Cumpre-se este ano
o trágico quadragésimo aniversário
do assassinato
do fundador e líder
do PAIGC, Amílcar
Cabral. Morto a
20 de Janeiro de
1973 em Conacry,
nessa outra Guiné,
em golpe meticulosamente preparado pela PIDE, envolvendo traições e
cumplicidades
ainda não totalmente esclarecidas,
o grande dirigente
e nacionalista africano não assistiria
às independências
da Guiné-Bissau
e de Cabo Verde
que havia sonhado
como um único
país soberano
e solidário. As
comemorações
não têm sido abundantes nos diferentes espaços lusófonos, assim como se
tornou progressivamente mais
limitado o conhecimento do seu
pensamento, do seu
legado político e
cultural, enquanto
a sua obra vasta
aguarda publicação
completa ainda por
fazer precisamente
quando, no passado mês de Maio,
a UNESCO em
Dacar, no Senegal,
lançou um grande
projecto para
recolher o seus
textos, objectos
e memórias. Talvez
aqui por Macau, em
sede desta plataforma que o território
insiste, e bem, em querer continuar a
fazer entre a China e os Países de
Língua Portuguesa se possa um
dia vir a encontrar a inteligência suficiente para publicar e, depois, estudar as
obras completas de Amílcar Cabral
lusofonias
nº 08 | 05 de Agosto de 2013
Este suplemento é parte integrante
do Jornal Tribuna de Macau e não
pode ser vendido separadamente
COORDENAÇÃO:
Ivo Carneiro de Sousa
TEXTOS:
• Infância Difícil
para Cultura muita
• O Estudante de Agronomia
em Lisboa
• O Recenseamento Agrícola de
Guiné-Bissau (1953-55)
• A Fundação do PAI
e o Massacre de Pidjiguiti
• Um Líder Africano entre
Humanismo e Revolução
• ... Não, Poesia
• Para ti, Mãe Iva
• Evolução conceptual e real
• Regresso
Dia 12 de Agosto:
Gilberto Freyre, 80 anos
de Casa-Grande & Senzala
APOIO:
Amílcar
Cabral40
anos
Memórias e alguns Poemas
Amílcar Cabral,
40 anos:
Memórias
e alguns Poemas
Ivo Carneiro de Sousa
C
umpre-se este ano o trágico quadragésimo
aniversário do assassinato do fundador e líder do PAIGC, Amílcar Cabral. Morto a 20 de Janeiro de 1973 em Conacry, nessa outra Guiné,
em golpe meticulosamente preparado pela PIDE,
envolvendo traições e cumplicidades ainda não
totalmente esclarecidas, o grande dirigente e
nacionalista africano não assistiria às independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que
havia sonhado como um único país soberano e
solidário. As comemorações não têm sido abundantes nos diferentes espaços lusófonos, assim
como se tornou progressivamente mais limitado
o conhecimento do seu pensamento, do seu legado político e cultural, enquanto a sua obra
vasta aguarda publicação completa ainda por
fazer precisamente quando, no passado mês de
Maio, a UNESCO em Dacar, no Senegal, lançou
um grande projecto para recolher o seus textos,
objectos e memórias. Talvez aqui por Macau,
em sede desta plataforma que o território insiste, e bem, em querer continuar a fazer entre a
China e os Países de Língua Portuguesa se possa
um dia vir a encontrar a inteligência suficiente
para publicar e, depois, estudar as obras completas de Amílcar Cabral e, com ele, resgatar
os grandes líderes e pensadores nacionalistas que multiplicaram em independências a constelação de
países lusófonos soberanos.
Infância Difícil
A
mílcar Lopes da Costa Cabral, de seu nome completo, nasceu a 12 de Setembro de
1924 em Bafatá, na Guiné-Bissau. O registo civil do seu nascimento ainda esclarece que o
seu pai, Juvenal Cabral, decidiu escrever Hamílcar, com um
estridente H inicial, em memória do grande general africano
que tinha feito tremer o poderoso império romano. Latinas
influências presentes também
no nome paterno: o avô de
Amílcar Cabral baptizou o seu
filho com esse preciso nome
em que se recordava o grande
poeta Décimo Júnio Juvenal (c.
55/60-c. 127) que, nas suas célebres Sátiras, havia cantado as
proezas desse grande Hamilcar
Barca (c. 275 – 228 AC) durante
a primeira guerra púnica, esse
mesmo que foi pai desse outro temível general cartaginês,
Aníbal (247 – 183/182 BC), mais
do que famoso por ter atravessado os Pirinéus e os Alpes à
frente de um numeroso exército que, incluindo 37 elefantes,
haveria de semear o pânico no
coração da Itália entre as poderosas legiões romanas.
Juvenal Cabral era um mestre-escola sem formação académica que, no generoso contexto democrático de desenvolvimento da instrução pública promovido pela I República
Portuguesa, se tinha instalado
em Bissau desde 1911 e leccionado desde 1913 em várias regiões da Guiné-Bissau, nomeadamente em Cacine e Geba.
Juvenal era oriundo de uma família rural da ilha de Santiago
de onde saíram vários professores e padres, reconhecidos por
“educados” à época.
A mãe de Amílcar Cabral,
Iva Pinhel Évora, vinha de uma
família ainda mais humilde
dessa mesma ilha de Santiago
constantemente fustigada pelas mais mortais secas. Como
explicou nas suas Memórias e
Reflexões, publicadas na Praia,
em 1945, Juvenal Cabral acreditava que estes desastres não
tinham apenas causas naturais, podendo ser evitados com
adequada intervenção política
para o desenvolvimento de novos projectos de fomento económico e agrícola do arquipélago. Contudo, como para muitos
outros, o fado de Santiago multiplicava emigrações sem fim,
algumas das quais se dirigiam
perto para essa Guiné que,
para
com capital em Bissau, é um
dos países africanos com mais
rica rede hidrográfica e cobertura vegetal: Juvenal para lá
emigrou com a família.
No seu texto de memórias,
o pai de Amílcar Cabral registou extasiado as diferenças
muitas entre a terra verde e
rica da Guiné e o seu arquipélago de secas, penedios e
misérias: “ter deixado as rochas nuas da Praia Negra, da
Achada Grande, do Lazareto,
e cujo aspeto, severo e triste, parece simbolizar o sofrimento e a dor, meus olhos,
maravilhados, contemplaram
sem cessar a paradisíaca majestade da flora que, de modo
misterioso, parece emergir do
mar! Por toda a parte árvores
frondosas, lindos e esquisitos
arbustos que, verdejantes,
se espalham pelo solo como
tapetes no chão. Tudo isto é
opulência e vigor, é maravilha
que encanta, é riqueza que
seduz e predispõe um rapaz a
encarar com optimismo a vida
neste país.”
