A literatura infantil chinesa da poesia à prosa: Uma história sem
espaço à criança
Márcia Schmaltz
Márcia leciona na Universidade de Macau e traz ao leitor brasileiro um olhar sobre
poesia e prosa dirigidas às crianças da China. E o faz com desenvoltura tanto pela
sua experiência como professora em universidades chinesas como por ter
estudado em Taiwan na sua infância. O que ela apresenta aqui não se baseia
porém na memória, mas em um trabalho de pesquisa literária sistemática,
localizando, dentro dela, a criança, antes não considerada como indivíduo mas
agora passando a ter direito a essa consideração. A autora reconhece que a
abertura chinesa possibilitou a profusão de editoras e de publicações voltadas ao
público infantil, mas seguindo as regras do mercado e privilegiando os clássicos
chineses e ocidentais de caráter educativo.
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“Contos infantis é um tipo de gênero da Literatura Infantil, escritos por uma imaginação fértil e fantasiosa
para refletir sobre a vida e com finalidade educacional às crianças”.
(verbete sobre “Histórias Infantis”, na enciclopédia chinesa[i]).
1. Introdução
Traço neste artigo algumas linhas gerais do estado da arte da Literatura Infantil chinesa. O estudo revela
que apesar de 20% da população do Império do Meio constituir-se de jovens entre 0 a 14 anos[ii], a
variedade de produção e de estudos científicos nesse gênero não espelha a grandiosidade desse número.
Depois da análise cuidadosa da literatura existente, tomei por base Tian; Guo (2007), Wang (2005), Wang
(2003, 2008) e Lu (1973), por oferecerem uma abordagem histórica mais ampla e crítica sobre o tema.
Para facilitar a exposição, dividi a produção da literatura infantil chinesa em três períodos: Clássico (1100
a.C até 1915), Revolucionário e de Denúncia (1915-78) e o pós-Reforma e Abertura (início da década de
80 até os dias de hoje), conforme Wang (2003). O estudo ao final conclui que uma das possíveis causas
desse estado da arte da literatura infantil chinesa, tem origem numa cultura social alicerçada em um rígido
código moral, onde o gênero esteve a serviço da educação.
2. Pesquisa e produção em Literatura Infantil chinesa
Ao analisar a bibliografia científica existente, conclui-se que as linhas de pesquisas em Literatura Infantil
chinesa se centralizam na (i) história do desenvolvimento das estórias infantis, (ii) na discussão entre “o
lugar da criança” e “o lugar do adulto” e (iii) às análises e investigações teóricas das tendências “líricas” e
“políticas”. Existem poucos estudos de análise de criação literária de autores individuais.
A procura em bibliotecas e livrarias revelou que os títulos das histórias infantis chinesas disponíveis,
privilegiam as narrativas com finalidade educativa mais do que a libertadora da imaginação. O sentido de
educativo é empregado aqui como textos que visam à educação moral, com fins de culturalização e
socialização das crianças aos regramentos sociais que regem a maneira de se portar na sociedade
chinesa.
3. Cultura Tradicional Chinesa
A cultura tradicional chinesa está alicerçada principalmente sobre a filosofia confuciana[iii] que “se utiliza
das vozes racionais e sensatas de imperadores ancestrais para explanar a necessidade à honestidade, à
praticidade e ao respeito à hierarquia social” (ZHANG, 1989: 85), começando desde muito cedo a
construir uma barreira à imaginação e dirigindo a mente infantil a se fixar na realidade, isolando-a do
selvagem primitivo, da mitologia, das lendas e da ideação. “Confúcio não fala sobre o sobrenatural,
absurdos e heterodoxos” (Analectos, Livro XXII, 2006). Essa formação cultural foi contra aos preceitos
das histórias infantis serem um escape à imaginação, à inocência, à paixão e à ingenuidade. Por isso,
“durante longo tempo não se observou a produção infantil genuína e caso caiu alguma semente nessa
terra, dificilmente vingou, pois não encontrou terreno para se transformar em árvore” (Tian, Guo,
2007:103).
