensado aos dependentes e usuários de drogas, nos artigos 11 a 13, de forma bastante tímida, não estabelecendo as formas de internamento e tratamento a serem aplicadas em casos de inimputabilidade decorrente de ingestão de substância entorpecente que venha a determinar dependência física ou psíquica proveniente de caso fortuito ou força maior. Fica claro, que as normas que tratam de tal assunto na lei velha, encontram-se em pleno vigor, ou seja, aplicam-se os artigos 8º a 11, e ainda o art. 19, não tendo sido revogados pela lei nova. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 264 Como os dispositivos que criavam os tipos penais na nova lei foram vetados, resta, evidente, que permanecem vigentes os dispositivos da lei anterior, ou seja, estão em pleno vigor, os artigos 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, da Lei 6.368/76, os quais definem os tipos e as penas, sendo que o último, as causas de aumento de pena, restando, sem dúvida, a lei velha cuidar daquilo que não for incompatível com a lei nova, assim tudo que não for imcompatível com a lei nova, permanece em vigor. O art. 12, define 18 condutas, que são imputadas através de suas modalidades aos traficantes, ou seja, aqueles que praticam aquelas condutas, com finalidade de tráfico (mercância, comércio, etc). O critério de distinção a ser feito para a classificação da conduta do agente, é traçado no art. 30, da lei nova (antes pelo art. 37). Assim, a Autoridade Policial, no caso de flagrante, (no inquérito também) deverá atentar, para diferenciar o traficante do usuário, para: 1º) a natureza da droga apreendida (se é maconha, cocaína, LSD, heroína, morfina, crack, etc); 2º) quantidade da droga apreendida, 1 grama, 10 gramas, assim por diante, não esquecendo que a maneira de acondicionar a droga pode levar a presunção de tráfico (trouxinhas, papelotes, cigarros); 3º) local, onde se deu apreensão, era perto de escolas, presídio, hospitais, orfanatos, boates, bares de péssima reputação, (boca de fumo); 4º) condições em que se desenvolveu a ação criminosa, se o autuado denunciou alguém para livrar-se; como é feito o tráfico; como ocorre o repassse (na rua ou em casa); se há desavenças com outro(s) distribuidor,(es) pela conquista de locais de venda; 5º) circunstâncias da prisão, se houve resistência à prisão, fuga, o que alegou em primeiro lugar, o encontro de objetos para uso ou mesmo venda, como seringas, balanças de precisão, embalagens, objetos próprios para esconder a droga (recipientes); 6º) conduta do agente, como vive ele na comunidade, trabalha ou vive de “bicos”, “expedientes”, tem família constituída (pais, filhos, esposa, companheira), nível escolar e profissional bem como se possui patrimônio; 7º) antecedentes, considera-se, aqui, o seu anterior envolvimento com o mundo das drogas, com a polícia (o policial, ou alguns, já o conhecem de outras buscas, diligências, etc.), 8º) qualificação, este elemento não constava da lei anterior, apareceu na lei atual, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 265 nada mais representa do que a vida pregressa do indivíduo objeto de investigação. Assim através desses dados de natureza objetiva é que a autoridade policial poderá avaliar trata-se de traficante ou usuário ou mero viciado , ou, às vezes, um simples curioso. Na prática, leva-se apenas em consideração a quantidade da droga, sem que haja por parte da Autoridade Policial (Delegado de Polícia) a necessária justificação do porquê enquadrou o autuado neste ou naquele artigo. Os Promotores de Justiça e mesmo os Juízes seguem a mesma linha, na maioria dos casos, sem atentar para tais detalhes. É claro, que tal classificação é provisória, podendo ser modificada pelo Promotor ao oferecer denúncia e pelo Juiz no momento da sentença. Veja-se que, a nova lei não determina que a autoridade justifique, de forma fundamentada, a classificação dada ao crime, no entanto, neste sentido, parece-me lógico que deve-se considerar em vigor o que dispõe o parágrafo único do art. 37, da lei anterior, que considero em pleno vigor, já que compatível com a atual lei. O art. 13, menciona tudo aquilo que diz respeito ao fabricante ou industrial da droga, é o engenheiro do mal, diz respeito aos utensílios, instrumentos, aparelhos empregados na preparação, produção, transformação e beneficiamento da droga. É necessário lembrar que o elemento normativo do tipo, exige que tais condutas sejam em desacordo com regulamentação legal ou regulamentar, claro, então, que deve-se atentar que nem todo equipamento tem esta finalidade, bastando que seu proprietário tenha autorização para sua posse e finalidade. O art. 14, trata da associação com fins específicos ou seja, a de cometer os crimes descritos no art. 12 e 13, bastando para tanto, duas ou mais pessoas. Com o advento da Lei 8.072/90, que em seu art. 8º, determinou que a pena do crime descrito no art. 288 do CP, fosse de 3 a 6 anos de reclusão, quando a finalidade for a de praticar crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo. Para alguns (Greco Filho, Alberto Silva Franco, João José Leal), o art. 14, foi ab-rogado, ou seja, não mais existe. O tipo e a pena está previsto no art. 288, do CP. Para outros entre estes, Valdir Snick, para quem o art. 8º não modificou o art. 14, devendo prevalecer a norma Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 266 especial. O certo é que existem 3 posições. 1ª) o art. 14, não foi revogado, nem em relação a pena nem ao tipo legal; 2ª)o art. 14, foi revogado, tanto no respeitante à pena quanto à tipagem legal, aplica-se o art. 288, quanto à definição típica (tem que ter no mínimo 4 pessoas), e a pena será aquela prevista no art. 8º, da Lei 8.072/90; 3ª)o art. 14, foi derrogado, quanto ao tipo, aplica-se o art. 14, quanto à pena o art. 8º, da 8072, é a posição sustentada por Damásio e Mirabete. De qualquer forma é preciso distinguir a mera co-autoria da associação. Deve haver, portanto, entre os agentes, um liame de natureza subjetiva ligando-os, bem como deverá haver certa estabilidade e permanência na associação, sem o que não passará de mera co-autoria(art. 29, do CP). Por outro lado, existe ainda uma corrente que prega a impossibilidade da existência do crime do art. 14 com o do art. 12, ou seja, se o agente chega a praticar as condutas do art. 12 (em associação), incidirá apenas nas penas do art. 12, com a causa de aumento descrita no art. 18, inciso III, ou seja, não haverá possibilidade de concurso material entre tais delitos. Sob esse aspecto, parece-me ser tal entendimento o mais aceitável. Por sua vez, o art. 15, indica com precisão os sujeitos ativos do crime: o Médico, o dentista, e Farmacêutico e o Profissional da Enfermagem. Tais profissionais da saúde, estarão sempre sujeitos ao apenamento previsto neste artigo, acaso venham a incidir nas condutas descritas no tipo, quais sejam, a de prescrever e ministrar. O tipo só se corporifica se a dose prescrita for, evidentemente, maior que a necessária ou estiver em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Só podem prescrever o médico e o dentista, o profissional da enfermagem não poderá prescrever, poderá apenas ministrar a dose prescrita pelo médico, no entanto, o médico e o farmacêutico poderão ministrar. A lei teve em mira, evitar que esses profissionais ministrem substância entorpecente aos seus pacientes, levando-os, mais tarde, a tornarem-se dependentes. Assim, devem tais pessoas tomarem o máximo cuidado ao prescreverem remédios aos seus pacientes, fora das suas reais necessidades terapêuticas. Como o tipo é culposo, fica claro que terão que agir, por imprudência, por imperícia ou por negligência, para que possam responder pelo tipo. Acaso venham a dolosamente a Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 267 prescrever ou ministrar substâncias tóxicas, capazes de causarem dependência física ou psíquica no paciente, responderão pelo tipo previsto no art. 12, na forma de prescrever, cuja conduta é ali também prevista. O delito atinge o seu momento consumativo com a efetiva entrega do receituário ao paciente ou mesmo a terceiro, ou no momento em que estiver aplicando a droga, em dose claramente maior do que a necessária. Por último deve-se notar que a dose prescrita ou ministrada deve ser, significativamente, maior do que aquela indicada para o tratamento, caso contrário não haverá que se falar em violação desta norma. O art. 16, trata da figura do usuário, viciado ou experimentador, ou seja, daquele que vir a adquirir, guardar ou trazer consigo para seu próprio uso, a substância que tenha potencialidade de causar dependência. A finalidade da conduta é, que vai ditar o enquadramento, se é traficante ou mero usuário, curioso ou um simples experimentador. Deve aqui, as autoridades tomarem certas cautelas no qualificar o delito. A melhor orientação é aquela feita no art. 30, da lei nova, já anotado anteriormente. Deve-se, ressaltar, que a lei não pune o ato de “fumar” nem o de “usar” ou “injetar” a droga, visto que o que a lei pune, não é o vício , mas o fato de alguém praticar as condutas aqui descritas conjuntamente com a posse da droga. Assim, o uso anterior de substância tóxica, não é apenado. Necessário se torna, que no momento da prisão o autuado esteja na posse da droga entorpecente. A lei procurou, dessa forma, punir menos, severamente, o usuário do que o traficante, visto que aquele, na realidade, não passa de uma vítima deste. Por isso o menor rigor da lei. Quanto às dúvidas que surgirão sobre a prova da exclusividade, como já se disse, serão os critérios apontados no art. 30, da novel Legislação, com o aproveitamento daquilo que não foi revogado e continua a vigorar na antiga lei. O art. 17, por seu turno, pune as condutas tipificadas no art. 26, da Lei 6.368/76, que ao meu ver, está em pleno vigor. Na verdade tal dispositivo, é de difícil interpretação, já que não se sabe exatamente, qual a objetividade jurídica protegida. Diz o art. 26: verbis: “Os registros, documentos ou peças de informação, bem como os autos de prisão em flagrante e os do inquérito policial para a apuração dos criRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 268 mes definidos nesta lei serão mantidos sob sigilo, ressalvadas, para efeito exclusivo da atuação profissional, as prerrogativas do juiz, o Ministério Público, da autoridade policial e do advogado, na forma da legislação específica. Parágrafo único: Instaurada a ação penal, ficará a critério do juiz a manutenção do sigilo a que se refere este artigo”. Acredito que a norma visa proteger, em primeiro lugar, a imagem e a própria segurança do suspeito, indiciado ou acusado, dos sensacionalismos da Imprensa, que fazem uma verdadeira apologia do fato criminoso, principalmente quando se trata de envolvido de posses ou ocupantes de cargos na Administração Pública ou mesmo posição de destaque na Sociedade em que vive. Assim, com a finalidade de evitar escândalos, que só desacreditam a Justiça, que o dispositivo deve ser preservado. Outro objetivo perseguido pela lei, é no sentido de não atrapalhar as investigações policiais e a própria instrução probatória, principalmente, agora, com a possibilidade de haver acordo entre o indiciado e o Ministério Público que se deve prestigiar com mais vigor o dispositivo supracitado. O disposto no art. 18, da lei anterior, que continua em vigor, dispõe sobre as várias causas de aumento de pena, que vão de 1/3 a 2/3 (um a dois terços), destacando-se, entre estas, a do inciso III, que prevê tais aumentos de pena, se qualquer dos crimes previstos na referida lei, foram praticados em decorrência de associação. No que diz respeito ao processo para julgamento dos crimes descritos na lei anterior, não há dúvida de que a lei nova regulou a matéria, nos seus artigos 27 a 41. Assim, o inquérito passou a ter um prazo de 15 dias, no máximo, quando se tratar de réu preso, para conclusão, podendo ser duplicado mediante pedido justificado da autoridade policial. Será, no entanto, de 30 dias, quando se tratar de réu solto, podendo também ser duplicado por determinação judicial. Não há dúvidas também que o art. 35, da lei anterior, encontra-se totalmente revogado. Para a lavratura do auto de prisão em flagrante e para o oferecimento da peça acusatória, continua a valer a velha regra, basta o laudo provisório, firmado por perito oficial ou na sua falta, por qualquer pessoa (a lei diz de preferência pessoa habilitada, no entanto, a Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 269 praxis tem demonstrado que são nomeados policiais da repartição policial para exercer tal mister. Com tal determinação, segundo advertência de Greco Filho, teremos que contar sempre nas Delegacias de Polícia, com experts em “cheirar” e “experimentar” drogas, e através de sua vasta “experiência” e conhecimentos práticos, irão afirmar se é ou não droga a substância que lhe foi apresentada. Tal fato não ocorre na Polícia Federal, vez que os mesmos são dotados de um kit, para realizar os experimentos nas drogas apreendidas, mormente, cocaína. Determina ainda a Nova Lei, que novas diligências possam ser realizadas e após tais prazos remetidas ao Juiz. O artigo 32, foi vetado, bem como o parágrafo primeiro, no entanto, o 2ª e 3ª estão em vigor. O parágrafo segundo vai trazer muita confusão. É previsto neste parágrafo, dois institutos: sobrestamento do processo ou a redução da pena. Ambos decorrentes de acordo entre o Ministério Público e o indiciado. Dessa forma, o indiciado, que, espontaneamente, delatar (revelar) a existência de organização criminosa e com isso venha a permitir a prisão de apenas um de seus integrantes, ou a droga seja apreendida, ou de qualquer forma, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça, fará jus a(s) benesse(s). Parece-me, a primeira vista, o que o Legislador quis foi pegar o grande traficante, através da famigerada delação. Com essa providência, todo aquele que entregar o seu fornecedor, poderá fazer jus aos benefícios acenados no dispositivo. Entendo ainda que esta entrega tem que ser efetiva, ou seja, a prisão de um ou mais membros da organização criminosa tem que efetivamente ocorrer, ou, a droga tem que ser apreendida, ou que reste manifesto a intenção do delator em colaborar com a Justiça. Essa colaboração com a Justiça, é que vai dar confusão. Ficará a critério do Julgador, aceitar ou não, quando o acusado estará de forma clara e efetiva contribuindo para os interesses da justiça. Tudo isso deverá ocorrer ainda na fase indiciária, portanto, antes do oferecimento da peça acusatória. Por sua vez o parágrafo terceiro carrega outra inovação. Acaso a revelação (leia-se delação), de parte do denunciado, “entregando” os demais membros da quadrilha, grupo, organização ou bando, ou fornecendo a localização do produto, ou droga ilícita, ocorrer após o oferecimento da denúncia, o Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 270 Juiz, desde que por proposta do Ministério Público, ao sentenciar, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la de 1/6 a 2/3 (um sexto a dois terços). Criou-se aqui mais uma forma de perdão judicial, já que quando o juiz deixa de aplicar a pena, estamos diante de tal instituto. Curioso, é saber-se se a proposta só poderá partir do Ministério Público ou também o Defensor (ou o próprio denunciado) poderá fazê-lo? Quer me parecer que, para que não haja ferimento ao princípio da isonomia processual, tal proposta poderá partir do defensor do acusado, (ou do próprio) o que deve ser exigido são as condições para tal ato, e desde que existam será perfeitamente possível, (seria, entre outros), mais um dos direitos subjetivos do acusado, que mesmo diante da inércia do órgão Acusador, teria o Juiz que apreciar a proposta, desde que provocado, por evidente. Cabem aqui as observações já feitas pela Doutrina e Jurisprudência, a respeito da proposta de suspensão condicional do processo, prevista na Lei 9.099/95, em seu art. 89. Adiante vem o art. 33, que trata da possibilidade de infiltração de policiais nas organizações criminosas voltadas ao tráfico ilícito de entorpecentes, aplicandose, no que couber, os dispositivos da Lei 9.034/95, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Aqui o Legislador conta com a possibilidade de que Policiais possam infiltrar-se junto às várias modalidade de associações criminosas que têm, por finalidade, o tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins. Permite, inclusive, o chamado flagrante retardado ou prorrogado, na expressão utilizada pelo Professor Luiz Flávio Gomes. Por este dispositivo (art. 33, inciso II), o Policial poderá saber perfeitamente da ocorrência de crimes ligados ao tráfico de entorpecentes, no entanto, para poder pegar um maior número de criminosos, os deixará livres, até que surja o momento adequado para a prisão. Tudo isso só poderá ser feito após prévia autorização judicial e com ciência do Ministério Público. Será difícil de ocorrer tais fatos na prática. A uma, porque a nossa Polícia (principalmente a civil estadual), ganha salários miseráveis e por certo nenhum policial quererá bancar o herói e ingressar numa quadrilha de traficantes, ganhando o salário miserável que ganha (uns não passam de R$700,00). A duas, porque Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 271 não há nenhum preparo de policiais para o trato com o crime organizado (aliás nem mesmo o desorganizado). Assim, com o devido respeito aos mentores da lei, a norma fatalmente será mais uma a ornamentar o nosso já cansado ordenamento jurídico penal, pois na prática não será cumprida. Após tais procedimentos, a lei passa a falar no seu art. 37, em Instrução Criminal. Recebendo os autos de inquérito policial em Juízo, o Magistrado irá determinar a abertura de vistas ao Ministério Público, para que, no prazo de 10 (dez) dias, tome as seguintes providências: a) requeira o arquivamento; b)requisite diligências que julgar imprescindível para o oferecimento da denúncia; c) ofereça denúncia; c)deixe de oferecer a peça acusatória, de forma justificada, contra os agentes ou partícipes dos crimes previstos na Lei 6.368/76. Aqui mais uma vez, o dispositivo irá trazer muitas indagações. É que na última hipótese, há ofensa ao princípio da obrigatoriedade da promoção da ação penal pública, por parte do Ministério Público, que embora tenha sofrido certa frouxidão com o surgimento da Lei 9.099/95 (Juizados Especiais Criminais), não conheço nenhuma outra norma de igual teor, que confira ao órgão Acusatório Oficial, abrir mão da ação penal pública. Outro problema diz respeito ao princípio da indivisibilidade da ação penal. Tal proibição, todos sabem, visa mais, especificamente, a ação penal de natureza privada, no entanto, o Ministério Público não poderá deixar de ofertar denúncia contra um ou alguns dos autores ou partícipes de um crime, sem que para isso tenha razões sérias e fundamentadas. Aqui no caso de crimes relacionados a tóxicos, creio que o Legislador estaria se referindo às hipóteses dispostas no art. 32, (vetado), no seu parágrafo segundo, (em vigor) em que o Ministério Público não ofereceria denúncia, caso houvesse o propalado “acordo” com o indiciado ou indiciados (digamos que são vários os indiciados, mas apenas um ou alguns deles faz (em) o “acordo”), então contra este(s) não seria ofertada a denúncia, visto que a lei fala em sobrestamento do processo, e como sabido não há que se falar em processo na fase inquisitória. Assim não vejo outra saída que não esta, para que o dominus littis deixe de oferecer denúncia contra um ou alguns dos indiciados, salvo, é claro, nos casos em que não houver contra um ou alguns dos suspeitos, provas suficienRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 272 tes a sustentar o requisitório. Outra dúvida que por certo irá surgir, diz respeito ao prazo do sobrestamento (ou suspensão), do processo, visto que aqui não se trata de redução de pena e nem de perdão judicial, como previsto no parágrafo terceiro do mesmo artigo. Com certeza haverão aqueles que irão sustentar que tal prazo se expirará com a ocorrência da prescrição pela pena in abstrato cominada ao crime, como marco final da suspensão do processo, tal como ocorre, no respeitante ao previsto no artigo 366, do Código de Processo Penal, que trata da suspensão do processo (e da prescrição), no caso de ausência do réu na lide. O certo é que haverão vários posicionamentos, ficando para a Jurisprudência ditar aquilo que na prática for o mais correto. Adiante, dentro ainda da Instrução Criminal, poderá haver discordância do Juiz quanto ao pedido de arquivamento do inquérito policial (ou peças de informação), determinando a lei que nesses casos se proceda como na forma do art. 28, do Código de Processo Penal, ou seja, na discordância do Magistrado, deverão os autos (ou peças) de inquérito policial serem remetidos ao Procurador-Geral de Justiça, ( no caso de ser crime da competência da Justiça Comum Estadual), para que tome as providências por todos já conhecidas: designa outro Promotor para oferecimento da denúncia, o próprio Procurador irá oferecê-la ou endossa o pedido formulado pelo seu subordinado, caso em que o Juiz estará obrigado a acatar o pedido de arquivamento. Vencidas essas providências, dispõe o art. 38, da Nova Lei, que após o oferecimento da inicial acusatória, o juiz deverá ordenar a citação do acusado, (deveria ser indiciado) para responder à acusação, de forma escrita, em 10 (dez) dias, contados da juntada do mandado aos autos ou em caso de citação editalícia, a partir da primeira publicação. Em seguida designará data para interrogatório, o qual deverá ser realizado nos próximos 30 (trinta) dias se tratar de réu solto, ou em 5 (cinco) dias se o réu estiver preso. Segundo o disposto no parágrafo único deste mesmo artigo, essa resposta, a qual o acusado tem 10 (dez) dias para oferecer (se não o fizer ser-lhe-a nomeado defensor dativo para tal finalidade), não é (embora a lei fale), defesa prévia, já que além daquelas matérias que são normalmente motivo de alegação por parte do acusado, com a defesa prévia, aqui ele pode ir adiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 273 ante, já que poderá invocar todas as razões de defesa. Resta claro, pela redação da lei, que essa modalidade de defesa, equipara-se ao rito adotado para os crimes cometidos por Funcionários Públicos, (art. 514, do CPP) já que lá, a lei também oportuniza ao denunciado, a possibilidade de, com a sua resposta, vir o Juiz a rejeitar a peça acusatória. Embora o Legislador da Lei 10.409/02, seja mais moderno do que o de 1.941, o certo é que este errou ao falar em citação do acusado, já que o correto, seria como o fez o Legislador anterior, notificação, já que, como naquela hipótese, a denúncia ainda não foi recebida, portanto, é impróprio se falar em citação, já que esta é a forma pela qual se chama o acusado para vir a Juízo (penal) se defender do processo contra si instaurado. A confusão que há, é que o dispositivo manda o acusado ser citado, para se defender previamente e ao mesmo tempo determina que seja também designado data para ser interrogado. E a confusão existe, já que no art. 41, a lei fala novamente em interrogatório. Disso resulta, a primeira vista, que haverá dois interrogatórios. Um na fase pré-processual (talvez seja para oportunizar a possibilidade de ocorrer o “acordo” entre o indiciado e o Ministério Público) e outro na fase processual propriamente dita. Adiante determina a Nova Lei, que as exceções deverão correr em autos apartados. Tal disposição é de toda, inútil, já que, como descrito no corpo da própria Lei, aqui tem aplicação a Legislação Processual Penal Comum, e o CPP, determina em seu art. 111, que as exceções correrão em autos apartados e não suspenderão, em regra, o andamento da causa. A seguir, apresentada a defesa (leia-se resposta), o Ministério Público terá vista dos autos para manifestação, no prazo de 5 (cinco) dias, sendo que em igual período o Juiz proferirá decisão. Tal decisão irá analisar as razões oferecidas pelo denunciado e poderá resultar em rejeição da peça acusatória, desde que o Juiz se convença dos motivos apresentados pelo mesmo e ainda poderá não recebê-la por, segundo o disposto no art. 39, for manifestamente inepta, ou faltar-lhe pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal, ou ainda não haver justa causa para a acusação, devendo ainda serem observadas as normas estampadas no art. 43, do CPP. Criou-se assim, novas exigências para o recebimento da peça acusatória Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 274 oficial, visto que foram exigidas outras além daquelas que já constam no nosso ordenamento jurídico-processual. O assunto é deveras interessante, mas aqui não é o campo para analisá-lo. Quero, no entanto, deixar aqui consignado, que uma das hipóteses mais comuns de falta de justa causa para a acusação, para dar o ponta pé inicial da ação penal, será a presença de um Laudo de Exame de Substância Entorpecente, que venha a afirmar que a substância submetida a exame, não é nenhuma daquelas proibidas pela Legislação, ou mesmo, no sentido de que a substância não é capaz de causar dependência física ou psíquica, como por exemplo, não for encontrado na maconha, a presença do seu princípio ativo, que é o TetraHidroCanabinol. Dando seguimento ao rito processual, acaso o Juiz venha a desconsiderar as razões apresentadas e não ocorra nenhuma das hipóteses acima citadas, a denúncia será recebida, podendo o Juiz, no mesmo decisório, determinar a realização de diligências que entender necessárias para o deslinde da causa, bem como designará dia e hora para a audiência de Instrução e Julgamento, ordenando a intimação do acusado, do Ministério Público e do Assistente da Acusação, caso tenha se habilitado (hipótese difícil de ocorrer, por falta de interesse). Na audiência de instrução e julgamento, diz a lei, após o interrogatório do acusado, inquiridas as testemunhas (da acusação e da defesa), será dada a palavra ao Ministério Público e ao defensor do acusado, pelo prazo de 20 (vinte) minutos, prorrogáveis por mais 10 (dez) a critério do juiz, que, em seguida proferirá sentença, acaso se julgue habilitado, ou terá um prazo de 10 (dez) dias para o mesmo fim. É notória a confusão causada pela inclusão desse “novo interrogatório”. Anteriormente, falou-se em citação (e não era o caso), depois fala-se em intimação do acusado para audiência de instrução e julgamento onde também será interrogado. Pela leitura da lei, (como já referido) deverá haver dois interrogatórios, um antes do recebimento da denúncia (a qual poderá não vir a ser recebida), e outro, após o seu recebimento. Para mim, os idealizadores da lei em comento, pretenderam dar ao indiciado a oportunidade de, através de seu primeiro interrogatório, ratificar o acordo entabolado anteriormente (art. 32, § 2º) com o Ministério Público, já que tal acordo, por evidente, terá que passar pelo crivo do Magistrado, e Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 275 nada melhor do que, pela oitiva do indiciado, colha o Julgador, novos dados a respeito da sua real intenção em aproveitar os benefícios da Lei. Razão pela qual, com o respeito devido daqueles que pensam em contrário, entendo que haverá sim, possibilidade de haver dois interrogatórios, adotando-se o rito estabelecido pela Nova Lei, através de sua interpretação lógica e até porque irá proporcionar aos futuros envolvidos com tais práticas delitivas, melhores possibilidades de se defenderem, através desses contatos imediatos com o Ministério Público e o Juiz. Essas seriam as primeiras considerações que deixo à elevada apreciação dos demais colegas, pedindo vênias, pela minha pouca lida com escritos jurídicos. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 276 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 277 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 28 - UMA ANÁLISE CONCRETA DOS LIMITES DA EXPRESSÃO “DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS” CONSTANTE NAS CLÁUSULAS PÉTREAS MARCIUS NADAL MATOS MESTRANDO EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA. ESPECIALISTA EM DIREITO CONTEMPORÂNEO E DIREITO PROCESSUAL CIVIL PELO INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS JURÍDICOS. ADVOGADO NO PARANÁ. RESUMO O artigo defende a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 28, a qual, em seu artigo 1º, deu nova redação ao inciso XXIX, do artigo 7º da Constituição Federal, dispondo sobre a prescrição para ações quanto a créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho. A emenda extingüir a imprescritibilidade das verbas decorrentes do contrato de trabalho do ruralista, afrontando, na visão do autor, os “direitos e garantias individuais” e extrapolando os limites do poder constituinte reformador. ABSTRACT The article defends the unconstitutionality of amendment # 28, which, in its 1st article, has a new written in paragraph XXIX, of article 7th of the Federal Constitution, talking about the prescriptions for actions in relation to credits come from labor relations, with the time of 5 years to the workers , until the limit of two years after the extinction of the labor contract. The amendment extinguished inprescriptibility of appropriation come from rural worker’s contract of labor, in opposition, in the author’s opinion, the “individual rights and guarantee” and going too far from the limits of the renew representative power. PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito do Trabalho; direitos e garantias individuais; poder constituinte reformador. INTRODUÇÃO Em 26.05.2000, com a publicação no DOU, entrou em vigor a Emenda Constitucional n.º 28, que, em seu artigo 1º, dá nova redação ao Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 278 inciso XXIX, do art. 7º, da Constituição Federal, com a seguinte forma: “ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho. Em comentário a esta emenda surgiram duas correntes: uma entendendo que a expressão direitos e garantias individuais, do núcleo imodificável da Constituição, também conhecido como cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, da Constituição), alberga os direitos sociais. Assim a abolição da imprescritibilidade, durante o contrato de trabalho violou o núcleo constitucional, decorrendo a inconstitucionalidade da Emenda n.º 28.324 A outra, entendendo que os direitos sociais não estariam protegidos pelas cláusulas pétreas, porquanto estas só se referem aos direitos e garantias individuais – o corolário é a constitucionalidade da emenda.325 Insta observar que, a problemática não se restringe ao direito à imprescritibilidade, durante o contrato de trabalho do ruralista, porquanto o fundamento das posições revela a magnitude da questão. Se a segunda leitura for consentânea com a Constituição, a vida dos direitos sociais pode estar com os dias contados, pois o discurso predominante, nestes tempos neoliberais, é baixar totalmente os custos para competir em um mercado global, e a expressão custos abrange, inexoravelmente, os direitos dos trabalhadores. Neste contexto, não seria difícil imaginar emendas supressoras de direitos do trabalhador, quiçá de outros direitos sociais, v.g., assistência social! Assim, o presente ensaio tratará da configuração do poder de reforma, de seus limites formais e materiais, para tentar responder a questão: a Emenda Constitucional n.º 28, é constitucional, e por conseqüência os direitos sociais não estão albergados no núcleo imodificável da Constituição? 324 Posição defendida por ALCURE NETO, Nacif e GUNTHER, Luís Eduardo. A emenda constitucional n.º 28 e a prescrição do trabalhador rural. In RDT, Editora Consulex, Brasília, vol. 7, ano 1, janeiro de 2001, p. 29. 325 Posição defendida por MALLET, Estevão. A prescrição na relação de emprego rural após a Emenda Constitucional n.º 28. In Revista LTr., vol. 64, n.º 8, agosto de 2000, p. 1000. 326 A feição ilimitada do Poder Constituinte originário deve ser vista cum grano salis. Neste sentido GOMES, J. J. Canotilho. Direito Constitucional. 4. Ed. Coimbra: Almeidina,, 1989, p. 99. “Daí onde o poder constituinte não possa desvincular, no momento da criação constituição, de certas objectivações históricas que o processo de permanente <desalienação> do homem vai introduzindo na consciência jurídica geral”. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 279 A CONFIGURAÇÃO DO PODER REFORMADOR A discussão da problemática colocada no presente ensaio perpassa, por necessário, pelos limites ao poder reformador. Isto porque, o poder constituinte derivado (outra designação do poder reformador) está atrelado às limitações quanto ao âmbito de reforma que pode implementar, enquanto o poder constituinte originário pode, de maneira ilimitada e incondicional326, criar uma ordem jurídica inédita. Com fundamento nesta diferenciação, a ilimitação do poder constituinte originário e a limitação do poder constituinte derivado, há quem qualifique o primeiro como potência e o segundo como competência.327 A idéia de competência do poder reformador é de utilidade ímpar para compreender as eventuais inconstitucionalidades que possam surgir na formulação de uma emenda à constituição. No plano infraconstitucional, pode-se falar de uma inadequação aos valores constitucionais, o que nos levaria a uma inconstitucionalidade material. Por sua vez, as emendas não podem, devido a sua posição dentro do corpo normativo, serem controladas através de uma sistemática vertical, como ocorre com a normativa infraconstitucional. Assim, caso as reformas constitucionais desbordem dos limites formais e materiais impostos originalmente, “o ato legislativo poderá ser inconstitucional, não tanto pelo contraste direto com as prescrições da Lei Magna quanto também pelo desvio de poder ou do excesso de poder legislativo”.328 De qualquer sorte, o excesso de poder legislativo poderá e deverá ser controlado pela Jurisdição, seja através do controle abstrato, por via de ação direta; seja através do controle de constitucionalidade concreto por via de exceção (o controle feito no caso concreto), sendo que estes controles deverão ser feitos tanto em relação aos limites formais, quanto nos materiais. A competência do poder constituinte derivado está delimitada, em nosso direito positivo, no art. 60 e parágrafos e no da Constituição 327 SARLET, Ingo Wolfgang . A eficácia dos direitos fundamentais. Porta Alegre: Livraria do Advogado, 1998,p. 346. 328 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. 329 Far-se-á uma sucinta análise desses limites, porque a problemática aqui levantada está diretamente vinculada aos limites materiais; que merecerão maior profundidade. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 280 Federal. Esses dispositivos impõem limites formais, temporais, circunstâncias329 e materiais que passaremos a comentar. LIMITES FORMAIS Os limites formais estão dispostos no artigo 60, I, II, III, §§ 2º e 5º da Constituição Federal. Em linhas gerais prevêem: os órgãos competentes para a iniciativa330 ; a necessidade de aprovação em dois turnos, por maioria de 3/5 em ambas as casas; a imposição também a promulgação das emendas com o respectivo número de ordem; a matéria objeto de reforma de não ser aprovada não pode ser passível de votação na mesma sessão legislativa. Estes limites ao poder reformador caracterizam nosso sistema como um modelo relativamente severo, segundo o professor Ingo Wolfang Sarlet, denunciando o caráter rígido de nossa Constituição, que a distingue das constituições flexíveis.331 Para exemplificar o alcance dos limites formais vale citar as insurgências que ocorreram frente à mudança constitucional do regime jurídico previdenciário da magistratura e dos funcionários públicos. “No segundo turno de votação no Senado, propôs-se destaque suprimindo a expressão “no que couber”, isto é, alterou-se o texto aprovado em primeiro turno. Com o famigerado destaque, modificou-se sensivelmente o texto aprovado em primeiro turno. Eis outra flagrante inconstitucionalidade.”332 O exemplo possibilita a tomada de consciência da seriedade da questão: um “simples” destaque muda totalmente a norma que pode ser extraída do texto legal, levando à conclusão, nada açodada, de que o processo da emenda tornou-se inconstitucional, pois foi aprovado mesmo com uma retumbante mudança no texto; afinal, o texto deve ser aprovado pelas duas casas sem modificações.333 330 Em relação aos órgãos competentes para o iniciar o processo interessante é a observação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, onde o autor salienta que na Constituição de 1946, inclusive, não se admitia a iniciativa do Presidente da República. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 283. 331 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porta Alegre: Livraria do Advogado, 1998,p. 347, nota de rodapé 382. 332 VALE, Vander Zambeli.. Inconstitucionalidades da proposta de emenda constitucional que altera o regime previdenciário da magistratura. Jornal Síntese n.º 10 - DEZ/97, p. 4. 333 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 282. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 281 LIMITES TEMPORAIS Os limites temporais correspondem aos prazos de proibição, cujo cumprimento é indispensável para realizar-se a reforma. Nas lições de José Afonso da Silva, são limitações pouco comuns. Esclarece o mesmo autor que tal limitação só ocorreu na história do consticionalismo brasileiro em sede da Constituição do Império, visto que só após quatro anos de sua vigência, poderia ser reformada.334 Interessante mencionar que, não parece equivocado admitir um limite temporal no que tange a revisão constitucional prevista no art. 3º, do ADCT, afinal uma reforma ampla no texto constitucional só seria possível naquela oportunidade – nem antes, nem depois, quando considerou-se extinta a revisão. Contudo, a doutrina entende que só é considerado limite temporal aquele que impossibilite, de maneira absoluta, a atividade do poder constituinte derivado, o que não ocorreu na Constituição de 1988, uma vez que poderia ser modificada pontualmente através de emendas.335 Curioso é constatar que alguns doutrinadores, arrimados nas lições de Nelson de Souza Sampaio, que possui a única obra dedicada exclusiva e especificamente sobre o tema do Poder de Reforma, adotam uma classificação trinária, deixando de mencionar os limites circunstanciais. “(...) Além disso, o constituinte de 1988 sabiamente vetou a edição de emendas à Constituição durante intervenção federal nos estados-membros da Federação, bem como na vigência dos estados de defesa ou de sítio (art. 61, § 1º), o que se justifica principalmente pelo fato de que nestas situações anômalas, caracterizadas por um maior ou menor grau de intranqüilidade institucional, poderia ficar perturbada a livre manifestação dos órgãos incumbidos da reforma e, em decorrência, a própria legitimidade das alterações. Ainda que boa parte da doutrina, como já referido, prefira incluir estas normas no grupo dos limites circunstanciais, entendemos que seu enquadramento na categoria dos limites temporais não se revela 334 335 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 60. Idem. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 282 incorreto, já que estes – tomados num sentido mais abrangente – dizem com a fixação de prazos e oportunidade para a reforma.”336 LIMITES CIRCUNSTANCIAIS As limitações circunstanciais dizem respeito a condicionantes que devem ser observados para que haja o lídimo exercício do poder reformador. Estas condicionantes estão ligadas à idéia de proibição da reforma em momentos de conturbação e instabilidade institucional. “Nas hipóteses de intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio, inexiste aquele equilíbrio indispensável à realização de mudanças no Documento Supremo.”337 Quanto às limitações circunstancias, positivadas no art. 60, § 1º, faz-se mister mencionar que Manoel Gonçalves Ferreira Filho posiciona-se de maneira desfavorável quanto à inclusão da intervenção federal dentro dos limites circunstanciais. “A adoção de emenda constitucional não pode ser feita em determinadas circunstâncias (art. 60, § 1º). Constituem estas as chamadas limitações circunstanciais ao poder de emenda. A primeira delas é a vigência de intervenção federal. Trata-se de inovação da Constituição de 1988. Não há justificativa para isto. A intervenção federal não abala a ordem nacional, apenas a do Estado considerado. Se perturba gravemente àquela, virá certamente o estado de sítio, e, este sim, justifica a proibição.”338 Outra é a orientação do professor Ingo Wolfgang Sarlet, em passagem que citamos no item anterior. Em que pese a autoridade do mestre paulista Manoel Gonçalves, parece que a situação de intervenção federal pode comprometer a legitimidade da reforma. Imagine-se que, certo setor do Congresso Nacional, utilize-se dessa situação para obrigar os parlamentares do respectivo estado-membro a tomar esta ou aquela posição quanto a um projeto de emenda. Além de outras situações, menos dramáticas, que comprometam o exercício do poder cons336 337 338 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 347. BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., p. 34. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 283. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 283 tituinte derivado, afinal uma intervenção federal sempre reflete uma abalo nas estruturas institucionais do país. LIMITES MATERIAS – EXPLICÍTOS E ÍMPLÍCITOS? Além dos limites formais, circunstanciais e temporais, a Constituição positivou limites materiais, no artigo 60, § 4º; também conhecidos como núcleo imodificável ou cláusulas pétreas. Impende reproduzir o referido parágrafo: “§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais”. Nos princípios elencados neste parágrafo existiria aquilo que Carl Schmitt denominou de Constituição (ou Constituição material) diferenciando das leis constitucionais (Constituição em seu sentido apenas formal). A Constituição material, através de seus princípios, conformaria a unidade política e jurídica de um povo, não podendo assim ser modificada, essencialmente.339 Cumpre comentar de maneira perfunctória – disponibilizaremos nossa atenção em relação ao inciso IV, devido ao problema enfocado – os incisos I, II, III. I - A forma federativa: tal limitação material já estava presente em todas as constituições republicanas, juntamente com a preservação da República. Assim, através desta limitação fica inviabilizado o restabelecimento de um Estado unitário, como havia no Império, bem como um Estado regional, como o da Espanha da Constituição de 1978.340 “Mas poderá reequacionar a estrutura federativa, alterando a repartição de competências e a distribuição de rendas, por exemplo, 339 Cf. FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, vol. III, 1992, p. 209. A expressão “jurídica” é nossa, porquanto entendemos que atualmente tal dimensão também faz parte da Constituição material, sendo certo que à época de Carl Schimitt esta dimensão não era tão acentuada. 