Até aos sete anos, aprendeu
por aqui Amílcar Cabral as primeiras (e muitas outras...) letras com o seu pai que lhe incutiu o meticuloso gosto pelo estudo, a moral da generosidade
e, acima de tudo, um enorme
amor e ainda mais saudade por
Cabo Verde. Em 1931, Amílcar
e a sua mãe regressam ao arquipélago, depois acompanhados pelo pai no ano seguinte.
Nestes anos, a família gozou
um período de alguma prosperidade quando Cabo Verde também alimentou essa metrópole
que fornecia lucrativamente os
diferentes lados da II Guerra
Mundial. Vieram, porém, as secas violentas que, entre 1941 e
1948, causaram mais de 5.000
mortos. Juvenal Cabral explicava nos seus textos que quase tudo se podia evitar com a
introdução de novas técnicas
agrícolas, plantação maciça de
árvores, investimento na irrigação e, sobretudo, reorganização da propriedade dos grandes
latifúndios. Conselhos sem eco:
a família encontrou-se entre
a maioria dos que não tinha
meios de subsistência, obrigando a mãe de Amílcar Cabral a
costurar diariamente para fora
e a aceitar um emprego menor
num armazém de distribuição
de peixe.
Entretanto, Amílcar tinha es-
Cultura Muita
tudado na escola primária da
Praia, passando depois para o
Liceu (adivinhe-se o nome...)
Infante D. Henrique (que Gil
Eanes passaria a ser em novo
edifício) no Mindelo, na ilha
de São Vicente. Como muitos
outros adolescentes, acordou
para todas as excitações da
vida através da poesia, logo
reflectindo em juvenis poemas
sobre essa contradição paradoxal entre umas ilhas que apaixonavam muitos poetas mas
eram um inferno para os seus
habitantes que só queriam
mesmo fugir, escapar, emigrar.
Uma obsessão também acolhida pelo jovem Cabral que,
aos 18 anos, escreve um demorado conto Fidemar (Filho
do Mar) para narrar o itinerário de um herói revolucionário
que parte da sua ilha miserável com a esperança de um dia
regressar para a libertar. Uma
ideia de libertação que sorve
igualmente os fragmentários
ecos do fim da II Guerra Mundial que chegam a Cabo Verde,
devidamente escutados por
Cabral que, a propósito, escreve um texto de reflexão intitulado Hoje e Amanhã, mais
tarde publicado, em 1949, sob
o pseudónimo de Arlindo António, no segundo volume do boletim Mensagem da Casa dos
Estudantes do Império, em Lisboa. Nesse texto premonitório
das suas grandes ideias políticas declarava com mitificado
entusiasmo: “na Terra existe
um único Povo a que pertencem todas as Nações. Do caos
surgirá um mundo novo e melhor, o que dignificará o homem preto ou branco, vermelho ou amarelo.”
Em 1944, concluídos os estudos liceais com as mais altas
classificações, o jovem Amílcar
Cabral regressa à Praia, a capital de Cabo Verde, para trabalhar na Imprensa Nacional,
embaraçando-se rapidamente
com as rotinas de uma burocracia mais do que medíocre.
Continuou a escrever os seus
poemas, vários dos quais ofereceu a João de Deus Lopes da
Silva (o irmão do grande escritor, poeta e linguista que foi
Baltasar Lopes da Silva, um dos
fundadores da revista Claridade, em 1936 ) que, na altura
comandante do navio Nossa
Senhora dos Anjos, promoveu a
sua publicação num semanário
dos Açores.
LUSOFONIAS - SUPLEMENTO DE CULTURA E REFLEXÃO
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II
Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS
lusofonias
Estudante de
Agronomia em Lisboa
O
Amílcar Cabral
E
m Outubro de 1945, com grande dificuldade, Amílcar Cabral
conseguiu ganhar uma da dúzia de
bolsas oferecidas oficialmente a
estudantes da Guiné e Cabo Verde
para seguirem para as Universidades que só existiam na metrópole.
Chega a Lisboa com a vitória dos
Aliados sobre o fascismo, assiste a
várias manifestações que, depois
de relativamente toleradas, são
fortemente reprimidas pela ditadura de Salazar. Cabral chegou
atrasado, só em Dezembro, ao ano
lectivo de 1944-45 do Instituto Superior de Agronomia onde queria
estudar para ser engenheiro agrónomo. Numa classe de 220 alunos
– seriam depois apenas 25 ao chegarem ao terceiro ano –, Amílcar
prontamente daria nas vistas por
ser o único africano e um dos melhores alunos. A sua colega e, mais
tarde, primeira esposa, Maria Helena Vilhena Rodrigues, ainda recordava que o seu futuro marido
em muito se destacava de todos
os outros: “como ele era o único
negro, isso era bastante óbvio.
Ele não tinha feito os exames de
acesso à Universidade, mas distinguiu-se imediatamente ao tirar
as melhores notas nos exames de
Matemática. Todos falavam dele,
elogiando a sua inteligência, era
atraente e descontraído. Quanto
a actividades políticas, lembro-me dos meus colegas recolherem assinaturas para a adesão aos
movimentos anti-fascistas de estudantes democráticos. Nas reuniões, ele costumava liderar os
debates visto que se expressava
de forma eloquente.”
lusofonias
com
Maria Helena Vilhena Rodrigues
É nestes anos de frequência universitária em Lisboa que, marcados
pelo ambiente do pós-guerra com a
sua grande circulação de ideias, o
nosso estudante de Agronomia leria
uma das obras que confessou reiteradamente terem mudado a sua visão do Mundo e da África: Léopold
Senghor, Anthologie de la Nouvelle Poésie Negre et Malgache de
na
Serra
de
Sintra,
durante a excursão de fim do curso de
Langue Française, livro publicado
em Paris, em 1948. Amílcar Cabral
entusiasmou-se ao frequentar estes poemas africanos numa língua
francesa que viria a cultivar na sua
expressão oral e escrita com desenvolta elegância. Mas que nunca
foi obstáculo, antes complemento,
para a sua sentida defesa da língua
portuguesa enquanto língua de libertação e de construção de novos estados soberanos.