Esses preceitos estão depositados no inconsciente coletivo chinês, que buscam a integridade moral e a
virtude. Desta forma, observa-se que a literatura infantil se desenvolveu arraigada em uma cultura
clássica nessas bases, cujas transformações foram impulsionadas sobre fortes influências da conjuntura
histórica.
Antes ainda de adentrar na descrição deste período, é importante que se elucide o conceito de cultura
aqui abordado. Esse é entendido em seu sentido lato, ou seja, como todo o acúmulo dos processos de
criação de riqueza material e imaterial durante a trajetória sócio-histórica de uma dada comunidade. Em
sentido estrito, a cultura se refere à expressão ideológica correspondente a estrutura organizacional e ao
tipo de sistema de uma sociedade, no caso a chinesa.
A cultura tradicional chinesa está alicerçada sobre as doutrinas confuciana, taoísta e budista, sendo a
primeira hegemônica em relação às outras[iv]. Isso se deve a ela preceituar a uma gama mais variada de
situações de interações sociais humanas em relação às outras duas doutrinas, bem como soube absorver
o que lhe interessava das outras escolas.
Indubitavelmente, por seu fundador ser um professor é que a filosofia confuciana creditou à educação
uma importante função social e humanizadora, para ilustrar essa afirmação, trago as primeiras tríades da
Ode de Três Caracteres: “A natureza humana é bondosa e é através da influência do meio que a leva
para o mal. A educação se faz necessária desde cedo para que logo se possa distinguir entre o bem e o
mal[v].” Esse poema é ensinado nos primeiros anos do ensino fundamental e além de servir à
alfabetização, também visa à educação moral, enfatizando o ato de educação como estruturadora da
mentalidade ao rumo do sentimento da Humanidade.
O confucionismo se constitui como a principal doutrina filosófico-moral, e enfatiza a humanização e a
culturalização da sociedade, a qual se amalgamou no inconsciente coletivo chinês, como uma concepção
educacional. Aliado a isso, está a imposição de uma hierarquia estratificada que codifica a relação social,
onde preceitua a obediência filial (o respeito aos mais velhos pelos mais novos) como base para firmar o
laço da lealdade por parte do subordinado ao governante, a qual ninguém pode se rebelar (Fairbank,
Goldman, 2006). Por isso, a criança não terá lugar nesse período, por que a concepção de filialidade tem
o mais idoso como o centro e faz com que a sociedade considere a criança como imperfeita, não
qualificada e alvo preferencial de culturalização, e o adulto tem o direito e a responsabilidade sobre a
criança, a qual é irrefutável.
Para atingir o objetivo de culturalização, a cultura tradicional chinesa considera a criança como um adulto
em miniatura, que necessita ser moldada e ser exigida como a um adulto, encurtando-lhe o período
infantil. Essa exigência de amadurecimento precoce à criança fez com que o inconsciente coletivo
ignorasse a personalidade individual e as necessidades especiais das crianças e não produzindo
literatura voltada a essa faixa etária. As primeiras “obras infantis oficiais” anteriores a época moderna
como San Zi Jing “Ode de Três caracteres”, Bai Jia Xing “Todos os Sobrenomes”, Shengyu Guangxun
“Advertências”, Youxue Qionglin “Conhecimentos Elementares”, Qian Zi Wen “O Livro dos Mil Caracteres”,
Ershisi Xiao “Os Vinte e quatro filhos virtuosos”, entre outros, livros em versos tri ou tetrassilábicos
voltados para a formação da consciência e do caráter moral e de ajuda à alfabetização, onde as crianças
tinham de decorá-los.
Escritores como Lu Xun, registram em suas memórias, de como muitas vezes essas leituras, na fase
educativa inicial, eram apenas decoradas, sem explicações didáticas. Ele conta que certa vez, antes de ir
a uma quermesse, o seu pai condicionou a sua saída, em recitar de cor Jianlüe (Breve História) e o autor
declamava sem de nada entender do que se tratava o texto versado em estilo poético (1979: 38).