340 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 285. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 284 conquanto jamais possa eliminar a autonomia dos estados, pois aí estará abolindo a federação.”341 II - O voto direto, secreto, universal e periódico: esta limitação não faz direta referência à República, porquanto a época da promulgação da Constituição, havia a possibilidade de ser reimplantado a monarquia através do plebiscito de 1993.342 A contrario sensu, Pinto Ferreira entende, fazendo uma leitura diferente, que a assunção do voto como cláusula de eternidade tem relação com o vilipendio sistemático da República em nossa história perpetrado pelos ditadores de plantão, os quais, não raras vezes, suprimiram o direito a voto ou tornaram-no um arremedo de democracia, dentro da sistemática da escolha indireta dos governantes.343 Parece ser possível afirmar que os dois posicionamentos são complementares: o primeiro primando por uma conjuntura que se exauriu; o segundo apontando percalços ocorridos que não devem ser olvidados. III- A separação de poderes: este item é comentado assim por Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Também, não terá a possibilidade de pôr de lado a “separação de poderes”(art. 60, § 4º, III) a ela substituindo uma forma qualquer de concentração do Poder; à moda da “ditadura republicana” dos positivistas, ou do governo de assembléia soviéticos”.344 Pode-se, inclusive, exemplificar este limite material desta maneira: imagine que, depois do mandato de nosso atual Presidente, o poder constituinte derivado, cansado da prodigalização das medidas provisórias, propusesse a extinção destas. Parece que tal medida seria inconstitucional, pois o poder constituinte ordinário outorgou ao Executivo a prerrogativa de inovar primariamente a ordem jurídica, em casos de relevância e urgência, não podendo o constituinte derivado retirar esta prerrogativa, sob pena de romper o esboço funcional idealizado originalmente. Os argumentos de que aquela prerrogativa não é própria da função executiva, com a devida vênia, padeceriam de inconsistência, em vista 341 Ibidem. Neste sentido SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 61. FERREIRA, Pinto, op. cit., p. 211. 344 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 285. 342 343 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 285 da opção feita pelo poder constituinte originário. Em suma, haveria nesta medida uma afronta ao princípio da separação de poderes. IV- Os direitos e garantias individuais: serão aprofundados nos dois itens seguintes. A problemática que se coloca em relação aos limites materiais é que estes acabariam por engessar o poder reformador, dado não ser possível prever as necessidades ulteriores do povo. Até no início da história constitucional é aventado este problema, v. g., “Jefferson e Thomas Paine pregavam a impossibilidade de os mortos poderem, por intermédio da Constituição, impor sua vontade aos vivos (...)”345 Para suplantar este problema alguns advogam a tese de que não há qualquer legitimidade na tese da intangibilidade dos limites materiais, porquanto não há qualquer diferença entre o poder constituinte originário e derivado. “Se os poderes constituintes que a nação confere aos seus deputados são destinados a confeccionar a Constituição, com que poderes é que os depurados começariam por se atribuir competência para limitar – por toda a eternidade, presumivelmente – o alcance da própria soberania nacional, proibindo que ela pudesse, pelo processo normal de representação, afirmar-se de novo acerca de determinados pontos?”346 O douto constitucionalista, porém, acaba aventando a possibilidade da intangibilidade daquelas através da doutrina de Carl Schimitt, a qual afirma que a Constituição (em seu sentido material) conforma a unidade política de um povo, não podendo ser usurpada sob pena de perda dessa unidade. Contudo, o doutrinador paulista, arrimado nas lições do mestre lusitano Jorge Miranda, acena para outra possibilidade: o mecanismo da dupla revisão. Este método consiste em suprimir, em um primeiro momento, os limites materiais de reforma expressos no § 4º, artigo 60; em um segundo momento, já sem as limitações, fazer as reformas que entender convenientes. 345 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 350. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Significado e alcance das cláusulas pétreas. In Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. n.º 13, 1995, p. 7. 346 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 286 A maior parte da doutrina, a fim de contra-argumentar esta posição, recorre à teoria dos limites implícitos. Lembra Pinto Ferreira, posicionamentos históricos amparando a teoria: Story sustentava que a Federação é um núcleo intangível para ser objeto de emenda constitucional nos EUA. E Cooley ampliou esta doutrina, que o poder de emenda tem limites no próprio espírito da Constituição. Ambos antecederam Carl Schmitt, porém foi este quem melhor desenvolveu a doutrina dos limites materiais implícitos.347 O constitucionalista germânico entende não ser necessário falar, explicitamente quais seriam os princípios albergados no conceito de Constituição, pois tais princípios revelam a identidade desta, sua alma, podendo assim estar implícitos. Destarte, uma emenda que abolisse os limites materiais só poderia ser inconstitucional, porquanto estaria permitindo a violação de um princípio material implícito: a não de supressão da proteção reforçada à Constituição material. Em relação à dupla revisão e os limites implícitos, J. J. Canotilho e Vital Moreira posicionam-se: “A proibição heterônoma de um comportamento implica, logicamente, para o destinatário dela, uma proibição de eliminar a própria proibição. Quer dizer, a permanência dos limites materiais ter-se-á de considerar como um dos limites materiais implícitos do poder de revisão.”348 Por outro lado, a crítica contra a teoria dos limites materiais implícitos leva em conta, justamente, os limites explícitos: se o constituinte estabeleceu, explicitamente, aquilo que considera imodificável, por que haveria de existir outros limites? Neste aspecto, ironiza Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Difícil é admitir que o constituinte, ao enunciar o núcleo intangível da Constituição o haja feito de modo incompleto, deixando em silêncio uma parte dele, como que para excitar a capacidade investigatória dos juristas.”349 A fim de dissipar tão ácidas críticas, J. J. Canotilho e Vital Moreira, sem diretamente referirem-se a estas, afirmam que os limites 347 FERREIRA, Pinto, op. cit., p. 209. CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra ed., 1991, p. 301. 349 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Significado e alcance das cláusulas pétreas, p. 8. 348 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 287 materiais de revisão, expressos apenas, têm função declarativa, “limitando-se a revelar (e de forma não necessariamente completa) limites inerentes da própria revisão constitucional.”350 Desta maneira os autores lusitanos redimensionam as lições de Carl Schimitt dando suporte à doutrina dos limites materiais implícitos, além de colocar os defensores da dupla revisão em uma posição deveras desconfortável. De fato, a doutrina majoritária admite os limites implícitos351 , e dá outros exemplos: a reforma total, ou que tenha por objeto os princípios fundamentais, normas sobre o Poder Constituinte (titularidade do originário e derivado) e sobre a reforma na Constituição, etc...352 Enfim, depois de concluirmos pela impossibilidade de afastar as cláusulas pétreas, e por conseqüência a perpetuidade de algumas matérias, como fica a questão da necessidade de mudança, que é o supedâneo para as críticas quanto à legitimidade do núcleo imodificável? O professor Ingo Wolfgang Sarlet, com o senso de ponderação, que lhe é peculiar, entende que este é um conflito dialético inafastável em uma democracia. De um lado as cláusulas pétreas defendendo valores que, não raras vezes, se chocam com as necessidades imediatas de outro lado.353 Necessidades que muitas vezes, principalmente em tempos de globalização, parecem ser imperiosas e inarredáveis. Contudo, não se pode esquecer que nesta tensão pode estar a saída, às vezes não pensada, às vezes escamoteada pelos detentores do poder. Deve-se, de qualquer forma, evitar ao máximo barganhar com a Constituição, com seus princípios essenciais, porquanto estar-se-á negligenciando a própria identidade, afinal o poder constituinte somos nós! E nfim, caso as mudanças sejam mesmo necessárias, o mestre gaúcho, Ingo Wolfgang Sarlet, esclarece: “(...)Quanto ao risco de indesejável galvanização da Constituição, é 350 CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital, op. cit., p. 301. Cf. FERREIRA, Pinto, op. cit., p. 208. 352 Exemplos citados por SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 352. O autor faz referência a um exemplo de Raul Machado Horta, em que este entende que após o plebiscito de 1993, o Presidencialismo e a República foram eleitos diretamente pelo titular do Poder Constituinte, não podendo ser objeto de reforma, apesar de não constarem do rol da cláusulas pétreas, como já foi mencionado. 353 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 349. Em item subseqüente trataremos do alcance da expressão “tendentes a abolir”. 351 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 288 preciso considerar que apenas uma efetiva ou tendencial abolição das decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte se encontra vedada, não se vislumbrando qualquer obstáculo à sua eventual adaptação às exigências de um mundo em constante transformação”354 6. DIREITOS FUNDAMENTAIS OU DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS? A ABRANGÊNCIA DO INCISO IV DAS CLÁUSULAS PÉTREAS Quando o constituinte considerou pertencentes ao núcleo imodificável, os direitos e garantias individuais estariam se referindo a quê? Estariam se referindo a apenas aqueles direitos de 1ª geração, ou melhor, dimensão como quer a doutrina mais moderna?355 Ou seja, os direitos vinculados à idéia de Estado mínimo, do Estado Liberal cujo auge se deu no século XIX. Quanto a este questionamento sobre a expressão direitos e garantias individuais esclarece Manoel Golçalves Ferreira Filho: “Na Constituição de 1934, ela era o título do capítulo II do Título III. Este tinha como capítulo I: “Dos direitos políticos”, como capítulo II: “Dos direitos e das garantias individuais”. E neste capítulo enumeravam-se os direitos que a Constituição assegurava aos brasileiros e estrangeiros residentes no País: liberdade, subsistência, segurança, propriedade...Ou seja, as liberdades clássicas do liberalismo, pois o direito à subsistência é direito à vida. Não compreendia esse capítulo os “direitos sociais”, que se arrolavam no Título IV: “Da ordem econômica e social.”356 O eminente autor continua suas observações, demonstrando nas Cartas subseqüentes – 1937, 1946, 1967 e emenda de 1969 – manteve-se este divisor normativo – e conclui parcialmente: “Em face 354 Ibidem, p. 363-364. A doutrina costuma enumerar a existência de direitos de primeira, segunda e terceira gerações. A primeira dimensão corresponde aos direitos individuais e políticos do Estado Liberal novecentista. A Segunda geração é composta pelos direitos sociais e econômicos; dentro desta categoria localizam-se tanto os direitos que exigem uma prestação dos Estado, v.g., saúde pública através da implantação de hospitais, quanto dos direitos não prestacionais, v.g., jornada de trabalho de oito horas diárias. Terceira geração os direitos coletivos e difusos. A doutrina vem preferindo o termo dimensão ao invés de geração, porque estes direitos não se excluem, na realidade somam-se, e o termo geração pode dar a idéia errônea de exclusão de uma categoria frente ao reconhecimento de uma “geração” de direitos mais recente. 356 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 285. 355 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 289 do exposto, é forte o argumento de que na tradição brasileira, direitos e garantias individuais é expressão que abrange somente as liberdades clássicas. Esses direitos não poderiam ser abolidos pela revisão. O mesmo não ocorreria com os direitos sociais”.357 Contudo, esta posição, dentro dos métodos interpretativos, consubstancia-se nos métodos gramatical e histórico, e não é necessário ser um eminente hermeneuta para perceber que estes métodos constituem apenas uma primeira aproximação. Dentro de uma interpretação sistemático-teleológica fica difícil sustentar tal posicionamento, uma vez que já em seu pórtico, no preâmbulo constitucional, o constituinte quer “(...) instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais (...)”; inclusive a precedência topográfica dos direitos sociais, dá a entender a configuração de nosso Estado como Estado Social. Tese que se confirma logo a seguir onde a Constituição em seus princípios fundamentais elenca os valores sociais do trabalho, juntamente com a livre iniciativa. (art. 1º, inciso IV). Neste sentido, adverte o constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet: “Não resta qualquer dúvida de que o princípio do Estado Social, bem como os direitos fundamentais sociais, integram os elementos essenciais, isto é, a identidade de nossa Constituição, razão pela qual já se sustentou que os direitos sociais (assim como os princípios fundamentais) poderiam ser considerados – mesmo não estando expressamente previstos no rol das “cláusulas pétreas” – autênticos limites materiais implícitos à reforma constitucional.”358 Só com o argumento acima lembrado pelo professor Sarlet seria possível, pelo menos em um primeiro momento, afirmar que existem dúvidas quanto à constitucionalidade da Emenda 28. O professor Ingo Wolfgang Sarlet359 demonstra outros aspectos que põe abaixo qualquer tentativa de restringir o conteúdo do inciso IV, § 4º, art. 60, a tão-somente os direitos e garantias individuais. Se a tese restritiva fosse razoável, haveria de ser feito um verdadeiro 357 Idem, p. 286. SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 362. O autor faz referência as lições de Raul Machado Horta. Nestes comentários tomamos por base a obra do autor, páginas 360 usque 362. 358 359 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 290 rastreamento, já no capítulo I, do título II, dos direitos e garantias individuais e coletivos, para separar o joio do trigo. Nesta toada, embevecidos pela tese, haveríamos de localizar o mandado de segurança individual como cláusula pétrea e o mandado de segurança coletivo não albergado pela norma de perpetuidade. Algo absurdo, como observa o autor. E neste labor de separar o joio do trigo, o autor demonstra a necessidade de encontrar um método. Afinal o que é um direito e garantia individual? Nesta pergunta verberada com agonia jurídica, poderíamos enquadrar os direitos individuais como direitos de defesa, que é a tradição do direito pátrio. Aí, necessariamente, teríamos de estender nossa averiguação para outros capítulos, porquanto as liberdades sociais possuem a mesma configuração dos direitos e garantias individuais. Destarte, os direitos sociais não-prestacionais acabariam sendo subsumidos à categoria de cláusulas pétreas. Neste raciocínio o direito insculpido no artigo 7º, inciso XXIX, da CF (antes da reforma), enquadra-se na categoria de direitos sociais não-prestacionais, direitos de defesa na seara dos direitos sociais, e haveria por estar albergado pela cláusula de eternidade em comento. Não contente com esta verdade que julga parcial, o ilustríssimo autor ainda observa que a Constituição Federal não faz qualquer diferença entre os direitos de liberdade (de defesa) e os direitos sociais, e acrescenta que todos os direitos possuem titularidade individual, a despeito de serem de primeira, segunda ou terceira dimensão, não havendo possibilidade de diferenciá-los, principalmente para cientificamente averiguar se este ou aquele está albergado pela cláusula pétrea em comento. Outrossim, é possível afirmar que em uma interpretação sistemática-teoleológica da Constituição que a expressão, direitos e garantias individuais, deve ser interpretada como direitos e garantias fundamentais e nesta ótica todos os direitos fundamentais constantes do título II, da CF, portanto direitos e garantias individuais, coletivos, sociais, relativos à sindicalização, de nacionalidade e políticos. Não se podendo olvidar da cláusula, materialmente, aberta do art. 5º, § 2º, ou seja, ou direitos implícitos e decorrentes do sistema de princípios da Constituição, inclusive aqueles reconhecidos em documentos internacionais, e os dispersos no texto constitucional. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 291 Caso não se aceda a esta interpretação, alerta o professor Sarlet: “Constituindo os direitos sociais (assim como os políticos) valores basilares de um Estado social e democrático de Direito, sua abolição acabaria por redundar na própria destruição da identidade da nossa ordem constitucional, o que, por evidente, se encontra em flagrante contradição com a finalidade precípua das “cláusulas pétreas.(...)”360 A conclusão final de Manoel Gonçalves Ferreira Filho comentando a expressão direitos e garantias individuais não é diferente: “Entretanto, não é despropositado afirmar ser a expressão direitos e garantias individuais equivalente a direitos e garantias fundamentais. Ora, esta última designa todo título e abrange os direitos sociais, que assim não poderiam ser eliminados. Certamente, esta última interpretação parece mais condizente com o espírito da Constituição em vigor, incontestavelmente, uma “constituição social”. Ademais, ubi eadem ratio eadem dispositio. Se os direitos sociais, como as liberdades clássicas , são reconhecidos como direitos fundamentais, por que somente estes seriam intocáveis?361 Enfim, não restariam dúvidas que o direito insculpido no artigo 7º, inciso XXIX, b (antes da emenda) está abrangido pelas cláusulas pétreas na expressão “direitos e garantias individuais”, bem como todos os direitos fundamentais. Mas haveria quem, em um esforço hercúleo, mesmo depois de todos os argumentos porfiados à exaustão, dissesse que o referido direito não pode estar abrangido pelo núcleo imodificável. E esta posição encontraria fulcro na hipótese deste direito ser tão-somente, formalmente, constitucional. Realmente não é difícil concordar com esta posição, está-se falando em regime prescricional, que bem poderia estar no bojo de uma lei infraconstitucional. E daí por diante poderíamos, enfim, perscrutar a fundamentalidade do 13º salário, do 1/3 a mais de férias, etc... A este respeito o Dr. Sarlet, com sua particular percuciência, coloca a impossibilidade de tal ponderação, porquanto haveríamos de nos substituir ao poder constitucional originário. Não havendo compe360 361 Ibidem, p. 363. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 286. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 292 tência em nenhum poder para fazer tal distinção. “Não se poderá deixar de considerar que incumbe ao Constituinte a opção de guindar à condição de direitos fundamentais certas situações (ou posições) que, na sua opinião, devem ser objeto de especial proteção, compartilhando o regime da fundamentalidade formal e material peculiar dos direitos fundamentais.”362 O SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO “TENDENDES A ABOLIR” Se podemos dizer a esta altura que os direitos sociais, como aliás todos os direitos fundamentais, estão incluídos dentro da expressão “direitos e garantias individuais” das cláusulas de eternidade, não podemos ainda dizer se o direito analisado em concreto – a imprescritibilidade dos créditos trabalhistas, durante o contrato de trabalho – foi ou não objeto de uma emenda constitucional (Emenda nº 28) inconstitucional, porque não perscrutamos se a atividade do poder constituinte derivado acabou apenas fazendo uma adaptação necessária à presente realidade social, ou inobservou os limites da razoabilidade. Talvez esta diferenciação entre a adaptação do texto e o desbordamento dos limites constitucionais seja o tema mais tormentoso no presente estudo, juntamente com os limites materiais implícitos. Qual é o sentido da expressão “tendendes a abolir” no parágrafo 4º, do artigo 60 da Constituição? A doutrina, nos manuais, aborda-o de maneira perfunctória, haja vista a profundidade deste: “A Constituição, como dissemos antes, ampliou o núcleo explicitamente imodificável na via da emenda, definido no art. 60, § 4º, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: da forma federativa do Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente, declaram: ‘fica abolida a Federação ou a forma federativa de governo’, ‘fica abolido o voto direto...’, ‘passa a vigorar a concentração de Poderes’, ou ainda ‘fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação ou o habeas corpus, o mandado de segurança...’. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer ele362 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 134. Interessante observar que o autor enumera entre os dispositivos possíveis de serem enquadrados como só formalmente fundamentais o art. 7, inciso XXIX. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 293 mento conceitual da Federação, ou do voto direto ou indiretamente restringe a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, “tenda” (emendas tendentes, diz o texto), para sua abolição.”363 Nas lições do notável mestre, a referida expressão tende a ser interpretada – e aqui não reside nenhuma crítica, uma vez que em um manual o autor deve apenas passar as noções essenciais sobre um tema – como a impossibilidade de qualquer restrição. Por sua vez ambiguamente parece querer dizer que só as restrições que tendam a abolir. Em suma, não é possível em uma observação sucinta como esta, compreender a abrangência da expressão. Qual seria o parâmetro? Esta perplexidade é explicável porque os parâmetros são dados no caso concreto364 . Ou seja, a metodologia aplicável é a tópica. Não há como a priori sabermos se uma proposta de emenda ou uma emenda é contrária às cláusulas pétreas. Outrossim, pedimos desculpas novamente ao mestre José Afonso. A pergunta que poderia ser colocada é a seguinte: então não se pode modificar os preceitos protegidos pelas cláusulas pétreas? Novamente o professor Ingo Wolfgang Sarlet, multicitado neste texto, nos auxilia: “Com efeito, de acordo com a lição da doutrina majoritária, as cláusulas pétreas” de uma Constituição não objetivam a proteção dos dispositivos constitucionais em si, dos princípios neles plasmados, não podendo estes ser esvaziados por uma reforma constitucional. Nesse sentido, é possível sustentar que as “cláusulas pétreas” contêm, em verdade, uma proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais. Mera modificação no enunciado não conduz, portanto, necessariamente, a uma inconstitucionalidade, desde que preservado o sentido do preceito e não afetada a essência do princípio objeto da proteção. De qualquer modo, é possível comungar o entendimento de que a proteção imprimida pelas cláusulas pétreas” não implica a absoluta intangibilidade do bem constitucional protegido.” 365 363 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 61. SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 356. 365 Idem, p. 358. 364 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 294 Tais lições, são tão valiosas, que já é possível responder a questão objeto deste estudo. Se a Emenda Constitucional n.º 28, acabou por igualar o direito dos trabalhadores rurais e urbanos, fazendo com que possa existir prescrição, mesmo durante o contrato de trabalho, anatematizando a imprescritibilidade (durante o contrato de trabalho) assegurada ao trabalhador rural antes da emenda, sem sombra de dúvida aboliu um direito alcandorado ao nível constitucional, porquanto não houve apenas uma modificação textual. A norma que se poderia extrair do texto já não se pode mais. Não se pode mais dizer que não corre a prescrição enquanto não se extingue o contrato de trabalho, como dantes. Não se pode dizer que os direitos dos trabalhadores rurais são imprescritíveis durante o contrato de trabalho. Destarte, a única coisa que se pode afirmar é que houve uma indevida ingerência no núcleo essencial do direito, que ocasionou uma ruptura constitucional, pois um direito protegido pelo núcleo imodificável foi abolido! CONSIDERAÇÕES FINAIS À guisa de conclusão do presente ensaio, podemos falar, cheios de indignação, que a Emenda à Constituição 28, que alterou o regime jurídico da imprescritibilidade para os trabalhadores rurais, é por completo inconstitucional. E pior, é o prenúncio de uma desconstitucionalização de vários direitos sociais, principalmente dos trabalhadores, haja vista o contexto neoliberal que nos circunda. Aos mais desavisados, este vatícinio “cheira” a apocalipse jurídico, próprio daqueles que não têm o que fazer junto aos foros e especulam a realidade, moldando-a através dos teclados. Contudo, o que tentamos mostrar é que o fundamento para a aceitação da famigerada emenda é deveras preocupante, porquanto aceita uma interpretação literal da Constituição. Interpretação esta que faz soçobrar a configuração de Estado Social que é, explicitamente evocada pela Lei Maior. Faz com que os direitos sociais possam ser restringidos ou eliminados ao talante de uma maioria circunstancial que está no poder. Isto é inaceitável! Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 295 Mas, temos fé que a Jurisdição haverá de reprimir tal despautério, firmando nossa crença maior nos primados constitucionais. Pois, caso contrário, quem irá nos garantir o 13º salário? REFERÊNCIAS ALCURE NETO, Nacif e GUNTHER, Luís Eduardo. A emenda constitucional n.º 28 e a prescrição do trabalhador rural. In RDT, Editora Consulex, Brasília, vol. 7, ano 1, janeiro de 2001, p. 29. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. MALLET, Estevão. A prescrição na relação de emprego rural após a Emenda Constitucional n.º 28, In Revista LTr., vol. 64, n.º 8, agosto de 2000. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4. Ed. Coimbra: Almeidina, 1989 CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra ed., 1991. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 283. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Significado e alcance das cláusulas pétreas. In Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. n.º 13, 1995. FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, vol. III, 1992. SARLET, Ingo Wolfgang . A eficácia dos direitos fundamentais. Porta Alegre: Livraria do Advogado, 1998. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. VALE, Vander Zambeli. Inconstitucionalidades da proposta de emenda constitucional que altera o regime previdenciário da magistratura. Jornal Síntese n.º 10 - DEZ/97. =============================================================== Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 296 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 297 AS DIVERSAS FACES DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA LEI FEDERAL N.º 8.429, DE 02 DE JUNHO DE 1992. KLEBER CAZZARO MESTRANDO EM DIREITO PARA GESTÃO DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS E PRIVADAS PELA UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ (UNIVALI/SC). ESPECIALISTA EM DIREITO E PROCESSO DO TRABALHO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA. ADVOGADO NO PARANÁ. RESUMO O texto aborda a Lei Federal nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), ressaltando seus aspectos positivos mas defendendo sua inconstitucionalidade formal e material. O autor aborda aspectos históricos sobre o tema, esclarecendo que a improbidade pode manifestar-se nos três poderes da República, e não única e exclusivamente no Poder Executivo, defendendo a necessidade urgente de correção do texto legal, para adequálo à Constituição da República. ABSTRACT The text is about Federal Act # 8.429/1992 ( Act about Administrative Crime), pointing to its positive aspects but defending its formal and material unconstitutionality. The author points to Historical aspects about the issue, clarifying that the crime may happen in the three powers of the Republic, and not only and exclusively in the Executive Department, defending the urgent necessity of correction of the legal text , to adequate it to the Federal Constitution. PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Administrativo; Lei de Responsabilidade Fiscal. INTRODUÇÃO Ainda hoje, em muitos rincões de nosso País, são encontrados administradores públicos cujas ações em muito se assemelham às de Nabucodonosor, filho de Nabopolassar e que assumiu o Império Babilônico em 624 Ac. O primeiro, buscando satisfazer sua Rainha Meda, saudosa das colinas e florestas de sua pátria, providenciou a construção de estupendos jardins suspensos, tendo, tal excentricidade, consumidos anos de labor e gastos incalculáveis. Acabou, com isso, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 298 erigindo uma das sete maravilhas do mundo antigo. Tal “maravilha”, de flagrante inutilidade, mutatis mutandis, apresenta grande similitude com certos devaneios atuais, onde o dinheiro público, muitas vezes, acaba sendo consumido por atos de motivação fútil e imoral por aqueles que o gerenciam. Dão-lhe finalidade dissociada do interesse público e em total afronta à razoabilidade administrativa. Isso, na maioria das vezes, leva à flagrante desproporção entre o numerário dispendido e o benefício auferido pela coletividade, qual seja, nenhum. O administrador, tal qual o mandatário, não é o senhor dos bens que administra. Ao contrário: cabe-lhe tão somente praticar os atos de gestão que beneficiam o verdadeiro titular: O POVO. Todavia, o homem, definido pelo filósofo grego Aristóteles como sendo um animal político, precisa do convívio com os seus semelhantes para a satisfação de suas necessidades. Com efeito, como forma de proporcionar e ordenar a vida em sociedade, relatam os historiadores, surgiu o Estado. Entretanto, com a evolução do tempo e, com ele, a do próprio homem, a figura do Estado teve desvirtuada inúmeras de suas finalidades. Chegou-se ao absurdo de, no passado, ter havido confusão entre a coisa pública e o patrimônio do próprio governante. “Após a Idade Média, durante a época do absolutismo, existia a confusão entre a pessoa do rei e o Estado, de modo que aquele se sentia e era tratado como o próprio “dono” do poder estatal, podendo mandar e desmandar, no patrimônio, deste a seu bel prazer.” 366 Hely Lopes Meirelles já destacava que, “o agente administrativo, como ser humano, dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o bem do mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto.” 367 Valores como a exação, a lisura e a honestidade merecem es366 ROCHA, Renata Veras. O princípio da impessoalidade da administração pública. Revista Jurídica In Verbis dos Acadêmicos de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal: Sergraf, n. 12, p. 105, jan/dez/2001. 367 ª ª MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16 ed. 2 tiragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 79. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 299 pecial atenção daqueles que lidam com a coisa pública. Necessita-se, do mesmo modo, que os gestores sejam comprometidos com o social e com a ética pública. Não obstante isso, a atitude de certos indivíduos, aliada à ganância, à falta de conceitos éticos e morais firmes e à corrupção a que alguns foram expostos, tem feito surgir cenários lamentáveis no Brasil. Apesar de existirem inúmeros mecanismos para coibir a prática de atos contrários à moral, à ética e à sociedade como um todo, ainda há gestores da coisa pública que insistem em transpô-los para colocar à frente seus próprios interesses ou de alguém mais próximo, em detrimento da comunidade ou da administração em favor do povo. Ao assim agir, além de ferir princípios como o da impessoalidade e da moralidade, alcança a sociedade em geral, que se vê prejudicada ou privada de melhorias em suas mais primitivas necessidades. Contudo, isso não é o fim. “O próprio organismo social atingido pela inoculação de mortíferas bactérias da corrupção e da perversão humana, reage com as forças mais vivas do seu ser, para preservar os valores mais sagrados da vida e da pessoa humana.”368 Refletindo sobre o tema, tendo à frente questões estampadas diariamente, pelos mais diversos meios de comunicação existentes no Brasil e também nas denúncias processuais que são levadas rotineiramente à apreciação do Poder Judiciário, tem-se que “um estado com os problemas sociais enfrentados pelo Brasil não pode se dar ao luxo de sustentar agentes estatais que não se devotem à causa pública.” 369 Foi com o objetivo de colocar termo à todas as investidas em desacordo com a melhor regra aplicável à espécie, que surgiu, há mais de uma década, a Lei de Improbidade Administrativa (Lei. n.º 8.429/ 1992) a qual, aliada a outros diplomas legais, veio para evitar e, quando isso não for possível, sancionar a prática de atos que atentem contra a administração pública. 368 MARCÍLIO, Maria Luíza; RAMOS, Ernesto Lopes (coord). Ética: na virada do século: busca do sentido da vida. São Paulo: LTr, 1997, p. 89. 369 ª NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 2 ed. rev. amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 151. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 300 Porém, apesar de já estar quase debutando, a referida lei encontra-se eivada de sérios defeitos de origem. Esse pois, é o assunto do presente ensaio. CONCEITO É comum encontrar noticiado pela imprensa que este ou aquele administrador público está respondendo por ato de improbidade administrativa. Mas, o que significa improbidade administrativa? Não é difícil de se encontrar textos e pronunciamentos dos mais diversos, confundindo a improbidade administrativa, com ato ilegal e lesivo ao patrimônio público, os quais são componentes dos requisitos básicos para o manejamento da ação popular 370 . Apesar disso, o conceito operacional de improbidade administrativa vai muito mais além. Ela tem maior abrangência e alcance do que as possibilidades previstas para o exercício da ação popular. De Plácido e Silva define a improbidade como sendo o elemento que “revela a qualidade do homem que não procede bem, por não ser honesto, que não age indignamente, por não ter caráter; que não atua com decência, por ser amoral. Improbidade é a qualidade do ímprobo. E ímprobo é o mau moralmente, é o incorreto, o transgressor das regras da lei e da moral.” 371 Cabe ainda registrar que “improbidade é o contrário de probidade, que vem do latim probitas, cujo radical probus significa crescer reto. No sentido moral significa qualidade de probo, integridade de caráter, honradez. Logo, improbidade é o mesmo que desonestidade, mau caratismo, falta de pundonor, ato contrário à moral. No entanto, em termos de direito positivo, a moralidade não se confunde com probidade. Há entre elas, relação de gênero para a espécie. A primeira compreende o conjunto de valores inerentes à criatura humana que devem reger, em geral, a vida em sociedade. A segunda pressupõe essa retidão de conduta no desempenho de uma atribuição determinada, mas, com zelo e competência. 370 371 Ação Popular – Lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965. Vocabulário Jurídico. São Paulo: Forense, 1975. V. II, letras D-I. p. 799 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 301 Por isso, improbidade administrativa pode significar má qualidade de uma administração não envolvendo, necessariamente, falta de honradez no trato da coisa pública. Aliás, improbidade vem do latim improbitas, que significa má qualidade de determinada coisa. Não é por outra razão que a Constituição impõe a observância do princípio da eficiência no serviço público, isto é: diligência funcional do agente público para atingir o resultado máximo, com o mínimo de tempo despendido. Assim, improbidade administrativa é gênero de que é espécie a moralidade administrativa. Com efeito, podemos conceituar o ato de improbidade administrativa não só como sendo aquele praticado por agente público, contrário às normas da moral, à lei e aos bons costumes, ou seja, aquele ato que indica falta de honradez e de retidão de conduta no modo de proceder perante a Administração Pública direta ou indireta, nas três esferas políticas, mas também, aquele ato timbrado pela má qualidade administrativa.” 372 A IMPROBIDADE NOS TRÊS PODERES DA REPÚBLICA Em se tratando de atos de improbidade, é conveniente ficar registrado que a administração pública não está firmada tão somente nos atos do Poder Executivo. Nenhum dos poderes goza de autonomia e independência absoluta. A tripartição deles por diversos órgãos diferentes e independentes entre si existem para coibir o avanço de um, em detrimento do outro ou dos outros, dando oportunidade para formar o efetivo sistema de pesos e contrapesos. Evidentemente que, para se vislumbrar atividade ímproba, deve ser analisado o elemento volitivo do agente. Todos os atos emanados dos agentes públicos e que estejam em desconformidade com os princípios norteadores da atividade administrativa, serão informados por um elemento subjetivo, o qual veiculará a vontade do mesmo, com a prática do ato. 372 HARADA, Kiyoshi. (2000). Improbidade Administrativa. http://ww1.prolinkpublicacoes.com.br/publica coes.com.br/publicacoes/doutrinas/doutrina_showdoutrina.asp?tema=2&iddoutrina=577. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 302 À vista disso, havendo vontade livre e consciente de praticar o ato que viole os princípios que regem a atividade estatal, tem-se o ato doloso. Ao passo que, será culposo quando o agente não aplicar a atenção ou diligência exigida na hipótese, deixando de prever os resultados que adviriam de sua conduta por atuar com negligência, imprudência ou imperícia. Identificada a violação aos princípios administrativos e o elemento volitivo do agente que o praticou, deve-se identificar a atividade ímproba. Assim, não obstante sabermos que está afeto ao Executivo a árdua tarefa de, prioritariamente, executar as leis e administrar os negócios públicos. Ou seja: Governar; Ao Legislativo sobra a competência para criar normas jurídicas gerais e abstratas, com o objetivo de regular a vida em sociedade; E, por fim, o Judiciário tem a incumbência de aplicar e administrar as normas vigentes, às quais, registre-se, nem sempre atendem aos anseios das comunidades a que são impostas. A improbidade administrativa, nessa linha, pode difundir-se nas três esferas do Poder, porquanto todos eles praticam atos de administração. Senão, vejamos: IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NA SEARA DO PODER EXECUTIVO A incidência da prática de atos de improbidade é maior na área do Executivo. Tudo porque ele é o Poder a quem compete, efetivamente, governar, gerenciar, manusear orçamento e dinheiro público. Abre, com isso, condições favoráveis à prática de atos ímprobos, que não se traduzem, necessariamente, registre-se, em desvio de verba pública. Ao Poder Executivo cabe a incumbência, precipuamente, de executar as leis e administrar os negócios públicos. Isso traduz o ato de governar. Consoante a lição de Renato Alessi373 , “a atividade administrativa é desenvolvida sob a concepção de função estatal, a qual deve ser entendida como o dever do agente em praticar determinados atos, 373 ª Sistema Istituzionale del Diritto Amnistrativo Italiano. 3 Ed. A. Giuffrè Ed., 1960, p. 2. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 303 valendo-se dos poderes que a lei lhe confere, visando a consecução do interesse da coletividade”. Entretanto, como já dito alhures, os atos de improbidade não estão afetos, exclusivamente ao Poder Executivo. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NO PODER LEGISLATIVO Os legisladores, ao contrário que muitos pensam, também podem cometer atos de improbidade enquanto no exercício da função pública para que foram eleitos e investidos. Os atos legislativos propriamente ditos podem originar atos de improbidade administrativa. À guisa de exemplo, podemos citar o caso de uma lei que, de um lado, previsse demissão em massa de servidores públicos e, de outro, a contratação de outros tantos. Isso configuraria um ato de improbidade. Da mesma forma, qualquer instrumento normativo de caráter concreto, que beneficie um indivíduo ou um grupo de pessoas em detrimento do interesse público, também seria um ato de improbidade. Para encerrar, é de se lembrar o exemplo real da Lei n.º 9.996, de 14 de agosto de 2000, que dispôs sobre a anistia de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral em 1996 e 1998. Como foi amplamente noticiado pelos meios de comunicação, na época, os congressistas legisladores, principais infratores da legislação eleitoral e objetivando satisfazer interesses pessoais, aprovaram o referido diploma, em causa própria, com a clara intenção de não cumprirem as sanções que lhes foram aplicadas em razão dos ilícitos eleitorais que haviam praticado nos pleitos de 1996 e 1998. Tal conduta, imoral ao extremo, apresentou-se, na ocasião, como nítido ato de improbidade administrativa praticado pelos integrantes do Poder Legislativo Nacional. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PRATICADA INTEGRANTES DO PODER JUDICIÁRIO PELOS Por fim, é de se ter à frente que os membros do Poder Judiciário também não estão imunes de praticar atos de improbidade e, por isso, serem responsabilizados. É função precípua do Poder Judiciário, mediante um devido proRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 304 cesso legal e com eficácia vinculativa, dirimir as lides que lhes sejam submetidas, legitimamente através dos meios processuais colocados à disposição pela legislação material e processual vigente, seja para dirimir conflitos ou não. Nesse exercício da função jurisdicional típica, os preclaros julgadores podem praticar atos de improbidade administrativa. Além da função jurisdicional, seus membros, no exercício de função administrativa, podem também, efetivamente, incorrer em atos de improbidade. No exercício da atividade típica, é inconcebível um conceito de Justiça dissociado da idéia de imparcialidade. A primeira só se materializará em havendo eqüidistância entre o julgador e as partes, sem preferências de ordem pessoal, influências de fatores externos no teor das decisões proferidas ou a omissão deliberada na prática dos atos jurisdicionais. Em razão disso, sempre que for constatada a presença de situações fáticas consubstanciadas do impedimento ou da suspeição do magistrado, aliadas ao silêncio deste e ulterior prolação de decisão favorável a uma das partes, ter-se-á um grande indicador da improbidade do mesmo. Constatadas situações semelhantes, independentemente, das sanções administrativas e penais, resta configurada a improbidade administrativa. Por exemplo: Eventual decisão judicial que implicasse inovação legislativa para beneficiar ou agravar alguém, em tese, caracterizaria ato de improbidade. Outra situação: Magistrado que, frente a um pedido de interdição protocolado há mais de dois anos, deixa de aplicar atos para agilizar o trâmite do processo; e o interditando, que nos últimos tempos atravessava por crescente estado falimentar de saúde, alcança o óbito, frustrando, assim, a efetiva prestação jurisdicional tanto insistida e reiterada pelos requerentes. O pedido inicial perde o objeto e é extinto sem o julgamento meritório. Ainda temos que a prestação jurisdicional é um serviço público essencial, insuprimível e indelegável, constituindo-se em monopólio Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 305 do Poder Judiciário. Essa prestação jurisdicional, feita com desatenção, sem zelo e competência, em detrimento ao princípio constitucional da eficiência, constitui ato de improbidade administrativa e nem sempre dá motivos para o enriquecimento do agente público ou prejuízo ao erário. Todavia, traduz-se em atividade ímproba. Nada mais injusto e revoltante ao cidadão não receber ou até receber do Estado, através de seu órgão monopolista, prestação jurisdicional,manifestamente, equivocada, incompleta, contrária ao direito, por mero desleixo de um de seus membros. A LEGISLAÇÃO PARA COIBIÇÃO DOS ATOS DE IMPROBIDADE A improbidade administrativa tem se tornado elemento que destrói toda a credibilidade da administração pública. O seu efeito negativo afeta a sociedade e causa descrédito e revolta contra a classe que dirige àquilo que é público, nas três esferas do Poder. Isso, via de regra, acaba minando os princípios basilares que estruturam o Estado Democrático de Direito. Por isso, a existência, há muito, de normas repressivas tanto na esfera constitucional, quanto na inconstitucional. Todavia, antes da vigência da Lei 8.429/92, o ordenamento jurídico só se preocupava com o enriquecimento ilícito. HISTÓRICO DA REPRESSÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL. Aqui, desde já, cabe fazer justiça à atual Constituição Brasileira. Nenhuma carta constitucional anterior à de 1.988 abordou, de modo tão explícito, quanto ela o fez, ao tratar da improbidade. As anteriores apenas trataram do enriquecimento ilícito, modalidade mais incisiva da improbidade administrativa. A parte final do parágrafo 36, do artigo 146 da Constituição Federal de 1.946, por exemplo, dizia o seguinte: “a lei disporá sobre o seqüestro e o perdimento de bens, no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica.” Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 306 Já a Carta de 1.967, alterada pelas emendas 1/69 e 11/78, trazia em seu artigo 153, parágrafo 11, que “a lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário, no caso de enriquecimento ilícito, no exercício da função pública.” Foi a Constituição de 1.988 que inovou. Trouxe, no seu artigo 37, parágrafo 4º, conceito alargado de improbidade administrativa. In verbis “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.” LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL Os legisladores brasileiros, antes de produzirem a Lei 8.429/ 92, criaram duas leis de importância relevante para coibir atos de improbidade: A de número 3.164, de 1º de junho de 1.957, chamada Lei Pitombo-Godoi Ilha, e a de número 3.502, de 21 de dezembro de 1.958, conhecida como Lei Bilac Pinto. A primeira (Pitombo-Godoi Ilha), sujeitava a seqüestro os bens do servidor público, adquiridos por “influência ou abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica”, sem prejuízo da responsabilidade criminal em que o mesmo tenha ocorrido (art. 1º). Conferia ao Ministério Público e ao cidadão comum a titularidade para requerer a medida cautelar competente perante o juízo cível. A segunda (Lei Bilac Pinto), regulava o seqüestro e o perdimento de bens de servidor público da administração direta e indireta, nos casos de enriquecimento ilícito, por influência ou abuso de cargo ou função. Ela complementava ainda, a Lei Pitombo-Godoi Ilha, enumerando algumas hipóteses configuradoras do enriquecimento ilícito. Todavia, essas duas legislações não tiveram muita aplicação. Tudo porque tratavam apenas e tão somente do enriquecimento ilícito, fato de rara incidência, máxime no que diz respeito à dificuldade de caracterização do mesmo. Nenhuma delas explicitou o sentido da expressão “influência ou abuso de cargo, função ou emprego público”. Foi em 02 de junho de 1.992 que, para regular o artigo 37, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 307 parágrafo 4º, da atual Constituição Federal, entrou em vigor a Lei n. 8.429, conhecida como a Lei de Improbidade Administrativa — (Acredito ser mais coerente chamá-la - Lei contra a improbidade Administrativa). Ela veio para substituir as duas leis acima citadas. A LEI N.º 8.429/1992. Tida como o melhor estatuto para o combate da improbidade administrativa, a Lei 8.429/92 dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função, praticados na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências práticas para a sua aplicação. Tudo com o objetivo de estabelecer as sanções cabíveis em forma e gradação, de acordo com o artigo 37, parágrafo 4º da Constituição Federal, que trouxe norma constitucional em branco, exigindo regulamentação. Além de trazer disposições gerais sobre a prática do crime de improbidade administrativa, a Lei 8.429/1992 aponta os tipos de atos que são tidos como ímprobos, a saber: atos que importem em enriquecimento ilícito, atos que causem prejuízo ao erário e atos que atentem contra os princípios da Administração Pública. Essa mesma lei também dispõe sobre as penas que deverão ser aplicadas àqueles que praticarem os respectivos atos de improbidade por ela enumerados, as declarações de bens do agente que assumir função pública, a forma do procedimento administrativo e do processo judicial que deverá ser adotada em casos de improbidade administrativa, além dos prazos de prescrição das respectivas transgressões a ela concernentes. O crime de Improbidade Administrativa, pela interpretação da Lei 8.429/92, conforme já colocado no início, pode ser cometido por “qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio Público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de 50% do Patrimônio ou da receita anual” (art. 1º). Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 308 Nessa esteira, entenda-se agente público “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente, ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nos órgãos estatais acima mencionados” (art. 2o). Pode cometer também ato de improbidade administrativa, aquele que, mesmo não sendo funcionário público, participe de crime através de induzimento, concorra para o crime ou até mesmo se beneficie direta ou indiretamente, dos produtos do crime de corrupção administrativa (art. 3º). Todavia, apesar da aparente perfeição da Lei 8.429/1.992 que, diga-se de passagem, vem sendo aplicada há mais de dez anos, ela encontra-se eivada de vícios de origem que macularam-na desde o nascimento. Infelizmente, a atual Lei que combate os atos de Improbidade Administrativa é formal e, materialmente, inconstitucional. AS INCONSTITUCIONALIDADES DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E O PRINCÍPIO DA BICAMERALIDADE. A atual Constituição Federal diz, em seu artigo 65, que “o projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. E o parágrafo único do mesmo dispositivo constitucional exige que “sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.” É, pois, o princípio da bicameralidade. No caso da Lei 8.429/92, quando da sua confecção, os Legisladores nacionais deixaram de observar o que traz o referido dispositivo constitucional deixando prejudicada e sem qualquer valor a Lei 8.429/92. Tudo começou com o projeto de lei número 1.446, de 14 de agosto de 1991. Ele deu origem aos primeiros debates sobre a criação do que é hoje a Lei 8.429/92. Aprovada a redação final, após discussão das 302 emendas que, na época, foram apresentadas à idéia legislativa original, o referiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 309 do projeto foi enviado ao Senado Federal, em 23 de outubro de 1991, para revisão, cumprindo o que diz o artigo 65 da Constituição Federal. Acontece que, ao chegar ao Senado da República, o então Senador Pedro Simon, entendendo insuficiente e lacunoso o projeto de lei n.º 1.446/91, que havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados, apresentou novo projeto para substituir o primeiro, o qual, por força disso, acabou alterado (ou emendado). Em 03 de dezembro de 1.991, o Senado acabou aprovando o projeto substitutivo apresentado pelo Senador Pedro Simon. Isso implicou não na revisão, mas na rejeição do projeto de lei primitivo, n.º 1.446/1.991, vindo da Câmara dos Deputados. Por isso, cabia então, cumprir a exigência do parágrafo único, do artigo 65 da Constituição Federal, que é objetivo ao exigir que “sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora” para nova apreciação. Em 04 de dezembro de 1.991, o substitutivo aprovado foi remetido à Câmara dos Deputados para nova análise. Até aí, tudo certo. Todavia, na Câmara, a requerimento dos então Deputados Genebaldo Correia e Eraldo Trindade, o projeto substitutivo, vindo do Senado, foi retirado de pauta. Em seguida, o mesmo Deputado Genebaldo, seguidos por mais alguns pares legisladores, apresentaram requerimento para inclusão e aprovação de apenas alguns dos dispositivos do substitutivo aprovado pelo Senado, para serem incluídos ao projeto n.º 1.446/91, originalmente apresentado pela Câmara dos Deputados, o qual havia sido rejeitado pelo Senado Federal. Na Câmara Federal, ao invés de ser apreciado o projeto substitutivo vindo do Senado Federal, ou seja, cumprir o que manda o artigo 65 da Constituição Federal, o que aconteceu foi o surgimento de nova proposta legislativa, unindo partes dos dispositivos do projeto original, com partes dos dispositivos que constituíram o substitutivo apresentado pelo Senado Federal. Criou-se pois, uma nova proposta legislativa, a qual merecia voltar ao Senado para nova análise. Isso não aconteceu. Em 5 de maio de 1992, o Plenário da Câmara dos Deputados, faz votação em turno único, tendo sido apresentados 14 (catorze) destaRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 310 ques no sentido de aproveitar alguns dispositivos do substitutivo do Senado, o qual, por sua vez, foi rejeitado pela Câmara dos Deputados. Na mesma data, o Plenário aprova a redação final oferecida pelo então relator, Deputado Nilson Gibson. Em 15 de maio de 1992, a Mesa da Câmara oficia ao Senado Federal, comunicando a aprovação das emendas propostas por aquela Casa e a remessa do projeto para sanção presidencial. Em 18 de maio de 1992, o Senado recebe ofício do 1º Secretário da Câmara comunicando a aprovação da emenda do Senado e o encaminhamento dos autógrafos para a sanção. Em 10 de junho de 1992, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados oficia ao Senado Federal encaminhando autógrafo do projeto sancionado. Estava selada a inconstitucionalidade da Lei 8.429/92. A Câmara dos Deputados, fechando os olhos para o artigo 65, parágrafo único da Constituição Federal, ao invés de devolver para o Senado Federal, para nova revisão, em respeito ao Princípio da Bicameralidade, enviou a nova proposta legislativa diretamente para a sanção presidencial, (sem revisão do Senado Federal) surgindo, então, o que hoje é a Lei número 8.429/1.992. Nenhum dos dois projetos, quer o 1.446/91 da Câmara dos Deputados, quer o substitutivo oferecido pelo Senado Federal, foi regularmente discutido em uma Casa, a Casa iniciadora, e revisto pela outra, a Casa Revisora, conforme exige o artigo 65, e parágrafo único, da Carta Política Brasileira. O devido processo constitucional exigido para a elaboração de leis não foi observado. A Lei que combate os atos de improbidade administrativa é, pois, desde o berço, formalmente inconstitucional. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL E O PRINCÍPIO FEDERATIVO. Não bastasse a inconstitucionalidade formal que prejudica, desde a origem, a Lei que combate os atos de Improbidade Administrativa no Brasil, ela também está eivada de outro vício inconstitucional tão grave quanto: o material. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 311 Tudo porque não existe na Constituição Federal, nas disposições que tratam da distribuição de competência entre os entes federados nenhuma autorização para a União legislar em normas gerais sobre improbidade administrativa. “Aliás, nem poderia mesmo existir, pois, se se trata de impor sanções aos funcionários e agentes da administração, a matéria cai inteiramente na competência legislativa em tema de Direito Administrativo e, portanto, na competência privativa de cada ente político. Em suma, se o funcionário é federal, somente lei federal pode impor-lhe sanções pelo seu comportamento irregular; se o funcionário é municipal, somente lei administrativa do Município ao qual está ligado pode impor-lhe sanções374 ” e, da mesma forma, se o servidor é Estadual, só pode ser punido por lei Estadual. A matéria, que nem de longe pode ser desprezada, efetivamente tem sentido, especialmente, porque vem sendo sustentada por um dos mais renomados administrativistas brasileiros. Toshio Mukai375 . Defende o referido autor, com propriedade, o seguinte: A Lei 8.429/92, “em sua ementa, dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional. Portanto, a Lei n.º 8.429/92 pretende ser violado o princípio federativo insculpido no artigo 18 da Carta Magna, imune até mesmo à emenda constitucional (posto que a cláusula pétrea do art. 60, § 4º, impede a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado) diploma legal de cogência nacional. E, no caso, inexiste no texto constitucional, dentre as disposições que tratam da distribuição de competências dos entes federados, mormente no artigo 24, (que dispõe sobre a competência concorrente) nenhuma autorização à União que lhe outorgue competência legislativa em termos de normas gerais sobre o assunto (improbidade administrativa). 374 A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de Direito Administrativo. nº 11, p. 720-723, novembro/1999. 375 A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de Direito Administrativo. nº 11, p. 720. novembro/1999. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 312 No caso da Lei n.º 8.429, ela tem assento no que dispõe o parágrafo 4 , do artigo 37 da Constituição Federal, cujo capítulo onde ele está inserido, trata da administração pública. Entender que a lei aí referida seria somente uma lei federal de caráter nacional, é ofender o princípio federativo, o que nem mesmo uma proposta de emenda constitucional pode fazer, em razão da cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4º, I, da CF. É também interpretar o texto constitucional de maneira equivocada, sem respaldo nos processos hermenêuticos, científicos, de exegese jurídica. No caso, o caput do artigo 37, dispõe que, “A administração pública, direta e indireta de cada um dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá (no singular, daí a expressão interpretativa ‘de cada um dos poderes...’ que utilizamos) aos princípios... e, também, ao seguinte:...” Portanto, o caput aponta para cada uma das administrações que indica, como tendo a obrigação de obedecer (note-se, o texto não emprega o verbo no plural) aos princípios que menciona e a cada um dos incisos e parágrafos que, ao depois, o texto comporta. Ou seja, o caput requer e prevê a presença do regime federativo contemplado na Constituição (art. 18). E se é assim, esse comando central, partido do caput, não pode ser olvidado, e orientará toda e qualquer interpretação que se pretender dar aos parágrafos e incisos do artigo 37. Portanto, cada uma das administrações citadas deverá observar cada um dos incisos e parágrafos do artigo.”376 “Não está autorizada, no texto, sob pena de ferir o princípio federativo, a interpretação segundo a qual a lei referida no § 4º, do art. 37, seja uma lei federal, de âmbito nacional, como quer a Lei n. 8.429/ 92. Nesse sentido, pois, ela é absoluta e flagrantemente inconstitucional.”377 º 376 A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de Direito Administrativo. nº 11, p. 721, novembro/1999. 377 A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de Direito Administrativo. nº 11, p. 721, novembro/1999. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 313 Com efeito, como se vê, possui guarida a questão em debate, mormente se tivermos à frente o fato de que “se uma sentença judicial aplicar as sanções previstas no art. 12 da Lei. n. 8.429/92, a um agente público estadual ou municipal, será inconstitucional, pois não poderia aplicar sanção nenhuma a um agente público municipal...378 ” ou estadual. Para arrematar, além disso, tenha-se à frente que o § 4º, do artigo 37 da Constituição já indicou quais são as únicas espécies de sanções a serem aplicadas, na hipótese de improbidade administrativa. Portanto, “pelo princípio da legalidade constitucional, ao legislador competia tão só disciplinar a forma e a gradação das penas previstas no texto constitucional; quando acresceu às referidas penas mais três, o fez inconstitucionalmente.”379 Eis, pois, mais uma face da inconstitucionalidade da Lei 8.429/1992. CONCLUSÕES Como visto, houve boa vontade do legislador quando criou a Lei 8.429/92, para combater a prática de atos de improbidade administrativa. Todavia deixou ele de observar a melhor técnica processual para a confecção da mesma. Os atos de improbidade que, como mencionado anteriormente, podem ser praticados não só na esfera do Poder Executivo, onde é mais evidente, mas também pelos membros dos Poderes Executivo e Judiciário, podem restar impunes. Os legisladores nacionais, quando da confecção da Lei 8.429/ 92, deixaram de observar princípio básico exigido pela Constituição Federal, constituído pelo da bicameralidade. Fato grave que por certo não escapará da apreciação do Supremo Tribunal Federal. Além disso, somado à inconstitucionalidade formal escancarada que está a prejudicar totalmente a lei 8.429/92, ela também não pode ser aplicada, genericamente, para todos os que estão vinculados aos Poderes da União, Distrito Federal, Estados e Municípios. Cada qual 378 A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de Direito Administrativo. nº 11, p. 722. novembro/1999. 379 A inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa – Lei Federal n.º 8.429/1992. Boletim de Direito Administrativo. nº 11, p. 722, novembro/1999. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 314 deve ter a própria lei que regulamente suas respectivas transgressões. É hora, pois, de ser repensada a situação e, com urgência, reconhecidos os diversos erros e imperfeições que acompanham a Lei n. 8.429/ 92. Há mais de uma década, pois, “como já afirmaram, improbitas foi a atividade legiferante na redação da Lei n. 8.429.92”. 380 =============================================================== 380 FERREIRA, Antônio Carlos. Um passeio de avião e o questionamento da referida lei. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, nº 147: 19-20, 2003. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 315 A INCONSTITUCIONALIDADE DO FORO PRIVILEGIADO PARA EX-AUTORIDADES EM AÇÕES CIVIS DE IMPROBIDADE: UM RETROCESSO NA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO JOÃO CONRADO BLUM JÚNIOR BACHAREL EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA RESUMO O texto defende a inconstitucionalidade formal e material da Lei no 10.628/ 2002, a qual está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal, por afrontar a Constituição da República e contrariar o interesse público. Referida norma garante foro privilegiado para ex-autoridades, mesmo cessado o mandato ou função pública, para os casos de ações civis públicas por atos de improbidade administrativa. O autor assinala que a lei traz retrocesso ao sistema processual penal do país. ABSTRACT The text defends the formal and material unconstitutionality of the Act # 10.628/2002, which is being discussed in the Supreme Court of Brazil, because it confronts the Federal Constitution and the public interest. This act guarantees privelegious tenure to ex authorities , even being canceled the public function,fot the cases of public civil actions for administrative crime. The author says that the law brings a retrocess to the penal processual system of the country. PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Administrativo; Direito Processual; foro privilegiado; improbidade administrativa. INTRODUÇÃO Este estudo buscará desenvolver os principais pontos acerca de famigerado tema do foro privilegiado1 para ex-autoridades, ou seja, ainda que já tenha cessado o mandato ou função pública e, outrossim, para as ações civis públicas por ato de improbidade. A Lei no 10.628, de 24 de dezembro de 2002, objeto da análise, 1 A lei que embasa este trabalho traz a expressão “competência especial por prerrogativa de função”, a qual tão-somente dissimula o seu verdadeiro intuito, a instituição de um privilégio. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 316 acrescentou dois parágrafos ao artigo 84, do Código de Processo Penal, como se transcreve a seguir: Art. 84. (...) § 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. § 2o A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o. [sem grifo no original] A constitucionalidade dessa lei está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal, mediante a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 2.797, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), cuja medida liminar foi indeferida 2 pelo Ministro relator Sepúlveda Pertence, em 07 de janeiro de 2003. O controle difuso 3 de constitucionalidade da aludida lei está também sendo realizado pelos juízes singulares e tribunais estaduais e federais em todo o país, provocado, principalmente, pelo Ministério Público, órgão diretamente encarregado na defesa da sociedade. Analisar-se-ão, então, as constitucionalidades formal e material daquela lei, sob a ótica da efetivação de uma construção do direito processual penal brasileiro em conformidade com as regras e princípios estabelecidos pela Magna Carta de 1988. CONCEITO DE FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E A DIFERENCIAÇÃO ENTRE PRERROGATIVA E PRIVILÉGIO O foro por prerrogativa de função é uma das divisões de com2 Infelizmente, como se verá adiante. o Vejam-se: (Entendimentos pela inconstitucionalidade) HC n 137.187-1, Órgão Especial do TJ/PR, Rel. o Des. LEONARDO LUSTOSA, decisão por maioria de 04/04/2003; Agravo de Instrumento n 313.238-511, 9ª Câmara de Direito Público do TJ/SP, Rel. Des. ANTONIO RULLI, decisão de janeiro de 2003; (Entendio a a mento pela constitucionalidade) HC n 2003.04.01.028906-0, 8 Turma do TRF da 4 Região, Rel. Des. Fed. LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, decisão unânime de 20/08/2003. 4 Expressão mencionada por Fernando da Costa TOURINHO FILHO. Processo Penal. v. 2., 8. ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p. 103. 3 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 317 petência existentes no direito processual penal pátrio, também denominado de competência ratione personae (em razão da pessoa). Essa denominação, no entanto, não significa que o indivíduo terá a prerrogativa de foro por se tratar daquela pessoa específica, não é uma competência personalíssima, decorrente de “atributos de nascimento”, 4 mas sim, em virtude da importância do cargo ou função que exerce. Dessa maneira, não obstante ser chamada de ratione personae, não existe por causa do indivíduo, estritamente, considerado, advindo porém, como afirmado, da relevância do cargo ocupado pelo agente público que está sendo processado. 5 As hipóteses de foro por prerrogativa de função são encontra6 das nos artigos 29 (inciso X), 102 (inciso I, alíneas b “e” c), 105 (inciso I, alínea a) e 108 (inciso I, alínea a) da Constituição Federal, nos casos, respectivamente, de Prefeitos Municipais, Presidente da República, membros do Congresso Nacional, Governadores dos Estados e do Distrito Federal, juízes federais etc, somente aplicáveis a crimes comuns e de responsabilidade, não para ações civis. 7 Cabe assinalar que a legislação infraconstitucional não pode, como será mais bem analisado abaixo, alterar o rol de competências dos tribunais estaduais ou superiores, pois apenas o poder constituinte derivado, por meio de emenda constitucional em âmbito estadual ou federal, poderia fazê-lo, não havendo qualquer possibilidade pelo legislador ordinário. Destarte, depois de elaborado um conceito do que se entende por foro por prerrogativa de função, passa-se à diferenciação entre prerrogativa e privilégio, palavras comumente empregadas como sinônimas, 5 No tocante à competência por prerrogativa de função, talvez a única justificativa que se adéque ao interesse público para a existência do instituto seja a impossibilidade do agente público (federal, especificamente) sofrer processos em diversos locais do país, o que prejudicaria o bom exercício da função, devido à necessidade de deslocamento constante deste para se defender. Assim, para garantir que a função fosse bem desempenhada, face à sua relevância, concentrar-se-iam em um único foro os processos criminais. Há autores, porém, que divergem desse posicionamento. 6 Não se pode olvidar que as Constituições estaduais definem a competência no que diz respeito aos o tribunais respectivos, já que a Constituição da República assim determina (artigo 125, caput e § 1 ). 7 Exceto quando se tratarem de writs constitucionais (Mandado de Segurança, Habeas Data, Mandado de Injunção) que, dadas as suas peculiaridades, são impetrados diretamente nos tribunais superiores (STF, STJ, Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça). Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 318 o que é um equívoco. 8 O privilégio deve ser encarado como uma vantagem oferecida a um dado indivíduo, uma regalia pessoal, uma espécie de benefício concedido àquela determinada pessoa. Diferindo, desse modo, do conceito de prerrogativa, que tem na sua essência a proeminência da função exercida pela pessoa, sendo que todos os indivíduos que passarem pelo respectivo cargo, terão, in casu, a prerrogativa de foro, logicamente, enquanto a Constituição, estadual ou federal, mantiver essa regra. Na mesma linha de raciocínio, o jurista Julio Fabbrini Mirabete faz assertiva esclarecedora: Na realidade não pode haver ‘privilégio’ às pessoas, pois a lei não pode ter preferências, mas é necessário que leve em conta a dignidade dos cargos e funções públicas. Há pessoas que exercem cargos e funções de especial relevância para o Estado e em atenção a eles é necessário que sejam processados por órgãos superiores, de instância mais elevada. (MIRABETE, Processo Penal, 2001, p. 186.) ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI NO 10.628/2002 – CONTEXTO HISTÓRICO A questão que se está aferindo foi, em passado recente, amplamente debatida pela doutrina e pela jurisprudência, sendo que, após reiteradas decisões, a Suprema Corte brasileira optou, de maneira acertada, por cancelar9 a Súmula no 39410 , que dispunha sobre a mantença do foro privilegiado para ex-ocupantes de cargos públicos, nos mesmos moldes em que a Lei de 2002 visa estabelecer. Diante disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal parecia firmada no sentido de entender inconstitucional o “foro por prerrogativa de função” para ex-autoridades, posto que um autêntico privilé8 Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p. 102-104. Sempre que se mencionar neste estudo as expressões FORO PRIVILEGIADO ou “FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO”, terão sentido de privilégio. 9 o Ocorreu no Inquérito n 687, julgado em 25/08/1999, em que o Plenário do STF acolheu, por unanimidade, a questão de ordem suscitada pelo Ministro Relator SYDNEY SANCHES, devido à incompatibilidade formal e material da súmula com Constituição de 1988. 10 “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.” Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 319 gio. Todavia, houve a edição da Lei no 10.628/2002, que ressuscitou o foro privilegiado e, absurdamente, foi além para instituí-lo em favor de agentes públicos processados com fulcro na Lei de Improbidade Administrativa, a qual tem natureza civil11 e não criminal. A fim de defender a sociedade desses privilégios insanos criados pelos parlamentares federais, que cada vez mais atuam para si, afrontando a Magna Carta de 1988, a CONAMP ajuizou a ADI no 2797, conforme já referido, porém, o Pretório Excelso, estranhamente, 12 não deferiu a medida liminar. O relator afiançou que a remessa de inúmeros processos aos tribunais, em razão do foro privilegiado, e a conseqüente paralisação de seu processamento, não é razão suficiente para se suspender a eficácia da lei impugnada, “se não é outra a medida que está a recomendar-se”, nas palavras daquele. O próprio STF, nesse caso, ajuda para chancelar a impunidade de agentes políticos atuais ou do passado, pois agindo como “legítimo” guardião destes, literalmente, dilacera o texto constitucional, cuja integridade tem o dever de resguardar. Esse é o contexto hodierno, em que as leis e as interpretações constitucionais mudam na medida dos “ventos” ou, ao sabor dos detentores do poder na nação. A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL A lei que motivou este estudo trouxe à baila dois aspectos a serem aferidos no tocante à sua constitucionalidade formal, um concerne à impossibilidade do legislador ordinário aumentar o rol de hipóteses de foro por prerrogativa de função estabelecidas pela Constituição Federal e o outro se refere à violação ao princípio constitucional da separação entre os Poderes, consignado no artigo 2o, da Lei Maior. A Constituição da República, em nenhum momento, estabelece competência por prerrogativa de função para ex-agentes públicos, bem 11 o Nesse sentido, por exemplo: (natureza civil) Reclamação n 591, Corte Especial do STJ, Rel. Min. o a NILSON NAVES, decisão por maioria de 01/12/1999; Acórdão n 10.258, 5 Câmara Cível do TJ/PR, Rel. Juiz Conv. JOAO DOMINGOS KUSTER PUPPI, decisão por maioria de 01/04/2003; (natureza administrao tiva) Reclamação n 780, Corte Especial do STJ, Rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, decisão por maioria de 07/11/2001. 12 o Haja vista o entendimento consolidado com o cancelamento da Súmula n 394. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 320 como não o faz para hipótese de ação civil pública por ato de improbidade, já que essa se constitui em ação civil, conforme se infere das simples leituras daquela13 e da Lei no 8.429/9214 . Os dispositivos constitucionais referentes ao foro por prerrogativa de função (artigos 29, X; 102, I, b “e” c; 105, I, a; 108, I, a; “e” 125, § 1º) contêm rol exaustivo15 de hipóteses de competências16 de cada tribunal, sendo passível de alteração, consoante ao que foi antes asseverado, somente através de emenda constitucional. O foro privilegiado para ex-autoridades, “reconduzido” ao nosso ordenamento jurídico pela Lei no 10.628/2002, afigura-se desprovido de constitucionalidade formal, visto que esta dispôs sobre matéria deliberável apenas pelo poder constituinte derivado, nos termos do artigo 60, da Magna Carta, restando-se afrontadas, dessa maneira, as normas constitucionais supracitadas. Nessa direção foi a manifestação do ilustre relator quando da análise do inquérito que possibilitou o cancelamento da Súmula no 394, do Supremo Tribunal Federal: Continua a norma constitucional não contemplando os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado (art. 102, I, “b” e “c”). Em outras palavras, a Constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro às autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato. (Inquérito no 687, Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, decisão unânime de 25/08/1999) [sem grifo no original] O outro aspecto, por sua vez, que é a violação ao princípio constitucional da separação entre os Poderes, torna-se patente, pois o legislador ordinário, ao editar a Lei aludida, agiu indevidamente como intérprete da Magna Carta vigente, “estabelecendo” interpretação diversa daquela adotada pela Suprema Corte ao cancelar a Súmula acima men13 o Artigo 37, § 4 (“...,sem prejuízo da ação penal cabível.”) Artigo 12, caput (“Independentemente das sanções penais,...”) 15 o Nesse sentido: HC n 22.342, Corte Especial do STJ, Rel. Min. FELIX FISCHER, decisão por maioria de 18/09/2002. 16 o É de direito estrito: Ag. Reg. na Petição n 693, Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, decisão por maioria de 12/08/1993. 14 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 321 cionada. Essa interpretação do STF tem força de norma constitucional, como bem assinalou o Desembargador do Paraná Leonardo Lustosa: Com efeito, o art. 102 da CF estabelece que ‘compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição’. Dessa forma, exercendo sua função jurisdicional, o STF interpreta a Carta Maior e estabelece seu alcance. O resultado da interpretação de norma constitucional tem, por óbvio, força normativa de Constituição, pelo que não pode ser alterado pelas vias ordinárias. (HC no 137.187-1, Órgão Especial do TJ/PR, Rel. Des. LEONARDO LUSTOSA, decisão por maioria de 04/04/2003) [sem grifo no original] Então, apenas o próprio Poder Judiciário, por intermédio de seu órgão incumbido, precipuamente, da guarda da Constituição, poderia adotar exegese de norma constitucional acerca de sua competência originária e dos demais tribunais do país,17 sendo que, se o fizer, a respectiva interpretação torna-se parte integrante do texto daquela. Dessa maneira, houve usurpação pelo Poder Legislativo de função primordial e específica do Judiciário, visto que aquele se imiscuiu no entendimento pacificado deste sobre a inconstitucionalidade do foro privilegiado para ex-autoridades, atacando diretamente, em virtude disso, o texto18 constitucional, gerando abalo na harmonia entre os Poderes e, por consectário, maculando o “sistema de freios e contrapesos” da República brasileira. Em face disso, fica bem demonstrada a violação ao princípio da separação entre os Poderes e, conseqüentemente, a inconstitucionalidade formal da Lei no 10.628/2002. A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL Sem prejuízo da acima referida inconstitucionalidade formal da Lei em questão, esta ainda padece de vícios materiais de constitucionalidade. A instituição do foro privilegiado para ex-autoridades ou “foro por prerrogativa de ex-função”19 fere o princípio da isonomia, já que aquelas 17 De acordo com o entendimento exteriorizado por GERALDO BRINDEIRO, então Procurador-Geral da o República, em seu parecer na ADI n 2.797. 18 A interpretação pacificada de norma constitucional adere à própria magnitude desta. 19 Expressão usada por Hugo Nigro MAZZILLI. O Foro por prerrogativa de Função e a Lei n. 10.628/02. Disponível em: http://www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm Acesso em: 07 de setembro de 2003. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 322 voltam à condição de pessoas comuns, não havendo razão plausível para continuarem sendo processadas em tribunais superiores. Os ex-ocupantes de cargos públicos, obviamente, não possuem mais a função que anteriormente exerciam, sendo assim, o único fundamento para o foro por prerrogativa de função, ou seja, a proteção ao bom exercício do cargo, desaparece. No momento em que o legislador busca formas de beneficiar, inescrupulosamente, ex-agentes do poder público, cria um privilégio inaceitável em um Estado Democrático de Direito, fazendo sucumbir a igualdade material, haja vista a falta completa de interesse público nessa situação. O único interesse que pode existir no foro privilegiado para ex-autoridades é o pessoal, isto é, interesses de particulares que, sob a proteção de um mandato ou cargo público qualquer, alçam-se sem hesitação sobre os interesses maiores da nação. A jurisprudência do STF, pelo menos até o indeferimento da liminar na ADI no 2.797, compartilhava dessa idéia: Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para exexercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os exexercentes de tais cargos ou mandatos. (Inquérito no 687, Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, decisão unânime de 25/08/1999) Destarte, a Lei sob análise viola o princípio da igualdade, consagrado no caput do artigo 5o da Constituição Federal de 1988. Além disso, há quem defenda que Lei no 10.628/2002 viola o princípio da moralidade administrativa, enumerado no caput do artigo 37 da Constituição. A motivação dessa afirmativa estaria na possibilidade clara de paralisação do trâmite das ações de improbidade admiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 323 nistrativa, ante o acúmulo de trabalho dos tribunais superiores, fazendo com que a impunidade política voltasse 20 à marca dos 100%. Notadamente, uma das intenções da Lei sob destaque é a retirada da eficácia de outra, a Lei no 8.429/92, que, mesmo sofrendo bombardeios21 de grupos políticos por todos os lados, vem sendo aplicada com rigor aos ímprobos. Pode-se ponderar que essa tese da imoralidade é perfeitamente plausível, constituindo-se, por conseguinte, em mais uma razão para se reconhecer a inconstitucionalidade material da Lei no 10.628/2002. O RETROCESSO NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL PENAL À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL Após o advento da Magna Carta de 1988, a doutrina, a jurisprudência e, em menor grau (por incrível que pareça), a legislação, vinham, nesses 15 anos, construindo um sistema de processo penal mais condizente com o novo paradigma de justiça e respeito à dignidade humana introduzidos por aquela, porém, a edição da Lei no 10.628/ 2002 afigura-se em um enorme retrocesso. Os “criadores” e beneficiados por esta Lei certamente farão o que for necessário para mantê-la vigente, não obstante a evidente inconstitucionalidade, tanto formal quanto material, da mesma. Diante disso, o prélio pela aplicação da Constituição nunca pode parar. O princípio da Supremacia da Constituição, elementar 22 em nossa ordem jurídica, sempre é lembrado como inafastável e imperativo, havendo, sem ressaibos de dúvidas, unanimidade com relação a essa afirmação. Contudo, muitas vezes esse discurso não é praticado 20 Lamentavelmente, os poucos políticos que se “consegue” processar, com sustentáculo na Lei de Improbidade Administrativa, seriam alçados à condição de beneficiários do foro privilegiado, dificultando-se incisivamente a eventual punição. 21 o Exemplo: Reclamação n 2.138-6, do Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. NELSON JOBIM, que deferiu a liminar em 11/09/2002 para suspender a eficácia da sentença condenatória proferida na ação de improbidade administrativa promovida pelo Ministério Público Federal contra o então Ministro-Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Ronaldo Mota Sardemberg, em razão do uso particular de aviões da FAB e do hotel de trânsito da aeronáutica. Conforme consulta realizada (www.stf.gov.br), este processo encontra-se com vista ao Ministro Carlos Velloso (16/09/2003). 22 Nessa esteira a ensinança de Luís Roberto BARROSO: “Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental.” (Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, 4. ed., 2. tir., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 158) Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 324 no dia-a-dia, seja forense ou parlamentar, levando o legislador, despido de um senso de constitucionalidade sobre as normas que elabora, a fabricar verdadeiras excrescências legislativas, como a que se analisa neste trabalho. Em decorrência disso, faz-se mister o uso dos instrumentos legítimos de defesa da Constituição da República, como já está ocorrendo de forma difusa e concentrada, para que as incoerências constitucionais da Lei não permaneçam incólumes. Vislumbra-se, perante a luta que a sociedade23 já intenta pela negativa legítima de vigência à referida Lei, a retomada do viés constitucional na construção do processo penal pátrio. CONCLUSÃO A constatada inconstitucionalidade da Lei no 10.628/2002, não pode deixar de ser reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, que, se tiver outro entendimento, inevitavelmente, consagrará uma afronta ao interesse público e, o que é pior, literalmente rasgará a Constituição da República. Mas essa violação se configurará, não somente em referência às normas constitucionais mencionadas nesse estudo, pois haverá também claro devassamento ao artigo 102, da Magna Carta, que determina a função inarredável, portanto por excelência, daquela Corte: a guarda da Constituição. Assim sendo, forçosamente deve-se admitir que a Lei do foro privilegiado trouxe um retrocesso ao sistema processual penal do país. Todavia, acaba por gerar uma reflexão acerca da construção daquele, à luz dos princípios constitucionais norteadores, o qual se encontra diuturnamente, sofrendo achaques de leis e entendimentos jurisprudenciais. É nesse momento histórico de desrespeito à imperatividade das normas e princípios constitucionais que a utilização dos meios processuais e sociais existentes fazem-se extremamente necessários ao controle dos atos estatais, como as leis, cuja motivação, nem de perto, nem de longe, atendem aos anseios do corpo social. 23 Principalmente pelo seu maior representante na pugna pela justiça: o Ministério Público. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 325 Ante o que foi analisado, pode-se asseverar que ainda há muito a se construir no direito processual penal brasileiro, haja vista contar-se apenas com 15 anos de vigência da Magna Carta, constituindo-se como importante contribuição do intérprete a visão no sentido de não afastar a supremacia desta, formando um sistema que corresponda efetivamente aos mandamentos constitucionais. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 4. ed. 2. tir. São Paulo, Saraiva, 2002. LIMA, Fernando Machado da Silva. Projeto de foro privilegiado para improbidade administrativa: lama à vista ! Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=367 Acesso em: 05 de setembro de 2003. MARCÃO, Renato Flávio. 