No final do ano
académico de 1949,
Cabral regressou ao
seu arquipélago determinado a revelar Cabo Verde aos
próprios caboverdianos, começando a 8 de Setembro uma série de
palestras na rádio
sobre aspectos geofísicos do território
multi-insular. Um
projecto em tudo
semelhante ao contemporâneo movimento Vamos Descobrir Angola lançado por um grupo
de intelectuais em
torno do poeta Viriato da Cruz. No
seu regresso a Lisboa, Amílcar Cabral começa a dar
passos no sentido
de encontrar formas de organização política capazes de enfrentar o
Agronomia
dilema debatido acaloradamente
com alguns outros estudantes universitários oriundos das africanas
colónias portuguesas: tornarem-se
assimilados, como diziam, pela sua
educação superior, ou mobilizar-se cultural e politicamente para
desafiar o sistema de dominação
colonial. Participa, então, no MUD
juvenil e no Movimento da Paz,
tentando sem sucesso com outros
colegas conquistar a direcção da
Casa dos Estudantes do Império
(1944-1965), depois organizando
o Centro de Estudos Africanos no
final de 1951, logo estabelecendo
contactos regulares com a célebre
revista Présence Africaine, fundada em Paris por Alioune Diop, em
1947.
Neste agitado período, Amílcar
Cabral tinha já concluído os seus
cursos universitários. Em 1950,
diploma-se em Agronomia com 15
valores (no máximo de 16), finalizando no ano seguinte graças a
uma bolsa da Missão dos Estudantes do Ultramar os estágios de Engenharia Agrónoma e Engenharia
Agrónoma Colonial com 18 valores
entre os 19 possíveis. Encontrava-se a estagiar na Brigada dos Solos
de Santarém, da Estação Agronómica Nacional, quando recebe a
notícia do falecimento do seu pai,
Juvenal Cabral. Decide, então,
aceitar um emprego como engenheiro agrónomo contratado oferecido pela Repartição Provincial
dos Serviços Agrícolas e Florestais
da Guiné Portuguesa, opção que
haveria de transformar ainda mais
radicalmente o seu pensamento e
acção políticos.
LUSOFONIAS • Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013
III
Maria Helena Rodrigues
com sua a filha
Amílcar Cabral,
Ana Luísa Cabral
Amílcar Cabral,
e
no interior da
O Recenseamento Agrícola
A
20 de Outubro de 1952, a bordo
do navio Ana Mafalda, com 28
anos de idade, o agora engenheiro
agrónomo Amílcar Cabral regressa a
Bissau. A sua mulher, Maria Helena
Rodrigues, engenheira silvicultora,
chegaria quase dois meses depois.
Torna-se rapidamente adjunto do
Chefe da Repartição Provincial dos
Serviços Agrícolas e Florestais (chegaria mesmo a ser chefe interino e
até Inspector Geral do Comércio,
por substituição) e Director do Posto
Agrícola Experimental de Pessubé. O
casal instalou-se, por isso, na casa
posta à disposição do director nessa
Granja de Pessubé (como era mais
conhecida) que, distante do centro
de Bissau, se alargava por 400 hectares em que se reuniam espécies florestais e fruteiras, mais as verduras,
os cheiros e os legumes que se distribuíam entre os altos administradores
e oficiais portugueses.
Apesar de ser uma das principais
realizações dos serviços agrícolas coloniais instalados na Guiné, a estação
praticamente não fazia investigação,
formação ou experimentação, assim
ajudando muito remotamente os
camponeses da colónia que eram,
aliás, considerados responsáveis por
perpetuarem uma agricultura considerada de subsistência, primitiva
e apenas “indígena”. A Granja era
regularmente mais utilizada para piqueniques, festas e passeios do pessoal administrativo colonial do que
como verdadeira estação agronómica, pelo que, desde a sua chegada, o
Engº. Amílcar Cabral tratou, em coerência, de emendar as coisas: investigou técnicas agrícolas, promoveu
ensaios de adaptação sobre o arroz,
cana-de-açúcar, mancarra, banana e
algodão, estudou pragas e doenças,
fez pesquisas em sementes locais e
apurou as possibilidades de desen-
IV
volvimento de novas espécies como
o sésamo, girassol e soja. Cabral
chegou mesmo a ligar os serviços
da estação aos outros existentes na
região, especialmente no Senegal,
apresentou comunicações cuidadas
em seminários fora da Guiné, convidou especialistas e técnicos estrangeiros.
Amílcar Cabral tinha sido convidado a trabalhar na Guiné para, prioritariamente, coordenar o Recenseamento Agrícola da colónia. O que fez
com a maior qualidade científica,
técnica e elevado profissionalismo.
Durante mais de dois anos, o nosso
engenheiro percorreu todos os recantos da Guiné, contactou chefes
de etnias e tabancas, falou com simples camponeses, jovens e mulheres,
observou atentamente solos e culturas, fez de etnógrafo ao recensear
pormenorizadamente tradições e
folclores, vestiu-se de sociólogo ao
desfibrar estruturas sociais, assim
acumulando uma experiência do terreno que haveria de se mostrar guia
maior na ulterior luta armada contra
o colonialismo português.
O seu relatório de recenseamento
agrícola da Guiné, muito ignorado
pelas autoridades coloniais, permanece como um dos melhores e mais
sólidos estudos sobre a paisagem
ecológica, comunidades agrícolas e
estruturas agrárias da Guiné-Bissau.
Na verdade, Amílcar Cabral identificou qualificadamente a tripla estrutura de floresta tropical, savana
e agricultura comunitária, percebeu
as principais formas de domesticação humana do ambiente, estudou
especializadamente os sistemas de
rotação e pousio prolongados, a itinerância agrícola ou as queimadas
sazonais, preocupando-se ainda com
a profunda alteração da biodiversidade causada pela expansão agrícola e
Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS
Guiné,
utilizando um teodolito para definição de tiro de artilharia
comercial do amendoim (que macarra se diz na Guiné-Bissau). Um aviso
agora com seis décadas que, talvez
por muitíssimo pouco lido, certamente deve ter caído em saco roto:
mais intensamente a partir dos princípios de 1980, as estruturas agrárias
identificadas tão rigorosamente por
Amílcar Cabral têm vindo a ser quase completamente substituídas por
pousios curtos e essa cultura permamente do cajú que, mobilizando
hoje 85% da população, se vazou em
muito dominante riqueza do país (na
verdade, tornou o país mais pobre
e alguns grandes proprietários, intermediários e comerciantes muito
mais ricos...).
Nos primeiros meses após chegar
a Bissau, pelos finais de 1952, Cabral passa à acção política, tentando organizar um Clube Desportivo e
Recreativo de Bissau, incluindo biblioteca, reservado exclusivamente
a guineenses, todos e sem excepção.
