Cumpre-se este ano o trágico quadragésimo aniversário do assassinato do fundador e líder do PAIGC, Amílcar Cabral. Morto a 20 de Janeiro de 1973 em Conacry, nessa outra Guiné, em golpe meticulosamente preparado pela PIDE, envolvendo traições e cumplicidades ainda não totalmente esclarecidas, o grande dirigente e nacionalista africano não assistiria às independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que havia sonhado como um único país soberano e solidário. As comemorações não têm sido abundantes nos diferentes espaços lusófonos, assim como se tornou progressivamente mais limitado o conhecimento do seu pensamento, do seu legado político e cultural, enquanto a sua obra vasta aguarda publicação completa ainda por fazer precisamente quando, no passado mês de Maio, a UNESCO em Dacar, no Senegal, lançou um grande projecto para recolher o seus textos, objectos e memórias. Talvez aqui por Macau, em sede desta plataforma que o território insiste, e bem, em querer continuar a fazer entre a China e os Países de Língua Portuguesa se possa um dia vir a encontrar a inteligência suficiente para publicar e, depois, estudar as obras completas de Amílcar Cabral lusofonias nº 08 | 05 de Agosto de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa TEXTOS: • Infância Difícil para Cultura muita • O Estudante de Agronomia em Lisboa • O Recenseamento Agrícola de Guiné-Bissau (1953-55) • A Fundação do PAI e o Massacre de Pidjiguiti • Um Líder Africano entre Humanismo e Revolução • ... Não, Poesia • Para ti, Mãe Iva • Evolução conceptual e real • Regresso Dia 12 de Agosto: Gilberto Freyre, 80 anos de Casa-Grande & Senzala APOIO: Amílcar Cabral40 anos Memórias e alguns Poemas Amílcar Cabral, 40 anos: Memórias e alguns Poemas Ivo Carneiro de Sousa C umpre-se este ano o trágico quadragésimo aniversário do assassinato do fundador e líder do PAIGC, Amílcar Cabral. Morto a 20 de Janeiro de 1973 em Conacry, nessa outra Guiné, em golpe meticulosamente preparado pela PIDE, envolvendo traições e cumplicidades ainda não totalmente esclarecidas, o grande dirigente e nacionalista africano não assistiria às independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que havia sonhado como um único país soberano e solidário. As comemorações não têm sido abundantes nos diferentes espaços lusófonos, assim como se tornou progressivamente mais limitado o conhecimento do seu pensamento, do seu legado político e cultural, enquanto a sua obra vasta aguarda publicação completa ainda por fazer precisamente quando, no passado mês de Maio, a UNESCO em Dacar, no Senegal, lançou um grande projecto para recolher o seus textos, objectos e memórias. Talvez aqui por Macau, em sede desta plataforma que o território insiste, e bem, em querer continuar a fazer entre a China e os Países de Língua Portuguesa se possa um dia vir a encontrar a inteligência suficiente para publicar e, depois, estudar as obras completas de Amílcar Cabral e, com ele, resgatar os grandes líderes e pensadores nacionalistas que multiplicaram em independências a constelação de países lusófonos soberanos. Infância Difícil A mílcar Lopes da Costa Cabral, de seu nome completo, nasceu a 12 de Setembro de 1924 em Bafatá, na Guiné-Bissau. O registo civil do seu nascimento ainda esclarece que o seu pai, Juvenal Cabral, decidiu escrever Hamílcar, com um estridente H inicial, em memória do grande general africano que tinha feito tremer o poderoso império romano. Latinas influências presentes também no nome paterno: o avô de Amílcar Cabral baptizou o seu filho com esse preciso nome em que se recordava o grande poeta Décimo Júnio Juvenal (c. 55/60-c. 127) que, nas suas célebres Sátiras, havia cantado as proezas desse grande Hamilcar Barca (c. 275 – 228 AC) durante a primeira guerra púnica, esse mesmo que foi pai desse outro temível general cartaginês, Aníbal (247 – 183/182 BC), mais do que famoso por ter atravessado os Pirinéus e os Alpes à frente de um numeroso exército que, incluindo 37 elefantes, haveria de semear o pânico no coração da Itália entre as poderosas legiões romanas. Juvenal Cabral era um mestre-escola sem formação académica que, no generoso contexto democrático de desenvolvimento da instrução pública promovido pela I República Portuguesa, se tinha instalado em Bissau desde 1911 e leccionado desde 1913 em várias regiões da Guiné-Bissau, nomeadamente em Cacine e Geba. Juvenal era oriundo de uma família rural da ilha de Santiago de onde saíram vários professores e padres, reconhecidos por “educados” à época. A mãe de Amílcar Cabral, Iva Pinhel Évora, vinha de uma família ainda mais humilde dessa mesma ilha de Santiago constantemente fustigada pelas mais mortais secas. Como explicou nas suas Memórias e Reflexões, publicadas na Praia, em 1945, Juvenal Cabral acreditava que estes desastres não tinham apenas causas naturais, podendo ser evitados com adequada intervenção política para o desenvolvimento de novos projectos de fomento económico e agrícola do arquipélago. Contudo, como para muitos outros, o fado de Santiago multiplicava emigrações sem fim, algumas das quais se dirigiam perto para essa Guiné