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São Paulo, Saraiva, 1986. =============================================================== Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 327 DEMOCRACIA E SISTEMA REPRESENTATIVO: A QUESTÃO DOS PARTIDOS FABIO ANIBAL GOIRIS PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA, MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Governador do Rio Grande do Norte entre 1956 e 1961, Dinarte Mariz, folclórico político do nordeste, fazia inúmeras promessas em tempo de eleição. Querendo agradar um aliado, Dinarte, então candidato a governador, trouxe a notícia de que havia um cargo de professor de grego vago na universidade do Estado. O correligionário retrucou: - Mas não sei nada de grego. Dinarte explicou: - Não há problema. Ninguém estuda mais grego, mesmo. Contudo, no primeiro dia de aula, havia três alunos na classe. O “professor” enrolou e, no intervalo, pediu socorro ao governador. Dinarte, já eleito pelo povo, não se apertou. Chamou o chefe de polícia e determinou: - “Há uns subversivos disfarçados de estudantes de grego da universidade. Prenda-os todos”. Contraponto, Folha de S. Paulo, 15 de abril de 1998. RESUMO O texto trata do surgimento e do desenvolvimento dos partidos políticos, como uma resposta à viabilidade da participação da sociedade no processo político. O autor, sob uma perspectiva de construção de uma democracia que atenda ao padrão liberal-democrático, produz uma análise dos partidos políticos, expondo que, no Brasil, do ponto de vista da representação, existem três tipos de partidos politicos: o partido clientelista, o partido populista e o partido de vanguarda. ABSTRACT The text is about the birth and development of political parties, as an answer to the viability of the participation of the society in the political procedure. The author, under the perspective of construction of democracy in a liberal/ demovratic model, produces an analisis of political parties, saying that, in Brazil, from the point of view of representation, there are three kinds of political parties : the client party, popular party and modern party. PALAVRAS CHAVE - Ciência Política; democracia; partidos políticos. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 328 INTRODUÇÃO Uma das modificações de maior relevância no universo da política deu-se quando as Nações sentiram a necessidade de serem governadas por meio de representantes legítimos. Decorreria daí uma das maiores dificuldades a ser enfrentada pela sociedade civil em razão da responsabilidade de escolher seus governantes. O meio mais eficaz encontrado para tornar viável a participação da sociedade no processo político foi a institucionalização e a legitimação de partidos políticos, tidos, então, como verdadeiras caixas de ressonância dos interesses populares e, de onde emergem as lutas de interesses e o confronto de idéias ou de ideologias opostas. Com efeito, a concepção de partido de oposição ou simplesmente de oposição política passaria a significar que, numa democracia, os adversários do governo não são inimigos do Estado e de que seus opositores não são traidores ou subversivos. Forjava-se assim o regime representativo, cuja origem pode ser encontrada na Inglaterra, onde este se formou, lentamente, como fruto de circunstâncias históricas peculiares. A partir da evolução política do sistema feudal, a monarquia inglesa passava de absoluta e ilimitada a constitucional e limitada, num processo de avanço institucional longo e acidentado, no qual o vencedor ora era o rei, ora o Parlamento. Iniciavase por essa via a organização do sistema de representação política. O governo de representantes eleito pelo corpo de cidadãos, supõe sempre, na nação, a presença de uma personalidade moral superior e diversa da dos demais indivíduos. Assim, soberania nacional, vontade geral, o eu comum de Rousseau, são os substratos doutrinários da representação. Nesse sentido, os poderes executivo e legislativo são os representantes temporários, os executores eleitos da vontade geral (Azambuja, 1987)381 . Nessa dimensão, insere-se o tema da consolidação democrática que, do ponto de vista, estritamente político, significa o afastamento das ideologias autoritárias e a aproximação da moderna política parla381 Azambuja, D. Introdução à Ciência Política. Rio de Janeiro: Globo, 1987. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 329 mentar, com a plena legitimação do sistema representativo Lamounier (1991) 382 . Significa, também, a efetiva criação de anticorpos institucionais contra o retrocesso populista-plebiscitário (a sedução das chamadas “lideranças carismáticas”) e a ilusão da democracia direta – ainda que ambos continuem existindo nas modernas sociedades de massa. Do ponto de vista socio-econômico, os correlatos necessários – dentro do processo de consolidação da democracia por via da institucionalização do sistema representativo – são a progressiva elevação dos níveis de bem-estar social e a redução das desigualdades de renda. É nesse último sentido que adquire importância a assertiva de Bobbio (1986)383 , de que hoje o processo de democratização consiste não tanto na passagem da democracia representativa para a democracia direta, mas, sobretudo, na passagem da democracia política, em sentido estrito, para a democracia social; ou melhor, consiste na extensão do poder ascendente, que até agora havia ocupado quase que exclusivamente o campo da grande sociedade política, para o âmbito da sociedade civil nas sua várias articulações: da escola à fábrica. Tendo estas observações como pano de fundo, o presente trabalho irá focalizar alguns aspectos que dizem respeito ao sistema representativo, particularmente no que concerne aos partidos políticos, considerando a importância destes – sua suposta ou real eficácia – como elemento indispensável de consolidação de uma democracia nos moldes propostos pelo liberalismo. DEMOCRACIA E SISTEMA REPRESENTATIVO: A QUESTÃO DOS PARTIDOS Na América Latina, particularmente no período contemporâneo, o descompasso gerado entre política e economia, vem desafiando a consolidação do regime democrático. A dinâmica das sociedades dos anos 80 e 90 explicitou o descompasso entre o desenvolvimento econômico, a diversificação da estrutura social, a rápida urbanização e a incapacidade das instituições representativas e do próprio Estado de 382 383 Lamounier, B. Depois da transição. Democracia e eleições no governo Collor. São Paulo: Loyola, 1991. Bobbio, N. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Paz e Terra, , 1986. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 330 responder as demandas sociais. Trindade (1991)384 assinala que essa situação manifestou-se de forma mais aguda no “lento e gradual” ritmo da transição política brasileira, onde, apesar da modernização da economia e da sociedade ter atingido, em alguns níveis, padrões de desenvolvimento “pós-moderno”, o modelo político continua ainda amplamente tributário do liberalismo oligárquico, excludente e pré-democrático, gestado na sociedade agrária. A coexistência entre o arcaísmo da política e o modernismo de setores significativos da economia introduz uma dimensão complicadora no processo de transição do autoritarismo para a democracia, na medida em que a fragmentação social e a multiplicação dos particularismos de uma situação pós-moderna escapam à racionalidade do “Estado societal”. Entretanto, é na dimensão pós-moderna da sociedade brasileira que, paradoxalmente, se encontra o germe capaz de romper com o marasmo da transição. A ruptura do padrão clássico da política brasileira, que coloca ainda no horizonte o dilema do neoconservadorismo ou do populismo, poderia provocar, diante da baixa legitimidade dos partidos políticos frente à frágil articulação intra-societal, um salto qualitativo em direção a uma democracia política e social, possibilitando o controle democrático do dito leviatã estatal. Este é o principal problema da construção democrática na América Latina. Nesta perspectiva, o impasse da transição política latino-americana, excluindo-se a via socialista de consecução da democracia, decorre de um grande desafio da década dos noventa, qual seja, o da construção de uma democracia que atenda ao padrão liberal-democrático e consiga incorporar, efetivamente, na arena política, os partidos, os sindicatos e os movimentos sociais. Benevides (1991),,385 assinala que as críticas mais moderadas à representação parlamentar apontam os vícios decorrentes de uma tradição oligárquica incontestável (o que leva à extrema “privatização” da política) e de defeitos inerentes à legislação, como a sub-representação dos Estados mais populosos e desenvolvidos. As críticas mais 384 385 Trindade, H. América Latina. Eleições e governabilidade democrática. Benevides, M.V. A cidadania ativa. Referendo, plebiscito e iniciativa popular, São Paulo: Ática, 1991, p.37. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 331 radicais apontam para o que se convencionou chamar de verdadeiro “estelionato político”, decorrente da perversão da democratização. Em ambos os casos, discute-se o papel do Estado, dos partidos políticos (detentores do monopólio da representação no Legislativo) e da legislação eleitoral. A despeito disso, não custa lembrar algumas das características da política brasileira, tais como: a representação distorcida; o coronelismo redivivo nas várias formas de clientelismo; o populismo de diversos matizes; o sistema eleitoral viciado e, ainda, o abuso do poder econômico nas campanhas eleitorais. Essa realidade, em seu conjunto, compõe um painel pouco animador da representação política, ao qual se agrega, conseqüentemente, a descrença do povo na política e nos políticos. Em termos gerais, a discussão histórica sobre o fenômeno da representação política no Brasil pode ser apresentada como reflexo do confronto entre idéias liberais, democráticas e participacionistas, de um lado, e idéias autoritárias, elitistas e corporativas, do outro. Do lado da pró-representação, há nítidas distinções, que vão do liberalismo clássico da exclusividade da representação parlamentar às teses sobre extensão da cidadania e radicalidade da soberania popular. Do lado da anti-representação, o espectro de posições abrange desde o autoritarismo do Estado forte e centralizador, com a encarnação da representação da nação no chefe carismático, até o elitismo da “democracia da gravata lavada” (Teófilo Otoni e a campanha do “lenço branco”), da “política dos notáveis” e da “presciência das elites” (Benevides, 1991, op.cit.). Diversos autores têm demonstrado sua preocupação sobre as dificuldades da consecução de uma democracia como sinônimo de soberania popular. A maior parte dos analistas contemporâneos enfatizam os entraves – políticos e culturais – que se impõem à consolidação de instituições representativas estáveis e razoavelmente democráticas. A tese clássica de Raymundo Faoro sobre a privatização exacerbada do poder político: o Estado patrimonial, a conciliação e a cooptação exposta em “os donos do poder” e o ceticismo de Sérgio Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 332 Buarque de Holanda, para quem “a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido”, permanecem como referências fundamentais para o entendimento da realidade política brasileira. Para Faoro, o nó da questão é, justamente, a constatação de que, “em última instância, a soberania popular não existe senão como farsa, escamoteação ou engodo [...]. O poder, a soberania nominalmente popular, tem donos que não emanam da Nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário”386 . Entretanto, o engodo e a escamoteação relativas à participação e representação democráticas, são muito mais sutis do que parecem ser; afinal, na retórica, a soberania popular está presente. Desde 1934 o direito positivo brasileiro incorpora a fórmula “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido” (lançada pela primeira vez, na Constituição belga de 1831). Além disso, desde 1950, o antigo Código Eleitoral brasileiro, nos termos do art. 132 passou a considerar os partidos políticos como pessoas jurídicas de direito público interno (confirmada pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos de 1971). Não obstante, em 1995, a Lei 9096, revogava aquele diploma jurídico inserindo, no seu art. 1º, o fundamento de que os partidos políticos passam à categoria de pessoas jurídicas de direito privado. Diante deste quadro é que adquire importância a análise dos partidos políticos, uma vez que detêm o monopólio da representação política, muito embora em alguns contextos eles simbolizem, também, os “males da representação”. Classicamente, tem existido, no Brasil, do ponto de vista da representação, três tipos de partidos políticos: 1) o partido clientelista, no qual prevalece a representação de estilo medieval e conservador; predominam o “favor” e a exclusão dos representados nas decisões partidárias e políticas globais; 2) o partido populista, no qual prevalece a concepção mais progressista da representação (“com razão, vontade geral, verdade”), mas a relação com seus membros é de tutela e; 3) o partido de vanguarda, o mais complexo de todos, 386 ª Faoro, R. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 8 ed. Porto Alegre: Globo, 1989. Vol.2. p. 748. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 333 pois manifesta-se, ao mesmo tempo, como tutela, de favor, pedagógico e de “encarnação da verdade”; considerando o sujeito político como agente de transformação, mas o substitui pela vanguarda. Um outro tipo de taxonomia ou de classificação dos partidos políticos centraliza-se na análise da organização interna destes. Assim, existem os partidos de quadros e os partidos de massas. Os partidos de quadros estariam mais preocupados com a qualidade dos seus membros do que com a quantidade deles. Não buscam reunir o maior número possível de integrantes, preferindo atrair as figuras mais notáveis, capazes de influir positivamente no prestígio do partido, ou os indivíduos mais abastados, dispostos a oferecer contribuição econômicofinanceira substancial à agremiação partidária. Os partidos de massa, por seu turno, além de buscarem o maior número possível de adeptos, sem qualquer espécie de discriminação, procuram servir de instrumento para que indivíduos de condição econômica inferior possam aspirar às posições de governo. Como foi explicitado, a simples presença de partidos políticos com características divergentes e diferenciadas, do ponto de vista ideológico e doutrinário, já é um complicador para a questão da representação. Na verdade os partidos respondem mal – quando respondem – às novas demandas dos cidadãos, sobretudo quanto a questões relativas aos direitos humanos, às novas aspirações da classe operária, às reivindicações das mulheres e de outros grupos sociais. No caso das mulheres essa situação se expressa particularmente quando se considera o fenômeno da sub-representação feminina no âmbito político. Com efeito, embora a legislação eleitoral assegure a participação das mulheres nos processos eletivos com a garantia de cotas mínimas para candidatas na nominata de partidos e coligações, não custa lembrar que desde a implantação destas – incluindo as eleições de 1996, passando pelas de 1998 e chegando as do ano 2000 – as cotas, de um modo geral, não foram preenchidas. Nesse sentido, considere-se que as mulheres, assim como outros segmentos sociais (negros, índios etc.), enfrentam diversos problemas para participar da esfera política, entre os quais está a dificuldade de romper com um tipo Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 334 de prática partidária que privilegia oligarquias políticas e econômicas em detrimento de quem constrói seu patrimônio político de forma independente, com base numa militância efetiva em partidos políticos e nos movimentos sociais387 . Isso eqüivale a dizer que os partidos, em muitos casos, mantêm-se “surdos”, fechados e hierarquizados, frente à pluralidade de identidades ou à heterogeneidade de interesses sociais. Contudo, Dalari (1999),388 assinala que a favor dos partidos argumenta-se sobre a necessidade e as vantagens do agrupamento das opiniões convergentes, dada a possibilidade da criação de uma força grupal capaz de superar obstáculos e de conquistar o poder político, fazendo prevalecer no Estado a vontade social preponderante. Além dessa necessidade para tornar possível o acesso ao poder, o grupamento em partidos facilita a identificação das correntes de opinião e de sua receptividade pelo meio social, servindo para orientar o povo e os próprios governantes. Contra a representação política, argumenta-se que o povo, mesmo quando o nível geral de cultura é, razoavelmente, elevado, não tem condições de se orientar em função de idéias e não se sensibiliza por debates em torno de opções abstratas. Assim sendo, no momento de votar são os interesses que determinam o comportamento do eleitorado, ficando em plano secundário a identificação do partido com determinadas idéias políticas. A par disso, os partidos são acusados de se terem convertido em meros instrumentos para a conquista do poder, uma vez que raramente a atuação de seus membros condiz fielmente com os ideais enunciados no programa partidário. Dessa forma, os partidos, em lugar de orientarem o povo, tiram-lhe a capacidade de seleção, pois os eleitores são obrigados a escolher entre os candidatos apontados pelos partidos, e isto é feito em função do grupo dominante em cada partido. Este aspecto de privatização dos partidos políticos levou o cientista político Robert Michels, a concluir que há, invariavelmente, uma tendência oligárquica na democracia, onde seria inevitável e certamente nefasta a hegemonia de grupos oligárquicos incrustados no coração das 387 Prá. J. R. Eleições e cidadania: notas sobre o comportamento político de gênero. IN: Baquero, M. (Org.). A lógica do processo eleitoral em tempos modernos. Porto Alegre/Canoas: UFRGS /La Salle, 1997. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 335 agremiações políticas. Michels definiu tais grupos como a verdadeira fonte da denominada “lei de ferro das oligarquias”. Lamounier (1989)389, por sua vez, diz que o ideal é bem conhecido: o que se quer de um partido é que ele estabeleça um equilíbrio saudável entre a representação de uma “parte” e a preservação dos interesses do todo. Supõe-se, quase sempre, que esse ideal é mais bem servido quando os partidos são coesos e voltados para uma atuação programática (ou ideológica); mas o fato é que esse modelo de partido não corresponde à realidade na maioria das democracias representativas. O que se vê, por toda parte, é a mesma queixa de que os partidos, concretamente, existentes são indisciplinados, eleitoreiros e clientelistas. Tampouco é possível desconhecer, quando se examina a realidade de cada país, que a evolução dos sistemas partidários sofre impactos complexos e não raro contraditórios da organização constitucional e das leis eleitorais, da estrutura social subjacente, de predisposições culturais, e mesmo de personalidades fortes que porventura tenham empolgado os postos de liderança. Em última análise, é preciso registrar que a discussão sobre as insuficiências e as falhas da representação tradicional tem ocorrido mesmo nas sociedades mais “avançadas” que, de certa forma, distanciam-se das conhecidas tradições oligárquicas, caudilhistas e coronelistas existentes na América Latina. Benevides (1991, op.cit.), face à discussão sobre democracia e sistema representativo tradicional, aponta para o fato de que existem apologistas do sistema de representação, exclusivamente, parlamentar e os defensores da inclusão de mecanismos de democracia semidireta. Os mecanismos institucionais de democracia semidireta seriam o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular. A vigência de tais institutos, ao lado das eleições periódicas para o Executivo e o Legislativo, configura um regime que alguns autores europeus, sobretudo suíços e franceses, denominam de “democracia semidireta”. Nos Estados Unidos, onde é freqüente a prática de referendos e de iniciativas populares, fala-se em “legislação direta” (direct legislation). 388 389 DALLARI, D. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1999. LAMOUNIER, B. Partidos e Utopias. O Brasil no limiar dos anos 90. São Paulo: Loyola,1989 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 336 A introdução do princípio da participação popular no governo da coisa pública é, sem dúvida, um remédio contra aquela arraigada tradição oligárquica e patrimonialista; mas, não é menos verdade que os costumes do povo, sua mentalidade, seus valores, se opõem à igualdade – não apenas a igualdade política, mas a própria igualdade das condições de vida. Os costumes, por exemplo, representam um grave obstáculo à legitimação dos instrumentos de participação popular. Daí sobrelevar-se a importância da educação política como condição inarredável para a cidadania ativa numa sociedade republicana e democrática. CONCLUSÃO Os partidos políticos, tendo se firmado no início do século XIX como instrumentos eficazes da opinião pública, dando condições para que as tendências preponderantes no Estado influíssem sobre o governo, impuseram-se como o veículo natural da representação política. Em conseqüência, multiplicaram-se vertiginosamente, apresentando as mais variadas características. Há opiniões favoráveis e desfavoráveis sobre os partidos políticos no que diz respeito ao seu papel como veículo fundamental de representação dos interesses populares. Nesse sentido, o debate realizado na Alemanha, em 1987, sobre o tema “A crise da democracia representativa”, faz um inventário das deficiências do sistema representativo – e de suas causas – e é eloqüente ao apontar que: · A deterioração da representação resulta da corrosão de referências morais e ideológicas na definição de direitos e deveres dos cidadãos; · A representação transforma-se em mera representação de interesses e a relação representante/representado em mera troca de serviços; · A dupla lealdade dos partidos aos seus eleitores e simpatizantes, mas também aos poderes instituídos, em nome da estabilidade política- aumenta a distância entre representante e representado; · A progressiva “instabilidade” do eleitorado é enfrentada com reRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 337 cursos nocivos em busca do “consenso passivo” pela propaganda do medo, do caos, dos perigos do terrorismo ou do desemprego, da inflação, do desastre ecológico, etc. A manipulação do “medo” em troca de “proteção” substitui ideologias ou programas partidários; · Os representantes não têm a competência esperada (ou alardeada), nem para enfrentar os problemas importantes nem para representar o grande número de seus eleitores; a “delegação em cascata” perpetua essa situação. Diante do exposto, parece razoável advogar pela efetiva inclusão de mecanismos de democracia semidireta – além da representação exclusivamente parlamentar – dentro do sistema político dos Estados. Nesse sentido, são da maior relevância as observações de Benevides (1991, op.cit.), quando assinala que: “A democratização em nosso país depende das possibilidades de mudança nos costumes – e nas “mentalidades”– em uma sociedade tão marcada pela experiência do mando e do favor, da exclusão e do privilégio. A expectativa de mudança existe e se manifesta na exigência de direitos e de cidadania ativa; o que se traduz, também, em exigências por maior participação política – na qual se inclui a institucionalização dos mecanismos de democracia semidireta”. A guisa de conclusão pode-se assinalar que não existe um receituário político capaz de eliminar, definitivamente, todos os entraves e defeitos oriundos da prática do sistema representativo; o que se afigura como verdadeiro é a necessidade inadiável de torná-lo cada vez mais institucionalizado, legitimado e sustentado em princípios democráticos reais. E isto é tarefa não só do Estado, e dos partidos políticos mas também dos próprios cidadãos. BIBLIOGRAFIA AZAMBUJA, D. Introdução à Ciência Política. Rio de Janeiro: Globo, 1987. BENEVIDES, M.V. A cidadania ativa. Referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 1991. BOBBIO, N. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Paz e Terra, 1986. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 338 DALLARI, D. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1999. FAORO, R. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. São Paulo. Globo, 1989. v.2, p.748 LAMOUNIER, B. Depois da transição. Democracia e eleições no governo Collor. São Paulo: Loyola, 1991. LAMOUNIER, B. Partidos e Utopias. O Brasil no limiar dos anos 90. São Paulo: Loyola, 1989. PRÁ, J. R. Eleições e cidadania: notas sobre o comportamento político de gênero. IN: Baquero, M. (Org.). A lógica do processo eleitoral em tempos modernos: novas perspectivas de análise. Porto Alegre/Canoas: Editora da Universidade/UFRGS /Centro Educacional La Salle de Ensino Superior, 1997. p.11-35. TRINDADE, H. América Latina. Eleições e governabilidade democrática. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1991. =============================================================== Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 339 RESPONSABILIDADE SOCIAL: A EVOLUÇÃO DAS EMPRESAS E O NOVO PERFIL EMPRESARIAL BRASILEIRO MAGDA DEMARTINI TASCA PROFESSORA DE DIREITO EMPRESARIAL NA FACULDADE MATER DEI. M.B.A. EMPRESARIAL PELA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS & ESPECIALISTA EM ADMINISTRAÇÃO PELO IBPEX. MESTRANDA EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICÁVEIS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA. ADVOGADA & CONSULTORA NO PARANÁ. RESUMO O texto questiona qual é o papel das empresas na sociedade, e quais as principais condutas de responsabilidade social dessas organizações. Ressalta a autora que a responsabilidade social é um conceito em construção, o que dificulta a identificação de quais seriam as ações que poderiam ser chamadas de socialmente responsáveis por parte das empresas. O artigo questiona quais os fatores que impulsionam as empresas a ações eticamente responsáveis. ABSTRACT The article questions what is the paper of the companies in the society, and what are the main functions of social liability of these organizations. The author says that the social liability is a concept in construction, what makes the identification difficult of what would be the actions that could be called socially responsible by the companies. The article questions what factors make a company to be responsible. PALAVRAS CHAVE - Direito Empresarial; responsabilidade social das empresas. INTRODUÇÃO O texto aborda alguns aspectos da responsabilidade social praticada pelas empresas brasileiras na atualidade, emanados de interesses particulares e de pressões sociais. A análise histórica do desenvolvimento das empresas no Brasil mostra algumas dificuldades e oportunidades que surgiram no decorrer do tempo. As ações das empresas têm sido apresentadas como parte Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 340 da estratégia de sobrevivência num mercado cada vez mais exigente. Fatores como a globalização, o neoliberalismo e a social democracia impregnam correntes de pensamentos, conduzindo a um constante questionamento: o que se apresenta é realmente uma manifestação de consciência das empresas para com o desenvolvimento da sociedade ou trata-se de um novo jogo de sobrevivência, tendo em vista as mudanças de comportamento da sociedade que cobrar mais responsabilidade das empresas em suas ações? CARACTERÍSTICAS HISTÓRICO INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA - ESTRUTURAIS DA O mercado brasileiro, do início do século XIX, era quase que exclusivamente, voltado para o exterior, tinha como foco principal a exportação de produtos agrícolas tropicais e minerais, bem como a importação de produtos industrializados como o tecido fino para consumo interno do país. Mesmo assim existiam ofícios como carpinteiros, ferreiros, e ainda indústrias como olarias, as quais fabricavam telhas e tijolos cozidos, normalmente estabelecidas nas grandes propriedades rurais, que começaram a expandir-se, ensejando que Portugal iniciasse um movimento de opressão às nascentes indústrias brasileiras. (PRADO JUNIOR, 1999, p. 220) O medo da concorrência e da independência econômica da colônia fez com que Portugal (em 1785) expedisse alvará extinguindo todas as manufaturas têxtis do Brasil Colônia, restando apenas autorizada a confecção de tecidos grosseiros que seriam utilizados como vestimenta para os escravos ou como sacaria. (PRADO, 1999, p. 224/ 225) Os diversos boicotes contra o desenvolvimento industrial no Brasil fizeram-se presentes naquela época, tendo sido esse um dos fatores que contribuíram para que o desenvolvimento econômico e tecnológico do país não acompanhasse o desenvolvimento de outros países, como os EUA e a Inglaterra. Somente após a vinda da família real ao Brasil é que o país teve maior autonomia (mesmo tímida) no desenvolvimento da indústria. Foi o que aconteceu quando abriram-se os portos às chamadas Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 341 ‘nações amigas’. Neste momento da história, as empresas não possuíam outro interesse senão a própria sobrevivência. A estrutura de produção da época fundava-se na ordem escravocrata e senhorial, o que pressupunha a escravidão com um dos fatores de acumulação de capital do Brasil. ( FERNANDES, 1987, p. 6). As indústrias brasileiras, nem na época da colônia, nem mesmo logo após a independência, voltavam-se para questões sociais, mas apenas mercantis, sendo objetivo das empresas a sua manutenção do mercado por meio da captação dos lucros. No final do século XIX, mesmo com a resistência dos senhores rurais, a libertação dos escravos transformou-se em fato, revelando-se como um dos primeiros sinais de respeito ao próximo, mesmo que outros interessem tenham contribuído para a alforria. Observa-se que os senhores rurais, diante da pressão que enfrentavam, foram forçados a modificar suas ações como estratégia de sobrevivência, substituindo a mão de obra escrava pela mão de obra dos imigrantes que desembarcavam nos portos. (PRADO JUNIOR, 1999, p. 190) Mesmo com várias dificuldades, a mão de obra imigrante ajudou os centros produtores na conquista de espaço dentro da ordem econômica brasileira. (PRADO, 1985, p. 262) A utilização da mão de obra imigrante trouxe (mais tarde) a figura do assalariado, o qual lutou muito para conquistar dignidade enquanto trabalhador, o que só veio a ocorrer na década de 1930, com movimentos em favor da classe trabalhadora e mediante reconhecimento pelo Governo brasileiro de alguns direitos trabalhistas. Sempre objetivando a sobrevivência, a empresa nacional passou por grandes transformações, alcançou autonomia e conquistou uma maior fatia do mercado internacional. Mas ainda na década de 1980 encontrava-se, extremamente, protegida, mediante uma política de altas tarifas sobre produtos importados. Mas na década de 1990 tudo mudaria, as empresas nacionais sentiriam necessidade de mudanças rápidas em seus objetivos e em suas ações, visto que as tarifas sobre a importação foram diminuídas drasticamente. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 342 Como conseqüência, várias empresas não conseguiram sobreviver à abertura sem planejamento do mercado nacional. Outras modificaram suas estratégias, que até então eram mais voltadas para o mercado especulativo, em razão da alta inflação da década de 1980, passando a investir na produção, seja por meio da melhoria de qualidade dos produtos que ofereciam, seja pelo aprimoramento tecnológico, seja (enfim,) pelo uso de novas técnicas gerenciais. Neste ambiente é que a responsabilidade social inicia a sua jornada na busca de ações eticamente responsável pelas empresas. O TEMA RESPONSABILIDADE SOCIAL NA ATUALIDADE Levando em consideração as várias faces que a responsabilidade social apresenta, importante se faz a análise do tema por variados ângulos. Patricia Ashley (ASHLEY, 2002, p. 37/38) comenta a respeito de orientações sobre o tema: Na orientação para os acionistas, a responsabilidade social da empresa é entendida como a maximização do lucro... na orientação para o Estado ou governo, a responsabilidade social da empresa está no estrito cumprimento de suas obrigações definidas e regulamentadas em lei...na orientação para a comunidade, a responsabilidade social da empresa é vista como um ato voluntário da direção, de forma esporádica ou estratégica...orientação para os empregados vê a responsabilidade social como forma de atrair e reter funcionários com qualificação, além de alcançar mercados com barreiras não tarifárias. Há várias visões sobre o tema, mas no momento, serão apresentadas apenas algumas, ou seja, aquelas entendidas como mais corriqueiras numa organização empresarial. Em razão de uma maior conscientização das pessoas, a cobrança exercida sobre as empresas privadas também cresceu nos últimos anos e isso levou-as a um repensar. Os órgãos de proteção da sociedade, sejam eles representantes dos consumidores (Procons), dos trabalhadores (sindicatos) ou dos ambientalistas, tiveram um papel preponderante para o início desse Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 343 questionar da empresa quanto a sua responsabilidade social. Há estudiosos do tema cujo entendimento salienta que a prática da responsabilidade social não representa benefício somente para a sociedade, mas também traz benefícios para a própria organização, melhorando sua imagem e contribuindo para o bem-estar dos empregados por meio de incentivo a ações voluntárias. Tais atos poderiam ainda servir de propaganda para atrair novos consumidores, principalmente os preocupados com a proteção do meio ambiente ou com a qualidade dos produtos que são colocados à disposição para o consumo. Com a divulgação da prática de ações responsáveis a empresa estaria induzindo as pessoas a consumir seus produtos. Sob tal enfoque observa-se, claramente, a utilização do exercício de um poder condicionado por parte das organizações, levando o consumidor a uma submissão involuntária. Seria ética a divulgação de ações de responsabilidade social por parte das empresas ? Seria lícito tolher a liberdade da empresa em mostrar-se, eticamente, responsável para uma sociedade cada vez mais exigente? As empresas fazem parte de uma grande rede de relações que com ela interagem, e em tal sentido as empresas devem procurar tratar seus empregados, fornecedores e consumidores de forma ética. Mas nem sempre isso ocorre, muitas vezes as empresas atuam mais eticamente com aqueles stakeholders que possuem alguma influência sobre a organização, como fornecedores sem os quais não é possível fabricar seus produtos, ou mediante a intervenção de empregados chaves. Diante disso, será que as empresas agem devido à conscientização de responsabilidade perante a sociedade onde estão inseridas ? Ou as empresas praticam a responsabilidade social tendo em vista a manutenção ou a conquista de mercados? Difícil responder, mas caso a resposta à última indagação seja positiva, a sociedade estaria novamente à mercê do mercado, pois seria ele quem ditaria as ações que deveriam ser praticadas, mas não a Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 344 sociedade em relação às suas reais necessidades. A questão é complexa, pois às vezes podem ser impostas condutas dispendiosas em termos financeiros, sem que a empresa possa vislumbrar um meio de aumentar seu capital. Afinal, a empresa está inserida no sistema capitalista onde impera a lei do mais forte. FATORES QUE INFLUENCIARAM NA RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS No século XX a humanidade deu um salto evolutivo quanto ao desenvolvimento tecnológico, o que se refletiu no comportamento das pessoas. A sociedade está cada vez mais exigente, tendo em vista a rapidez da produção e da disseminação das informações, nesta era da globalização. A globalização, juntamente com outros fatores, têm interferido diretamente na forma como as empresas estão se posicionando no mercado. Hoje, os objetivos de uma empresa somente poderão ser alcançados quando respeitarem determinados limites impostos por leis ou mediante pressões sociais. Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2002, p. 26) argumenta que a globalização é (na verdade) um “fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo” Diante disso, esclarece que a globalização não é um processo consensual, mas, ao revés, gera conflitos entre forças com interesses que se contrapõem, como entre as diferentes classes sociais existentes. Um dos grandes conflitos gerados pela globalização é sua fácil manipulação e adaptação aos interesses de alguns poderosos grupos econômicos, como as grandes multinacionais, em detrimento e submissão de uma grande massa. Esse poder de submissão à sua vontade situa-se justamente no que Boaventura chama de “consenso entre grupos hegemônicos” ou consenso neoliberal, ou ainda consenso de Washington. (SANTOS, 2002, p. 27) O Direito sempre foi uma das grandes características que identificam um país como soberano, mas hoje o que se vê é que o Direito Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 345 tem se amoldado de conformidade com a ordem internacional (Organização Mundial do Comércio, etc) e seus interesses. Tal interação de normas é o resultado da globalização que, lentamente, impõe aos países uma uniformização de leis mundiais, perfeitamente moldadas (adaptadas) ao sistema capitalista. Para Boaventura (SANTOS, 2002, p. 31), o objetivo das empresas é justamente reduzir o custo da produção e da distribuição, com o conseqüente aumento do lucro, sendo esse o pensamento que norteia grandes empresas, como as citadas empresas transnacionais. Para tanto, o Direito do país especulado por essas empresas deve ser composto por leis voltadas para a grande economia mundial, adaptadas ao sistema capitalista e neoliberal defendido por essas grandes corporações. O que se questiona aqui é o chamado ‘custo do Direito’ para essas empresas. A globalização evidencia aspectos positivos e aspectos negativos ou sombrios. Um dos aspectos positivos poderia ser a possibilidade de interação com as pessoas de todo o mundo mediante tecnologias de comunicação. Um dos aspectos sombrios encontra-se nas estratégias empresariais utilizadas para conduzir a globalização à produção de benefícios para poucos. Especificamente para a prática da responsabilidade social a globalização teve seu lado positivo, pois passou a mostrar para as pessoas que as empresas em outros países faziam mais do que simplesmente vender produtos e oferecer empregos, elas estavam interagiam com as comunidades em que viviam. Por meio de exemplos de práticas de empresas fora do Brasil é que surgiu a necessidade de exigir das empresas nacionais atitudes socialmente responsáveis. Pressões estão ocorrendo em todos os setores, principalmente no empresarial, e a grande pergunta está lançada : de quem seria a responsabilidade pelo desenvolvimento da sociedade e pela diminuição das diferenças entre as pessoas ? Para tal questão não existe apenas uma resposta, tudo irá depender da posição defendida por quem analisa. Para uns o Estado é o Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 346 único responsável, para outros as organizações empresariais devem assumir tal ônus. Para os defensores das práticas e ideologias neoliberais as empresas e os mercados deveriam encontrar seus limites neles mesmos, o Estado não deveria intervir nestas relações. Para os liberais a sociedade deveria ser organizada conforme o mercado, as empresas deveriam pertencer ao setor privado, e para o Estado restaria a massa populacional excluída, a qual não possui qualquer poder de compra. Bem ou mal, tais regras invadiram o mercado, o qual tira benefícios delas, visando a maior acumulação de riquezas. É nesse espaço que surge a nova classe de capitalistas transnacionais, incentivando idéias liberais para satisfazer seus próprios interesses (SOUSA, 2002, P. 31). Em contrapartida, cria-se uma massa desorganizada e excluída de trabalhadores. Mas mesmo diante de idéias tão liberais, a intervenção do Estado não parou. O Estado precisou agir, mas não a favor da nacionalização, e sim pela diminuição do tamanho estatal, lançando mão das privatizações (SOUSA, 2002, p. 25). Somente o Estado tem o poder de diminuir-se, e portanto em alguns momentos ele deverá intervir para garantir a liberdade e a abertura do mercado. Tais medidas podem causar sérias transformações sociais quando implantadas sem nenhuma regulamentação, como pretendem os ‘capitalistas transnacionais’ e os poderes hegemônicos. Atualmente, o Direito é um forte escudo protetor de um país para a proteção de seus cidadãos. Mesmo assim as multinacionais disseminam-se pelo globo à procura de mão-de-obra barata, matéria-prima em abundância e mercado para comercializar seus produtos. Neste momento os países periféricos oferecem as condições ideais para que os grandes conglomerados estrangeiros atinjam seus objetivos. (SOUSA, 2002, p. 32) A interferência das multinacionais em um país pode trazer transformações não só econômicas como também jurídicas, pois tais empreRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 347 sas visam a reduzir o custo para a atividade empresarial, reduzindo também a instabilidade e a incerteza decorrentes das sentenças proferidas pelos Estados, por meio do Judiciário. (SANTOS, 2002, p. 43) Muitas vezes as decisões das multinacionais serão pautadas nas vantagens que cada região ofereça para sua instalação como: a) local estratégico para a circulação das mercadorias; b) vantagens ou impedimentos previstos pela legislação quanto a trabalhadores e salários; etc. Essas empresas buscam um Estado que pouco interfira nas relações comerciais do país. Havendo interferência, que ela seja previsível (SOUSA, 2002, p. 39), sendo necessária, portanto, uma legislação desregulamentada e com a possibilidade de dúbia interpretação. O custo do Direito é medido pela análise dos encargos sociais, previstos pela legislação e que possuem o objetivo primeiro de proteger seus cidadãos. Quanto mais a lei protege o empregado e o consumidor menos as multinacionais se interessam pela região. As multinacionais com maior poder de influência pressionam os Estados, que já estão mínimos, a enfraquecer as leis existentes sobre o trabalho (é a chamada flexibilização do Direito do Trabalho), sobre a reparação de danos, sobre o Direito Tributário, etc. O fato é que diante de todas as transformações ocorridas no Brasil, pode-se concluir que as partes envolvidas (empresas, sociedade, Estado) são atores medindo forças neste cenário de intensa transformação social e tecnológica, no limiar do século XXI. RELAÇÕES ENTRE O PODER E A RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS As expressões responsabilidade social e poder estão intimamente ligadas quando vistas em perspectiva estrutural. Aqui a responsabilidade social será vista com ênfase no poder que as organizações privadas exercem por meio de suas ações. Há órgãos que lutam contra abusos cometidos pelas organizações, como as Promotorias ou Associações de Defesa de Consumidores, entidades sindicais e outras da sociedade civil, etc. O fato de as organizações privadas simplesmente explorarem Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 348 (sugarem) os recursos naturais do meio ambiente onde estão localizadas, sem nenhuma retribuição, já não está mais sendo tolerado pela sociedade. A disseminação do conhecimento teve grande influência nisso. A partir do momento em que as pessoas passaram a conhecer as empresas, bem como suas várias formas de interagir com a rede de relacionamentos que a evolvem. O poder que as empresas exercem nos dias atuais é grande, mas há leis que tentam coibir tais abusos, como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei Antitruste (concorrência desleal), a Consolidação das Leis Trabalhistas, dentre outras, sempre objetivando o equilíbrio das relações jurídicas, econômicas e sociais. Atualmente a temática da responsabilidade social comporta múltiplos conceitos, residindo aqui a dificuldade em definir quais são as responsabilidades que cabem às empresas. Mesmo sem um consenso, algumas empresas já buscam trabalhar a questão de sua responsabilidade para com a comunidade onde estão inseridas, seja por meio da proteção do meio ambiente, seja pela valorização de seus empregados, seja somente incentivando ações voluntárias. Assim, será que se pode falar em conscientização das empresas sobre sua responsabilidade para com a sociedade? É um pouco cedo para responder a tal pergunta, porque não se pode esquecer que a lei tem por finalidade coibir e limitar os abusos que as empresas possam cometer. Por isto, questiona-se quais seriam os reais interesses das empresas na prática da responsabilidade social. O poder que as empresas exercem sobre um povo é imenso, bastando citar: a) a criação e a manutenção de empregos; b) a contribuição com impostos; etc. Por isso é tão necessário haver normas e órgãos responsáveis pela limitação do poder que as empresas exercem na sociedade, bem como para regular o verdadeiro papel que elas devem socialmente desempenhar. Neste contexto, vale lembrar a Maria Cecília Coutinho de Arruda para quem “o equilíbrio de uma sociedade, em última instância, deRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 349 pende de três grandes fatores: governo, família e empresa. Em minha modesta opinião, o futuro do Brasil está na mão das empresas”. (ASHLEY, 2002, p. XVI) As empresas constituem a grande expectativa de futuro para o equilíbrio social. Mas até que ponto vai o interesse das corporações em promover tal equilíbrio? O mundo dos negócios exige crescente e elevado padrão ético dos partícipes do processo econômico, pois, como adverte Maria Cecília Coutinho de Arruda, “hoje, os dirigentes de empresas e outras instituições brasileiras já se deram conta de que a ética é algo sério que começa a fazer sentido. Poderíamos ir mais longe, dizendo que agora a ética significa a sobrevivência das organizações”. (ARRUDA, 2002, p. 08) Por ser um tema novo no contexto das empresas e da sociedade, não se tem como objetivo responder a todas as questões, mas sim apenas esboçar idéias e levantar dúvidas que pairam sobre o tema. A TERCEIRA VIA: RESPONSABILIDADE SOCIAL DO ESTADO E INICIATIVA PRIVADA Um terceiro caminho está sendo proposto: é a chamada social-democracia, a qual possui, na essência a idéia de que o avanço social só será alcançado diante de reformas progressistas ditadas pelo capitalismo, porém com estratégias voltadas para o campo social. O que se pretende excluir são os extremos, nem tanto o liberalismo exacerbado, tampouco o socialismo ou o comunismo exagerado. Deve existir harmonia entre o capital e o social, pois ambos têm como princípio a busca pela melhor capacitação ou pela concorrência. Assim, os rótulos ideológicos de direita e esquerda não fariam mais sentido. (CHAUI, 1999, p. 10) Para tal visão de ordenamento mundial as empresas seriam responsáveis por uma parte da assistência social, e dividiriam com o Estado o ônus decorrente de cuidados com a população mais carente. Mas até que ponto o Estado estaria independente para tomar as iniciativas de regulação do mercado se as empresas privadas ficassem responsáveis pelos serviços básicos da população, como educação e saúde? Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 350 Essa é a questão : até que ponto as empresas vão utilizar do seu poder de ameaça em (por exemplo) deixar o local onde estão instaladas, acaso o Estado não cumpra as suas exigências? Não é possível saber disso, desde logo. Portanto, torna-se perigoso deixar a sociedade à mercê, dependente de uma organização que muitas vezes nem tem sede principal no país onde pratica a responsabilidade social. Será que as multinacionais realmente estão preocupadas em ajudar comunidades onde estão inseridas a crescer, ou em suas práticas estariam visualizando interesses particulares que somente aumentarão seus lucros? Para a Professora Maria Célia Paoli (PAOLI, 2002, p. 414) a idéia pode suscitar a análise da criação de um cidadão de segunda ou terceira classe, tendo em vista a necessidade de depender da caridade de instituições privadas. Repassar a responsabilidade do Estado para a iniciativa privada, confiando em seu desenvolvimento, não é a melhor solução. O que deve ser feito não é a diminuição do Estado (pura e simples), mas a parceria da iniciativa privada com o Estado. Por tal parceria o Estado continuaria responsável pela assistência básica da sociedade, porém para isso contaria com a ativa participação das organizações particulares. De qualquer modo, restariam íntegras a autonomia e a soberania estatais. CONCLUSÃO Pode-se concluir deste estudo que as empresas, no Brasil, sempre tiveram como primeiro objetivo a sobrevivência, e para tanto impunha-se o aumento dos lucros e a diminuição dos gastos, como mostra o desenvolvimento histórico da temática. Observa-se, atualmente, o surgimento de novas exigências para que as empresas consigam sobreviver, no mercado moderno, pois a sociedade civil organizada cobra ações eticamente responsáveis por parte das empresas. A visão de hoje é a de que somente o lucro não garante mais a sobrevivência empresarial, pois as condutas das empresas estão senRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 351 do observadas por fornecedores, consumidores e trabalhadores, todos mais conscientes do papel que começa a ser exigido das organizações, para além de seus interesses básicos. Este texto leva a pensar e a repensar sobre o tema ‘responsabilidade social’. As reflexões conduzem, por sua vez, à conclusão de que o conceito de responsabilidade social ainda está sendo construído. Hodiernamente, as empresas vêem-se compelidas a tomar certas atitudes como a conservação do meio ambiente ou o respeito às leis trabalhistas, tendo em vista ou a pressão exercida pela sociedade ou a imposição legal existente no Brasil. Correntes sobre o tema estão surgindo, mas somente o tempo moldará a verdadeira responsabilidade que as empresas têm para com as pessoas, voltada ao crescimento local onde estão inseridas. Porém os excessos devem ser coibidos : pensar que as empresas têm única e exclusivamente interesses egoístas de captação de lucros é ser simplista demais. A possibilidade de existirem empresas que realmente praticam ações desinteressadas não deve ser totalmente descartada. REFERÊNCIAS A) ARRUDA, Maria Cecília Coutinho de. Código de ética : um instrumento que adiciona valor. São Paulo: Negócio, 2002. B) ASHLEY, Patricia Almeida (coordenadora). Ética e responsabilidade nos negócios. São Paulo : Saraiva, 2002. C) CHAUI, Marilena. Fantasias da terceira via. Folha de São Paulo, 19 de dezembro de 1999 - Domingo. D) FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil, 3 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. E) PAOLI, Maria Célia. Empresas e responsabilidade social : os enredamentos da cidadania no Brasil. In: Democratizar a Democracia (organizador Boaventura de Souza Santos). Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2002. F) PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo, 23 ed. São Paulo: São Paulo, 1999. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 352 G) ________. História econômica do Brasil, 31ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. H) SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos da globalização. In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.). A globalização e as ciências sociais, 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 353 AS DIFICULDADES DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA NO BRASIL E NO PARANÁ RAFAEL AUGUSTUS SÊGA PROFESSOR NO CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO PARANÁ. MESTRE EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ & DOUTOR EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. RESUMO O artigo trata das dificuldades da implantação do regime republicano no Brasil, e em especial no Estado do Paraná. O autor destaca as primeiras medidas tomadas pelo Governo Provisório para superar as deficiências do período imperial, dentre elas a separação da Igreja e do Estado, a secularização dos cemitérios, o estabelecimento do registro civil de nascimentos e casamentos, a abertura de linhas de crédito e a convocação da Assembléia Constituinte. O texto retrata as transformações históricas e políticas pelas quais atravessou o Brasil, e mais especificamente, o Estado do Paraná. ABSTRACT The article is about the difficulties of settlement of the republic system in Brazil and mainly in State of Paraná. The author points to the first measures taken by the Provisory Government to win the lacks from the imperial period, among them the separation of Church and State, the centurization of cemeteries, the stablishment of register of birth and marriage certificate, the opening of credits and the call to the constitutional convention.The text shows the historical and political transformations in which Brazil has gone through, and mainly the State of Paraná. PALAVRAS CHAVE - Ciência Política; História do Brasil e do Paraná; Império e República. O regime que foi instalado, no lugar do Império, tentou se espelhar, em alguns aspectos, em seu congênere norte-americano e passou a chamar-se “República dos Estados Unidos do Brasil”. Assumindo a república federativa como forma de governo1 , no qual o poder decisório deveria, a princípio, ser dividido entre as unidades federativas, indo contra o sistema centralizador do Império. O Rio de Janeiro, 1 SOUZA, Maria do C. C. “O processo político-partidário na primeira república.” In: MOTA, Carlos G. (org.) Brasil em perspectiva. São Paulo: Difel, 1985, p. 162. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 354 de antigo “Município Neutro da Corte”, passava a ser “Distrito Federal”; as antigas províncias, “Estados”; e os chefes dos Executivos federal e estadual, “Presidentes”. A rigor, não havia um “Partido Republicano”, propriamente dito no Paraná, antes de 15 de novembro de 1889.2 Após a notícia do golpe republicano, no Rio de Janeiro chegar ao Paraná pelo telégrafo, o poder saiu das mãos do presidente provincial e foi entregue ao chefe da guarnição do exército de Curitiba. No resto do país, a transição política foi, relativamente, calma. Instituída a República, a 16 de novembro, embora não oficialmente chegava a notícia em Curitiba. O Presidente Jesuíno Marcondes e o Comandante da Brigada Militar, coronel Francisco José Cardoso Júnior, imediatamente, realizam reunião, objetivando a manutenção da ordem na Província. Os oficiais, porém, da guarnição manifestam o seu apoio ao gesto de Deodoro e logo chega também o telegrama deste, encarregando o Comandante da Brigada, da manutenção da ordem pública, até a nomeação de um Governo provisório. Em conseqüência, nesse mesmo dia, Jesuíno Marcondes entregou a Presidência da Província a Francisco José Cardoso Júnior, o qual tomou posse, a 17 de novembro, perante a Câmara Municipal de Curitiba.3 Os primeiros dois anos do regime republicano no Paraná foram um caos, sete governadores provisórios se alternaram no cargo, quatro militares e três civis, e pior, nenhum deles era paranaense. O Partido Conservador, que estava fora do governo no Paraná, quando da proclamação da República, bandeou, peremptoriamente, à nova ordem, e é só após o 15 de novembro, que as duas alas políticas adquiriram uma nova “roupagem” republicana. Já no Rio Grande do Sul, a instalação do regime republicano foi sui generis, pois desde cedo o novo governo foi dominado pelos positivistas, que encontraram em Júlio Prates de Castilhos seu mentor. 2 COSTA, Samuel G. “Introdução”. In: CARNEIRO, David & VARGAS, Túlio. História biográfica da república no Paraná. Curitiba: Banestado, 1994., p. 3. 3 WESTPHALEN, Cecília. & BALHANA, Altiva. “A república no Paraná”. In: Revoluções e conferências. Curitiba: SBPH, 1989, pp.49-50. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 355 Na verdade, Castilhos adquirira sua projeção por meio de sua militância política no Partido Republicano Rio-Grandense, fundado em 1882 e como articulista polêmico do jornal “A Federação”. O projeto político de Castilhos e seus seguidores de um “autoritarismo ilustrado” era baseado nos ensinamentos de Augusto Comte ao buscar o progresso por meio da ordem e da ciência. Propunham a expansão das relações capitalistas e um desenvolvimento geral da sociedade gaúcha, com melhorias na educação, nos transportes, nas comunicações, nas técnicas agrícolas e industriais. Porém, o castilhismo propunha uma modernização conservadora, pois, para essa doutrina, a estrutura social deveria ser mantida e os conflitos sociais negados, uma vez que o proletariado deveria ser incorporado à sociedade de uma maneira paternalista. Entrementes, Gaspar Silveira Martins (ex-senador, ex-conselheiro extraordinário do Império e ex-presidente provincial, 1835-1901) constituía-se no maior representante da elite rural ligada ao antigo Partido Liberal e era o único líder gaúcho com condições de esboçar uma reação frente aos castilhistas, todavia, ele havia sido expulso do país em 1889. Quando da proclamação da República, Castilhos recusou o cargo de presidente do Estado e preferiu assumir como secretário do governo estadual, sob a chefia do Visconde de Pelotas (José Antônio Corrêa da Câmara, 1824-1893). Castilhos estava convicto no intento de inaugurar uma nova fase positiva na política rio-grandense, ao transformar as velhas práticas político-administrativas clientelistas do período imperial. Em 1890, Júlio de Castilhos elegeu-se deputado ao Congresso que iria elaborar a primeira Constituição da República e logo identificou-se com a ala ultrafederalista, passando a defender o projeto político jacobino.4 Em 14 de julho 1891, Júlio de Castilhos promulgaria a nova Constituição estadual, que reproduzia quase integralmente o anteprojeto proposto por ele mesmo.5 Eleito presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelos próprios deputados, Júlio de Castilhos assumiria o governo logo em seguida. 4 5 FRANCO, Sérgio C. Júlio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1996, p. 82. FRANCO, Sérgio C. Op. Cit., p. 94. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 356 A carta gaúcha possuía forte teor centralizador e concentrava a maior parte dos poderes nas mãos do presidente de Estado, que passava a ser eleito por cinco anos, com direito à reeleição (mais tarde, Borges de Medeiros, usando deste estratagema, permaneceu no poder por vinte e cinco anos). E ainda, podia governar por decreto e tinha a prerrogativa de nomear o próprio vice. O legislativo estadual gaúcho (a “Assembléia dos Representantes”) restringiu sua ação à elaboração e aprovação do orçamento. Castilhos procurou criar um governo autoritário de inspiração positivista. Com a nova Constituição, o grupo ligado a Júlio de Castilhos assegurou-se perpetuamente no poder, pondo fim ao revezamento dos tempos imperiais. Estava plantada a semente da discórdia que traria como fruto dois anos e meio de uma guerra cruel e fratricida. Em termos nacionais, a instalação, relativamente, tranqüila do regime republicano fez com que seu artífice, marechal Manuel Deodoro Fonseca (1827-1892), assumisse a presidência do mesmo e tomasse as primeiras medidas para a sua estabilização, formando o primeiro gabinete republicano com ministros civis e militares engajados na ruptura, como se vê a seguir: Pasta da Justiça – Campos Sales (cafeicultor paulista), Pasta da Guerra – Benjamin Constant (positivista, ocuparia a Pasta da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, no ano seguinte), Pasta das Relações Exteriores – Quintino Bocaiúva (republicano “histórico”), Pasta da Marinha – Eduardo Wandenkolk (militar de carreira), Pasta do Interior – Aristides Lobo (republicano “histórico”), Pasta da Agricultura, Comércio e Obras Públicas – Demétrio Ribeiro (positivista) e Pasta da Fazenda – Rui Barbosa (ex-liberal). A consumação do regime se daria dois dias depois com a partida de D. Pedro II para Paris. As primeiras medidas tomadas pelo Governo Provisório visavam superar as deficiências mais prementes, acumuladas do período imperial. Dentre elas podemos destacar a separação da Igreja e do Estado, a secularização dos cemitérios, o estabelecimento do registro civil de nascimentos e casamentos, a abertura de linhas de crédito e a convocação da Assembléia Constituinte no ano seguinte. Não obstante, em termos econômicos é de bom alvitre acompanhar o quadro do país na passagem do Império para a República, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 357 descrito por Nelson Werneck Sodré, Em 1889, o quadro brasileiro pode ser traçado em umas poucas coordenadas: o país dispõe de 14 milhões de habitantes, distribuídos em 916 municípios, com 348 cidades; conta com apenas dois portos aparelhados e apenas uma usina elétrica; com 8.000 escolas, 533 jornais, 360 quilômetros de rodovias, 10.000 quilômetros de ferrovias e 18.000 de linhas telegráficas; sua produção ascende, em moeda nacional, ao valor de 500.000 contos de réis, e a sua produção industrial a excede um pouco, pois vai a 508.000 contos de réis; em dados per capita, a produção industrial corresponde a 35.750 réis, enquanto a produção agrícola corresponde a 35.700; a exportação per capita é de 15.000 réis e a receita per capita de 11.500 réis. (...) No comércio exterior, verifica-se que, entre 1876 e 1885 a nossa importação ascendeu a 1.770.000 contos, quando a exportação atingiu a 1.970.000 contos. No decênio de 1886 a 1895, já em parte sob o novo regime, a importação atingiria a 3.300.000 contos, e a exportação a 4.100.000. O saldo, naquele decênio, subiria a mais de 800.000 contos, dado realmente importante. Começava, no Brasil, a capitalização.6 Dentre as 21 províncias que foram elevadas à categoria de Estados da União pelos republicanos em1889, o Paraná (com uma população de, aproximadamente, 330.000 habitantes na virada do século XIX) possuía ainda uma projeção muito tímida em termos nacionais. Embora criada pelo Império para ser seu ponto de apoio na região, a Província do Paraná não recebia deste qualquer privilégio, ao contrário, sofria com graves problemas econômicos e políticos. Sua economia era basicamente extrativista, seja a partir da extração da madeira, seja da erva mate, cujo surto econômico propiciará o desenvolvimento cultural de sua capital. Apesar deste desenvolvimento, o estado era o 18º em população, ficando à frente somente do Espírito Santo, Mato Grosso e Amazonas, e 2/3 de seu território ainda se encontrava desocupado e mesmo suas fronteiras não eram bem definidas. Talvez por estes fatores a tese de que o Paraná era um mero local de ligação e passagem, uma estância para tropeiros tenha se consolidado, esquecendo 6 SODRÉ, Nelson W. A república; uma revisão histórica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1989, p. 76. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 358 que neste período praticamente todo o país vivia em condições precárias e encontrava-se com a maior parte de seu território desabitado.7 Por causa da influência dos positivistas, os militares compartilhavam do ideal do “progresso” (dentro da “ordem”), não possuindo em termos de política econômica um projeto específico. Combatiam o liberalismo dos cafeicultores paulistas, por acreditar que esses só visavam seus interesses próprios. Com um quadro nacional econômico tímido, se comparado às nações já inseridas no capitalismo monopolista, mas estável por outro lado (o café estava com os preços em alta), é que assumiu a Pasta da Fazenda o advogado Rui Barbosa de Oliveira, com o intuito de modernizar a economia brasileira. Sobre isso, apelamos mais uma vez a Nelson Werneck Sodré, A república, nas alterações que introduz, marca nitidamente o extraordinário esforço de adaptação das condições internas às condições externas, de uma capitalização em início a um processo capitalista que atinge a sua etapa imperialista. Com a República, assistimos, realmente, ao apogeu da estrutura colonial de produção: o Brasil é um dos principais supridores de matérias-primas do mercado mundial e o seu produto fundamental é o alimentício que figura em maior volume nas correntes de troca, com a particularidade de fazê-lo ainda sem concorrência. Isto acontece quando o mundo assiste a um extraordinário surto de comércio internacional, decorrente do crescimento vertical da produção capitalista que, com o surto demográfico, invade mercados e destrói velhas relações.8 A proposta econômica de Rui Barbosa era investir o superávit na produção industrial e isso ia contra as aspirações de financiamentos dos cafeicultores paulistas, mas acabou agradando aos militares. A primeira medida de Rui Barbosa, como ministro, foi uma reforma bancária, a fim de facilitar a expedição de títulos de crédito. No início, tudo correu sem problemas e várias empresas foram criadas no Distrito Federal. Otimistas previam um bom panorama de crescimento devido ao crédito facilitado pela reforma. 7 PEREIRA, Luís F. L. Paranismo: o Paraná inventado; cultura e imaginário no Paraná da Primeira República. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998, pp. 23-24. 8 SODRÉ, Nelson W. Op. Cit., pp. 76-77. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 359 Em termos econômicos, reparamos um quadro parecido com o visto, anteriormente, quando do fim do tráfico de escravos, cujos capitais foram conduzidos a novos empreendimentos. Agora, porém, o deslocamento dos fluxos de capitais era feito com o aumento artificial do meio circulante, com essa medida as autoridades esperavam baixar as taxas de juros e transformar os investimentos nas empresas mais atrativos do que a especulação no mercado financeiro. Na prática, a teoria mudava substancialmente, pois o retorno financeiro de um investimento industrial leva tempo para se concretizar e era mais fácil lucrar sem trabalhar que desenvolver projetos com viabilidade econômica. O que parecia uma boa intenção acabou virando um pesadelo. A historiadora Sandra Jatahy Pesavento sobre isso esclarece, A ampliação do meio circulante , conjugada a um sistema de crédito amplo e fácil para as iniciativas que surgissem, proporcionou uma febre especulativa no mercado de ações e uma proliferação de novas empresas. Por outro lado, o aumento do papel-moeda em circulação incidiu sobre o valor externo da moeda brasileira, ocasionando uma baixa de câmbio. Paralelamente, para fazer frente às necessidades fiscais do governo, determinou-se a cobrança de uma taxaouro sobre as mercadorias importadas, ao mesmo tempo que se elevavam as taxas de importação.9 Num curto espaço de tempo, a especulação financeira era bem maior que os empreendimentos de fato. O entusiasmo pelo lucro fácil com papéis contaminou a vida econômica da capital da República e passou para a história com o malfadado nome de “Encilhamento”, e a crise por ele gerada marcou a vida econômica dos primeiros anos da República com inflação e carestia, o que ajuda a entender, em parte, a insatisfação dos estratos mais humildes da população com as autoridades constituídas. Em 3 de dezembro de 1889, era nomeada uma comissão de estudos para instalação da Assembléia Constituinte e a redação de um anteprojeto, tarefa que foi concretizada por Rui Barbosa. 9 PESAVENTO, Sandra J. O Brasil contemporâneo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1991, p. 22. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 360 No entanto, as correntes republicanas expostas anteriormente entraram no confronto de qual projeto de sociedade a Constituição deveria privilegiar. Os positivistas defendiam um Executivo forte, posição compartilhada por alguns setores do oficialato e por membros do Governo Provisório, entre eles o próprio presidente Deodoro, que protelou o máximo a convocação da Assembléia Constituinte. Os antagonismos entre os primeiros e os cafeicultores paulistas já não podiam mais ser disfarçados, estes clamavam por democracia e alegavam a ilegalidade da situação jurídica do Governo Provisório. O apaziguamento das vontades e opiniões predominou e, ao final de junho de 1890, as eleições para os constituintes foram convocadas para setembro seguinte e, num pleito conturbado, finalmente, foram indicados os elaboradores da nova Carta Magna da nação, que acabaram acatando quase que na íntegra, o anteprojeto de Rui Barbosa. Promulgada a 24 de fevereiro de 1891, a primeira Constituição republicana estabeleceu os princípios norteadores do país para o período que se estenderia até a Revolução de 1930, a chamada “Primeira República Brasileira”. A historiadora Maria do Carmo Campello de Souza tece considerações importantes sobre tais princípios, Federalismo, presidencialismo e ampliação do regime representativo são as três coordenadas legais da Primeira República, (...) associadas às características de uma estrutura econômica definida pela grande propriedade. (...) A Federação surge em atendimento às necessidades de expansão e dinamização da agricultura cafeeira, desfeitas, já na Abolição, as motivações econômicas que ligavam as várias regiões produtoras.1 0 Extraordinariamente, o primeiro presidente eleito foi escolhido por via indireta, o marechal Deodoro da Fonseca. A Constituição de 1891 estabelecia o presidencialismo como forma de governo e ao chefe do Executivo federal cabia a escolha dos ministros e o mesmo tinha autonomia para execução de projetos nacionais, sem a interferência do Congresso, encerrando a negociação parlamentarista imperial. O presidente tinha ainda a prerrogativa de intervir na administração das 10 SOUZA, Maria do C. C. Op. Cit., pp. 163-164. Sem grifos no original. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 361 unidades da federação (Estados) com o escopo de manter a “ordem” republicana. A fundação de bancos emissores de moeda ficava sob a tutela do presidente. Em reação a essa concentração de poderes, os liberais restringiram o mandato presidencial em quatro anos, sem reeleição. Apesar do ideal federalista, o ponto de equilíbrio, que no Império era exercido pela aristocracia agrária, passou para as oligarquias rurais paulistas e mineiras, que controlavam os maiores contingentes eleitorais e que se revezaram no poder de 1894 a 1930. As eleições para o Congresso (os senadores não eram mais vitalícios) e para presidente passaram a ser diretas. O sufrágio passou a ser livre, não obrigatório e universal (sem contar a renda) mas apenas para homens alfabetizados maiores de 21 anos, o que ainda restringia muito o universo de eleitores. Apesar de algumas tendências centralizadoras, várias conquistas liberais foram alcançadas, como autonomia administrativa dos Estados, que puderam elaborar suas próprias constituições, estabelecer tributos locais, contrair empréstimos no exterior e criar sistemas judiciários, policiais e militares estaduais. Tais medidas beneficiaram os Estados mais desenvolvidos como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, pois a tributação estadual consentia na adoção de políticas regionais independentes da União. Por fim, no tocante “aos direitos e garantias do cidadão” manteve-se o liberalismo, vigente desde a carta do Império. Como os homens de 1824, os de 1891 acreditavam religiosamente nas fórmulas do liberalismo político. Embutia-se o Brasil no molde norte-americano, como, outrora, o tinham enquadrado no constitucionalismo francês. Da extrema centralização para o mais largo federalismo, eis o salto que ele ia dar. Era idêntica, todavia, a inspiração das duas Constituições: o individualismo político e econômico, ascendente no mundo em 1824, e em pleno apogeu em 1891. No começo, como no fim do século, pelo modelo europeu ou pelo modelo norte-americano, o domínio ideológico era ainda o dos filósofos da Enciclopédia, de Rousseau e dos economistas liberais. A diferença essencial entre a constituinte monárquica e a republicana consistia no desaparecimento das fortes rivalidades entre unitáriRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 362 os e federalistas.1 1 Como vimos, a primeira eleição presidencial foi feita no âmbito do Congresso em 1891, quando o marechal Deodoro venceu Prudente de Morais por uma pequena margem de votos, contudo, na eleição para o cargo de vice-presidente a delicada estabilidade entre os candidatos não seguiu a mesma tendência e o vice da chapa de Prudente, o marechal Floriano Vieira Peixoto (1839-1895), venceu com ampla margem o candidato da chapa de Deodoro, o ministro da marinha Eduardo Wandenkolk. Esse escrutínio causou apreensão no Congresso, pois, Cedendo à pressão das tropas e para evitar uma possível intervenção militar, seguida de confronto com sérias conseqüências, os parlamentares sufragaram o nome de Deodoro. (...) No dia da posse, enquanto Deodoro era recebido por “palmas protocolares”, a entrada de Floriano no recinto do Congresso foi saudada com uma “ovação delirante”.1 2 a antipatia entre Deodoro e os “casacas” (civis) era recíproca em razão de seu afastamento dos interesses dos cafeicultores paulistas e o seu mandato constitucional foi marcado por atitudes autoritárias de sua parte, homem acostumado com a disciplina dos quartéis. Em verdade, o pacto circunstancial realizado pelos parlamentares para a primeira eleição presidencial desagradou os setores que se intitulavam “defensores do 15 de novembro”, como as oligarquias regionais, os exliberais, os republicanos históricos e militares não-positivistas. Tais setores passaram a fazer oposição sistemática a Deodoro. Oportunista, Floriano aderiu a esse bloco de descontentes. Já no Rio Grande do Sul, as divergências internas intensificariam-se com a volta de Gaspar Silveira Martins, beneficiado por medida de Deodoro, anulando a expulsão dos exilados políticos. Quando do seu desembarque no Rio de Janeiro, no início de 1892, Silveira Martins passou a fazer severas críticas tanto ao marechal Floriano, como a Júlio de Castilhos, que mesmo afastado da presidência do Rio Grande do Sul continuava sendo o homem forte do Estado. Martins propunha a instala11 12 BELLO, José M. História da República. São Paulo: Nacional, 1983, p. 72. MONTEIRO, Hamilton M. Brasil república. São Paulo: Ática, 1986, p. 39. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 363 ção de uma república parlamentarista aos moldes do Império, idéias que não agradaram nem um pouco a Floriano. Do Rio de Janeiro, Silveira Martins seguiu para o Rio Grande do Sul, dando início à oposição ao Partido Republicano Rio-Grandense de Castilhos, que defendia, ferreamente, a autonomia estadual, leal ao preceito positivista das “pequenas pátrias.” Sobre o retorno de Silveira Martins, Edgard Carone refere, Em 19 de novembro de 1890, Deodoro da Fonseca decreta a anulação do banimento dos monarquistas e, em junho do ano seguinte, Ouro Preto volta ao Brasil; em 5 de janeiro de 1892, Silveira Martins aporta no Rio de Janeiro, onde se encontra com Floriano e diz “estar tudo errado; que precisava desfazer-se o que estava feito para adotar a república parlamentar”. Sua vinda vai incentivar o movimento oposicionista no Rio Grande do Sul e, no futuro, o desencadeamento da revolução federalista, apesar de ser, o próprio Gaspar Silveira Martins, contrário à ação armada. À sua chegada ao Rio é recebido com aclamações e declara que seu programa é a defesa do parlamentarismo.1 3 Desde a demissão coletiva do primeiro ministério do Governo Provisório, em janeiro de 1891, Deodoro chamou o barão de Lucena para o papel equivalente ao de chefe de Estado e lhe ofereceu os ministérios da Justiça e da Agricultura. Após a promulgação da Constituição, Lucena permaneceu como ministro interino das pastas, mas depois, em caráter efetivo, passou a ministro da Fazenda. Sem maioria no Congresso, Deodoro teve sua atuação presidencial estorvada. Diante disso, o presidente sentiu-se acossado e passou a adotar uma série de medidas polêmicas, que envolviam concessões de obras sem concorrência, substituição de presidentes de Estados, taxações alfandegárias, entre outras. O presidente alegava boa fé e tinha crença de estar contribuindo para o desenvolvimento do país. Mas o Congresso não compartilhava essa opinião e intensificou o boicote e a investigação dos atos do presidente. A situação tornou-se insuportável até a consumação do ato desesperado 13 CARONE, Edgard. A república velha: evolução política. São Paulo: Difel, 1971, p. 80. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 364 de 3 de novembro de 1891. Em reunião no palácio, Deodoro reclama do Congresso: chama-o de “ajuntamento anárquico” e proclama a necessidade de seu fechamento “para a felicidade do Brasil”. (...) Acostumado aos expedientes monárquicos de dissolver a Câmara, quando convinha ao Executivo, Deodoro usa-o, inconstitucionalmente. Não se estava mais no Império, e o regime republicano não admitia atos desse tipo, a não ser por meio de um golpe militar ou rebelião popular, fugindo completamente à ordem legal. O que o Presidente não entendia era que a defesa da Constituinte e a legalização do novo regime foram levantadas pelas forças conservadoras, encabeçadas por São Paulo.1 4 A atitude de Deodoro demonstra o quanto ele ainda estava imbuído do jogo político imperial, quando, em situações intrincadas, o Imperador dissolvia o parlamento por meio do Poder Moderador e convocava novas eleições. Mas os tempos eram outros e, ainda que muitos acatassem o fechamento do Congresso e a decretação do “Estado de Sítio”, alguns deputados intensificaram um movimento de resistência que atraiu setores da Marinha, ligados ao almirante José Custódio de Melo (1840-1902), que prometeu “apontar seus canhões” contra o golpe. Deodoro aventou o confronto, mas desistiu, receando que o choque das armas levasse o país a uma guerra civil. Enfermo e aborrecido, Deodoro chamou Floriano para a transmissão do cargo e assinou sua renúncia a 23 de novembro de 1891. A resistência da Armada mostrava o quanto a República dependia dos militares e como o poder civil ainda era frágil frente às vicissitudes do novo regime. Assim como seu antecessor, o marechal Floriano era um veterano “tarimbeiro” da Guerra do Paraguai, e, apesar de ter sido ministro da Guerra do Governo Provisório em 1890, Floriano representava, no meio militar, uma ala mais envolvida com a causa dos republicanos “históricos”. Sobre a cisão no ambiente castrense Boris Fausto esclarece, As forças armadas não atuavam como um grupo homogêneo diante de uma classe social cujos representantes políticos se achavam 14 MONTEIRO, Hamilton M. Op. Cit., pp. 42-43. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 365 unidos. As rivalidades se recortavam entre Exército e Marinha – razão principal da Revolta da Armada – entre quadros jovens e velhos, entre partidários de Deodoro e Floriano. A disputa entre os seguidores dos dois chefes, cujos objetivos não eram, essencialmente diversos, demonstra como a unidade do grupo se quebrava diante de lealdades pessoais. A influência militar foi, sem dúvida, muito grande nos primeiros anos da República, a ponto de apenas metade dos Estados ser governada por civis. Entretanto, mesmo nesta época de apogeu, os militares partilharam o poder com o núcleo agrárioexportador, fizeram-lhe concessões essenciais e, para bem ou mal, acabaram por ceder-lhe as rédeas do governo.1 5 Tão logo assumiu, Floriano revogou o Estado de Sítio, convocou o Congresso Nacional para o mês seguinte e garantiu respeito à Constituição. Não obstante, depôs todos os governadores que apoiaram o Golpe Deodoro (só o Pará escapou), dissolvendo as assembléias locais, e nomeando militares de confiança nas presidências dos Estados. Os presidentes dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Maranhão e Amazonas protestaram e foram refreados pelo Exército. Floriano começava a pôr as mangas de fora... Na implantação da República, o Rio Grande do Sul possuía duas correntes políticas bem definidas: os republicanos castilhistas e os parlamentaristas gasparistas e a oposição não aceitou, passivamente quando Castilhos manteve-se reservado face ao malogrado golpe de Deodoro em fechar o Congresso e organizou a “União Nacional”. Quando Castilhos resolveu se declarar contrário à ação de Deodoro o tempo hábil já tinha passado e o Rio Grande do Sul inteiro mobilizara-se com rebeliões militares em São Borja, Uruguaiana, Alegrete, Bagé, Jaguarão, Rio Grande, São Gabriel e Quaraí, manifestações civis em Porto Alegre e Bagé e, na serra gaúcha, o líder Antônio Prestes Guimarães alardeou ter 2.500 homens para a pugna. Castilhos se viu acuado frente a um comitê que exigia sua renúncia e acabou deixando o cargo para uma junta governativa que ele próprio escarneceu com a conhecida pecha de “governicho” (período compreendido entre 15 FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de história da república (1889-1945). São Paulo: Cadernos CEBRAP, n.º 10, 1973, p. 2. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 366 12 de novembro de 1891 a 17 de junho de18921 6). A tensão política no Rio Grande do Sul estava apenas começando, já que nesse ínterim era fundado, em Bagé, o Partido Federalista Brasileiro, presidido por Silveira Martins e composto por antigos correligionários do Partido Liberal. Unidos no combate a Júlio de Castilhos, os federalistas propunham a revisão da Constituição estadual e o fortalecimento do poder federal por meio do parlamentarismo. Para eles, o positivismo castilhista feria as “sacrossantas” liberdades individuais resguardadas pela doutrina liberal. Ironicamente, Castilhos havia sido articulista e diretor do jornal republicano “A Federação,” fundado em 1884. Na verdade, dentro da teoria clássica, o federalismo, de acordo com o cientista político Lucio Levi, pode ser entendido como, O princípio constitucional no qual se baseia o Estado federal é a pluralidade de centros de poder soberanos coordenados entre eles, de modo tal que ao Governo federal, que tem competência sobre o inteiro território da federação, seja conferida uma quantidade mínima de poderes, indispensável para garantir a unidade política e econômica, e aos Estados federais, que têm competência cada um sobre o próprio território, sejam assinalados os demais poderes.1 7 Destarte, os republicanos de Castilhos encaixar-se-iam melhor na defesa do conceito de federalismo exposto acima que os próprios federalistas de Silveira Martins. Após o fracasso do golpe, Deodoro retirou-se da política, vindo a falecer em agosto de 1892 e Castilhos retornaria à polêmica jornalística e à política de oposição, organizando “Movimento Reivindicador.” Todavia, as dificuldades da política fizeram com que o “Marechal de Ferro” apoiasse Castilhos, diante do mal maior que era Gaspar Silveira Martins. Política tem dessas coisas... O impasse estava criado e as duas facções passaram a se confrontar, nem sempre, apenas no campo das idéias. O “governicho” não conseguia se manter no poder, e após várias vicissitudes os republica16 17 FLORES, Moacyr. Dicionário de história do Brasil. Porto Alegre: Ed. da PUC-RS, 1996, p.244. LEVI, Lucio. “Federalismo.” In: Dicionário de Política. Brasília. Editora da UnB, 1991, p. 481. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 367 nos castilhistas assenhorearam-se novamente do poder em meados de 1892 e a tensão política resultou na perseguição dos federalistas que acabaram, ao final desse ano, refugiando-se no Uruguai a fim de organizarem, militarmente, o “Exército Libertador”, e a partir de fevereiro de 1893 iniciaram as invasões ao Rio Grande do Sul. Entrementes, ao assumir a presidência, Floriano nomeou o fazendeiro paulista Francisco de Paula Rodrigues Alves para a Pasta da Fazenda, que estabeleceu uma política econômica conservadora, com diminuição da emissão de moeda, obtenção de financiamentos externos, alta dos juros, aumento dos gastos do governo, desestimulando uma política pública de financiamentos para empreendimentos industriais. O artigo 42 da Constituição da República previa que, “no caso de vaga, por qualquer causa, da presidência ou vice-presidência, não houvessem ainda decorridos dois anos do período presidencial, proceder-se-ia a nova eleição”. Floriano, a princípio, nem se preocupou com esse dispositivo constitucional, alegando que seu caso era excepcional, pois as “Disposições Transitórias” que fixaram a eleição indireta dele e de Deodoro previam que, “o presidente e o vice-presidente eleitos na forma deste artigo (via indireta) ocupariam seus cargos por quatro anos”, dessa feita, para ele, seu mandato era legal até o final do período, previsto para Deodoro em 1894. Essa artimanha gerou debates exaustivos nos jornais e no Congresso, órgão competente para a solução da pendência, e este manifestou-se pela permanência de Floriano na presidência até 1894. Evidentemente, essa era uma decisão mais política do que jurídica e outra vez os paisanos arrefeciam frente aos acenos de intervenção militar. Como foi visto anteriormente, não existia unidade entre as armas brasileiras e, no início de 1892, Floriano começaria a se deparar com as primeiras sublevações militares contra seu mandato com o motim das tropas das fortalezas de Santa Cruz e Lage na capital federal. Acossado, Floriano ordenou a prisão dos soldados insubordinados. Em abril do mesmo ano, oficiais não deixariam passar incólumes tais atitudes, Fernando Henrique Cardoso sobre isso infere, Em torno a esta questão (do artigo 42) articulou-se o eixo político da Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 368 oposição e o processo culminou quando, mais uma vez, os militares envolveram-se na conspiração. O Manifesto dos treze generais pedindo eleições e apontando a desordem reinante, bem como a recusa de Floriano a acatar o pedido, seguida da reforma dos militares, começou a apontar o caminho escolhido pelo Marechal para romper o impasse: o reforçamento do poder presidencial.1 8 A solução draconiana para o caso dos generais provocou protestos, que Floriano reprimiu com igual diligência: deportou militares, jornalistas e parlamentares oposicionistas para lugarejos remotos da Amazônia. Era o início das jornadas do “Marechal de Ferro”... A Revolta da Armada foi uma das rebeliões militares mais sérias que Floriano enfrentou em seu período presidencial. As ironias do destino fizeram com que o mesmo almirante, que havia garantido sua posse, Custódio de Melo, agora ministro da Marinha, pedisse exoneração do cargo e comandasse um segundo levante da marinhagem. Custódio alegava a mesma justificativa anterior: desrespeito à Constituição, pois, para ele, Floriano havia se tornado um “ditador”, e clamava pela deposição do presidente e por eleição para o primeiro mandatário da República, na qual o próprio Custódio tinha pretensões eleitorais. A 6 de setembro de 1893, Custódio apossou-se da belonave Aquidabã, o que foi seguido pela oficialidade (entre eles Luís Filipe de Saldanha da Gama, 1846-1895, e Eduardo Wandenkolk, 1838-1902) e pela marinhagem de dezesseis outros vasos de guerra e dezoito navios mercantes fundeados na baía da Guanabara. Assim como no contragolpe naval a Deodoro, Custódio acreditava que seus canhões, junto ao apoio dos setores civis, seriam suficientes para forçar a renúncia de Floriano. Ledo engano, pois os paisanos não vieram em apoio aos marujos e Floriano contou com a lealdade do Exército, que respondeu aos bombardeios da Armada da mesma forma. Diante do impasse, os insurretos resolveram, em dezembro do mesmo ano, dividir a esquadra e rumar para o sul atrás do suporte dos federalistas, o que facilitou a 18 CARDOSO, Fernando H. “Dos governos militares a Prudente – Campos Sales.” In: História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, Tomo III, 1º vol., 1985, p. 43. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 369 tarefa de Floriano, na capital, obtendo, rapidamente, o controle das fortalezas e das tropas terrestres da Marinha e passou a arquitetar a compra de navios para o combate marítimo, o que passaria para a história com a denominação jocosa de “Esquadra de Papelão”. A aquisição dessa esquadra tem um forte caráter simbólico, uma vez que Floriano preferiu adquirí-la junto aos Estados Unidos, que era uma república, que junto à Inglaterra, uma monarquia. A República não alterou, imediatamente, a política externa do Império. De fato, logo após o golpe militar de 15 de novembro, os Estados Unidos desfrutaram de invejável popularidade entre os brasileiros, como acentuou Oliveira Lima. Os Governos de Deodoro e Floriano empurraram o Brasil para o eixo de Washington, com a ajuda de Salvador de Mendonça, nomeado Ministro naquela capital. Era uma forma de contestar o passado e de resistir ao predomínio da Inglaterra, implantado desde os tempos coloniais.1 9 Os vasos de guerra estrangeiros ancorados na baía da Guanabara, notadamente da Itália, Portugal, França e Inglaterra, alegando neutralidade, ameaçaram intervir em prol dos seus interesses comerciais nacionais e dos seus concidadãos residentes na capital da República e declararam o Rio de Janeiro uma “cidade aberta”. Impediram tanto o desembarque de munição para os governistas como pressionaram os revoltosos da Armada contra bombardeios. Em um episódio lendário, che si non è vero, è ben trovato, um representante inglês teria indagado Floriano sobre como ele receberia eventuais forças destinadas à defesa dos interesses britânicos no Rio de Janeiro, e o marechal teria simplesmente respondido: “à bala!”.2 0 Essa passagem, verdadeira ou não, deixa transparecer o caráter inflexível e implacável de Floriano. No início de 1894, os revoltosos da Armada tentaram ocupar Niterói, mas foram contidos. Em março, desembarcava no Rio de Janeiro a Esquadra de Papelão, comandada pelo almirante Jerônimo Gonçalves, e os rebelados da capital se rendiam, depois de seis meses de combates. 19 20 BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973, p. 166. QUEIROZ, Suely R. R. Os radicais da república. São Paulo: Brasiliense, 1986, p 149. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 370 Triunfante na capital, o governo transferiu suas forças para o sul do país e, em meados de abril de 1894, o Aquidabã iria a pique no Desterro, mas a Revolta da Armada só findaria, simultaneamente, à Revolução Federalista, em junho de 1895, com a morte do Almirante Saldanha da Gama no Campo Osório, Rio Grande do Sul. REFERÊNCIAS BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. BELLO, José M. História da República. São Paulo: Nacional, 1983. CARONE, Edgard. A república velha: evolução política. São Paulo: Difel, 1971. CARDOSO, Fernando H. “Dos governos militares a Prudente – Campos Sales.” In: História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, Tomo III, 1º vol., 1985. COSTA, Samuel G. “Introdução”. In: CARNEIRO, David & VARGAS, Túlio. História biográfica da república no Paraná. Curitiba: Banestado, 1994. FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de história da república (18891945). São Paulo: Cadernos CEBRAP, n.º 10, 1973. FLORES, Moacyr. Dicionário de história do Brasil. Porto Alegre: Ed. da PUC-RS, 1996. FRANCO, Sérgio C. Júlio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1996. SOUZA, Maria do C. C. “O processo político-partidário na primeira república.” In: MOTA, Carlos G. (org.) Brasil em perspectiva. São Paulo: Difel, 1985. LEVI, Lucio. “Federalismo.” In: Dicionário de Política. Brasília. Editora da UnB, 1991. MONTEIRO, Hamilton M. Brasil república. São Paulo: Ática, 1986. PEREIRA, Luís F. L. Paranismo: o Paraná inventado; cultura e imaginário no Paraná da Primeira República. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998. PESAVENTO, Sandra J. O Brasil contemporâneo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1991. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 371 QUEIROZ, Suely R. R. Os radicais da república. São Paulo: Brasiliense, 1986. SODRÉ, Nelson W. A república; uma revisão histórica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1989. WESTPHALEN, Cecília. & BALHANA, Altiva. “A república no Paraná”. In: Revoluções e conferências. Curitiba: SBPH, 1989. ============================================================== Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 372 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 373 ÉTICA NA MAGISTRATURA 390 VALTER MARTINS DE TOLEDO MAGISTRADO PARANAENSE APOSENTADO. PRESIDENTE DA ACADEMIA PARANAENSE DE LETRAS MAÇÔNICAS. MEMBRO DA ACADEMIA DE CULTURA DE CURITIBA. RESUMO O texto aborda a questão da ética na magistratura. Após uma reflexão sobre o que vem a ser ética, caracterizando-a como a ciência que trata do bem e do mal, das normas morais, dos juízos morais de valor, o autor faz reflexão sobre este conjunto de normas vivenciais. O artigo, enfim, destaca que a ética deve pautar todos os atos do homem, seja como cidadão, seja como magistrado. ABSTRACT The text is about the legal ethics. After a reflexion about what is ethic, its characteristics as a science that deals with the good and the evil, of moral rules, of moral judge of value, the author makes a reflexion about this group of living rules. The article, finally, says that the ethics must be in all human acts, as a citizen or as a lawyer. PALAVRAS CHAVE - Filosofia; Ética; Magistratratura. A função de julgar é a mais alta que pode ser confiada a um Homem depois do ofício dos altares. Assim, a ética deve pautar a vida do magistrado. Primeiramente, devo expressar a minha satisfação em dirigirme, nesta casa de ensino superior, a tão seleta platéia aqui presente. O tema a nosso cuidado – a Ética na Magistratura – é de suma importância nesta quadra da vida nacional em que muitos cidadãos se sentem desesperançados em relação à justiça, olvidando que somente se pode aferir o grau de civilização de uma sociedade pela altitude de sua justiça e pelo respeito que as pessoas votam a seus Juizes. Fui magistrado! Exerci a função jurisdicional em várias comarcas paranaenses e, portanto, tenho consciência de que, além da cultura jurídica, impõe-se que o Juiz seja um Homem verdadeiro, íntegro, que a vida e a profissão formaram no cadinho das suas grandezas e das suas 390 Conferência proferida a convite do Prof. Dr. Flori Antonio Tasca na Disciplina “Deontologia Jurídica” do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 374 dores. Eis o motivo pelo qual a ética deve pautar todos os seus atos, seja como cidadão, seja como magistrado! Filosoficamente, a ética é a ciência que trata do bem e do mal, das normas morais, dos juízos morais de valor e opera uma reflexão sobre este conjunto de normas vivenciais; tem, igualmente, por objeto, a determinação do fim ou objetivo da vida humana, assim como dos meios para atingi-lo. Portanto, é a ciência que estuda e tem como desiderato os modos de existência segundo o que é bom ou mau. Representa a doutrina dos costumes sob a luz de valores permanentes. Simboliza a sabedoria no viver e expressa o procedimento ideal. Como toda ciência, a ética começa como filosofia e termina como arte – arte de viver -; surge como hipótese e remata em realizações – conseqüências do bem e da virtude -. Enfim, é a trincheira da frente no cerco da verdade, trazendo-nos o mais nobre prazer: a alegria de compreender! Esta alegria de compreender – a ética -, envolve, na seqüência, o procedimento ético, que é um conjunto de preceitos a serem obedecidos, para permitir um ideal de realização do Juiz e sua harmônica convivência social, vez que os princípios éticos, em seu exemplo espectro, visam a estabilidade social e a felicidade coletiva; a ética impõe deveres, mas também outorga direitos e, destarte, expressa a maneira sábia de harmonizar o convívio humano e, através da liberdade de escolhas, permite o aperfeiçoamento da inteligência e do caráter. Na Magistratura, a ética está intimamente ligada à vocação e à competência, porque bons juizes são os que dão exemplo de vida – que é o melhor conselho -, mostrando e demonstrando que a verdade na Justiça é o Direito, que a verdade no Direito é o bom senso e que a verdade no bom senso é o exemplo! A vocação, assim como a fé, o amor e o ideal, ao Juiz é oferecida por acréscimo e chega até ele a partir de uma virtude superior, inclinando-o, imperiosamente, para o exercício de uma profissão – a de julgar – que tem sentido divino, teológico, como se o Todo Poderoso, em chamamento, destinasse-o a uma função da qual cobrarlhe-á determinação, persistência e honradez. Também, vinculada à ética do magistrado, está a competência, corolário da vocação, que o inclina na busca da perfeição, também reRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 375 flexo divino; não é sem esforço que se alcança a competência, pois esta exige disciplina no trabalho e uma gradativa ascensão espiritual. São vários os degraus a serem galgados: incondicional dedicação, constante análise crítica dos atos praticados, persistente estudo da matéria profissional para adequá-la aos novos tempos e, por fim, enaltecer a missão enriquecendo-a com algo de novo e melhor. Como éticos cultores do direito, os magistrados devem ser os paladinos da lei e da ordem, jamais olvidando que se exige mais coragem em ser justo, parecendo injusto, do que ser injusto, para salvar as aparências. Prudência, serenidade, honestidade e moderação – princípios essencialmente éticos – são as virtudes que devem balizar a conduta de um magistrado e, acima de tudo, humildade, não uma humildade oriunda de qualquer sentimento de medo ou inferioridade, mas resultante de ausência completa de egoísmo e prepotência. Ao magistrado cabe, por obrigação ética, a hercúlea tarefa de ajudar decisivamente na construção de um mundo melhor ,onde o conceito de justiça seja um apanágio e certeza de liberdade, de paz e de concórdia, nestes novos tempos, em que as distâncias se apagam e as fronteiras se destroem mas, ainda, felizmente, sem matar o sonho da existência de uma sociedade onde as brutais diferenças entre os homens serão simples e amargas lembranças do passado. Tal sociedade é um sonho? Uma ilusão? Uma utopia? É possível, mas se o magistrado não for capaz de sonhar com uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais feliz, não será digno da missão que lhe foi confiada e da confiança que os cidadãos e a Pátria depositam nele – o Juiz. A ética lhe diz que um objetivo na vida é a única fortuna valiosa que se encontra e, ressalte-se, não se deve procurá-la fora, mas primeiro dentro do coração. Que a simpatia é a colheita da semente da gentileza; que nunca deve se apegar a ideologias defuntas, utopias esquecidas ou conceitos fossilizados,, que poluem o espaço mental de alguns julgadores. Deve lembrar-se, sempre, que da dignidade ética do Juiz depende a própria dignidade do Direito e, assim, o Direito valerá o que valham os Juizes como homens, no seu espírito de sacrifício, no seu amor ao trabalho, na sua autoridade, na sua dedicação à Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 376 causa da justiça e, principalmente, na confiança de sua escolha da profissão de julgar, pois uma mão que treme não pode manejar uma pena na defesa da verdade, fugindo do medo, esquivando humilhações e desconhecendo a covardia; deve Ter consciência plena de que a magistratura tem algo de heróico em si mesma, na pureza imaculada e na plácida rigidez, que a nada se dobre e a nada se tema, senão à justiça divina. A missão é um sacerdócio, difícil mas gratificante. Difícil, pelas longas horas de estudo e pesquisas, no penoso processo de identificação da solução mais correta e mais justa, na vida, necessariamente, mais austera, levando, às vezes, ao isolamento e quase à solidão. Gratificante, pela compensação da consciência da grandeza da tarefa e pelo alcance social do trabalho de dirimir conflitos de interesses, dando a cada um o que é seu, segundo a antiga, mas sempre justa formula assentada há séculos pelos tribunos romanos. O conceito ético-vivencial do magistrado pede, constantemente, a lição dos seus silenciosos heroísmos, dos sofrimentos tantas vezes escondidos até mesmo dos entes mais queridos, a lição das suas noites de vigília, no isolamento dos gabinetes de trabalho; lições essas em que encontra a inspiração e o alento de que precisa para bem desempenhar o mandato da justiça – equilíbrio entre a moral e o direito. Imbuído de tal princípio ético, o magistrado crê na liberdade onipotente, criadora das nações robustas; crê na lei que emana dessa robustez; crê na soberania do direito e não do Poder, direito esse interpretado pelos Tribunais; crê na soberania popular, mas com limites impostos pela inspiração jurídica constitucional para frear as paixões desordenadas; crê na República e na Federação desde que acatem e elevem a Justiça; porque da justiça nasce a confiança, da confiança, a tranqüilidade, da tranqüilidade, o trabalho, do trabalho, a produção, da produção, o crédito, do crédito, a opulência e da opulência, a respeitabilidade, a duração e vigor da nação. Crê na tribuna sem fúrias e na imprensa sem restrições, porque crê no poder da razão e da verdade; crê na moderação e na tolerância, no progresso e na tradição, no respeito e na disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor insuprível das capacidades. Rejeita as doutrinas do arbítrio; abomina Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 377 as ditaduras de todo gênero, militares ou científicas, coroadas ou populares ; detesta os estados de sítio, as suspensões das garantias, as razões de Estado, as pretensas leis de salvação pública! A ética oferta ao magistrado a noção de valores. De uma escala de valores morais que lastreiam a sociedade. Sabe que dos autos – do processo - extravasa a vida! Conflito da mais variada natureza. Interesses nobres e mesquinhos. Paixões e ambições. Clamores de amor e ódio. Amarguras, angústias, altruísmo, prepotência, grandeza ou pequenez de espírito. Honra, liberdade, patrimônio, sentimentos e valores díspares. Penetra no amálgama da vida, em que os homens se amesquinham ou se engrandecem, tudo isso emergindo das folhas do processo, refletindo a vida, nos contornos dos conflitos humanos com suas múltiplas variações, em forma e substância, da realidade social em constante transformação. Sabe – deve saber – o magistrado, que como intérprete da lei, cumpre-lhe, eticamente, aplicá-la com inteligência e bom senso, de modo que, sobre a letra que mata, prevaleça o espírito que vivifica, segundo a sábia advertência evangélica. Não sendo ele, porém, quem faz as leis , nem estando elas sob julgamento, e sendo-lhe interditado decidir contra essas mesmas leis – contra legem -, pois a interpretação tem limites, vê-se o magistrado, não raras vezes, na contingência de aplicar um preceito que, no seu modo de pensar e sentir, não atende melhor à idéia de justiça. Estes conflitos, não chegam a ser de consciência ética, mas lhe causam ignorados sofrimentos que passam quase sempre desapercebidos dos que se arvoram de juizes dos que julgam, atribuindo ao Juiz erros que não cometeu, intenções que não teve, sentimentos que não abriga em seu coração. Mal sabem as partes envolvidas nos litígios, nas ações, nos processos, que o magistrado, por um singular e complexo processo de transferência, absorve a angústia das partes, sente e compreende as suas aspirações e suas preocupações e sofre com elas em forçado silêncio, nem sempre podendo encontrar no ordenamento jurídico a solução para os seus problemas, até mesmo porque, a solução estaria menos na lei do que na tolerância, na compreensão, no desprendimento, no altruísmo, no espírito fraterno, no amor, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 378 enfim, em qualidades de que são tão carentes as relações entre as criaturas humanas – qualidades éticas, porque oriundas da noção do bem e do mal. Por estas razões, o magistrado realiza um trabalho, freqüentemente, solitário e incompreendido. É preciso possuir e cultivar excepcionais atributos éticos, tais sejam a energia sem aspereza, o rigor que não exclui a sensibilidade, a altivez sem arrogância, a bondade não confundida com fraqueza, a paciência que não é passividade, a tolerância sem transigências que comprometam o estrito cumprimento do dever, a modéstia e a humildade que não excluem a enérgica defesa das prerrogativas e da dignidade do seu cargo e da nobreza de sua função de julgar. É, enfim, a busca permanente da verdade e da justiça, no caminho fascinante do Direito, que contém a vida, pois nenhum fato ou interesse humano é irrelevante para esta ciência que é de todas a mais abrangente, a mais bela, e, ao mesmo tempo, a mais complexa. Finalizando. Agradecendo a honrosa atenção com que fui distinguido nesta Academia, ofereço a todos as flores da minha gratidão e, não falseando a modéstia, encerro este gratificante encontro com os nobres presentes, afirmando: a Ética é o sustentáculo da Justiça e, a Justiça é o alicerce da Pátria. No momento em que os princípios éticos inundarem as almas, o Tribunal será o abrigo do inocente, o Juiz, o pai do oprimido e, a Justiça, o nervo da República. Como advogado e ex-magistrado faço esta afirmação com a santidade e a eficácia de uma prece e, nesta, peço que a felicidade acompanhe a todos, hoje e sempre! Meus caros e futuros bacharéis: Se eu fosse uma árvore frondosa de imensa copa, daquelas que habitam o cerrado do nosso planalto central, com sombra amiga e aroma agradável das flores, transformar-vos-ia em soldados espartanos – aqueles que faziam do peito muralha da Pátria – mesmo que empunhando tacape, arco e flecha, pudessem iniciar a grande e imperecível batalha pela prática da ética em nossa comunidade, como não tenho esse poder, fica a sugestão! Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 379 FAMÍLIA: CONCEITO EM TRANSFORMAÇÃO JULIANE GRIGOLETO MAYER PROFESSORA DA UNIGUAÇU. MESTRANDA EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICÁVEIS NA UEPG. ADVOGADA NO PARANÁ. RESUMO O artigo trata das novas modalidades de família existentes e suas conseqüências no mundo jurídico, defendendo a existência da família homossexual, à luz da Constituição Federal e das leis ordinárias. A autora desenvolve no texto diversas idéias, como a união baseada no afeto dos homossexuais e a possibilidade de adoção. O trabalho, enfim, desenvolve reflexão crítica acerca da necessidade de adequação do Direito frente às transformações no conceito de família. ABSTRACT The article is about the new modals of families and its consequences to the juridic world, defending the existence of homossexual families, to the vision of Federal Constitution and the ordinary acts. The author develops in the text seceral ideas, as the union based in the homosexual love and the possibility of adoption. The work, finally, develops a critical reflexion about the necessity of changing the Law because of the transformation in the concept of family. PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; Direito Civil; direito de família; família homossexual. INTRODUÇÃO A família é considerada a instituição primeira, da qual proveio a forma de governar e o Estado. Com o tempo, a família sofreu algumas transformações. Essas modificações alteraram o conceito de família e ocasionaram a formação de uma nova concepção como a família homossexual, que será o tema central desta abordagem. Da família em transformação pode-se salientar que, atualmente, convivem na sociedade brasileira os modelos de família: patriarcal, que tem o pai como centro e a ele cabe todo o poder; monoparental com um dos genitores e o filho ou os filhos; nuclear constituída pelos pais e sua prole; eudemonista ou afetiva, que centra suas relações no afeto entre os membros e a original, no sentido de não se adequar aos conRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 380 ceitos clássicos, “família homossexual”. Essas famílias podem surgir do matrimônio e/ou da união estável. Para que se compreenda melhor a abordagem do tema, utilizar-se-ão os estudos realizados sobre a homossexualidade que mostram algumas facetas desta expressão da sexualidade. Na seqüência, será necessário discorrer sobre a união afetiva entre homossexuais, que acontecem desde a Antigüidade grega. E que o fato de haver certa intolerância por uma parcela da sociedade contemporânea, não significa que os homossexuais devam ter seus direitos negados. Pelo contrário, com base na Constituição Federal e no princípio da dignidade da pessoa humana, surge o pensamento de doutrinadores, que como a Desembargadora Maria Berenice Dias, consideram a união afetiva homossexual como entidade familiar, facultando a possibilidade de adoção de crianças por pares homossexuais. Ao tratar a adoção por homossexuais, mister se faz relatar como este instituto nasceu no ordenamento jurídico e como é regulado atualmente. A seguir, indicar-se-á como se dá a adoção por homossexuais no Brasil e em alguns países da Europa, com o intuito de expor como se nega à pessoa homossexual o direito a ser diferente, ou seja, assumir a homossexualidade e ser respeitado, sem exclusão. Abordar-se-á o direito à diferença como possibilidade admitida, na quarta geração de direitos, para que os homossexuais vivam a sua sexualidade e sejam tratados com dignidade. A FAMÍLIA EM TRANSFORMAÇÃO Por mais simples que possa parecer conceituar família, o parâmetro utilizado é o de que é a base da sociedade ou que é composta por pai, mãe e filhos. Mas o que se sabe é que família não é um conceito unívoco ou estanque. Para o direito, o berço da legislação provém de Roma e, portanto, em matéria de civilização, o princípio da narrativa histórica se dá por ela. Desta concepção de família extrai-se que havia uma forte ligação com o patrimônio. Segundo Wald (2002, p. 30), a palavra família, no direito romano “não apenas significava o grupo de pessoas ligadas Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 381 pelo sangue, ou por estarem sujeitas a uma mesma autoridade, como também se confundia com o patrimônio nas expressões actio familae erciscundae, agnatus proximus familiam habeto e outras.” Conforme narra Coulanges (2001, p. 45) o pressuposto de união na família romana era a religião e os antepassados. Para Ariès e Duby (1989, p.46-59), com o casamento, a mulher deveria aderir ao culto do deus do marido em substituição ao culto ao deus doméstico do pai, por isso havia uma discriminação em relação às filhas mulheres. A família patriarcal descende da família romana que tinha um caráter jurídico, econômico e religioso cuja autoridade suprema era exercida pelo pater familias. Essa família patriarcal foi acolhida pelo Código Civil de 1916 que atende a todos os princípios do individualismo: Como dissemos, o CC apresentou-se como um diploma do seu tempo. I.e., um ordenamento para a época, razoavelmente, atualizado, informado que foi pelas luzes dos nossos melhores doutrinadores, cujo talento em nada desmerecia o padrão científico universal. Sucede, porém, que o seu tempo foi exatamente um tempo de transição do direito individualista para o direito de cunho social, conforme os padrões da célebre Constituição de Weimar, de 1919. FRANÇA (1977, p.393) Com base neste ordenamento, o papel a ser desempenhado pelo pai e marido é o de prover o sustento da mulher e dos filhos, competindo-lhe a administração dos bens. A mulher é considerada, relativamente, incapaz de exercer, por si própria, os atos da vida civil, permanecendo sob a “tutela” do marido e cabeça do casal, a quem cabe tomar as decisões pelo grupo. A situação de incapacidade relativa da mulher foi modificada em 1962, com o advento do Estatuto da Mulher Casada e, depois da Constituição de 1988 e do advento do Novo Código Civil homem e mulher são iguais em direitos e obrigações. O Código Civil de 1916, seguindo os mandamentos da Igreja, prezava pela indissolubilidade do vínculo matrimonial, o qual uma vez contraído só se desfazia pela morte de um dos cônjuges. O modelo de família patriarcal matrimonializado obedece uma Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 382 hierarquia de papéis a serem desempenhados, cabendo ao senhor e pai atividades públicas e à mulher e aos filhos atividades domésticas. Cabe ressaltar que o matrimônio serve à legitimação das relações sexuais, ou, nos dizeres de Foucault (1997, p.40) “a conjugalidade é para a atividade sexual a condição de seu exercício legítimo.” Bem como para a moral judaico-cristã, que se coaduna com o capitalismo, as relações sexuais só podem gerar filhos, não proporcionar o prazer: “poderíamos ficar inclinados a reconhecer aqui a antecipação da idéia cristã de que o prazer sexual é nele mesmo uma mancha, que apenas a forma legítima do casamento, com a proibição eventual, poderia tornar aceitável.” (FOUCAULT, 1997, p. 41). Entretanto, a família patriarcal constituída, a partir “do conúbio entre o homem e a mulher e que vai merecer a mais deliberada proteção do Estado que nela vê a célula básica de sua organização social” (RODRIGUES, 1991, p.6). Começara um processo de transformação. A partir de meados do século XIX citam-se como fatores que contribuíram para esta mudança: a urbanização acelerada decorrente dos processos de industrialização e do êxodo rural; as revoluções tecnológicas, as profundas modificações econômicas que possibilitaram às mulheres o ingresso no mundo do trabalho fora de casa; as transformações comportamentais; o uso de anticoncepcionais; os movimentos de emancipação; a menor interferência da Igreja no Estado; a possibilidade de divórcio, entre outros. Para os doutrinadores do meio jurídico, a família estruturada seria composta por pai, mãe e descendentes e ligados pelo parentesco. Para Lira (1999, p. 81) a família é uma “instituição jurídica e social resultante das justas núpcias, contraídas por duas pessoas de sexo diferente”. Já para Orlando Gomes (1995, p. 30), família “em acepção ‘lata’, compreende todas as pessoas descendentes de um ancestral Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 383 comum, unidas pelo laço do parentesco, as quais se ajuntam os afins” e, em sentido estrito “limita-se aos cônjuges e descendentes”. Interessa essa acepção para fins sucessórios e de pensão alimentícia. Comunga deste entendimento Espínola (2001, p. 10) “a palavra família compreende as pessoas unidas pelo casamento, as provenientes dessa união, as que descendem de um tronco ancestral comum e as vinculadas por adoção.” O conceito de Espínola foi atualizado para permitir a inserção da família não matrimonializada, decorrente da união estável. Porém, como já entendia Morgan “a família é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado.” (apud ENGELS, 1981, p. 4) É por isso que, atualmente, convivem, harmoniosamente, numa mesma sociedade os modelos de família patriarcal, a família nuclear, que surgiu a partir da década de 60, conforme Leite (1997, p.16) centrada sobre ela própria e sobre a criança, a qual substituiu a família numerosa por uma célula mais restrita. A família monoparental, que é aquela formada pelos filhos e um dos genitores ou com outra pessoa. Cujos fatores determinantes de sua formação podem ser : o celibato; a separação; o divórcio; a união livre; a viuvez; motivos de ordem sócio-econômica como a inserção da mulher no mercado de trabalho, a contracepção, a longevidade, a divisão ou não de papéis de gênero. E é dessa forma que a família ganha uma nova acepção. A família não é somente formada por ascendentes, descendentes, não se origina, exclusivamente, pelo matrimônio, poder-se-ia dizer que a família atual busca a realização plena dos seus membros, envolvendo mais a afetividade que a propriedade. Nasce assim o conceito de família eudemonista ou família afetiva, que transforma o conceito da família: A família transforma-se no sentido de que se acentuam as relações de sentimentos entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra as pressões econômicas e sociais. É o fenômeno social da família conjugal, ou nuclear ou de procriação, onde o que mais conta, portanRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 384 to, é a intensidade das relações pessoais de seus membros. Diz-se, por isso, que é ‘a comunidade de afecto (sic) e entre-ajuda.’ (OLIVEIRA e MUNIZ, 1990, p. 11) E sobre a ideologia do afeto para a formação de uma família: O afeto é que conjuga. Apesar da ideologia da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai e mãe. Há famílias só de homens ou só de mulheres, como também sem pai ou mãe. Ideologicamente, a atual Constituição brasileira, mesmo superando o patriarcalismo, ainda exige o parentalismo: o biparentalismo ou o monoparentalismo. Porém, no mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal – tão forte e tão estreito, tão nítido e persistente que homem independe do sexo e até das relações sexuais, ainda que na origem histórica tenha sido assim. (BARROS, 2002, p. 9) Barreto (2001, p. 137) ao comentar a obra de Rosana Amara Girardi Fachin, em busca da família do novo milênio: uma reflexão crítica sobre as origens e perspectivas do direito de família brasileiro contemporâneo, afirma que a família procriacional-patriarcal cede lugar para a família, baseada na “comunhão de interesses e de vida, alicerçada, mais do que no contrato, nos laços de afeto e solidariedade entre os indivíduos.” A família, agora é dotada de um dinamismo que dispensa o Estado e a Igreja para se constituir e para sobreviver, é uma instituição da história humana e, por isso sua existência não é linear. Como vimos, a família é o “ ‘locus’ de amor, sonho, afeto, companheirismo.” (VILLELA, 1999, p.16 e 18) E, diante dessas múltiplas possibilidades e assumindo o contorno que se refere a relações de afeto é que se pode incluir no amplo conceito de família, a família homossexual: A liberação sexual, sem dúvida, em muito contribuiu para a formação desse novo perfil de família. Não há mais necessidade do casamento para uma vida sexual plena. Algumas pessoas se encontram, se gostam, se curtem por algum tempo, mas cada qual vive em sua própria casa, em seu próprio espaço. O objetivo dessa união não é Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 385 mais a geração de filhos, mas o amor, o afeto, o prazer sexual. Ora, se a base da constituição da família deixou de ser a procriação, a geração de filhos, para se concentrar na troca de afeto, de amor, é natural que mudanças ocorressem na composição dessas famílias. Se, biologicamente, é impossível duas pessoas do mesmo sexo gerarem filhos, agora, como o novo paradigma para a formação da família – o amor, em vez da prole – os ‘casais’ não necessariamente, precisam ser formados por pessoas de sexo diferentes. MASCHIO (2002, p. 1) Para Prado (1985, p. 8) a família homossexual é um exemplo de família original, sendo a acepção da palavra original utilizada pelo autor como aquela que não se adequa aos conceitos clássicos de família. Esta família homossexual surge “quando duas pessoas de mesmo sexo vivem juntas, com crianças adotivas ou resultantes de uniões anteriores.” (PRADO, 1985, p. 22). A UNIÃO AFETIVA ENTRE HOMOSSEXUAIS A HOMOSSEXUALIDADE Antes de se abordar o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo é preciso entender a homossexualidade. A palavra homossexual, de acordo com Mott (2003, p. 1), tem sua origem etimológica grega e significa sexo (sexu) semelhante (hómos), que com a junção indica a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo, quer seja homem com homem ou mulher com mulher. O termo homossexual foi criado em 1869, pelo jornalista húngaro Benkert. Existem as derivações, sendo uma delas a palavra homossexualidade, que foi utilizada pela primeira vez na década de 1890 pelo tradutor de Psycopathia Sexuallis, Charles Gilbert Chaddock. Até o ano de 1974 a homossexualidade era considerada, pela medicina, como doença. Foi em 1994, conforme dados de Duarte (1995, p. 66) e Braga (2002, p. 3), que a Sociedade Americana de Psiquiatria decidiu retirar a homossexualidade do elenco de distúrbios mentais. Acerca da origem da homossexualidade existem estudos que procuram explicá-la, porém, nenhum pesquisador conseguiu definitivamente precisá-la. Assim, atribui-se à homossexualidade fatores biológicos, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 386 genéticos, hormonais, sociais e psicológicos que podem agir em conjunto e gerar uma pessoa com orientação sexual para o mesmo sexo. Portanto, pelos estudos realizados, não é possível dizer que a homossexualidade é uma opção sexual, porque o homossexual, assim como o heterossexual não escolhe ser uma coisa ou outra, isto de acordo com Fry e Macrae (1984), Martins (2002) e Tesón (1989). Assim, tem-se preferido dizer que a homossexualidade é uma manifestação da sexualidade como tantas outras, as quais serão suscintamente distingüidas: a) heterossexualidade: praticada por 60% população é a orientação sexual para pessoas de sexos diferentes, segundo Mott (2002, p. 2). b) Bissexualidade: praticada por 30%, estatística de Mott (2002, p. 2), é caracterizada “pela alternância na prática sexual, que ora se realiza com parceiros do mesmo sexo, ora com parceiros do sexo oposto.” (PERES, 2001, p. 119) c) Homossexualidade: praticada por 10% da população, dados de Mott (2002, p. 2), cuja orientação sexual ocorrer para pessoas do mesmo sexo. Entre os homossexuais masculinos existe três grandes grupos: Os gays, popularmente chamados de bichas ou entendidos, incluem os ‘enrustidos’ (infelizmente a maioria!), as ‘bichas fechativas’ e os ‘assumidos’. Entre os assumidos, os ‘gays ativistas’ ou ‘militantes’: são aqueles que se organizam em grupos para defender seus direitos de cidadania. Transgêneros incluem todas as pessoas que assumem socialmente o papel de gênero oposto ao sexo biológico de seu nascimento: o mais comum é o homem assumir-se mulher, e em número menor, mulheres que passam a viver como homens. Os transgêneros se vestem de mulher, algumas fazem aplicação de silicone ou tomam hormônio para feminilizar seu corpo, adotam nomes e maneiras de mulher. As travestis representam o maior contingente deste grupo, por volta de 20 mil indivíduos, grande parte vivendo como profissionais do sexo, outras fazem shows ou dedicam-se a profissões ligadas ao mundo feminino. Apesar de ultrafemininas, não rejeitam o próprio pênis, desempenhando eventualmente papel ativo no ato sexual. As transexuais se consideram comRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 387 pletamente do sexo oposto ao que nasceram, chegando algumas a realizar operação de transgenitalização ou adequação genital, autorizadas no Brasil desde 1997. O terceiro tipo de praticantes do homoerotismo são conhecidos popularmente como bofes: tratamse de rapazes ou homens que gostam de transar com gays e transgêneros, mas que não assumem a identidade homossexual. Muitos bofes são bissexuais. Os rapazes de programa e michês transam com homossexuais, alguns, esporadicamente, outros regularmente, sem assumir a própria homossexualidade. Entre as lésbicas há as que são chamadas por elas próprias de sandalinhas, ladys, sapatas, entendidas e sapatões. Há muita lésbica que se autointitula gay ou homossexual, outras não. (MOTT, 2002, p. 11-12) d) Intersexualidade: “caracterizada pelo desequilíbrio entre os diversos fatores responsáveis pela determinação do sexo, o que leva a uma ambigüidade biológica. (...) Em razão dessa disfunção sexual, haverá uma discordância entre o sexo genético, gonadal e fenotípico desses indivíduos.” (PERES, 2001, p. 108 e 110) Feitas essas distinções, esclarece-se que o presente trabalho se refere às relações homoafetivas de gays e lésbicas. OS RELACIONAMENTOS HOMOSSEXUAIS Os relacionamentos homossexuais sempre existiram: “Antes mesmo de ter sido escrita a primeira linha da Bíblia, já existiam documentos, no antigo Egito, há mais de cinco mil anos antes de Cristo, que descrevem relações sexuais entre dois deuses e dois homens.” (MOTT, 2002, p. 7): Na Grécia, a homossexualidade masculina era permitida e até considerada nobre e bela. Segundo Foucault (1990, p. 167), os gregos não faziam distinção quanto à busca do prazer ser com pessoa do mesmo sexo ou de sexo oposto. A preocupação maior era com o controle de si sobre os prazeres. Mesmo que um homem grego mantivesse relações homossexuais, se ele fosse ativo não era considerado afeminado. Na análise de Foucault (1990, p. 79) cabia ao homem viver a Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 388 esfera pública, as relações com os rapazes tinham o escopo de garantir a estes uma posição melhor, por meio da aprendizagem com o homem mais velho e de uma amizade que perduraria quando o jovem ingressasse na vida pública, como chefe de sua própria família. De acordo com Mott (1988, p. 24-28), muitas tribos africanas como as de Benin, Congo, Angola, Nupe, permitiam a homossexualidade, tanto a masculina quanto à feminina, embora esta última fosse mais bem vista que a outra. Entretanto, com o advento do cristianismo a prática sodomita, como era denominada, foi considerada crime pelo Tribunal do Santo Ofício e severamente punida : A homossexualidade, por ser considerada de todos os pecados, ‘o mais torpe, sujo e desonesto’, chamada na época de sodomia, pela justiça civil como pela religiosa, daí ser a conduta erótica mais documentada não só para a população branca, como para a escravaria. O ‘abominável pecado nefando’ incluía tanto a homossexualidade masculina e feminina, como a cópula anal heterossexual, embora a partir de 1646 os Inquisidores tenham restringindo a condição de crime somente à ‘sodomia perfeita’, isto é á cópula anal entre varões, descrita nos manuais e regimentos inquisitoriais como ‘penetratio cum seminis effusione’ (MOTT, 1988, p.40) A prática sodomita reprimida entre os cativos porque a punição para este “mau pecado” era a fogueira e seqüestro, por isso havia o prejuízo do senhor que poderia perder seu investimento. (MOTT, 1988, p.42) A aversão às práticas homossexuais ocorre porque estas ameaçam instituições arraigadas em nossa cultura como: matrimônio indissolúvel, prazer sexual (não permitido), sexo somente para fins procriativos (Levítico e Concílio de Trento), “barreiras de idade, raça e condição sócio – econômica nas interações erótico – sentimentais .” (MOTT, 1988, p.126) Não só no período da Inquisição houve a repressão à homossexualidade. Atualmente, há outras formas de punição como a discriminação, perda de emprego, deserdação, tentativa de suicídio, assassinatos perpetrados por gangues de homofóbicos. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 389 Ainda que não haja tolerância por alguns membros da sociedade, não se pode negar que os relacionamentos homossexuais existem, fazer parte do cotidiano e, portanto, merecem proteção como as demais espécies de relacionamentos: Existem poucas estimativas confiáveis sobre lares e famílias de pessoas do mesmo sexo. Uma dessas poucas é a de Gonsioreck e Weinrich, segundo a qual cerca de 10% da população masculina dos Estados Unidos é gay, e entre 6 e 7% da população feminina é formada por lésbicas. Segundo sua estimativa, cerca de 20% da população masculina gay já foi casada e entre 20 e 50% tiveram filhos. Muitas vezes lésbicas são mães, quase sempre em conseqüência de casamentos heterossexuais anteriores. Uma avaliação bastante abrangente indica que o número de crianças que vivem com mães lésbicas varia entre 1,5 e 3,3 milhões. O número de crianças que vivem com pai gay ou mãe lésbica situa-se entre 4 e 6 milhões. (CASTELLS, 1999, p. 262) Alguns cientistas acreditavam que não havia relacionamento homossexual estável e duradouro e, por estes serem adeptos da pluralidade de parceiros, com o advento da AIDS chegou esta a ser denominada de câncer gay e atribuída, por fanáticos religiosos, como uma punição a este comportamento. Entretanto, Bon e D’Arc (1979, p. 235 e 237) em seu Relatório sobre a Homossexualidade Masculina chegaram ao percentual de 61% dos entrevistados que desejam um parceiro para a vida e 56% que lastimam a inexistência do casamento homófilo. Países considerados desenvolvidos já admitem a união homossexual. A França, por exemplo, em 1999 legalizou a união entre pessoas do mesmo sexo denominando-a de pacto civil de solidariedade. A Holanda também prevê casamento entre homossexuais e o direito à adoção de crianças desde 2000. Ainda na Europa, a partir de fevereiro de 2003 foi admitido aos casais homossexuais suecos a adoção de crianças. Na Dinamarca a união civil entre homossexuais foi legalizada em 1989. Na Noruega, em 1992. E, é possível que outros países europeus aprovem leis semelhantes, “principalmente pela necessidade de igualdade de direitos dentro Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 390 da União Européia, e pelo processo de globalização da economia.” (FARIAS, 2002, p.11). Nos Estados Unidos, dezenas de cidades, entre elas Nova Iorque (1993) e São Francisco (1991) reconhecem direitos patrimoniais, seguro saúde e outros a casais homossexuais. Na América Latina, a Argentina foi pioneira, aprovando no dia 13 de dezembro de 2002, em Buenos Aires, uma lei que autoriza a união civil entre homossexuais: A lei foi redigida por uma juíza especializada em direito de família foi discutida durante um ano e meio por várias comissões legislativas, e foi aprovada por 29 votos a favor e 10 contra depois de uma sessão que durou mais de cinco horas e na qual ativistas gay e militantes católicos estiveram a ponto de sair no tapa. A lei reconhece os casais que estiverem juntos, em relação ‘estável e pública’, há pelo menos dois anos, na cidade de Buenos Aires. O governo da capital argentina tem 120 dias para regulamentar a lei, que deve entrar em vigor em abril de 2003. (htttp://www.uol.com.br Acesso em: 14 de dez. de 2002) Já no Brasil, está em trâmite o Projeto de Lei 1.151/95, da ex-deputada e atual prefeita de São Paula, Marta Suplicy que busca legalizar a união civil entre pessoas do mesmo sexo: comenta: A finalidade da futura norma é regular situações cotidianas para as quais os institutos vigentes (dependência previdenciária, direito de propriedade, herança de bens, etc.) são insuficientes para atender às circunstâncias das uniões homossexuais e não para gerar ‘fatos novos’ que desnaturam a essência do conceito de família estabelecido na Constituição Federal e nas Leis Civis vigentes, sem prejuízo de novas agendas de reivindicações como antes já apontado. (FIGUEIRÊDO, 2002, p. 96) Desta forma o que se percebe é que a lei não admite a alusão de união homossexual como família e transforma a lei numa proteção legal ao patrimônio, o que lembra o modelo romano-patriarcal de família sempre preocupado com os bens materiais em detrimento das relações de afeto e que foi transferido para o ordenamento civil de 1916, em que o ter se sobrepõe ao ser. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 391 Brito (2000, p. 35) quando se refere à união homossexual não admite a comparação ao instituto do casamento: “A caracterização da união homossexual, como forma de casamento, é erro resultante de uma visão, excessivamente, contratualísta do matrimônio, e que despreza, também, elementos essenciais da noção de família.” Seguindo a mesma linha de raciocínio Czajkowski comentado por Giorgis (2002, p. 3) assim se pronuncia: “a união de duas pessoas do mesmo sexo não forma família porque, primeiramente, é da essência do casamento, modo tradicional e jurídico de constituir família, a dualidade de sexos e, depois, porque as uniões estáveis previstas na Lei Fundamental como entidades familiares são, necessariamente, formadas por um casal heterossexual (CF, art. 226, § 3º).” Esse entendimento é fundamentado por Pereira (1996, p. 93) que diz que casamento entre duas pessoas do mesmo sexo é inexistente e Rodrigues (1998, p. 27) por não ser adepto da teoria da inexistência de casamento, assegura que casamento homossexual é nulo. Para discordar desses doutrinadores, traz-se os seguintes excertos: Giorgis (2002, p. 3) “o amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça, sendo preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a uma realidade que bate à porta da hodiernidade, e mesmo que a situação não se enquadre nos moldes da relação estável padronizada, não se abdica de atribuir à união homossexual os efeitos e natureza dela.” E mais adiante o autor tenta equiparar as uniões homossexuais à união estável: “as uniões homoeróticas devem ter os mesmos direitos que outros casais, ao demonstrar o compromisso público um para o outro, em desfrutar uma vida de família, a qual pode ou não incluir crianças, o que exige isonomia legal.” Dias (2002, p. 50) elogia o Projeto de Lei nº 6.960, de autoria do Deputado Federal Ricardo Fiúza que sugere modificações ao Novo Código Civil para legalizar as relações homoafetivas: “Já estava mais do que na hora de emprestar visibilidade a estas relações, que prefiro chamar de homoafetivas” e mais “a negativa de identificar esses relacionamentos como entidade familiar faz, no caso de morte de um dos Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 392 parceiros, migrar o patrimônio, amealhado na vida em comum, para as mãos de quem, muitas vezes, repudiou a orientação sexual de seu parente.” Demonstrou-se com a doutrina, aqui colacionada, que existe uma divergência no entendimento de que se possa considerar a união homossexual como entidade familiar. Os autores que são contrários à idéia defendem que há uma impossibilidade jurídica porque já estaria sedimentado que merece proteção do Estado, interessa ao Poder Público somente as relações que podem gerar filhos. Mas, por outro lado, para alguns autores, existe a possibilidade de se considerar família aquela formada por apenas um dos genitores e o filho. Bem como, a Constituição Federal eleva à categoria de entidade familiar a união estável diz que não pode haver discriminação entre filhos legítimos, nascidos das justas núpcias e os ilegítimos, advindo do que se chamavam relações espúrias, hoje denominadas de não matrimonializadas. Outros doutrinadores sedimentam o conceito de família com base no afeto, aludindo que este é que conjuga. Para alguns, somente há conjugalidade a partir do casal heterossexual, que pode ser considerado família, a situação melhora quando este casal resolve adotar uma criança. Contudo, a realidade que se apresenta é a de pessoas do mesmo sexo vivendo juntas, de forma estável, com o desejo de adotar crianças em conjunto, mas que por questão de preconceito são excluídas do conceito de família. Por que se afirma que somente homem e mulher formam entidade familiar? Onde incluir as relações de afeto, o direito à dignidade da pessoa humana? A liberdade de expressão da sexualidade e o direito à diferença? DO DIREITO À DIFERENÇA E DA POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO POR HOMOSSEXUAIS O direito à diferença se situa na quarta geração de direitos. Houve a necessidade de criação desta quarta categoria porque até então os direitos anteriores (liberdade, econômico-sociais e qualidade de vida) se dirigiam a todos os indivíduos de forma grupal. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 393 Entretanto, existem direitos que surgem “de um processo de diferenciação de um indivíduo em relação ao outro.” (LORENZETTI, 1998, p. 154). É o caso, por exemplo, dos portadores de deficiência, das pessoas que desejam trocar de sexo, daquelas mulheres que querem abortar, das pessoas que recusam tratamentos médicos que levem à morte e dos homossexuais. Comentou-se que a família se transformou e deu lugar a convivência de famílias patriarcais, monoparentais, nucleares, incluindo as famílias homossexuais. Estas últimas, não tão bem aceitas como as demais, porque o grupo dominante, de heterossexuais, tende a excluí-las. Por isso, quando se fala em direito à diferença não se pretende reivindicar direitos iguais para todos, exigimos a especificidade, pois conforme Santos (2002, p. 75)“ ... temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”, pensamento corroborado por Touraine (1998, p. 72): “Somos iguais entre nós somente porque somos diferentes uns dos outros.” Até porque, como coloca Pereira (2002, p. 23), “a graça não está na diversidade?” O direito à diferença para os homossexuais representa a possibilidade de serem tratados com dignidade e porque: “a sexualidade é, assim, um elemento integrante da própria natureza humana, seja individualmente, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual, sem o direito ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual livre, o indivíduo humano – e, mais amplamente, o próprio gênero humano – não se realiza, resta marginalizado, do mesmo modo quando lhe falta qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais.” (DIAS, 2000, p. 164) O Brasil, por meio do Programa Nacional de Direitos Humanos busca assegurar a todas as pessoas: mulheres, negros, índios, idosos, portadores de deficiências, estrangeiros, imigrantes, refugiados, portadores de HIV positivo, crianças e adolescentes, policiais, presos, despossuídos e os que têm acesso à riqueza, a proteção do direito à vida, à liberdade, ao tratamento igualitário perante a lei, entre outros direitos fundamentais (ALVES, 2002, p. 10). Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 394 A própria Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III, faz referência ao Brasil como um Estado Democrático de Direito, o qual tem como um de seus princípios a dignidade da pessoa humana, não podendo, portanto, haver qualquer discriminação por causa da orientação sexual. (RIOS, 2002, p. 13) No mesmo diploma legal, tem-se o artigo 5º, que prega a igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de qualquer natureza. A identidade sexual integra o ser humano, portanto não pode sofrer discriminação. (DIAS, 2001, p. 1) Para o ordenamento jurídico brasileiro a Constituição está elevada à categoria de conjunto de normas e princípios que não podem ser infringidos por normas inferiores sob pena de lhes serem argüidas a inconstitucionalidade. Portanto, com base nos postulados constitucionais, as leis devem ser escritas e interpretadas de forma a não divergirem da Carta Magna. Nesse sentido, observe-se que: a interpretação da legislação infraconstitucional e a proposição de projetos de lei (campos de claríssima manifestação do poder político) não podem ignorar o respeito às diversas modalidades de orientação sexual socialmente presentes, dentre as quais a homossexualidade se insere. Isso seja pelo respeito à vida privada e à intimidade, seja pelo caráter plural e participativo inerentes ao Estado Democrático de Direito delineado constitucionalmente. (RIOS, 2002, p. 2) Há quem acredite que não ocorre a discriminação e que os homossexuais já são tratados com igualdade por comungarem de que o princípio da igualdade é obedecido toda vez que se trata com igualdade aos iguais e com desigualdade aos desiguais. Mas, se realmente os homossexuais fossem tratados com igualdade, aqueles que vivem em união estável poderiam ser considerados família, o que não ocorre. Se se utilizar esta linha de raciocínio, com a igualdade para os iguais e a desigualdade para os desiguais, estar-se-ia legitimando o preconceito porque os homossexuais são diferentes dos heterossexuais apenas no que concerne à orientação do seu desejo sexual, no mais podem ser ricos, pobres, letrados ou analfabetos, desempregados ou trabalhadores, é anular a diversidade. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 395 As leis, devido à sua casuística, procuram regular situações previsíveis para que se estabeleça a boa convivência, mas não prevendo tudo o que possa acontecer, não traz definições para tudo. Então, cabe ao operador do direito analisar o fato concreto e buscar a integração da norma jurídica por meio da interpretação. E a interpretação mais adequada para se garantir o direito aos casais homossexuais de adotarem crianças é a do “realismo jurídico, que busca enquadrar o direito à realidade social, sustentando que a obediência à norma decorre do respaldo social para sua eficácia e não da determinação advinda da criação formal.” (FIGUEIRÊDO, 2002, p. 54) Ou enquanto não houver uma lei para regulamentar o caso concreto que o Poder Judiciário julgue, por analogia, como lhe faculta a Lei de Introdução ao Código Civil, concedendo aos homossexuais, que vivem em união estável, o direito de serem incluídos no conceito de família. Para que, com isto, possam gozar de todas as prerrogativas que a instituição familiar oferece, como por exemplo, adotar crianças em conjunto. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO INSTITUTO DA ADOÇÃO Na fase pré-romana, o Código de Manu previa que a adoção servia para perpetuar o culto ao deus doméstico e, por isso era pré-requisito do adotado conhecer os rituais religiosos. Somente era possível a adoção entre um homem e um rapaz da mesma classe, exigindo-se deste que tivesse todas as qualidades desejadas em um filho. A adoção era admitida nos seguintes casos: a) por esterilidade do chefe de família, quando deveria a esposa gerar um filho com o irmão ou parente deste; b) pela união da viúva sem filhos com o parente mais próximo do marido ou c) quando o chefe de família sem filhos do sexo masculino encarregava sua filha de gerar um menino para si. Todas as crianças assim nascidas eram consideradas filhos legítimos. (PRETTI, 2002, p. 1) Curioso era o Código de Hamurabi, que, de acordo com Bandeira (2001, p. 17-22), permitia ao adotado regressar ao lar de seus pais legítimos se estes o houvessem criado. Entretanto, se o adotante tivesse dispendido dinheiro e zelo com o adotado tal situação era vedada. Caso o adotante tivesse filhos naturais supervenientes à adoRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 396 ção, esta poderia ser revogada, fazendo jus o adotado à indenização. Narram os textos bíblicos, conforme alude Bandeira (2001, p. 17-22), casos de adoção como as de Ester por Mardoqueu e de Efraim e Manes por Jacó. Os egípcios e hebreus não regulamentaram a adoção, havendo apenas assentamentos neste sentido, como o caso de Moisés, adotado pela filha do faraó, em decorrência de ter sido abandonado, a contragosto, por sua mãe biológica. Tal tipo de adoção era muito recorrente na antigüidade. (BANDEIRA, 2001, p. 17-22) Para o Direito Romano, a adoção só era permitida a casais que não tivessem filhos e a adoção tinha como objetivo possibilitar ao pater familias que se perpetuasse o culto religioso. (BANDEIRA, 2001, p. 17-22) O Direito Romano admitia três formas de adoção: por testamento; adoção ab rogatio e datio in adoptionem. Ressalte-se que, a princípio somente os homens eram dotados de capacidade para adotar. Entretanto, com o enfraquecimento do fundamento religioso, foi permitido às mulheres que tivessem perdido seus filhos o direito de adotar. (BANDEIRA, 2001, p. 17-22) A adoção sofreu certo declínio na Idade Média por contrariar os interesses econômicos dos senhores feudais. Isto porque o adotado não tinha direito ao título nobiliárquico, que só era transmitido aos descendentes consangüíneos. O instituto da adoção retomou sua força após a Primeira Guerra Mundial visando amparar os órfãos de guerra e passou a ter feição de obra de caridade. A breve revisão histórica tem o objetivo de demonstrar que em tempos passados a adoção servia mais ao adotante que ao adotado. Havia também a diferenciação entre filiação legítima e ilegítima, sendo esta a categoria a que pertencia o adotado e o que tornava preterido no momento da sucessão hereditária. No Brasil, o ordenamento jurídico atual, que define a adoção é o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Novo Código Civil, que entrou em vigor em 13 de janeiro de 2003. Em conformidade com o Novo CóRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 397 digo Civil são requisitos para a adoção: ser maior de 18 anos, independente do estado civil; e ser pelo menos 16 anos mais velho que o adotado (NERY JUNIOR e NERY, 2002, p. 549). Para a concessão da adoção, e, em conformidade com o artigo 1.625, do Novo Código Civil: “somente será admitida a adoção que constituir efetivo benefício para o adotando.” (NERY JUNIOR e NERY, 2002, p. 550). Ressaltemos que, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, acabou a diferenciação entre filiação legítima e ilegítima, possuindo o adotado todos os direitos concernentes ao estado de filho, posto que a adoção é irrevogável. (MORAES, 2002) Outro ponto a ser salientado é que a adoção deve cumprir uma função social, ou seja, de encontrar uma família para a criança e não o oposto. Contudo, a realidade que se apresenta é diversa. De acordo com os comentários do juiz da Vara da Infância e Juventude do Paraná, Fabian Schweitzer, ao Jornal Gazeta do Povo de 6 de janeiro de 2003, p. 3: “a grande maioria deles faz muitas exigências na hora de escolher a criança. Quase todos querem uma menina, loira, e de no máximo 6 meses de vida.” Com isso muitas crianças se vêem privadas de ter uma família. Ocorre que muitas vezes a adoção é indeferida por puro preconceito, não somente contra os homossexuais, mas pobres, negros, de nível cultural inferior. (FIGUEIRÊDO, 2002, p. 28) DA ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS Como anteriormente exposto, acredita-se que as relações entre homossexuais são afetivas e, portanto quando dois homossexuais resolvem levar uma vida sob o mesmo teto estariam formando uma entidade familiar segundo Dias (2002, p. 51): “De fato, se duas pessoas mantêm uma convivência púbica, contínua e duradoura, que tenha sido estabelecida com o objetivo de constituição de família, não pode haver quem, nos dias de hoje, a não ser por puro preconceito, tenha coragem de dizer que essa união fática contraria as normas de ordem pública e os bons costumes”. Veja-se também a opinião de Pereira (2002, p. 28) que é homossexual e adotou uma criança: “o mito de que o amor é baseado no Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 398 sangue está caindo por terra. Então, pensei, família pode ser qualquer par, desde que se ame e se respeite mutuamente. Estendendo essa linha de raciocínio concluí por minha conta que família, então, pode ser um homem com uma mulher, dois homens, duas mulheres, ou até núcleos menores de apenas um homem ou uma mulher, um adulto e uma criança, por que não?”. Assim, a adoção por homossexuais, solteiros, não encontra qualquer obstáculo legal. O que se pretende é assegurar uma proteção maior do Estado a essas famílias que surgem em decorrência das mudanças sociais. E o Direito deve acompanhar essas transformações. Faz-se necessária uma legislação que reconheça a união estável entre homossexuais como família porque não se pode negar que já existam crianças sendo criadas por esses casais. Há entre os profissionais das diversas áreas ligados ao Direito de Família, especificamente, à adoção, quando se menciona a adoção por casais homossexuais: A discussão sobre adoção de uma criança só pode iniciar nos seguintes pontos: o que é bom para esta criança? O que ela tem a ganhar sendo adotada por este par? O que ela tem a perder, se não for adotada? Aliás, qualquer processo de adoção tem de partir destas questões sob pena de se estar cometendo uma violência contra os direitos da criança, tão enfatizados na nossa Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Se assim não fosse, teríamos garantia e certeza de sucesso quando as crianças fossem criadas por casais heterossexuais o que, já de antemão, sabe-se constituir um absurdo. (DIAS, 2001, p. 1) Na Holanda, país desenvolvido, dois homossexuais não precisam recorrer a subterfúgios para adotarem uma criança, a certidão de nascimento sai com a filiação “mãe e mãe” ou “pai e pai” (Revista Veja, de 11.07.2001) Acredita-se que o maior empecilho é o preconceito, mas este pode ser superado, a partir da informação, a exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro, na Casa França-Brasil, em 02 de julho de 2001. HouRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 399 ve um júri simulado contra as discriminações, sendo que 114 votos contra 61 concederam a adoção de uma criança de 3 anos a um casal homossexual: A sessão foi presidida pela Juíza Salete Macolóes, da 7ª Vara Federal. A defesa ficou por conta do Defensor Público Herbert Cohn, que atestou a legalidade de um casal homossexual educar uma criança como qualquer cidadão. Por sua vez, a acusação, representada pelo advogado Clovis Sahione, considerou o fato da criança não fazer parte de uma ‘ família normal’. O júri, no qual a atriz Ruth de Souza era uma das representantes, foi unânime e votou a favor da adoção. No final, a Juíza Salete Macalóes deu o veredicto ressaltando que ‘a compreensão, solidariedade, fraternidade e humanidade como única forma de romper os grilhões do preconceito e da intolerância. (MACIEL, 2001, p. 1) Existem aqueles que negam o direito de uma criança ser adotada por casais homossexuais porque consideram que haverá prejuízo ao desenvolvimento do menor: Em relação aos casais homossexuais entende-se que há a impossibilidade de adoção, todavia, não, necessariamente, essa impossibilidade está vinculada à inaptidão moral, educacional ou financeira dos mesmos. Mas também pode estar conjuntamente relacionada a aspectos exteriores, estando entre eles a certeza de que haverá uma grande discriminação social para com o filho adotivo de um casal de pessoas de sexos idênticos. Discriminação que certamente afetará o seu desenvolvimento psicológico e, por conseguinte social. Ora, se a adoção, em si, visa viabilizar ao adotado a inclusão do mesmo em uma família que possibilitará o seu melhor desenvolvimento humano, a sua melhor formação social e individual, e se cabe à família, conjuntamente com o Estado e com a sociedade de acordo com o artigo 227, da CF, em sua Segunda parte, colocar o adotado ‘(...) a salvo de toda forma de (...) discriminação (...)’, como poderá o Estado efetivar uma adoção por casais homossexuais, sabendo que o adotado nessa situação encontrar-se-á totalmente passivo à discriminação de uma sociedade que não está preparada para reconhecer esta situação. (BRITO, 2000, p. 1-2) Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 400 Talvez a discriminação ocorra como já aconteceu com mulheres separadas e/ou divorciadas e sua prole, mas nada que comprometa o desenvolvimento sadio da criança que é criada com amor, pois “ o entendimento de que a homossexualidade possa ser danosa, colocando-a na categoria de risco para a criança, não encontra respaldo nas pesquisas feitas até o momento.” (UZIEL, 2000, p. 39). E o seguinte estudo realizado: Pese al muy difundido argumento de que las madres lesbianas y los padres gays puedan influir sobre sus hijas e hijos para que se vuelvan homosexuales, los estudios empíricos realizados sobre el tema han mostrado que no hay diferencia estadística en el número de hijas e hijos de madres lesbianas y padres gays que al crecer se consideran a sí mismas lesbianas y gays, comparado con las hijas e hijos de heterosexuales que así lo hacen. (...) Aparte de la cuestión de la sexualidad per se, las decisiones prejuiciosas suelen justificarse apelando a la preocupación por la necesidad que tienen niños y niñas de tener padre y madre de diferentes géneros/sexos para desarrollarse ‘normalmente’ y evitar las supuestas ‘confusiones’ acerca del género y de los roles de género. Las investigaciones realizadas no han mostrado diferencias apreciables en el desarrollo de la identidad y los roles de género por parte de hijas e hijos de familias homosexuales, lo que indica que al género lo forman – en gran medida – factores sociales más amplios y la sociedad com la que la familia tiene contacto. (MOTT, 2002) Também corrobora esse entendimento a psicóloga Ferreira (2001, p. 3): “Podendo avaliar a questão da adoção por homossexuais por esse prisma, ou seja, entendendo pai e mãe com função paterna e não literalmente, não há ‘contra-indicações’ específicas além das que existem para qualquer ou quaisquer pessoas independentemente de sua opção sexual, já que as funções que vão exercer independem do gênero sexual.” Desta forma, pretende-se que o Direito de Família seja repensado quanto à possibilidade de adoção por casais homossexuais para que não lhes seja negado o direito a serem diferentes. Para que gozem da proteção legal do Estado não necessitando omitir sua orientação sexual para conseguir a aprovação da adoção perante a Vara de Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 401 Infância e Juventude. Saliente-se que não existe por parte dos técnicos (assistentes sociais e psicólogas/os) uma proibição, nem mesmo as sentenças que concedem a adoção devem mencionar a orientação sexual do adotante seja hetero ou homossexual. O que não se pode admitir é que haja uma lei de adoção que venha a ser burlada: “O Estatuto não faz restrições explícitas a casais homossexuais e alguns tribunais brasileiros têm aceitado a adoção por gays. Nesses casos, o juiz concede a adoção para mães ou homens solteiros e, para não complicar o processo, os gays normalmente escondem a orientação sexual, principalmente, se moram com seus parceiros.” (http://www.abalo.com.br/adocao/adocao.htm). Busca-se uma nova forma de pensar a família, agora com base na ideologia do afeto e não pelo ideário capitalista. Além de fomentar o combate à exclusão sem que os homossexuais precisem deixar de viver a sua sexualidade, de forma estável, assegurando-se a proteção da lei e o direito a ser diferente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo estudo realizado, pode-se concluir que a família está em transformação, abarcando novos personagens como os homossexuais e se embasando nos sentimentos ligados ao afeto, mais que no fim exclusivo da geração de filhos ou no patrimônio. Coexistem entidades familiares patriarcais, matrimonializadas ou não, com filhos biológicos ou adotivos, monoparentais, nucleares e famílias formadas por casais do mesmo sexo porque é possível considerar família como a união de pessoas que buscam a realização plena dos seus membros, envolvendo a afetividade e o respeito. A homossexualidade é um tema que gera polêmica e, para os desinformados, repulsa. Com este texto pode-se compreender que a homossexualidade é uma orientação sexual de um indivíduo para outro do mesmo sexo, portanto, uma manifestação da sexualidade, não é doença ou opção. Os homossexuais são pessoas como os heterossexuais, os bissexuais que se casam ou vivem solteiros, trabalham, estudam, ajuRevista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 402 dam a eleger os membros do Poder Legislativo que fazem as leis que não os incluem. Procurou-se demonstrar que a sociedade está buscando a inclusão dos homossexuais por meio do direito à diferença, para que aqueles que vivem “o amor que não ousa dizer o nome” (expressão criada por Oscar Wilde) tenham o direito de expressarem seu amor sexual e o amor não sexual. Este amor que é vivido no relacionamento entre pais e filhos, ao ser facultado aos homossexuais a oportunidade de adotarem crianças, em conjunto, como na Holanda. Em que pese não haver no ordenamento jurídico a devida tutela legal para que casais homossexuais sejam considerados família e venham a desfrutar de todos os direitos por conseqüência deste status, não é possível dar as costas à realidade, negando a eles o direito de serem diferentes porque se supõe um comprometimento ao desenvolvimento psicológico da criança, fato este não comprovado cientificamente. E, por preconceito, declarado ou mascarado, centenas de crianças permanecem sem um lar. Vê-se que basta boa vontade no momento de se rever o conceito de família apresentado na Constituição Federal para que haja consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, defendido pelo Estado Democrático de Direito, no primeiro artigo da Carta Magna, bem como para que se efetive o tratamento igualitário pregado, afim de que os homossexuais, que vivem em união estável, sejam legalmente contemplados. Conforme apresentado, para o Novo Código Civil está em união estável aqueles que assumem um compromisso estável e duradouro, por conseqüência, os homossexuais que estabelecem vida em comum, estável e duradoura deveriam ser considerados, por analogia, entidade familiar e gozar das demais prerrogativas legais e sociais que tal instituto abarca e, como conseqüência adotar crianças, ter direito à sucessão e benefícios previdenciários, para citar alguns exemplos. Garantindo-se o direito aos casais homossexuais de serem abrangidos no conceito de família, poder-se-ia ter uma sociedade com a plena igualdade e o respeito à dignidade da pessoa humana. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 403 REFERÊNCIAS ALVES, L. S. A . O programa nacional de direitos humanos. Revista Jurídica Consulex, Brasília-DF, ano VI, n. 131, p. 10-15, 30 jun. 2002. ARIÈS, P. e DUBY, G. História da vida privada. Vol. I Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BANDEIRA, M. 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O núcleo do trabalho é o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é estudado a partir da doutrina constitucional e de alguns casos julgados por tribunais nacionais. ABSTRACT The article is about the dignity of the human being as a fundamental principle of the Federal Republic of Brazil, stablished in the Federal Constitution of 1988. The author sees the theme in a historical perspective, talking about some historical facts that had influence in the new constitutional order, and analysing aspects of the Constitutional Law under the actual Federal Constitution. The main part of the study is the principle of dignity of the human being, which is studied in the constitutional doctrine and some cases judged by national courts. PALAVRAS CHAVE - Direito Constitucional; direitos fundamentais; princípio da dignidade da pessoa humana. INTRODUÇÃO Com o advento da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, uma nova interpretação instalou-se no mundo jurídico brasileiro, um novo estado nasceu. Uma nova ordem constitucional instalou-se. A Constituição Federal é o ápice do sistema jurídico. Concretizou-se a Constituição como principio basilar do direito positivo, como fundamento a ser respeitado e a ser norteador de qualquer interpretação legal. Nenhuma norma, deste então, pode ser interpretada, se não com base nos princípios constitucionais. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 408 A Constituição Federal de 1988, mudou também a interpretação de outros textos legais, que tiveram seus artigos revogados quando em desconformidade com aquela. Uma nova forma de pensar o Direito instalou-se, aqueles que antes tinham o Código Civil como a principal fonte do direito privado, e do direito positivo, agora têm que se adaptar a uma nova tábua de normas e princípios. O Código Civil perde importância com a constitucionalização do Direito Civil e o mesmo agora só pode e deve ser analisado segundo os princípios e normas constitucionais. Aqueles que viveram o desrespeito legal e moral dos Atos Institucionais sobre a Constituição de 1946 e de 1967, hoje comemoram a justaposição constitucional do sistema positivo brasileiro. O que passa-se a analisar neste trabalho é uma mudança de paradigma, uma mudança de modelo, de padrão, no direito positivo brasileiro, onde deixa-se de ter o Código Civil, ou qualquer outro texto legal como base do sistema jurídico, para ter a Constituição Federal neste posto, onde o fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, deve ser encarado como a norma basilar de toda a interpretação legal. Positivado na Constituição Federal de 1988 como um dos fundamentos da República, a Dignidade da Pessoa Humana, considerada como um direito absoluto, inegociável, inviolável, vem a ser um critério, uma base de interpretação, que deve ser respeitada por toda ação governamental ou não, sob pena de inconstitucionalidade, visto que tal fundamento é absoluto e em nenhum momento pode ser desprezado ou afastado. ANTECEDENTES POLÍTICOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 AOS ANTECEDENTES BRASILEIROS DA CRISE MUNDIAL DE 1929 Alguns anos após o advento do Código Civil de 1916, com a grande inquietação da sociedade brasileira, o legislador percebe que o mesmo Código já não mais tem condições de regular todas as relações sejam públicas ou privadas. O então Código Civil Brasileiro, fruto Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 409 de doutrinas individualistas e voluntaritas, consagradas pelo Código de Napoleão1 necessitava de algumas especializações. A Constituição vigente, à época, de 1891, perdia importância e status de lei maior. O mundo vivia a Primeira Grande Guerra. Em 1922 é fundando o Partido Comunista do Brasil e a Semana de Arte moderna deixaria marcas para toda a história brasileira. Um movimento revolucionário, que se inicia em 1924, com a tentativa de tomada da cidade de São Paulo, anda pelo Brasil libertando presos políticos, saqueando e queimando livros fiscais. Os revoltosos lutam contra um governo violento e que não respeita a constituição vigente à época: “...seu único objetivo é restabelecer o Estado de Direito e assegurar as garantias Constitucionais...”2 Diante deste contexto, a estagnação de um código geral perdia fundamento. O Poder Legislativo inicia uma série de trabalhos que iriam terminar em uma especialização das leis civis. A Constituição Federal de 1891 é totalmente esquecida e violada pelos representantes do povo. O ano de 1925 é marcado por diversas revoltas militares, que apoiam o movimento revolucionário agora chefiado por Luís Carlos Prestes. Os movimentos são reprimidos com grande violência. O apoio militar a Coluna iniciado em 1924 é grande.3 O analfabetismo no país é de 80% da população.4 Matérias antes tratadas apenas pelo Código Civil, passaram a ser tratadas por leis especiais, leis que representavam no momento, toda a inquietação e movimentação da sociedade brasileira5 . DA CRISE MUNDIAL DE 1929 À DEPORTAÇÃO DE OLGA BENARIO PRESTES A crise na Bolsa de Nova York em 1929,6 se alastra pelo mun1 Nas palavras de TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 3. MEIRELLES, Domingues As noites das Grandes Fogueiras – Uma historia sobre a Coluna Prestes. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 95. 3 “Os rebeldes continuaram portanto, lutando até que fossem atingidos os seguintes objetivos: revogação da Lei de Imprensa que amordaçava os jornais, instituição do ensino primário obrigatório em todo o pais, adoção do voto secreto para acabar com as eleições a bico-de-pena, revisão do texto constitucional para evitar que o presidente da Republica continuasse intervindo nos estados, de acordo com interesses pessoais e políticos. Idem, p. 150. 4 Idem, p. 173 5 TEPEDINO. Idem, p. 05. 6 BRASIL. Arquivos in <www.uol.com.br/barquivos.htm > acessado em 07.10.2003. 2 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 410 do, a ruptura da República Velha, e o fracassado golpe militar de 1930, são fatos que influenciam o grande número de leis extravagantes, que vieram novamente regular novas matérias, já previstas ou não pelo Código Civil. Inicia-se, no Brasil, um governo assistencialista, com a ascensão de Getúlio Vargas, que unifica o poder executivo e legislativo: o Congresso Nacional é fechado pelo Decreto Presidencial nº 9.390. O povo pede uma nova Constituição e a Faculdade de Direito de São Paulo é bombardeada. Tem início a Revolução Constitucionalista de 1932. O Estado de São Paulo luta contra o resto do Brasil pedindo uma nova Constituição. O movimento é combatido com violência pelo Governo de Getúlio Vargas, que no mesmo ano convoca uma Assembléia Nacional Constituinte.7 Advém a Constituição de 1934, constituição de direitos soci8 ais , em um estado intervencionista e corporativista9 . Existe uma nova preocupação com o sujeito de direito, a expressão, na teoria das obrigações, se constitui no fenômeno do dirigismo contratual. Por sugestão de Clóvis Beviláqua o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada são protegidos pela Constituição. Vários países do mundo convivem com governos totalitários, dentre eles: a Itália com Mussolini, o Brasil com Getúlio e a Alemanha com Hitler.10 A violência e a tortura fazem parte do Brasil, país que tinha abaixo do presidente, Filinto Muller, chefe da polícia do distrito federal, que tinha carta branca do presidente Vargas, para prender sem ordem judicial, torturar presos políticos e investigar até mesmo os membros do governo.11 Contrariando expressamente a Constituição vigente, Clóvis 7 NAVARRO, Fernando. A Revolução de 1932. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/historia/ cenasdoseculo/nacionais/revolucaode32>. Acessado em 07.10.2003. 8 Já no preambulo da Constituição de 1934, tem-se o uso da expressão “Bem Estar Social”, são constitucionais, os direitos à indenização da demissão sem justa causa, as férias anuais remuneradas entre outros. 9 Um quinto dos eleitos da Câmara dos Deputados são eleitos por corporação de profissionais. 10 NAVARRO, Fernando. A Segunda Guerra Mundial. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/ historia/cenasdoseculo/nacionais/brasil-IIguerra>.Acessado em 07.10.2003. 11 MORAIS. Fernando. Olga. São Paulo: Ed. Companhia das Letras. 1994. Pg. 302 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 411 Beviláqua e Vicente Rào, então ministro da Justiça do governo Vargas, fazem pareceres favoráveis à expulsão da judia comunista Olga Benario Prestes do Brasil. Contrariando as leis internacionais de navegação, Olga Benario é levada, grávida de sete meses, de navio para a Alemanha nazista.12 DO INÍCIO DA SEGUNDA GRANDE GUERRA E A EXPANSÃO LEGISLATIVA A Segunda Grande Guerra tem inicio em 1939. São criadas bases americanas no Brasil e o país declara guerra à Alemanha.13 No ano seguinte os mineiros fazem um manifesto. 14 Querem o fim da contradição: Política Interna Fascista e Política Interna Democrática. O governo de Getúlio Vargas apoiava governos democráticos na 2a guerra mundial, mas tinha uma política interna fascista, ditatorial. Olga Benario Prestes é assassinada em um campo de concentração nazista no início do ano de 1942.15 Getúlio Vargas renuncia e o Ministro do Supremo Tribunal Federal José Linhares, assume a presidência e promulga a Constituição de 1946. Assim como a Constituição Italiana de 1948, a Constituição Brasileira de 1946 demarca limites da autonomia privada da propriedade e do controle de bens. Nos dizeres de TEPEDINO : O Código Civil perde, assim, definitivamente, o seu papel de Constituição de Direito Privado. Os textos constitucionais, paulatinamente, definem princípios relacionados à temas antes reservados exclusivamente pelo Código Civil e ao império da vontade: a função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da família, matérias típicas de direito privado, passam a integrar uma nova ordem pública constitucional.16 12 Idem, p. 312. NAVARRO, Fernando. A Segunda Guerra Mundial. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/ historia/cenasdoseculo/nacionais/brasil-IIguerra>. Acessado em 07.10.2003. 14 NAVARRO, Fernando. Manifesto dos Mineiros. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/ historia/cenasdoseculo/nacionais/manifestomineiro>. Acessado em 07.10.2003. 15 MEIRELLES, op. cit. p. 344. 16 TEPEDINO, op. cit. p. 7. 13 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 412 O Estado busca a atender os interesses sociais, e as leis especiais são os instrumentos utilizados para essas alterações. Existe uma demanda muito grande de especializações, e o legislador “metralha” uma grande quantidade de leis.17 DO GOVERNO DE J.K. AO GOLPE MILITAR Juscelino Kubitschek assume a presidência do Brasil e inicia a construção de Brasília, prevista no artigo 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1891.18 Jânio Quadros é o sucessor de JK. “ Forças Ocultas” fazem Jânio renunciar, e o Vice Presidente, João Goulart é o novo presidente. Iniciam-se reformas de base: Nacionalização das refinarias de petróleo e uma radical reforma agrária. Che Guevara recebe uma medalha de honra do Presidente João Goulart.19 Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Ademar de Barros, Camilo Castelo Branco, Costa e Silva e Eurico Gaspar Dutra, encabeçam o golpe militar de 1964. Inicia-se no Brasil uma ditadura militar, que visa afastar do Brasil a “ameaça comunista”20 . Institui-se já em 1964 o primeiro AI (Ato Institucional) poder de fato, não de direito, que vinha a alterar, profundamente, a então Constituição vigente. Em 1965 são extintos os partidos políticos e inicia-se um bipartidarismo forçado21 . As garantias dos juízes são suspensas. Os militares promulgam a Constituição de 1967. Vive o Brasil o período mais negro de sua história. Estudantes são presos, professores cassados, é o fim da liberdade de expressão. Os militares implementam grandes obras para ludibriar a população, é a época das obras faraônicas. A dívida externa Brasileira aumenta, sensivelmente. 17 Idem, p. 9. NAVARRO, Fernando. A História de JK. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/historia/ cenasdoseculo/nacionais/jk>. Acessado em 07.10.2003. 19 ZANINI, H. A vida de Che. Disponível em <www.guevarahome.org/biofrafia.htm >. Acessado em 07.10.2003. 20 NAVARRO, Fernando. Anos de Chumbo. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/historia/ anosdechumbo>. Acessado em 07.10.2003. 21 ARENA e MDB são os únicos partidos legais. 18 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 413 Troca-se a liberdade pela segurança, que se fingia ter.22 No plano do Direito Civil, a lei de alimentos é promulgada em 1968, Lei 5.478. Considera-se a adição dos atos institucionais a Constituição de 1967 uma “não constituição”, uma “anticonstituição”, uma “desconstituição” de poder jurídico, moral e legal. O Movimento Revolucionário Oito de Outubro, e a Aliança Libertadora Nacional seqüestram o embaixador americano Charles Elbrick. Movimentos revolucionários formados, principalmente, por estudantes lutam contra o governo militar, que reage a essas “revoluções” com uma grande seqüência de novas penas. As passeatas agora são proibidas, os jovens pegam em armas para libertar o país da ditadura. Busca-se a liberdade política e civil.23 O Brasil passa a ter pena de banimento,24 pena de morte25 e prisão perpétua.26 A época é de casuísmo jurídico.27 Países como Espanha, Portugal e Grécia sofrem com ditaduras impostas, autocraticamente, pelo direito positivo, usado como gestão autoritária da sociedade.28 O INÍCIO DA REDEMOCRATIZAÇÃO Em 1983, a dívida externa brasileira chega a 95 bilhões de dólares, a inflação chega a 213% ao ano29 . Começa o fim da ditadura: uma transição para a democracia marca a época. Em 1984 iniciam-se movimentos pelas Eleições Diretas, a censura cai aos poucos. O período ainda era de ditadura, mas respiravase liberdade nas Faculdades de Direito.30 Uma Assembléia Nacional Constituinte é reunida em 1987.31 22 NAVARRO, Fernando. Anos de Chumbo. Disponível em <www.tvcultura.com.br/aloescola/historia/ anosdechumbo>. Acessado em 07.10.2003. 23 DUMONT, F. O Seqüestro do Embaixador dos EUA. Disponível em <www.ternuma.com.br/embaix.htm >. Acessado em 07.10.2003. 24 Instituída pelo AI 13. 25 Instituída pelo AI 14. 26 Instituída pelo AI 14. 27 As leis passam a ser criadas depois dos fatos. A cada movimento para acabar com a ditadura o governo decreta uma nova lei. 28 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direito Humanos. São Paulo: Companhia da Letras, 1988, p. 78. 29 BRASIL. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Dados. Acesso em 07.10.2003 <www.bcb.gov.br >. 30 Nos dizeres de Christina Miranda RIBAS in Carta Aberta ao Centro Acadêmico Carvalho Santos. 