A proposta caiu mais do que mal
entre o governador e as autoridades
coloniais portuguesas que recusaram. Nos registos da PIDE ficou depois lavrada a fatal informação de
subversão: “o Eng.º Amílcar Cabral
e a sua mulher comportaram-se de
maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos
territórios de África com exaltação
de prioridade de direitos dos nativos
e, como método de difundir as suas
ideias por meios legalizados, o Eng.º
pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e Recreativa de Bissau, não tendo
o Governo autorizado”.
Acabado o seu demorado e pormenorizado trabalho (com toda a propriedade...) de campo, mal fechado
o seu relatório final do recenseamento agrícola da Guiné-Bissau, em
da
Amílcar Cabral
e outros c
a caminho do
I Co
Guiné-Bissau
(1953-55)
Março de 1955, o governador convida
o nosso activo engenheiro a sair definitivamente da Guiné em avião da
Air France, acusado de propagar perigosas ideias independentistas. Fica
apenas autorizado a regressar uma
vez por ano ao território para visitar
a família, mas obrigado a fazer o conveniente requerimento.
O engenheiro agrónomo encontra
prontamente trabalho em Angola
dirigindo uma equipa de estudo de
solos na Sociedade Agrícola do Cassequel, proprietária, entre outras
coisas, de uma enorme plantação de
cana-de-açúcar na Catumbela com o
respectivo privado caminho-de-ferro.
Desde 1956, Amílcar Cabral torna-se
também colaborador extraordinário e
investigador na Junta de Investigação
do Ultramar, ocupando idêntica posição, desde 1958, na Direcção Geral
dos Serviços Agrícolas, em Lisboa. Na
primeira instituição chega, em 1957,
a Chefe de Secção da Brigada de Estudos de Defesa Fitossanitária, e na
segunda dirige a Secção do Laboratório da Defesa Fitossanitária dos Produtos Armazenados. Em 1959, é ao
Engº. Amílcar Cabral que a Junta de
Investigação do Ultramar encomenda
os planos de defesa fitossanitária do
arroz e do amendoim da Guiné, a que
se seguem os estudos das condições
fitossanitárias dos porões dos navios
mercantes e dos entrepostos do porto de Lisboa.
Até aos princípios de 1960, Cabral
publica 41 artigos científicos nestas
áreas da sua especialidade para, depois, o engenheiro agrónomo se ver
definitivamente obrigado a ceder
completamente todo o protagonismo
ao líder político do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde que,
fundado sete anos antes em Bissau,
se acolhia à Guiné-Conacry de Sekou
Touré, independente desde 1958.
R
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1
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PAIGC, Cassacá, 1964
Amílcar Cabral
Mário Pinto
A Fundação
ecorde-se que, quando regressou a Bissau, em
1952, Amílcar Cabral aproximou-se imediatamente
seus antigos colegas do Liceu do Mindelo que se
ontravam a trabalhar na Guiné, normalmente em
ições elevadas da administração ou em empresas
vadas, sobretudo estrangeiras. Entre estes cabovernos emigrados procurou encontrar apoios políticos
a o seu sonho de emancipação. Os muitíssimo pouque o escutaram na altura haveriam de se tornar
te anos depois os líderes da Guiné-Bissau e Cabo
de independentes: o seu meio-irmão Luís de AlmeiCabral (1931-2009), nascido em Bissau, seu constanseguidor, viria ser o primeiro presidente da Guinésau até ao conhecido golpe militar liderado pelo
então primeiro-ministro, Nino Vieira, a 14 de Nombro de 1980; Aristides Pereira (1923-2011), nascido
lha da Boa Vista, emigrante trabalhador nas teleconicações de Bissau, seria o primeiro presidente de
bo Verde até 1991, não sem antes ter respondido ao
pe militar de Nino Vieira acabando com a direcção
éfala do PAIGC, criando o caboverdiano PAICV, assim
ando a que os dois países vivessem de costas voltapor muitos anos.
ora de um muito pequeno punhado de apoiantes
tas condições, o engenheiro (como passou a ser cocido um pouco por toda a Guiné) encontrou mais
ios na sua unidade agrícola experimental de Pessue, depois, a simpatia e interesse de muitos chefes
munitários e camponeses anónimos espalhados pelo
s. É neste contexto de multiplicação de contactos e
sensibilização política que aparece em 1955 o MING
vimento Nacional para a Independência da Guiné)
e, animado por José Francisco Gomes e Luís da Silva
halumbé”, acabaria por se dissolver no processo derado de criação do PAIGC.
ssim, na sua primeira visita autorizada à Guiné para
er a família, Amílcar Cabral dirige a reunião hisca que, provavelmente a 19 de Setembro (a data
cta ainda é discutida...) de 1956, decidiu fundar o
tido Africano da Independência – União dos Povos da GuiCabo Verde, conhecido na altura simplesmente por
. Para além de Cabral, estiveram presentes apenas
s cinco pessoas: Aristides Pereira, Luís Cabral, Ferdo Fortes e Júlio de Almeida (funcionário na Granja
Pessubé) eram caboverdianos, mais Elisée Turpin, o
co guineense, na altura funcionário da companhia
ncesa SCOA. O PAI viveria quatro duros anos de clantinidade até encontrar, desde 1960, essa base se-
onias
e
de
do
Andrade, Khartum, 1969
PAI
e o
Massacre
gura na Guiné-Conacry para onde se transferiu a sua
direcção e, com ela, deixou mesmo Cabral de ser o
engenheiro agrónomo e o investigador admirado tanto por académicos como por simples camponeses das
mais remotas áreas da Guiné. Neste período de grande
resguardo do PAI organiza-se igualmente, em princípios de 1958, o MLG (Movimento para Independência
de
Arquivo Mário Pinto
Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos
Amílcar Cabral. Nota de Amílcar Cabral para arquivo:
“Reunião a 3 de Agosto no Centro 68”
de
de
Andrade • Fundação Mário Soares
Pidjiguiti
da Guiné), reunindo personagens como João Rosa (um
guarda-livros na empresa francesa NOSOCO, grande
colaborador de Amílcar Cabral), César Fernandes, Ladislau Justado Lopes, Tomás Cabral de Almada, José
Ferreira de Lacerda e o célebre Rafael Barbosa que,
tendo sido dirigente importante do PAIGC, haveria de
aparecer no contexto do assassinato de Amílcar Cabral
a apoiar publicamente a política de chamada “reconciliação” promovida pelo governador português que,
à época, era o conhecido general António de Spínola, homem suficiente arguto para disseminar também
essas campanhas “psicológicas” em que se acusavam
os caboverdianos de serem o verdadeiro problema da
Guiné. Preso logo depois da independência final da
Guiné-Bissau, em 1975, Rafael Barbosa acabaria por
ser libertado com o golpe de Nino Vieira com quem
partilhava a mesma etnia papel.