4. O Período Clássico
4.1 Poesia
As crianças além de decorar textos explicitamente com finalidade educativa, ainda tinham que memorizar
poemas clássicos, como Chuci “Poemas de Chu”, do período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C), os
poemas da Dinastia Tang (618-907) e da Dinastia Song (960-1279), entre outros; sem se esquecer do
célebre Shi Jing “Livro dos Cantares”, obra fundadora do gênero, reunida e organizada por Confúcio, a
qual reúne 305 poemas produzidos nos palácios reais e nas ruas, da Dinastia Zhou Ocidental (1100-771
a.C) até o período em que foi editado (em torno de 500 a.C) e era considerado um dos livros sagrados e
de leitura obrigatória.
O Livro dos Cantares reúne as letras de canções entoadas em rituais e eventos acompanhados de dança,
revelando a cultura de um período muito antigo. Os poemas são subdivididos pelos reinos, regiões e tipo
de evento (se para rituais de cunho religiosos ou para serem executadas no palácio real). Os versos em
sua maioria são tetrassilábicos e isométricos.
Chuci “Poemas de Chu”, antigo reino localizado no centro-sul da China, equivalente hoje as províncias de
Hubei e Hunan, teve Qu Yuan (?340-?278 a.C), patriótico e expoente romântico, o seu maior
representante. Os poemas em estilo épico e romântico têm suas métricas heterométricas (com
predominância de versos tetrassilábicos, alternando em redondilhas ou hexassílabos e muitas vezes, com
rimas externas), os quais descrevem a geografia, a história e a etnografia dessa região banhada pelo rio
Yangtzé, desenvolvida mais tarde em relação aos reinos da planície do Rio Amarelo. O poema mais
famoso é o Lisao, onde exalta o reino de Chu e chora pela invasão do reino de Qin, que unificará a China
pela primeira vez na história em 221 a.C.
A partir da Dinastia Tang, os poemas tetrassilábicos caem em desuso para dar lugar ao estilo moderno à
moda Tang: redondilhas maiores e menores de quatro ou oito versos, tendo as estrofes pares rimas
fonéticas alternadas – observa-se a existência da rima de tons, e os terceiros e quartos versos devem
apresentar uma antítese. É o primeiro ápice das Letras chinesas, graças ao esplendor econômico devido
ao desenvolvido do comércio com o Oriente Médio. São mais de 2300 poetas e quase 50 mil poemas,
sendo 65 poetas com maior reconhecimento, e tendo seus poemas reunidos na obra conhecida como
Tangshi sanbai shou “300 poemas da Dinastia Tang”, que são ensinados e recitados pelas crianças até o
presente. Os seus temas são muito variados, abordam desde a política, revelando traços de
questionamento à ordem feudal ou à corrupção, como também de exaltação ou lamentação às guerras,
passando pelo amor, amizade, natureza, solidão, vida social e do trabalho, etc.
Li Bai e Du Fu são os poetas mais conhecidos[vi], seguidos por Bai Juyi e Wang Wei. Li Bai (701-762) foi
um expoente do romantismo, buscava a liberdade e desprezava a aristocracia, revelando forte influência
Taoísta. Vagou por diversos lugares durante dez anos, fez inúmeros amigos (Du Fu, inclusive), e foi
nomeado a um cargo na Academia Imperial, mas devido à inveja, foi envolvido numa cilada e acabou
sendo degredado, se tornando um eremita. Ele Deixou mais de 900 poemas para a posteridade,
transbordantes de lirismo. Se Li Bai era um idealista, Du Fu (712-770) já era um autentico seguidor do
Confucionismo, engajado com as questões sociais e políticas da época, sendo um expoente do realismo.
Depois de certo hiato, as Letras chinesas vêm a ter outra vez, o seu segundo apogeu com Song Ci,
Versos da Dinastia Song, recuperando a liberdade do estilo clássico antigo (Livro dos Cantares e Poemas
de Chu) e renovando a poesia com seus versos heterométricos, que são classificados de acordo com o
número de ideogramas (que corresponde a uma sílaba): lírica curta, de até 58 caracteres, lírica média,
entre 59 a 90 caracteres e lírica longa, acima de 90 caracteres, ainda dá atenção à melodia. Esse gênero
poético de origem popular tem ligação estrita com a música, pois eram letras de canções que
gradativamente foi requintando-se e amadurecendo, para finalmente ser apropriada pelos literatos e
simbolizando o espírito de um período.