31 Paulo BONAVIDES demonstra bem esse momento: “Quem convocou a Constituinte Congressual nem de leve percebeu o alcance dessa revolução silenciosa, revolução sem armas, sem sangue, sem dor, Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 414 Ulisses Guimarães promulga a Constituição de 1988, a Constituição Cidadã. O Código Civil passa a ser novamente interpretado, a partir de uma Constituição. A Constituição de 1988 determina uma inserção do estado nas relações privadas. As leis infraconstitucionais passam a definir objetivos concretos do Estado. A cláusula geral de todo o ordenamento jurídico passa ser a Constituição Federal de 1988. Ocorre uma modernização na linguagem legislativa, termos não só jurídicos passam a incrementar a legislação brasileira. O legislador tenta acompanhar o avanço tecnológico. O poder público passa a atuar mais nas relações sociais, o povo brasileiro, tão sofrido com uma ditadura, passa a viver novamente em uma democracia. Tem-se a impressão da soberania dos textos constitucionais assim como 1940 voltarem a acontecer . Inicia-se uma nova ordem em um novo país. Há um novo Estado Brasileiro, com fundamentos, como a dignidade da pessoa humana moldando toda interpretação legal, e com uma ordem democrática, não vista há alguns anos. O ESTADO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO PÓS 1998 TEMAS MATERIALMENTE E FORMALMENTE CONSTITUCIONAIS As Constituições prevêem inicialmente a estrutura do Estado e os direitos fundamentais dos cidadãos. Esses são os chamados temas ou normas materialmente constitucionais. Matérias cujas quais sem elas perde-se todos os sentidos de uma Constituição. Valiosa é a definição de Michel TEMER: Indubitavelmente, existe um núcleo material nas Constituições sem o qual não se pode falar em Estado. Se este pressupõe organização e se esta é fornecida por instrumentos normativos cogentes, imperativos, derivam eles do exercício do poder. Assim, é norma substancial- revolução de idéias e dos interesses nacionais, revolução do povo soberano que havia sido humilhado, excluído e discriminado até o dia em que se apoderou da praça publica, a praça que lhes pertence, segundo o canto de Castro Alves, e fez o comício das diretas para fundar uma república, cujas lideranças não compreenderam o sentido da mudança. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 221-222. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 415 mente constitucional aquela que identifica o titular do poder. 32 Ocorre que a Constituição Brasileira em seus 250 artigos não prescreve mandamentos apenas sobre a estrutura do Estado e os direitos fundamentais. A Constituição Federal Brasileira adota também outras matérias, como a ordem social, princípios da atividade econômica, políticas urbanas, rurais entre outras. São os chamados temas formalmente constitucionais, que a princípio, não fazem parte de uma Constituição, mas que estão, formalmente, previstas nela. O legislador constituinte brasileiro entendeu necessário prescrever nos artigos da Constituição, outras matérias que deveriam merecer proteção constitucional. O medo da ditadura e da violação de direitos ainda existe no coração dos brasileiros.33 A Constituição Brasileira, apresenta-se assim prescrevendo diretrizes para todo ordenamento jurídico nacional, ditando políticas públicas e privadas, influenciando a interpretação de todo citado ordenamento. A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Como disse o Professor Paulo BONAVIDES, durante 21 anos – de 1964 a 1985 – no Brasil, não houve legitimidade, nem respeito à Constituição escrita, nem respeito à Constituição real34 . O então Código Civil de 1916 foi a Constituição do Direito Privado e também usado para algumas interpretações em direito público. A Lei de Introdução ao Código Civil de 1942 passou a ser a base da interpretação legal. Nos ensinamentos do Professor da Universidade Federal do Ceará, percebe-se que durante a chamada ditadura militar35 não existia nos detentores do poder, legitimidade, nem respeito às ordens constitucionais. Não houve legitimidade porque aqueles, no primeiro momento deram um golpe, e permaneceram no governo, pois usurparam do povo a função mais primordial do Estado: o Poder. O povo sem voto, sem direi32 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 21. Vide a Música “Vai Passar” de Chico BUARQUE DE HOLLANDA que muito fala sobre este assunto. 34 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 211. 35 “A ditadura desvalorizou neste País a Constituição, o Congresso e os partidos políticos, humilhou-os e rebaixou-os com a ascensão tecnocrática a todos os níveis de poder”. Idem. p. 213. 33 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 416 tos, sem Constituição, permaneceu acordando calado36 até 1988, quando a Constituição lhes devolveu o que era de direito. Inicia-se assim uma nova interpretação do sistema jurídico positivo. A Constituição deve ser interpretada segundo seus próprios princípios. Os fundamentos da República, estampados no artigo 1º, devem moldar toda a interpretação seja constitucional, seja infraconstitucional. Qualquer interpretação que se faça da Constituição deve ser com base nos seus princípios fundamentais. Antes de ler qualquer artigo da Constituição deve-se ater aos princípios constitucionais, pois só em função deles a Constituição Federal deve ser interpretada. Toda legislação deve ser interpretada segundo os fundamentos constitucionais da República. A Constituição não é apenas o centro reunificador do Direito Público, mas também do Direito Privado. Fundamentos como o da dignidade da pessoa humana devem moldar todas as interpretações. Frisa-se outra vez dos ensinamentos do Professor Michel TEMER: Para boa interpretação constitucional é preciso verificar, no interior do sistema, quais as normas que foram prestigiadas pelo legislador constituinte ao ponto de convertê-las em princípios regentes desse sistema de valoração. (...) Por isso a interpretação de uma norma constitucional levará em conta todo o sistema; tal como positivado, dando-se ênfase, porém para os princípios que foram valorizados pelo constituinte. 37 36 Acordar calado, foi a expressão usada por Chico BUARQUE DE HOLLANDA em sua música “Cálice ” para demonstrar toda a censura e restrição do direito de liberdade de expressão que existia na época. 37 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 54. Importante seria transcrever também a citação que o Professor Michel TEMER, faz no mesmo capítulo de José de Oliveira BARACHO: “Os problemas da interpretação constitucional são mais amplos do que aqueles da lei comum, pois repercutem em todo o ordenamento jurídico. E, invocando Hector Fix Zamudio, lembra que a “interpretação dos dispositivos constitucionais requer, por parte do interprete ou aplicador, particular sensibilidade que permite captar a essência, penetrar na profundidade e compreender a orientação das disposições fundamentais, tendo em conta as condições sociais, econômicas e políticas existentes no momento em que se pretende chegar ao sentido dos preceitos supremos... Os diversos conceitos de Constituição, a natureza especifica das disposições fundamentais que estabelecem regras de conduta de caráter supremo e que servem de fundamento e base para as outras normas do ordenamento jurídico, contribuem para as diferenças entre a interpretação jurídica ordinária e a constitucional.” Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 417 Consagra a Constituição uma nova tábua de valores, uma nova gama de princípios que são elevados à qualidade de fundamentos constitucionais e que levam a uma nova interpretação das leis do país. A TÁBUA DE VALORES TRAZIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1998 A NOVA TÁBUA DE VALORES Novos valores são trazidos ao Direito Positivo brasileiro, e outros princípios já existentes ganham caráter, status constitucional. São princípios, fundamentos constitucionais que passam a penetrar em toda legislação e fomentar interpretações e decisões. Análise que passa-se a fazer agora: OS FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA Artigo 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania II – a cidadania III – a dignidade da pessoa humana IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa V – o pluralismo político Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Fundamentos, são as bases, são os alicerces de uma construção, de um sistema. Os fundamentos da República Federativa do Brasil são a estrutura de todo o sistema jurídico, político e sociológico do Estado. Os Fundamentos da República moldam todo o complexo legal que há por vir na Constituição da República. Estabelecem uma espécie de critério, uma espécie de ordem que toda a interpretação deve respeitar. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Dignidade é a qualidade do digno, honestidade, brio.38 Pode38 a BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, Aurélio. Minidicionário da Língua Portuguesa. 1 ed, 7 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 a 418 se até acrescentar outros sinônimos da palavra dignidade, mas face a subjetividade, e elasticidade desta palavra limitou-se apenas com as palavras do mestre da Academia Brasileira de Letras. Quando a Constituição Federal diz ser humano, ela quer justamente acabar com a desigualdade entre homem e mulher, tratando todos como seres humanos, e não mais apenas como homem.39 Dignidade da pessoa humana seria então uma qualidade de vida ao cidadão, uma qualidade de medidas que devam comungar com o respeito à pessoa, aos seus costumes, à sua personalidade, a uma vida digna. A dignidade da pessoa humana é citada logo no primeiro artigo da Constituição Federal de 1988, onde estabelece o mesmo como fundamento da República Federativa do Brasil. Ter o princípio da dignidade humana como fundamento da República, demonstra, que nenhuma atitude, seja de qualquer ente estatal, ou de qualquer particular, poderá ofender esse princípio. É de grande valia, a definição do Professor Alexandre de MORAES: ... a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidade humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” (grifou-se) Assim sendo, toda interpretação legal deverá respeitar a digniimpressão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. 39 º Pregava o antigo Código Civil Brasileiro de 1916, que foi revogado em 2003: Art. 2 Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 419 dade humana, nenhuma decisão poderá violar este princípio sob pena de violar um dos fundamentos da República. Acredita-se que o princípio da dignidade humana é o princípio mais importante adotado como fundamento da República, onde sem uma vida digna para seu cidadão, perde-se a função da vida em sociedade.40 Tem-se a dignidade da pessoa humana como “valor-fonte” de todos os valores sociais e fundamento último da ordem jurídica. O valor da pessoa humana, a dignidade da pessoa humana, enquanto conquista histório-axiológica encontra a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais e também nos fundamentos da República.41 A dignidade da pessoa humana deve muito à afirmação dos direitos humanos, pois foi a efetivação e a positivação deles que propiciou a defesa da dignidade da pessoa humana enquanto “valor-fonte” do direito. A CONSTITUIÇÃO: SEUS SENTIDOS SOCIOLÓGICO, POLÍTICO E JURÍDICO Analisaremos agora a Constituição sob três aspectos: sociológico, político e jurídico. São as três faces de uma Constituição. SENTIDO SOCIOLÓGICO Ferdinand LASSALLE, explica muito bem o sentido sociológico de uma Constituição, onde seu texto tem menor importância, e se dá mais valor aos fatores reais do poder.42 LASSALLE afirma que a Constituição representa o social, e assim é legítima, pois representa quem realmente é detentor do poder, ou se distancia do poder social, sendo assim ilegítima, pois se afasta de quem realmente é o legítimo possuidor do poder: o povo. É de LASSALLE, a famosa frase, dita então, no Congresso de Berlim, que uma Constituição sem sua efetivação, sem ser efetivamente “real”, são meras “folhas de papel”. 40 SILVEIRA SIQUEIRA, Gustavo. O Acesso a Justiça e o Fim do Estado. Trabalho apresentado no III Encontro de Pesquisa da UEPG em maio de 2003. 41 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 42 LASSALLEE, Ferdinand. O que é uma Constituição ? Trad. Hiltomar Martins OLIVEIRA. Ed. Líder. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 420 Michel TEMER, muito bem pontifica, ao citar o sentido sociológico de uma Constituição: “os que vêem o Direito sob esse prisma sociológico distinguem o instrumento formal, consubstanciado na Constituição, e o instrumento real consubstanciado na efetiva detenção e exercício do poder.” 43 SENTIDO POLÍTICO Sem dúvida, o ser humano é um animal político. Um ser que, segundo Hannah ARENDT, exerce sua liberdade dentro do campo político.44 A razão de ser da política é a liberdade45 e a Constituição é o meio pelo qual se exerce a liberdade e a política. A Constituição garante ao cidadão a sua liberdade. As primeiras Constituições foram criadas para proteger o cidadão do rei, do governante. Seus primeiros objetivos, que também valem para o mundo de hoje, foram garantir direitos mínimos aos cidadãos, que nem mesmo o rei, o governante poderia usurpar. Sendo assim entende-se também a Constituição com um sentido político. Entretanto, sob outro enfoque, José Afonso DA SILVA46 citando Carl SCHMITT, diferencia normas material e formalmente constitucionais, como analisado no ítem 3.1 do presente trabalho. Neste caso o sentido político da Constituição, seria dar um caráter político às decisões do legislador constituinte em incluir na constituição, normas, formalmente, constitucionais já que, rigorosamente, apenas as regras materialmente constitucionais seriam de extrema importância. A decisão de incluir normas, formalmente, constitucionais, na Constituição, demonstra este caráter político da mesma. SENTIDO JURÍDICO Como já dito, anteriormente, a Constituição é mais que uma lei no sentido jurídico. Ela representa um status superior às leis, representa 43 Idem, p. 52. ARENDT, Hannah. O que é liberdade. Entre o Passado e o Futuro. Perspectiva. Tradução de Mauro Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 155. 45 RIBAS, Christina Miranda. Apontamentos em Torno da Idéia de Liberdade em Hannah Arend In: O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: USP, 1999, p. 389. 46 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 26. 44 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 421 normas, princípios que não podem ser violados, sob pena de invalidar o ato que a contrarie. A Constituição é o ápice do sistema jurídico47 é ela que sustenta o mundo jurídico, é ela a fonte do cientista do direito para buscar soluções das controvérsias do sistema normativo. BAPTISTA traz importantes apontamentos sobre o tema: A Constituição é um sistema, pois assentada num conjunto de elementos que compõem uma unidade, entrelaçados, coerentemente de modo a evitar conflitos ou fornecer meios para a solução quando surgidos. Trata-se de um sistema composto por princípios e normas, pois inviável sua existência somente com uns ou com outros. Embora há dificuldade de diferenciação entre princípios e normas, existem critérios para o estabelecimento de suas particularidades, que vão desde o grau de abstração até a solução de seus conflitos. Os princípios constitucionais exercem, em especial na atual conjuntura sócio-político-jurídico do país, papel significativo de adequação da normatividade nacional ao asseguramento dos direitos fundamentais, como meios de interpretação e integração do sistema, em suas funções ordenadora e prospectiva. As normas constitucionais propiciam condições de uma mais densificada segurança jurídica no país, estabelecendo diretrizes, mesmo as programáticas, a serem observadas pela legislação infraconstitucional. Todos os princípios e normas previstos no atual texto constitucional deverão ser observados pelo legislador ordinário e pelos operadores do direito – 47 Michel TEMER, cita Hans KELSEN, em sua Teoria Pura do Direito, trazendo alguns importantes e discutidos conceitos sobre o sentido jurídico da Constituição: “ É Hans Kelsen quem demonstra, sob esse foco, o que é a Constituição. Ao fazê-lo, evidencia o que é o Direito. Ressalta a diferença entre o Direito e as demais ciências, sejam as naturais, sejam as sociais. Enfatiza que o jurista não precisa socorrer-se da Sociologia ou da Política para sustentar a Constituição. A sustentação encontra-se no plano jurídico. O sociólogo, o politicólogo, podem estudar a Constituição sob tais ângulos. Mas as preocupações seriam outras. O cientista do Direito busca soluções no próprio sistema normativo. Daí por que buscará suporte para a Constituição num plano puramente jurídico. Para uma explicação singela da teoria kelseniana é preciso fazer distinção entre o mundo do ser e o do dever-ser. O mundo do ser é o das leis naturais. Decorrem da natureza. De nada vale a vontade do homem na tentativa de modificálas mediante a formulação de leis racionais. No mundo da natureza as coisas se passam mecanicamente. A um antecedente liga-se indispensavelmente dado conseqüente. Um corpo solto no espaço (antecedente) cai (conseqüente). Se chover (antecedente) a terra ficara molhada (conseqüente). No mundo do dever-ser, as coisas se passem segundo a vontade racional do homem. É este que, a dado antecedente, liga determinado conseqüente. As ciências sociais pertencem a esse mundo do dever-ser. Idem, p. 52. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 422 princípio da supremacia da Constituição – os quais poderão lhe dar maior grau de concretização e densidade através da concretização legislativa e jurisprudência. 48 A evolução do sistema jurídico brasileiro, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tem um grande significado no que tange a interpretação legal, agora só feita em função da mesma. Juridicamente falando, a Constituição Federal é a base do sistema jurídico, fonte de princípios e sustentação para as interpretações legais. As leis consideradas, infraconstitucionais, só podem ser interpretadas se estiveram de acordo com os princípios e normas constitucionais. Considera-se a Constituição a lei suprema no estado brasileiro, suas prescrições, prevalecem sobre todos os tipos de atos jurídicos. SENE demonstra muito bem este sentido ao afirmar que “o sistema jurídico brasileiro tem evoluído e a doutrina e os estudos de direito constitucional têm aumentado, com significativo desenvolvimento da teoria da interpretação constitucional, para recolocar o direito constitucional no ápice da pirâmide do sistema, por ser ele o detentor do estudo do texto fundamental do Estado de Direito, da Democracia.” 49 A CONSTITUIÇÃO COMO ÁPICE DO SISTEMA JURÍDICO Acredita-se, que a Constituição é o ápice do sistema jurídico brasileiro. Desta forma, diante de um exemplo prático, deve o intérprete da lei, antes mesmo de analisar a lei, analisar todo um contexto que a mesma está envolvida. Deve o interprete ler quais os princípios constitucionais que deverão ser respeitados quando da interpretação desta lei, e qual a validade dessa lei face as regras formais da constituição. Sendo assim, a lei deve respeitar, primeiramente, os princípios constitucionais, elencados como fundamentos da República, no artigo 1º , da Constituição Federal e também as normas que a Constituição determina para o caso em questão. Ao analisar-se uma norma infraconstitucional então, primeira48 BAPTISTA. Carlos Alberto. A Constituição como Sistema de Princípios e Normas In Revista Jurídica o o Mater Dei, 2 v, n 2. Pato Branco: Faculdade Mater Dei, 2002, p. 89. 49 o o SENE, Ludmilo. O principio do duplo grau de jurisdição In Revista Jurídica Mater Dei. 2 v, n 2. Pato Branco: Faculdade Mater Dei, 2002, p. 93. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 423 mente, analisa-se se ela é adequada aos princípios constitucionais, aos fundamentos da República, e depois as regras constitucionais formais para o caso em questão.50 Veja-se, mais uma vez, o Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Michel TEMER: ... a interpretação de uma norma constitucional levará em conta todo o sistema, tal como positivado, dando-se ênfase, porém, para os princípios que foram valorizados pelo constituinte. Também não se pode deixar de verificar qual o sentido que o constituinte atribui às palavras do texto constitucional, perquirição que só é possível pelo exame do todo normativo, após a correta apreensão da principiologia que ampara aquelas palavras. 51 Como muito bem explica o Professor, a interpretação de uma norma deve seguir, sempre, os princípios constitucionais e ser norteado segundo todo o contexto contido na constituição. O princípio da dignidade humana, inserido como fundamento da República, influi toda a interpretação do ordenamento jurídico.52 Acredita-se ser, a Constituição Federal, o pacto social moderno, como nos ensina Paulo BONAVIDES,53 é indispensável para a proteção dos direitos humanos, e mais, especificamente, da dignidade da pessoa humana, que na Constituição Brasileira aparece como um fundamento da República. A Constituição Brasileira trás a positivação dos direitos naturais e confere proteção máxima a eles. 50 Valido é o exemplo citado por FERRAZ JR. “ A primeira e mais importante recomendação, neste caso, é de que, em tese, qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema para que se preserve a coerência do todo. Portanto, nunca se deve isolar o preceito nem no seu contexto (a lei em tela, o código: penal, civil, etc.) e muito menos na sua concatenação imediata (nunca leia só um artigo, leia também os parágrafos e os demais artigos). De modo geral por exemplo, a questão de saber se uma lei pode, sem limitação, criar restrições a atividade comercial e industrial de empresas estrangeiras, leva o interprete a busca, no todo (sistemático) do ordenamento, um noção padrão de empresa nacional e seu fundamento nas normas constitucionais. Assim, diante de uma lei que de fato estabelecesse tais restrições, é preciso saber se a constituição ao estabelecer a igualdade de todos perante a lei e discriminar ela própria, alguns casos em que o principio se vê excepcionado, cria algum principio geral sobre as exceções autorizadas”. FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 1997. p. 354. 51 TEMER, op. cit. Pg. 23 52 Como diria KELSEN “E o fundamento de validade de uma ordem normativa é uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem”. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. Ed. Martins Fontes. 1999, p..33. 53 Idem, p. 214. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 424 É mediante o princípio da dignidade da pessoa humana, que retira-se a validade de todo o ordenamento jurídico brasileiro. O ordenamento jurídico brasileiro atual, sem respeito a este princípio é uma violação à República Brasileira, à sua Constituição e a seus fundamentos. A TÁBUA DE VALORES CONSTITUCIONAIS NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA Inicialmente, apresentam-se dois casos onde constata-se, na sustentação da decisão judicial, o fundamento da dignidade da pessoa humana. Valendo frisar que essas tais julgadas foram prolatadas antes da Constituição Federal de 1988, mas que entretanto, já tinham o “espírito” Constitucional de 1988. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E LIBERDADE PROVISÓRIA O primeiro caso jurisprudencial citado, ocorreu no estado do Espírito Santo, onde o Juiz de Direito concede a liberdade provisória a uma acusada por acreditar que a prisão da mesma, que estava grávida, seria um suplício muito grande tanto para a genitora quanto para a criança, fundamentando que tal decisão, de dar liberdade a àquela, protegeria a dignidade de ambos. A acusada é multiplamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista, por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta, por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo, por não ter saúde, por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este Juiz teria de se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia. É uma dupla liberdade que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para seu filho que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com força para lutar, sofrer e sobreviver. Quando tanta gente foge da maternidade, quando pílulas anticoncepcionais, pagas por instituições estrangeiras, são distribuídas de graça e sem qualquer critério ao povo brasileiro, quando Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 425 milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento são esterilizadas, quando se deve afirmar ao Mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais, quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si. Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão. Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão. Expeça-se incontinenti o alvará de soltura. 54 A denunciada no caso em questão, era acusada de tráfico de drogas e estava presa por força da prisão em flagrante. Comparece a mesma a Juízo, pedindo a liberdade provisória. Da análise da decisão em questão, percebe-se que a mesma, que concedeu a liberdade à acusada, não é fundamentada em nenhum requisito legal do Código de Processo Penal, 56 mas sim em um princípio, o princípio da dignidade humana, como uma mãe presa, há um mês de dar a luz, pode dar uma vida digna ao seu filho que vai nascer em uma cadeia? Que dignidade terá a grávida ao conviver com seu filho em um ambiente, como uma prisão? Sem dúvida o MM. Juiz de Direito, no caso em questão, João Baptista Herkenhoff, concede a liberdade à acusada Edna, baseado no princípio da dignidade humana, para que ela e, principalmente, seu filho tenham um mínimo de dignidade, já que são vítimas de inúmeros sofrimentos, segundo muito bem frisa o magistrado. Tem-se, no presente, caso a dignidade sustentada como uma condição mínima de cuidados com a pessoa, com a criança que vai nascer e com sua mãe, tem-se a dignidade analisada como um respeito ao estado de gravidez e seus cuidados. 55 54 Sentença retirada do livro: Uma Porta Para o Homem no Direito Criminal. HERKENHOFF, João ª Baptista. 4 Ed. Editora Forense. Poder Judiciário do Espírito Santo - Primeira Vara Criminal de Vila Velha. Autos 3.775\1.978 - Sentença Concedendo Liberdade Provisória à Denunciada. MM. Juiz de Direito: João Baptista Herkenhoff. 55 Artigo 12 da Lei 6368/76 56 Artigos 310 e seguintes que tratam da liberdade processual. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 426 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SENTENÇA CRIMINAL ABSOLUTÓRIA No segundo caso citado, tem-se a dignidade da pessoa humana como um subsídio para absolvição de uma acusada de ter praticado lesões corporais, no caso em que, segundo o Magistrado, o que também importa para a Justiça criminal é o valor da pessoa humana e a recuperação dos cidadãos. Passo a decidir: a Justiça Criminal, dentro de uma visão formalista, localiza-se no passado, julga o que já foi. A Justiça Criminal, numa visão humanista, coloca-se no presente e contempla o futuro. A Justiça Criminal não é uma máquina de calcular que só fecha suas contas quando o saldo é zero. A Justiça Criminal é sobretudo um ofício de consciência, onde importa mais o valor da pessoa humana, a recuperação de uma vida, do que a rigidez da lógica formal. A prova testemunhal convence que Edna S. é hoje, uma pessoa, inteiramente, recuperada para o convívio social. Como ficou demonstrado, sua vida está dedicada inteiramente a sua casa. Compareceu hoje, perante este Juízo com uma filha nos braços. Insondáveis caminhos da vida... Da última vez que aqui veio, esta criança, que hoje traz nos braços, ela trazia no ventre. Por despacho deste Juiz, foi naquela ocasião posta em liberdade. Creio que a sentença justa, no dia de hoje, é a sentença que absolve a acusada. Não se trata da sentença sentimental, da sentença benevolente, como se julga, tantas vezes, erradamente, sejam as sentenças deste Juiz. É a sentença que crê no ser humano, é a sentença convicta, que muitas vezes, pessoas marginalizadas pelas estruturas sociais encontram, no contacto com o julgador, o primeiro relacionamento a nível de pessoa. Absolvo a acusada na esperança em voz alta, sentença ouvida, palavra por palavra, pela acusada, para que sinta ela que desejo que tenha uma vida nova. Libertoa deste processo e espero que nunca mais fira quem quer que seja. Considerando tudo que foi ponderado, acolhendo as razões do Ministério Público e da Defesa, atendendo ao gesto de perdão da vítima Neuza Maria Alves, atento à criança que Edna traz no colo, sua filha Elker, desejando que esta sentença seja um voto de confiança Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 427 que Edna saiba compreender – ABSOLVO a acusada da imputação que lhe foi feita. 57 A denunciada foi levada a julgamento, pois teria supostamente praticado lesões corporais 58 contra a vítima em questão. Lendo a sentença do MM. Juiz de Direito percebe-se que já nas primeiras linhas há fundamentação da sentença absolutória. Acredita mais uma vez o magistrado que a Justiça, no caso em questão, a Justiça Criminal, deve se moldar no princípio da pessoa humana, no valor da pessoa humana. A ré não foi absolvida por ter praticado uma ação atípica, imbuída de excludente de antijuridicidade ou culpabilidade. Ela foi absolvida por acreditar o MM. Juiz de Direito que a mesma é uma vítima, e que uma condenação contra ela iria violar a dignidade da pessoa humana, no caso em questão, o valor da pessoa humana, citado pelo magistrado. Em que pese as considerações de caráter penal, acredita-se que esta decisão, nos dias de hoje, estaria plenamente amparada pela Constituição Federal, e é passível de elogios, de um Juiz, dez anos antes da Constituição Federal de 1988, já tinha em mente princípios que muitas vezes, são esquecidos por alguns magistrados, legisladores e juristas. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PRECONCEITO O terceiro caso, ocorreu no Estado do Paraná. Um taxista é punido pela Associação por usar cabelo cumprido, ato que desrespeitava o estatuto da referida Associação. O Tribunal de Justiça confirma a sentença do Juiz a quo no sentido de declarar inconstitucional tal estatuto por violar vários princípios constitucionais, dentre eles também, o fundamento da dignidade da pessoa humana. ACORDAM OS DESEMBARGADORES INTEGRANTES DA 7A CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ. POR UNANIMIDADE DE VOTOS, EM NEGAR PROVIMENTO A APE57 Sentença retirada do livro: Uma Porta Para o Homem no Direito Criminal. HERKENHOFF, João Baptista. Poder Judiciário do Espirito Santo - Primeira Vara Criminal de Vila Velha.Autos 3.724\1.978 Sentença Absolutória - MM. Juiz de Direito: João Baptista Herkenhoff. 58 Artigo 129 do Código Penal Brasileiro. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 428 LAÇÃO E AO RECURSO ADESIVO. EMENTA: CAUTELAR INOMINADA/REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. TAXISTA DE CABELO COMPRIDO PUNIDO PELA ASSOCIAÇÃO DOS MOTORISTAS COM O DESLIGAMENTO DA FREQÜÊNCIA DO RÁDIO INSTALADO EM SEU VEÍCULO. INCONSTITUCIONALIDADE DA LEGISLAÇÃO MUNICIPAL E DAS NORMAS INTERNAS DA ASSOCIAÇÃO. DETERMINAÇÃO DE PERFIL DE APARÊNCIA NÃO RAZOÁVEL. DISCRIMINAÇÃO INJUSTA. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE INDIVIDUAL, ISONOMIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROCEDÊNCIA: TOTAL DA CAUTELAR E PARCIAL DA PRINCIPAL. DECISÃO CONFIRMADA. 1. DECRETOS MUNICIPAIS (NS.18/ 90 E 7/94) E NORMAS REGIMENTAIS E ESTATUTÁRIAS DA ASSOCIAÇÃO, QUE DETERMINAM E PUNEM O TAXISTA, POR USAR CABELOS COMPRIDOS, SÃO INCONSTITUCIONAIS, POR ACARRETAREM A VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE INDIVIDUAL, ISONOMIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 59 No terceiro caso, acima, depara-se com um motorista de táxi que é punido pelo estatuto da associação dos taxistas, o qual prescreve condutas dos mesmos. O taxista é punido por ter cabelos cumpridos. O juiz a quo decretou a inconstitucionalidade do regulamento da associação e condenou a mesma por ter cortado o rádiotáxi autor como punição. Os réus recorreram e o presente acórdão confirma a sentença inicial e nega provimento ao recurso da associação. Invocando princípios constitucionais como a liberdade individual, a isonomia e principalmente o fundamento República da dignidade da pessoa humana, o Tribunal de Justiça do Paraná afasta o estatuto dos taxistas por considerar o mesmo inconstitucional, por violar os princípios e fundamentos constitucionais supra citados. A decisão do Tribunal de Justiça do Paraná, demonstra muito 59 TJPR – AC- Autos 124094600 – Relator Des. Accacio Cambi. Disponível em www.tj.pr.gov.br. Acesso em 14 de outubro de 2003. Poder Judiciário do Estado do Paraná - Tribunal de Justiça. Apelação Cível. – ª 7 Câmara Cível. Data de Julgamento: 09/09/2002. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 429 bem os princípios arraigados neste trabalho. Onde qualquer violação à dignidade da pessoa humana deve ser afastada e muitas vezes até passível de punição. Muitas são as decisões em que encontra-se presente o fundamento da dignidade da pessoa humana. Entretanto existem casos em que este fundamento é totalmente esquecido, deixado de lado. Julgamentos onde os motivos políticos, muitas vezes, são mais fortes que os motivos jurídicos e que os motivos sociais. O CASO OLGA BENARIO PRESTES E O CASO EDNA S. O caso de Olga Benario Prestes, é citado no item 2.2 deste trabalho, onde Olga, grávida, é expulsa do Brasil por razões políticas: seu marido Luís Carlos Prestes60 estava preso por suspeita de golpe de estado. Olga que era alemã, era membro do partido comunista alemão e judia. O fato era que Olga foi expulsa do país grávida, sem as condições mínimas de higiene e segurança, violando até mesmo as regras internacionais da navegação. Os pareceres jurídicos da época dos juristas já citados no item supra citados, ignoravam o princípio da dignidade da pessoa humana, e citavam razões de estado para expulsar Olga. Ocorre que não existia nenhuma acusação contra ela, nenhuma ação penal, seja no Brasil seja na Alemanha. Ademais tais pareces, violavam, flagrantemente, a Constituição vigente na época. Estar grávida, tornou-se para Olga, um sacrifício imenso, ao atravessar o oceano em condições subumanas e grávida. A decisão que expulsa Olga Benario Prestes do Brasil é na época considerada legal. Por outro lado temos o caso de Edna S., presa por força de prisão cautelar, é solta por um Juiz do Espírito Santo, por considerar que a mesma não poderia dar um nascimento, um início de vida digna ao seu filho na cadeia. Não apenas o fato das duas mulheres estarem grávidas, mas também o fato da citação do princípio da dignidade da pessoa humana, igual a situação de ambas cidadãs. 60 Luís Carlos Prestes ficou preso cerca de 10 anos, até ser assinada a lei da anistia. Alguns anos depois Prestes foi o senador mais votado da história da República do Brasil. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 430 No caso de Olga percebe-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, que na época não era positivado na Constituição Brasileira de 1934, mas o mesmo já fazia parte de um direito inerente a todos nós, o direito natural. O direito natural de uma vida digna. O que mais revolta, é que o mesmo foi afastado por questões políticas, ideológicas. Já no caso de Edna S., o MM. Juiz resgata o direito natural a uma vida digna, que também na época não era positivado. A Constituição vigente era a de 1967. A importância destes casos para o presente trabalho é que analisando os dois casos às vistas da Constituição Federal de 1988, apenas a segunda decisão, no caso de Edna S. seria constitucional, pois estaria abraçada pelo princípio da dignidade da pessoa humana. A decisão de expulsar Olga Benario Prestes do Brasil, hoje, seria considerada ilegal, inconstitucional, por violar o fundamento da República, a dignidade da pessoa humana. O PORQUÊ DO FUNDAMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Inicialmente, cabe frisar que a dignidade humana, sempre foi considerada como um direito nas mais diversas Declarações de Direitos dos Homens, e face a sua importância para o ordenamento jurídico brasileiro, a mesma foi elevada ao status de fundamento constitucional. Como dito acima, o princípio da dignidade da pessoa humana é posto na Constituição Brasileira como um fundamento da República. Acredita-se que o legislador constituinte quis dar a este princípio da dignidade da pessoa humana, não apenas um caráter instrumental, mas também um caráter finalístico, ou seja, todas as ações devem basear-se por este fundamento. Todas as ações devem pisar nos degraus da dignidade da pessoa humana. A Consagração deste princípio, fundamento, com certeza, teve influência nas Declarações Internacionais de Direitos Humanos, que após a Segunda Guerra Mundial serviram para “positivar” os então direitos naturais que regimes totalitários haviam violado. Após a Segunda Guerra, com a Declaração de Direitos do Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 431 Homem, em 1948, a dignidade da pessoa que está incluída nesta declaração, toma papel importantíssimo, moldando toda a subseqüência da Declaração de Direitos do Homem e todas as legislações que vieram a mesma reconhecer. A Constituição Brasileira foi promulgada após mais de 30 anos de ditadura militar no país, mais de 30 anos de tortura, de desaparecimento de pessoas, de violações aos mais básicos direitos dos cidadãos. Com certeza o medo, a angústia causada por esta época negra na história do Brasil fez com que o legislador constituinte desejasse fundar o novo país, que nascess com a Constituição de 05 de outubro de 1988, com dignidade da pessoa humana. O exemplo do totalitarismo e das ditaduras militares no mundo trazem à tona a aversão a qualquer tipo de medida que possa violar os direitos humanos. A fixação da dignidade da pessoa humana, como fundamento da República deve obrigar medidas públicas para a proteção efetiva da dignidade das pessoas. O que não se pode admitir é que Constituição Brasileira seja desrespeitada e que interpretações da mesma possam excluir tal princípio. Se o princípio da dignidade da pessoa humana, não for base para a interpretação de todas as leis e atos legais no país estar-se-á negando a própria Constituição, o próprio país e estar-se-á colocandoa ela para ser vendidas nas galeria de ficção das livrarias, como certa vez escreveu e afirmou o Prof. Fábio Konder COMPARATO: “A única razão de ser de uma Constituição é proteger a pessoa humana contra o abuso do poder dos governantes.” 61 Durante anos, viveram os cidadãos brasileiros com violações graves a direitos humanos, e até mesmo direitos constitucionais no Brasil. O levante da dignidade da pessoa humana vem consagrar a defesa do cidadão contra qualquer tipo de governo ou estado autoritário. A dignidade da pessoa humana é um fundamento absoluto, ou seja, não pode em nenhuma hipótese sofrer restrições. Segundo DE PLÁCIDO E SILVA: “Assim se diz o direito, que, por sua própria força e plenitude, é oposto a toda e qualquer pessoa, erga omnes(...) O direito 61 Folha de São Paulo. 14.05.1998. Tendências\Debates. Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 432 absoluto dá, assim, a faculdade de agir ou poder agir, sem restrições, contra qualquer pessoa que venha atentar ou ferir o direito de que se é titular.”62 Acredita-se ser a dignidade da pessoa humana o único fundamento absoluto do sistema jurídico brasileiro. Alguns diriam que o direito á vida é absoluto, entretanto, no direito brasileiro, este direito não é absoluto, visto que a pena de morte, no Brasil pode acontecer nos casos de guerra, segundo a Constituição Federal. Também a liberdade, no direito brasileiro não é um direito absoluto, pois pode sofrer diversas limitações, como nos casos da condenação penal. Sendo um fundamento absoluto, não se pode afastar a dignidade da pessoa humana nunca, sob pena de estar-se tomando uma decisão inconstitucional e contrária aos princípios da República Federativa do Brasil. Mesmo aquele que é condenado a vários anos de prisão, tem o direito à dignidade, tem direito a um estabelecimento prisional que respeite sua integridade moral, física e psicológica. O fundamento da dignidade da pessoa humana, advindo ao direito brasileiro em 1988, é também prescrito no artigo 1º da Constituição do Estado do Paraná, e na Lei Fundamental da Alemanha-Constituição Federal da Alemanha. 63 CONSIDERAÇÕES FINAIS A real mudança que acontece no direito positivo brasileiro, é que com o advento da Constituição Federal de 1988 e o estabelecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, não se deverá admitir nenhuma ação que vise contrariar este fundamento. O que demonstra-se é que a dignidade da pessoa humana, com a edição da Constituição de 1988, deve ser obrigatoriamente, sob pena de inconstitucionalidade à base de toda ação. Procurou-se esclarecer que a positivação do princípio da dignidade da pessoa humana, veio de uma luta de anos, principalmente no Brasil, país que muito sofreu com as ditaduras. 62 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 76. o Art. 1 A dignidade da pessoa humana é inviolável. Todas as autoridades públicas têm o dever de a respeitar e proteger. A LEI FUNDAMENTAL DA ALEMANHA DE 23 MAIO DE 1949. COIMBRA EDITORA: 1996. 63 Revista Jurídica Mater Dei - Volume 4 - Número 4 433 Casos em que o fundamento da dignidade da pessoa humana é violada, como o citado acima de Olga Benário Prestes, não são mais admitidos pelo sistema jurídico brasileiro e não têm amparo legal algum. A positivação da dignidade da pessoa humana, se faz comprovar que a mesma, é mais que uma lei, é um fundamento constitucional da República e faz parte deste país como a nossa própria constituição. O fato de caracterizar a dignidade da pessoa humana como um fundamento constitucional absoluto, estabelece que a mesma, em nenhuma hipótese poderá ser suprimida na interpretação de qualquer ato do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário. Assim como a Constituição do Estado do Paraná, da República da Alemanha, a Constituição da República Federativa do Brasil, veio a fixar a dignidade da pessoa humana, logo no primeiro artigo, o que demonstra a importância que a mesma exerce também no direito internacional. A dignidade da pessoa humana, então, neste plano almejado, é um respeito à integridade das pessoas, um respeito às condições mínimas de vida, uma não interferência na integridade moral, física e psicológica das pessoas, respeitando sempre a individualidade de cada pessoa, seus direitos e suas idéias. REFERÊNCIAS A CONSTITUIÇÃO NA VISÃO DOS TRIBUNAIS: interpretação e julgados artigo por artigo. Brasília: Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Gabinete da Revista. 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