Seja como for, o MLG aparece num contexto histórico
marcado pelas sucessivas independências concretizadas e anunciadas nas colónias francesas na África Ocidental e, especialmente, por uma grande mobilização
de muitos activistas guineenses em torno da campanha
presidencial de Humberto Delgado, cujos boletins de
voto foram abundantemente distribuídos no território.
Muitas cartas, declarações e petições em circulação
pública, depois dirigidas ao governo provincial e central seriam completamente ignoradas pelo poder da
ditadura em Lisboa, frustrando-se rapidamente quaisquer esperanças de transição pacífica negociada para
independência da colónia tanto como ruíram as esperanças de milhões de portugueses com a conhecida
chapelada eleitoral que derrotou apenas oficialmente
o General Sem Medo para colocar na presidência de
Portugal o contra-almirante Américo Thomaz. Nada de
novo seguiria para as colónias portuguesas, para além
de cosméticas reformas de estatutos e requalificações
administrativas.
Neste período de protecção do PAI e, em contraste, de várias actividades promovidas (ou, pelo menos,
posteriormente reivindicadas) pelo MLG, conquanto
muitas vezes partilhando espaços semelhantes e até
os mesmíssimos activistas, Bissau era uma cidade agitada por um comércio que vivia em grande parte dessa agricultura desprezivelmente dita “indígena”, mas
que produzia o arroz e, principalmente, a mancarra
que, em bruto ou em óleo, muitas empresas portuCONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE >
LUSOFONIAS • Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013
V
< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR
guesas e estrangeiras exportavam lucrativamente
para os mercados europeus e, ainda que em menor
escala, dos Estados Unidos. Destacava-se neste negócio a presença da grande empresa francesa NOSOCO (Nouvelle Société Commerciale) que, com o
seu grande e imaculado edífico branco em Bissau,
tinha interesses, armazéns e escritórios comerciais
espalhados por toda a África ocidental francófona.
Francesa e muita activa era também a companhia
SCOA (Société Commerciale de l’Ouest Africain),
mas a concorrência não era facilitada pelas várias
empresas portuguesas sediadas em Bissau: Barbosa & Comandita, Álvaro Camacho, Sociedade Comercial Ultramarina e, sobretudo, a Casa António
Silva Gouveia que representava os interesses da
poderosa CUF (Companhia União Fabril). Grande
comerciante, ex-marinheiro e antigo capitão de
navios, Gouveia tinha sido deputado pela Guiné,
desde 1911, na Câmara dos Deputados da I República, ligou-se ao Partido Republicano Evolucionista
de António José de Almeida e assim desenvolveu
abundantes negócios com a CUF que, originada ainda em 1865, era, de muito longe, o maior grupo
económico português que detinha já pela década
de 1950 fortes posições nas economias das colónias, do transporte marítimo à exploração mineira,
do comércio às indústrias. O grande conglomerado
consolidara um monopólio de tal forma eficaz no
arroz, amendoim e pasta de papel da Guiné que se
dizia ser o território um quintal da CUF. A verdade,
porém, é que parte importante do comércio interno guineense escorria por outros intervenientes,
alargando-se dos pequenos comerciantes libaneses
de Bissau (Mamud El Awar, Michel Ajouz, Aly Souleiman e outros) aos muitos djilas que, almocreves
ambulantes, vendiam pelos sítios mais recônditos
da Guiné.
As grande empresas comerciais possuíam tam-
bém as indispensáveis frotas marítimas e fluviais
que asseguravam tanto a circulação das produções
internas de mancarra e arroz, sobretudo através do
rio Geba, como a sua exportação externa, aqui se
destacando a Companhia Nacional de Navegação
que, inaugurada em 1956 pela CUF, visava assegurar os tráficos de mercadorias entre as colónias e
para Portugal. Eram estas empresas com predominância para o monopólio da CUF a imporem salários, preços de serviços de intermediação, transporte e armazenagem, para além dos preços pagos
aos produtores. Em 1959, ao contrário das outras
firmas, a Casa Gouveia da CUF não actualizou os
salários dos estivadores, marinheiros e outros trabalhadores envolvidos nestes movimentos comerciais, tendo-se progressivamente multiplicado e
radicalizado os protestos. A 3 de Agosto de 1959, os
trabalhadores do cais de Pidjiguiti e muitos outros
populares de Bissau decidem marchar em direcção
à sede da António Silva Gouveia: o confronto com
as forças da ordem torna-se praticamente inevitável e a repressão muito violenta dos manifestantes salda-se entre os 16 mortos reconhecidos oficialmente e os 50 (para algumas fontes até mais),
numerosos feridos e muitos encarcerados. O trágico (e estúpido) episódio incidental que, no campo
da agitação política, parece ter tido mais alguma
acção do MLG do que directamente do PAI, ficaria
conhecido por massacre de Pidjiguiti. Foi, contudo,
rapidamente criticado tanto pelos administradores
locais como pelos responsáveis militares portugueses que enviaram, ainda em 1959, um relatório de
análise da situação da Guiné em que se sublinhava:
o agravamento do incidente deu-se devido à falta
de preparação dos agentes da PSP que, impotentes
para actuar de outra forma, fizeram uso de armas
de fogo. Independentemente dos debates ociosos
sobre o exacto número de vítimas ou a qualificação
do incidente, a verdade é que a repressão policial
e as mortes acabariam, como sempre acontece
Um Líder Africano
A
23 de Janeiro de 1963 com
o ataque ao quartel de Tite,
no Sul da Guiné, começava para
ficar a luta armada. Com o seu
demorado prosseguimento sob
a liderança do PAICG, praticamente todos os outros grupos
políticos guineenses se veriam
obrigados a realinhar-se entre
os dois lados da guerra, assim se
dissolvendo ou reunificando sucessivamente em torno do partido liderado por Amílcar Cabral
tanto o MLG como as outras várias organizações criadas entre
exilados e emigrantes da Guiné-Bissau distribuídos pelos novos
países independentes da África
ocidental francófona: a FLING
(Frente de Libertação para Independência Nacional da Guiné), a UPG (União Popular da
Guiné), a UPLG (União Popular
para a Libertação da Guiné), a
UNGP (União dos Naturais da
Guiné-Portuguesa) ou o afrancesado Ressemblement Democratique Africain de La Guiné
(RDAG), entre outros agrupamentos que, hoje difíceis de
reconstruir rigorosamente, duravam o tempo de um par de
VI
reuniões ou o protagonismo
breve de algumas personagens
políticas subsumidas numa memória cada vez mais fixada pela
luta do PAIGC.