São duas as escolas principais: Wanyue,graciosa e contida, distante dos problemas mundanos e centrado
mais em questões sentimentais e em harmonia com a natureza, com ritmo harmonioso e moderado,
representada por Liu Yong (987-1053?), Li Qingzhao (1084-1151), Ou Yangxiu (1007-1072), entre outros;
e a Haofang,direta desinibida e de denúncia, representada por Su Shi (Su Dongpo).
4.2 Prosa poética
Mas paralelamente a doutrina oficial, existia a escola dos Novelistas[vii], conforme Lu (1973), onde
mesmo tendo as suas obras marginalizadas e proibidas faziam a alegria da criançada, por tratarem de
temas sobrenaturais, heroísmos e maravilhosos, muitas vezes ricamente ilustrados que os impúberes liam
furtivamente e os guardavam, permanecendo até hoje nas prateleiras. Entre os numerosos títulos,
destaco aqueles que mais encantaram as crianças e os adolescentes:
Shanhai Jing(O Livro da Natureza) é considerado como o primeiro livro a registrar a geografia, totalizando
550 montanhas e 300 rios, permeados por descrição e registros de hábitos, costumes, lendas, mitos,
acontecimentos fantásticos e invenções desses lugares visitados. O(s) seu(s) autor (es) é desconhecido e
os historiadores acreditam que os fatos relatados provêm da tradição oral, que vinha sendo reunida desde
o período dos Estados Combatentes (475-221 a.C) e publicado em livro por Liu Xiang na Dinastia Han
Ocidental (entre 475a.C-24 da Era Atual), a partir de expedições de sondagens. Apesar de seu cunho
maravilhoso, é reconhecidamente como uma fonte fundadora dos mitos chineses como “Pássaro de Nove
Cabeças”, “Kuafu em busca do sol”, “Nüwa remendando o céu” entre outros, e tem um alto valor
historiográfico e sociológico.
Esse livro fascinou gerações de crianças entre os séculos, por relatar viagens a lugares distantes em
relação à planície do Rio Amarelo, onde descrevem seres extraordinários, acompanhados por ilustrações
esmeradas de criaturas mitológicas e mapas que davam asas à imaginação infantil. Escritores como Lu
Xun (1979), por exemplo, conta detalhadamente em suas memórias, o fascínio que esse livro exerceu
sobre a sua infância e de como o influenciou não só a si mesmo, como a muitos escritores da antiguidade,
como da Dinastia Tang. É considerado como a obra mais influente aos gêneros fantástico e sobrenatural.
Sou Shen Ji(À procura dos deuses) de Gan Bao foi escrito na Dinastia Jin (265-420) é considerado
popularmente como um livro fantástico, permeado de registros de acontecimentos estranhos e de
assombrações. Hoje em dia é considerado como um dos primeiros livros de cunho jornalístico (ZHAO,
2002).
Taiping Guangji (Registros de Taiping) organizado por Li Fang et alii no terceiro ano do reinado Taiping
(978), por isso desse título. É um livro que reúne toda a literatura de cunho sobrenatural e maravilhoso
produzido até então e, por isso, de alto valor histórico, pois muitos dos livros reunidos nesse, foram
perdidos. Ele é organizado por 92 temas como, deuses, assombrações, maus espíritos, animais e
criaturas, contos budistas e taoístas, etc.
Fengshen Yanyi (Romance da Apoteose) de Chen (ou Xu) Zhonglin da Dinastia Ming (1368-1644) é um
romance de cunho sobrenatural, onde tem como pano de fundo o caso verídico do golpe do rei de Zhou
ao então imperador da Dinastia Shang (1600-1100 a.C), dando início à Dinastia Zhou (1100 a.C-221 a.C).
O enredo se desenrola a partir da oferenda do rei ao templo de Nüwa, deusa mitológica e criadora da
humanidade, e o nascimento da divindade Natuo ao plano terreno que mais tarde irá apoiar o rei de Zhou
na derrubada do império Shang. A história se desenvolve através da disputa pela hegemonia dos deuses,
imortais e espíritos até a apoteose de 365 imortais.