A guerra colonial na Guiné-Bissau, ainda deficientemente
estudada em toda a sua complexidade e muitos jogos de
sombras, sublinha um processo histórico geral em que se
destaca de forma gigantesca a
palavra, a direcção e a pluralidade do pensamento político
de Amílcar Cabral. Uma década, entre 1963 e 1973, absolutamente vertiginosa para o
engenheiro agrónomo que conhecia a Guiné como ninguém
e era uma das mais admiradas
vozes em Cabo Verde para,
nos anos seguintes, se tornar
respeitado nas mais diferentes
geografias políticas do mundo.
Assim, na frente diplomática
externa, edifica uma presença
muito solicitada: dirigindo-se
várias vezes às Nações Unidas,
enfrentando seguro, em 1970,
o interrogatório difícil do subcomité africano do Congressos
dos EUA para, em Junho, vir a
Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS
nestes casos, por serem devidamente convocadas
posteriormente pelas habituais narrativas tanto
justificativas como heróicas dos movimentos de libertação que, como em todos os processos revolucionários históricos, sempre precisam de bandeiras
e mártires que, neste episódio, existiram tragicamente mesmo.
Amílcar Cabral recebe a dramática notícia em
trânsito para Angola, mas consegue ainda deslocar-se entre 14 e 21 de Setembro de 1959 a Bissau, a
sua última visita autorizada. Tinha acabado de percorrer os países africanos recentemente independentes – Gana (6 de Março de 1957) e Guiné-Conacry
(2 de Outubro de 1958) – e a Libéria (independente
desde 1847), estabelecendo contactos com os partidos que, no Congo-Kinshasa (hoje República Democrática do Congo) e no Senegal, se preparavam
para abandonar defintivamente a África Ocidental
Francesa em 1960. Conseguiu reunir apoios e muitas
promessas, nem sempre depois concretizados, para
o desenvolvimento da luta anti-colonial na Guiné-Bissau. Depois, numa reunião em Bissau que estaria na base da progressiva unificação dos activistas
pela independência, decide-se a radicalização da
luta, a sua deslocação para os campos da Guiné,
a convocação de mais solidariedade internacional,
o envio de protestos e pedidos de negociações ao
governo de Lisboa que, como seria de esperar, nem
sequer se deu ao trabalho de responder. Transferida
a direcção do movimento de libertação para Conacry, Cabral lidera, em Agosto de 1960, a delegação
que vai encontrar apoio na República Popular da
China e descobrir inspiração na formidável mobilização camponesa que, em longa marcha, desaguara na Revolução Chinesa de 1949. A 8 de Outubro,
o movimento adopta definitivamente a sigla PAIGC
para, a 18 de Abril de 1961, colaborar na criação da
CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas), em cimeira realizada
em Casablanca com o apoio do rei de Marrocos.
entre
ser um dos principais organizadores da famosa audiência de
Paulo VI concedida ao MPLA, à
FRELIMO e ao PAICG que muito
embaraçaria os altos responsáveis de Portugal. Em 1971, denuncia em Estocolmo a fome
em Cabo Verde, em Junho dirige-se com eloquência à cimeira
da OUA em nome dos movimentos de libertação das colónias
portuguesas, percorrendo nos
meses seguintes várias capitais
europeias, dialogando com governos e políticos, debatendo
com comités de solidariedade,
discursando em Universidades e
semeando a sua palavra convicta pelos media ocidentais.
Na frente interna, em Conacry ou nos terrenos de guerra
da Guiné, multiplicou a sua direcção política e organizativa
por centenas de comunicados,
cartas, directivas, pormenorizados guias de acção tanto como
pequenas notas de leituras,
desdobrou-se em seminários de
formação de quadros e reuniões
em que os seus discursos eram
muitas vezes gravados e depois
transcritos para serem distri-
Humanismo
Amílcar Cabral
e
Revolução
acompanhado por
Constantino Teixeira
lusofonias
buídos e lidos com atenção. Escreveu
textos ideológicos importantes sobre
a libertação da mulher, explicando
também o seu conceito de democracia revolucionária, tratou em detalhe
o tema da educação popular, reflectiu
sobre o sistema de saúde, discutiu as
formas de participação e representação políticas, escreveu sobre um Estado descentralizado no qual achava até
que era desnecessário, porque centralista e despesista, a existência de
uma capital: textos escritos e falados
num impecável português, por vezes
também saídos de uma pena que sabia mobilizar com qualidade o francês
e se desembaraçava num pragmático
inglês.
Continua a ser complicado (talvez
seja mesmo inútil) tentar nesta produção oceânica de textos, intervenções e muitos discursos encontrar
uma única escola de pensamento,
uma singular ideologia, um unívoco
projecto político para além desse sonho maior de libertar os africanos do
jugo do colonialismo. Amílcar Cabral
revela um pensamento em trânsito
por variadas influências, aqui se descobrindo filiações marxistas e mesmo
marxistas-leninistas, mas também um
estudioso interesse pelos textos de
Mao, em especial sobre a mobilização
revolucionária do campesinato, tanto
como um fascínio fiel às antologias e
textos de Leopold Senghor, dos movimentos literários da negritude, muita
leitura também de intelectuais progressistas franceses, conhecimento
actualizado da obra de Samir Amin
como dos grandes textos de Kwame
Nkrumah ou de Patrice Lumumba.
Neste pensamento entre muitas fronteiras não deixa de se descobrir perene um recorrente pan-africanismo
que, vazado no nome de um partido
que começava primeiro por ser Africano, concorre para explicar essa quase
paradoxal ausência no pensamento
de Cabral de um verdadeiro nacionalismo, mas que alimentaria depois a
construção de dois estados-nação independentes, progressivamente mais
diferentes, como o são as repúblicas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau
hoje. Por isso, muitas vezes se interrogava nos seus textos, intervenções
e cursos de formação de quadros do
PAIGC sobre o verdadeiro significado
da luta pela independência: “Muitos
países se tornaram independentes
e ouvimos muitas vezes esta frase:A
independência para quê? Sim, a independência para quê? Para nós, em
primeiro lugar, para sermos nós próprios. Para sermos homens africanos,
com tudo o que nos caracteriza, mas
caminhando para uma vida melhor, e
que nos identifique, cada vez mais,
com os outros homens no Mundo.”
Simples e, ao mesmo tempo, um desafio terrivelmente complexo como a
instável história de muitos dos novos
países africanos independentes tem
vindo a testemunhar.
Um homem no pensamento e na prática da acção política profundamente
humanista. Na guerra de libertação
da Guiné proibiu todo o terrorismo, a
violência contra os civis ou a destruição das principais infraestruturas, limitando até o armamento ou os obuses
com que o PAIGC fustigava as tropas
coloniais, perdoando frequentemente
traições e dissidências. Um humanismo
que provavelmente ajuda a explicar
um pensamento pluriforme que não se
parece ter deixado amarrar a uma única ideia, ideologia ou lado político do
dividido mundo do seu tempo. Explicou
vezes sem conta pela sua palavra escrita e falada: “É por isso mesmo que eu
luto, para que deixemos de amarrar as
pessoas… O ser humano não pode ser
amarrado. Se há problemas, vamos
sentar, vamos discutir, vamos conver-
…NÃO, POESIA
REGRESSO
…não poesia:
Não te escondas nas grutas do meu ser,
Não fujas à vida.
Quebra as grades invisíveis da minha prisão,
Abre de par em par as portas do meu ser
- e sai…
Sai para a luta (a vida é luta),
Os homens lá fora chamam por ti,
E tu, poesia, és também um homem.
Ama a poesia de todo o mundo,
-Ama os homens
Solta os teus poemas para todas as raças,
Para todas as coisas.
Confunde o teu corpo com todos os corpos do mundo,
Confunde-te comigo…
Mamãe velha, venha ouvir comigo
O bater da chuva lá no seu portão
É um bater de amigo
Que vibra dentro do meu coração.
Vai, poesia:
dá-me os teus braços para que abrace a vida.
A minha poesia sou eu.
Venha comigo, mamãe velha, velha,
Recobre a força e chegue-se ao portão
A chuva amiga já falou mantenha
E bate dentro do meu coração!
(Amílcar Cabral, 1946)
A chuva amiga, Mamãe velha, a chuva,
Que há tanto tempo não batia assim.
Ouvi dizer que a cidade velha,
- A ilha toda Em poucos dias já virou jardim…
Dizem que o campo se cobriu de verde
Da cor mais bela, porque é a cor da esperança
Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde
- É a tempestade que virou bonança…
(Antologia Poética da Guiné-Bissau, 1990)
Evolução
conceptual e real
Um conceito anterior: um caracol
Nos mistérios de um invólucro de egoísmo.
A vida só valia à luz do sol,
De um sol falho de Amor – do comodismo.
Conceito mais actual: uma alma aberta à vida,
Na conquista da vida, rasando o seu destino.
Na estrada a percorrer, na estrada percorrida.
O amor é o justo guia, o amor é um constante hino.
(Amílcar Cabral, c. 1950-52)
lusofonias
sar.” Em coerência, manteve-se sempre prediposto ao diálogo que parece,
afinal, nunca ter verdadeiramente
estado nas intenções da governação
instalada em Lisboa mesmo com a chegada à mais alta cadeira do poder de
Marcelo Caetano: pouca mudança para
muita continuidade.
Homem gigantesco, um verdadeiro mito tanto entre os movimentos
de libertação das antigas colónias
portuguesas como entre os resistentes e os seus grupos no Portugal das
décadas de 1960 e 1970, o seu rico
pensamento tem-se tornado cada
vez mais longínquo e, pouco estudado, arrisca-se mais cedo que tarde a
dissolver-se em vago lugar da memória quando deveria permanecer como
legado histórico importante encruzilhado em saudáveis lusofonias. Resta
tentar resgatar, pelo menos, alguns
fragmentos da sua imensa obra que
aqui se revisita nessa forma maior da
arte literária que acompanhou Amílcar Cabral até à sua morte: a poesia. Pedindo-lhe, como nesse poema
Regresso tantas vezes cantado por
Cesária Évora ou por Cateano Veloso, para voltar a inspirar as mais plurais Lusofonias. Onde Amílcar Cabral
deve ficar para sempre.
Para ti,
Mãe Iva
Eu deixo uma parcela
Do meu livro de curso…
P’ra ti, que foste a estrela
Da minha infância agreste,
P’ra ti, Mãe, que me deste
A tua alma viva
E o teu amor profundo
Maior que o próprio mundo!
Aceita este tributo,
Que tudo quanto eu for,
Será do teu amor
- Tua carne, Mãe, teu fruto!
Sem ti, não sou ninguém,
Só sou – porque és Mãe!
(Amílcar Cabral, 1949)
LUSOFONIAS • Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013
VII
Angola é aqui
Publica
textos de estudo e opinião
sobre a diversidade cultural
das Lusofonias
Ideias
Mônica Lima e Souza*
“Após a década de
1980, surgiram novas
rotas de migração.
Inicialmente
provenientes de
Angola, e acrescidas
de recentes levas
vindas do Congo,
essas populações
de refugiados
são formadas
principalmente
por jovens do sexo
masculino. A nova
diáspora centroafricana para o Brasil
é fruto das guerras e
das impossibilidades
geradas por séculos de
espoliação.”
VIII
D
engo, farofa, moleque, neném, quitanda, samba...
Quer palavras mais brasileiras do que estas?
De fato, são brasileiras – mas nasceram na África. Foram trazidas da vasta região costeira central do continente, onde hoje se encontram Angola e Congo. Com origem
no tronco linguístico banto, que engloba línguas como
o quimbundo, o umbundo e o quicongo, essas palavras
substituíram vocábulos portugueses que eram utilizados
para os mesmos fins. Ou seja, em alguns casos, os falares
africanos conseguiram sobrepor-se aos outros. Como a
língua é algo vivo, algumas palavras mudaram um pouco,
outras adquiriram significados diferentes, mas não muito
distantes do original.
A linguagem é um dos aspectos mais evidentes da contribuição cultural dos africanos trazidos para o Novo Mundo. Mas nem de longe é o único. Houve diversos aportes
civilizatórios da África para o Brasil, e algumas regiões
foram especialmente relevantes nesse processo, como é
o caso de Angola. Práticas religiosas, conhecimentos técnicos agrícolas e de mineração, valores sociais, costumes
na vida cotidiana e hábitos de alimentação, entre outros
elementos, fizeram parte da bagagem cultural que os escravizados trouxeram para a formação de nosso país.
Manifestações religiosas como os calundus, de forte presença entre os escravos trazidos da região Congo-Angola,
estão na origem de religiões afro-brasileiras, como o candomblé na Bahia. Há indícios de que a arte da capoeira tem
origem na “dança da zebra”, o n’golo do sul de Angola. O
jongo, tão presente em comunidades negras do Sudeste
brasileiro, e a congada assinalam sua herança centro-africana em versos, personagens, palavras. Os movimentos de
corpo característicos de algumas danças brasileiras – sobretudo o rebolado – também têm sua origem em Angola.