Xi You Ji (Viagem ao Oeste) de Wu Chengen (?1500-?1582) da Dinastia Ming (1368-1644) é um dos
quatro cânones da literatura clássica chinesa. O romance de cunho sobrenatural, que transfigura a
viagem verídica do monge Xuan Zang (602-644) na Dinastia Tang (618-907) em busca dos livros
sagrados na Índia, adicionando acompanhantes míticos, como o seu cavalo branco, o imortal Sun
Wukong, rei dos macacos, que se tornou imortal e super poderoso ao comer os pêssegos do Jardim
Celestial, Zhu Bajie, um deus que por ter molestado a deusa da lua foi castigado a descer ao plano
terreno. Mas devido a um erro divino, o correu um problema na sua encarnação, acabou nascendo com
cabeça de porco e corpo de homem, e o monge Sha, um deus que por ter quebrado a lamparina sagrada
foi condenado a descer ao plano terreno e carregar as malas do monge Xuan em sua viagem.
Os quatro personagens após enfrentarem oitenta e uma dificuldades conseguem chegar à Índia e trazer
de volta à China os livros sagrados budistas e os três acompanhantes são reempossados em suas
funções divinas.
San Guo Yanyi (O Romance dos Três Reinos) de Luo Guanzhong (?1330-?1400) é um dos quatro
cânones da literatura clássica e a primeira narrativa longa chinesa. O livro de cunho histórico, a qual
transcreve para o papel a narrativa oral a saga da disputa dos Três Reinos (220-280) pela hegemonia do
Império do Meio. O escritor consegue descrever de forma vívida dezenas de personagens que irão
permanecer gravados no imaginário popular até os dias de hoje.
Shuihu Zhuan (Na Ribanceira somos todos irmãos) de Shi Naian (?1330-?1400) e Luo Guanzhu, é um
dos quatro cânones da literatura clássica chinesa. Tem como fundo histórico o levante popular liderado
por 36 homens (1119-1121) da Dinastia Song do Norte (960-1127) e que já havia se tornado uma lenda
de narrativa oral e muito popular.
Honglou Meng (O Sonho do Pavilhão Vermelho) de Cao Xueqin (?1715-?1763) é um dos quatro cânones
da literatura clássica chinesa. O enredo tem como precedente a narrativa de como o autor obteve essa
estória, ao copiar de uma inscrição gravada em uma pedra durante as suas andanças pelo mundo.
Quando ao fim do trabalho de remendo do céu pela deusa Nüwa, sobrou uma pedra que ela abandonou
no confim do universo. A pedra que havia passado durante muito tempo sozinha, se entusiasmou pelo
relato das vicissitudes humanas relatados por dois monges, e pede a eles para a levarem para o mundo.
Os monges atendem ao seu pedido e essa pedra encarna como Jia Baoyu, filho de um mandarim em
decadência, que nasce com uma jade na boca e tem seu destino de união traçado com Xue Baochai, que
nasce com um adorno dourado para o cabelo. Entretanto, Jia Baoyu ama Lin Daiyu, sua prima distante,
mas não conseguirá fugir de seu destino.
O romance se tornou um cânone devido ao detalhamento descritivo de personagens e uma complexa
rede de relações sociais, se tornando um retrato de uma época.
Liaozhai Zhiyi (Registros extraordinários de Liaozhai) de Pu Songling (1640-1715) da Dinastia Qing (16441911). São 491 contos de cunho fantástico e sobrenatural. Seres humanos e espíritos do além se
encontram devido a uma antiga concepção chinesa de que os semelhantes se atraem.
Jinghua Yuan (O Destino refletido feito flor ao espelho) de Li Ruzhen (1763-1830) da Dinastia Qing (16441911) é um romance de cunho sobrenatural e único por ter as mulheres no papel principal. O enredo tem
o reinado da única imperatriz chinesa, Wu Zetian (624-705) da Dinastia Tang (618-907) como pano de
fundo histórico, tem o precedente a embriaguez dessa imperatriz que ordena as flores se abrir em pleno
inverno. Como o deus das flores estava em viagem; as fadas acatam a ordem real, o que provoca a ira do
Deus Celestial por contrariar a ordem natural e os ordena para o plano terreno, o deus e as fadas das
flores encarnam em humanos e então o enredo transcorre centralizado na personagem principal Tang
Xiaoshan em busca de seu pai que foi viajar pelo mundo.