De lá, portanto, viria boa parte da nossa ginga. Aliás, esta
é uma palavra derivada da língua quimbundo, e nomeava
uma rainha africana. De nome de rainha a elemento da
congada, a ginga adquiriu muitos outros significados, hoje
atribuídos principalmente aos brasileiros. Os laços que ligam o Brasil a Angola existem há muito
tempo. Remontam à formação do Império português, do
qual fizeram parte, e se estendem por séculos, chegando
aos nossos dias. O Brasil é o país que por mais tempo e em maior quantidade recebeu pessoas escravizadas vindas da África. Aproximadamente 40% de todos os escravos africanos que deram entrada em portos do Novo Mundo foram trazidos para
o nosso país. Desse total, uma ampla maioria embarcou
em cidades do litoral da atual Angola. Segundo o historiador Philip Curtin, o Brasil recebeu 1.685.200 escravos no
século XVIII, dos quais 550.600 vindos da Costa da Mina e
1.134.600 de Angola. O tráfico angolano abastecia principalmente o porto do Rio de Janeiro, e em segunda escala,
Bahia e Pernambuco. As capitanias de Pernambuco, Maranhão e Pará detinham 20% do tráfico de escravos de Angola
no fim do século XVIII e começo do XIX.
Nas palavras do padre Antônio Vieira em 1648, “sem
negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros”.
No século XVII, quando Luanda foi invadida e ocupada pelos holandeses, uma expedição partiu do Rio de Janeiro
a fim de retomar Angola para o Império português. A missão foi financiada principalmente com capital dos comerciantes do Rio, e as tropas eram formadas por indígenas,
africanos e seus descendentes. O sucesso da expedição
comandada por Salvador de Sá, governador do Rio de
Janeiro, em 1648, reforçou a determinação de libertar
Pernambuco do domínio holandês, o que aconteceu anos
depois, em 1654.
A retomada de Angola também fez crescer a presença
dos brasileiros por lá. Durante um século, entre 1648 e
o fim dos anos 1740, gente do Brasil – por nascimento ou
por vínculo de residência – praticamente dominou Angola, ocupando as funções que seriam de Portugal no controle da colônia e no tráfico de escravos. Portugal teve
que fazer esforços para retomar as rédeas do controle
político da área, o que conseguiu apenas em parte. Economicamente, e muitas vezes administrativamente, a relação foi se tornando tão estreita que qualificava as cidades-porto do litoral angolano, como Luanda e Benguela,
como extensões do Brasil colonial no início do século XIX. Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS
No processo de independência do Brasil, líderes políticos tinham interesse em anexar a colônia africana ao
novo país. Não sem razão, no tratado que D.Pedro I teve
que assinar para ter sua emancipação reconhecida pelo
governo português, constava como exigência que o Brasil
reconhecesse a soberania portuguesa sobre Angola. E à
Inglaterra, mediadora do tratado, também interessava
que o Brasil se distanciasse das rotas do tráfico escravista
no litoral africano.
Frustraram-se, portanto, as esperanças de um só reino,
ou de dois reinos unidos, conjugando as duas margens do
oceano, a brasileira e a angolana.
A união entre Brasil e Angola não aconteceu, mas é claro que onde há fortes relações econômicas e políticas
constroem-se intercâmbios pessoais, familiares e de parceria em diferentes atividades. Era comum que grandes
comerciantes abrissem representações de suas casas de
negócio em Angola, muitas vezes gerenciadas por parentes, ou mesmo por seus cativos. Famílias de negociantes se
dividiam entre um lado e o outro do Atlântico, mantinham
um ir-e-vir constante, não só de pessoas, mas de notícias,
produtos, correspondências. Comerciantes escravistas na
África mandavam seus filhos estudar no Brasil, para que
aprendessem o português, conhecessem a dinâmica do
comércio e da sociedade brasileira e pudessem tornar-se
intermediários qualificados nesses negócios.
A estreita convivência não terminou com o fim do tráfico atlântico. Aparentemente reduzida na primeira metade do século XX, depois encontrou outros caminhos.
As lutas pela libertação de Angola do domínio colonial
português foram acompanhadas com vivo interesse por
brasileiros, ainda que naquela época amordaçados pela
ditadura. Houve gente que participou ativamente dos
movimentos de libertação. Nosso movimento negro festejou a independência de Angola, e o rápido reconhecimento das novas nações africanas pelo governo brasileiro
criou uma abertura diplomática importante em direção à
terra de nossos ancestrais.
Na esteira dos novos interesses após a independência
(1975), a influência de meios de comunicação brasileiros e de seus produtos passou a ser intensa no cotidiano
dos angolanos. Telenovelas eram referência de entretenimento, para o comportamento dos jovens e a estética
do vestuário. Nos canais de televisão locais são exibidos
programas feitos no nosso país. Mercadorias brasileiras,
legalmente importadas ou na candonga (contrabando),
viraram produtos de consumo importantes, sobretudo
roupas e calçados. A literatura e a música, fortemente impregnadas de
memórias, ritmos, instrumentos e vozes de herança africana, também cruzaram o oceano e desembarcaram com
grande sucesso no país independente, como Jubiabá, de
Jorge Amado, e Tenda dos Milagres, de Guimarães Rosa.
Encontros que abriram para os artistas brasileiros novas perspectivas de explorar nossa identidade cultural.
Gilberto Gil compôs e cantou com grande propriedade:
“Trago a minha banda/ Só quem sabe onde é Luanda/
Saberá lhe dar valor”. Após a década de 1980, surgiram novas rotas de migração. Inicialmente provenientes de Angola, e acrescidas
de recentes levas vindas do Congo, essas populações de
refugiados são formadas principalmente por jovens do
sexo masculino. A nova diáspora centro-africana para o
Brasil é fruto das guerras e das impossibilidades geradas
por séculos de espoliação.
O que não se pode nem se deve deixar de lembrar são
nossos fortes vínculos com esses povos e essa terra. As
heranças congo-angolanas, que em grande parte nos tornaram o que somos, nos lembram o quanto é importante
perceber, reconhecer e se orgulhar do nosso pertencimento à África.
As rápidas transformações geopolíticas em todo o planeta trazem novos desafios para o Brasil. Para saber qual
o seu papel nesse jogo, o país precisa primeiro conhecer
sua verdadeira identidade. E isso inclui recordar os compromissos que tem com a própria História.
*Professora no Instituto de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do LEÁFRICA
(Laboratório de Estudos Africanos)
lusofonias
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Amílcar Cabral, 40 anos: Memórias e alguns Poemas