Ernü Yingxiong Zhuan(Biografia de heróis e heroínas) de Wen Kang (?1800-?1875) da Dinastia Qing
(1644-1911) é um romance de heróis e heroínas que lutam pela justiça em uma China esfacelada pela
corrupção governamental generalizada e pela invasão estrangeira. O romance é em estilo realista,
revelando as profundas contradições sociais do período, contudo a sua escrita é permeada dos códigos
morais estratificados confucianos.
Todos os títulos acima e os demais não listados, não foram escritos para o público infantil, mas acabou se
tornando a leitura infantil e juvenil. A sua leitura em chinês clássico em verso era difícil e muitas vezes
tinham de se recorrer às glosas explicativas ou mesmo o apoio de leitores mais experientes.
Concluiu-se, portanto, que apesar da riqueza da produção literária no período clássico, não se observa
uma produção lúdica voltada ao público infantil. Mesmo com a profusão de cantigas populares infantis,
observa o predomínio instrucional e moralizante.
5. O Período do Humanismo, Revolucionário e de Denúncia
Falamos anteriormente que a literatura infantil se desenvolveu arraigada em uma cultura clássica, cujas
transformações foram impulsionadas sobre fortes influências da conjuntura histórica. Pois, à passagem do
século vinte, foi extremamente doloroso para o povo chinês. A partir da metade do século XIX, a nação
encontrou-se arrasada pela guerra e pela corrupção generalizada. Ventos de mudança política na entrada
de 1900, influenciados pela invasão estrangeira, se prenunciavam pelos movimentos revolucionários que
iriam também se organizar nas artes.
No campo da literatura surgiu um movimento denominado de Nova Literatura que pregava a escrita
coloquial (Baihuawen)na literatura, à semelhança da Semana de 22 do Brasil. O ápice foi o Movimento de
Quatro de Maio em 1919, que exigia das grandes potências a renúncia às suas esferas de influências na
China, que as tropas estrangeiras fossem retiradas e, por último, que lhes fossem devolvidas as
concessões e territórios arrendados, bem como a restituição das alfândegas. A Nova Literatura visava a
promover o indivíduo e colocou a criança como um ser independente e reconhecido como pessoa, a qual
brotou o sentido contemporâneo de Literatura Infantil, contudo “muito ainda haveria de ser feito, mas não
seremos nós criados sobre as velhas tradições que poderemos fazê-la” como expõe Lu (1973, 130),
somado ao período atribulado da passagem do regime feudal ao republicano, assolado pelas disputas
internas e invasão estrangeira, a literatura infantil chinesa ainda não conseguira colocar em prática os
seus ideais. Mesmo assim, surgiu Ertong Shijie (O Mundo da criança) uma importante revista quinzenal,
com poesias, contos, estórias e brincadeiras voltadas especialmente ao público infantil, editada em
Shanghai, circulou entre 1922 a 1937.
Nesse período a literatura estava a serviço da denúncia da realidade: expondo as amarras geradas pelo
Confucionismo, aos quais os senhores feudais eram adeptos; o estado semicolonial imposto pelos
estrangeiros, etc., mas também foi o período onde foi introduzida a literatura infantil estrangeira, onde
foram traduzidas e lançadas as obras de La Fontaine, Ésopo, Irmãos Grimm, Iandersen, bem como
estórias infantis de cunho popular do Japão, da Rússia e do Leste Europeu.
Escritores como Ye Shengtao e Zhang Tianyi das décadas de vinte e trinta respectivamente, revelam em
suas obras imaginação artística, mas foram homens de seu tempo e “impingiram-nas de um espírito
realístico” (Yang, Wang, 2006:66), “os quais não conseguiram fugir de uma tradição de literatura como
ensinamento” (Tian, Guo, 2007:104). Estórias como “O Espantalho”, “Linzão e Linzinha” e o “Rei Tutu”
são uma ode à união dos trabalhadores e um chamamento ao levante das classes oprimidas contra as
dominantes. O próprio Zhang Tianyi afirma que “qualquer pessoa, por menos que seja tem de saber a
verdadeira razão das coisas” (Zhang, 1980:46, APUD Tian, Guo, 2007:104), e defende que “os jovens
tinham que saber e compreender aquela sociedade obscurecida, para estimular-lhes o espírito contra o
estado das coisas e perceberem de como é vergonhoso de ser apenas um parasita” (Zhang, 1980:87,
APUD Tian, Guo, 2007:104). Ye Shengtao também se justifica dizendo que “desde os nossos ancestrais,
ao nascermos, caímos na sociedade decadente. A nossa capacidade inata de expressão lúdica foi
reprimida pelo ambiente de luta que nos cercava” (Ye, 1997:75, Apud Tian, Guo, 2007:104). Como disse
Wang, “como falar de fantasia tendo o país invadido pelos japoneses?” (2005: 52).
A literatura infanto-juvenil permaneceu a serviço da educação moral, nas décadas de cinqüenta e
sessenta. Onde exaltava o operário, o agricultor e a revolução, que considerava o amor ou a
benevolência como conceitos capitalistas; onde gerações inteiras de crianças cresceram ouvindo a
história do Lobo Mau, do Barba Ruiva e do Pinóquio e outras de origem popular, mas sempre com forte
viés ideológico e de como enfrentar as “forças do mal”.
6. Período Pós-Reforma e Abertura
Durante a jornada de minha pesquisa percebi que a literatura infantil chinesa foi e é permeada com um
forte cunho de ensinamento, mas também se percebe essa tendência de doutrina moral no Ocidente
desse gênero no século XIX, como observado por Schmaltz, Cauduro (1999). É na verdade, uma
trajetória de não reconhecimento da criança como indivíduo até ela ter lugar de voz ativa na sociedade,
como se observa a partir do final da década de setenta até os dias atuais.
Com o fim da Revolução Cultural (1966-1976), a China iniciou um processo gradativo de abertura, onde
ares liberais começaram a exercer influência nos campos das artes, inclusive. Na década de oitenta é
lançado ao mercado fábulas e parábolas adaptadas de livros antigos ao público infantil, como de
Zhuangzi, Liezi, Han Feizi e de Liu Xiang, entre outros; e ocidentais como de Esopo e de La Fontainne,
bem como os contos de Grimm, Andersen, entre outros; também todos os clássicos em linguagem
adequada ao público infantil e juvenil e os “Trezentos Poemas da Dinastia Tang” voltam a ser recitados
nas salas de aula.
A literatura infantil da década de oitenta até o presente se observa que enquanto no ocidente proliferou o
gênero de ficção científica, esse não é notado na literatura chinesa (Wang, 2005:52). Parece que o
caminho percorrido pela imaginação dos descendentes do dragão é outra. Revela-se uma criatividade
fértil e o exemplo mais típico é a obra de Jin Yong (1924- ), que ao contrário do gênero ocidental, que
advém do avanço tecnológico; a chinesa se desenvolveu a partir da evolução da capacidade do corpo
humano, através de seus heróis de um tempo mítico, hábeis em artes marciais, em um ritmo de aventura,
ao estilo de filmes lançados no Ocidente, como “O Tigre e o Dragão” (2000) ou “O Clã das Adagas
Voadoras” (2004).
Esse estilo foi resgatado por Jin Yong, inspirado no caso verídico da época, onde gangues de artes
marciais se provocavam em anúncios pagos nos jornais de Hong Kong em 1952, culminando no anúncio
de um confronto em Macau. Isso serviu de estopim para que Jin Yong em 1955 lançasse Shu Jian enchou
lu (A História do Livro e da Espada), renovando o gênero de heróis espadachins, numa linguagem e estilo
contemporâneos, em confluência com fatos e casos policiais históricos, artes marciais e enredo. A
produção de Jing Yong concentra-se de 1955 a 1972, produzindo 15 romances e vertidos em filmes e
seriados televisivos de sucesso absoluto nas décadas de setenta e oitenta.
Outra tendência observada é da boa receptividade dos livros lançados pelos jovens no último período.
Autores como Han Han, Guo Jingming, Chunshu fazem sucesso entre os jovens por criticarem de
maneira muito ácida a pressão familiar e a rigorosidade educacional atual, em estilo confessional e
desprovido de lirismo. Sem se esquecer dos mangá, revistas quadrinhos e de origem japonesa, onde
observa a proliferação em livrarias especializadas.
7. Conclusão
A sociedade chinesa contemporânea encontra-se em mudança vertiginosa, ao ritmo de crescimento
econômico galopante do país dos últimos trinta anos. A cultura tradicional alicerçada no Confucionismo,
que buscava o ideal da virtude cede lugar à busca material e ao consumo, se tornando cada vez mais
individualista, conforme Xu (2008).
O sociólogo afirma que a partir do século XIX, a cultura tradicional teve seus princípios estremecidos
devido ao colapso do regime feudal e à influência das idéias estrangeiras ao jovens da época. Os ideiais
liberais foram uma das válvulas propulsoras do Movimento de Quatro de Maio que propos a revolução dos
costumes e das artes tradicionais e a respectiva oxigenação e renovação da sociedade chinesa.
As décadas seguintes foram de guerras externas e internas, e a conjutura inclinou-se aos ideais
materialistas marxistas. A partir da década de oitenta, iniciou-se a implementação das políticas de
Reforma e Abertura, mas o ideário secular já havia se dissemiado, ressaltando o viés materialista e
pragmático desta sociedade que inclinou-se para o consumo e pela busca de um lugar ao sol entre os
quase um bilhão e meio de habitantes. A renascença do Confucionismo no início do século XXI, vem ao
propósito de atender a competição de mercado, por centrar a atenção do homem na lealdade ao Estado,
na atenção à fámília, mas também compete com o pensamento individualista e secular.
Se por um lado a criança ainda vive sob a égide de costumes familiares arraigados na tradição, por outro
lado, percebemos o esfacelamento dos conceitos antigos, frente a realidade social competitiva cada vez
mais voltada ao consumo, onde o valor público perde lugar aos valores individuais. A abertura chinesa
possibilitou a profusão de editoras e de publicações dirigidas ao público infantil, devido a fatia de Mercado
que as crianças representam, e para atender o desejo dos pais que querem que os seus filhos leiam os
clássicos chineses e ocidentais, mas devido ao seu caráter educativo. Nesse sentido, da Antigüidade até
hoje, o lúdico ainda não encontrou seu lugar nessa sociedade.
Bibliografia:
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-------------------------------------------------------------------------------[i] Cihai. Shanghai (1982). A tradução é de responsabilidade da autora.
[ii] Recenseamento por amostragem sobre 1% da população em 1º de novembro de 2005. Fonte:
Escritório Nacional de Estatísticas da China:
http://www.stats.gov.cn/tjgb/rkpcgb/qgrkpcgb/t20060316_402310923.htm
Acessado em 31 de julho de 2008.
[iii]Confúcio (551-479 a.C) é um dos principais pensadores chinês. Fundador da doutrina Confuciana,
influenciou não só o pensamento do Império do Meio, mas também de toda a Ásia oriental.
[iv] Por limitação do tema, não entraremos em maiores detalhes, para um estudo mais detalhado pode ser
consultado à bibliografia exposto neste artigo.
[v] San Zi Jing: http://zhidao.baidu.com/question/10192948.html?si=1 acessado em: 12/09/2008. A
tradução de todos os excertos é de responsabilidade da autora.
[vi] Há poemas traduzidos para o português, por Cecília Meirelles (vide bibliografia).
[vii] Afora as principais doutrinas que são: a Confuciana, a Budista e a Taoista. Nos Anais dos Han (206
a.C- 24) divide os príncipes feudais em dez escolas filosóficas: Confucionista, Taoista, Legalista, Moísta,
Lógica, Yin-Yang, Estrategista, Eclética, Agronômica e Novelistas; e complementa: “Dentre as dez
escolas que se dividem os príncipes, só se pode considerar nove; pois, os Novelistas são como ervas
daninhas, perambulam e conversam pelas ruas, registrando tudo aquilo que escutam da ralé pelas vielas...
Não podem ser considerados como cavalheiros”.
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A literatura infantil chinesa da poesia à prosa: Uma história sem