que, para com capital em Bissau, é um dos países africanos com mais rica rede hidrográfica e cobertura vegetal: Juvenal para lá emigrou com a família. No seu texto de memórias, o pai de Amílcar Cabral registou extasiado as diferenças muitas entre a terra verde e rica da Guiné e o seu arquipélago de secas, penedios e misérias: “ter deixado as rochas nuas da Praia Negra, da Achada Grande, do Lazareto, e cujo aspeto, severo e triste, parece simbolizar o sofrimento e a dor, meus olhos, maravilhados, contemplaram sem cessar a paradisíaca majestade da flora que, de modo misterioso, parece emergir do mar! Por toda a parte árvores frondosas, lindos e esquisitos arbustos que, verdejantes, se espalham pelo solo como tapetes no chão. Tudo isto é opulência e vigor, é maravilha que encanta, é riqueza que seduz e predispõe um rapaz a encarar com optimismo a vida neste país.” Até aos sete anos, aprendeu por aqui Amílcar Cabral as primeiras (e muitas outras...) letras com o seu pai que lhe incutiu o meticuloso gosto pelo estudo, a moral da generosidade e, acima de tudo, um enorme amor e ainda mais saudade por Cabo Verde. Em 1931, Amílcar e a sua mãe regressam ao arquipélago, depois acompanhados pelo pai no ano seguinte. Nestes anos, a família gozou um período de alguma prosperidade quando Cabo Verde também alimentou essa metrópole que fornecia lucrativamente os diferentes lados da II Guerra Mundial. Vieram, porém, as secas violentas que, entre 1941 e 1948, causaram mais de 5.000 mortos. Juvenal Cabral explicava nos seus textos que quase tudo se podia evitar com a introdução de novas técnicas agrícolas, plantação maciça de árvores, investimento na irrigação e, sobretudo, reorganização da propriedade dos grandes latifúndios. Conselhos sem eco: a família encontrou-se entre a maioria dos que não tinha meios de subsistência, obrigando a mãe de Amílcar Cabral a costurar diariamente para fora e a aceitar um emprego menor num armazém de distribuição de peixe. Entretanto, Amílcar tinha es- Cultura Muita tudado na escola primária da Praia, passando depois para o Liceu (adivinhe-se o nome...) Infante D. Henrique (que Gil Eanes passaria a ser em novo edifício) no Mindelo, na ilha de São Vicente. Como muitos outros adolescentes, acordou para todas as excitações da vida através da poesia, logo reflectindo em juvenis poemas sobre essa contradição paradoxal entre umas ilhas que apaixonavam muitos poetas mas eram um inferno para os seus habitantes que só queriam mesmo fugir, escapar, emigrar. Uma obsessão também acolhida pelo jovem Cabral que, aos 18 anos, escreve um demorado conto Fidemar (Filho do Mar) para narrar o itinerário de um herói revolucionário que parte da sua ilha miserável com a esperança de um dia regressar para a libertar. Uma ideia de libertação que sorve igualmente os fragmentários ecos do fim da II Guerra Mundial que chegam a Cabo Verde, devidamente escutados por Cabral que, a propósito, escreve um texto de reflexão intitulado Hoje e Amanhã, mais tarde publicado, em 1949, sob o pseudónimo de Arlindo António, no segundo volume do boletim Mensagem da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Nesse texto premonitório das suas grandes ideias políticas declarava com mitificado entusiasmo: “na Terra existe um único Povo a que pertencem todas as Nações. Do caos surgirá um mundo novo e melhor, o que dignificará o homem preto ou branco, vermelho ou amarelo.” Em 1944, concluídos os estudos liceais com as mais altas classificações, o jovem Amílcar Cabral regressa à Praia, a capital de Cabo Verde, para trabalhar na Imprensa Nacional, embaraçando-se rapidamente com as rotinas de uma burocracia mais do que medíocre. Continuou a escrever os seus poemas, vários dos quais ofereceu a João de Deus Lopes da Silva (o irmão do grande escritor, poeta e linguista que foi Baltasar Lopes da Silva, um dos fundadores da revista Claridade, em 1936 ) que, na altura comandante do navio Nossa Senhora dos Anjos, promoveu a sua publicação num semanário dos Açores. 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Chega a Lisboa com a vitória dos Aliados sobre o fascismo, assiste a várias manifestações que, depois de relativamente toleradas, são fortemente reprimidas pela ditadura de Salazar. Cabral chegou atrasado, só em Dezembro, ao ano lectivo de 1944-45 do Instituto Superior de Agronomia onde queria estudar para ser engenheiro agrónomo. Numa classe de 220 alunos – seriam depois apenas 25 ao chegarem ao terceiro ano –, Amílcar prontamente daria nas vistas por ser o único africano e um dos melhores alunos. A sua colega e, mais tarde, primeira esposa, Maria Helena Vilhena Rodrigues, ainda recordava que o seu futuro marido em muito se destacava de todos os outros: “como ele era o único negro, isso era bastante óbvio. Ele não tinha feito os exames de acesso à Universidade, mas distinguiu-se imediatamente ao tirar as melhores notas nos exames de Matemática. Todos falavam dele, elogiando a sua inteligência, era atraente e descontraído. Quanto a actividades políticas, lembro-me dos meus colegas recolherem assinaturas para a adesão aos movimentos anti-fascistas de estudantes democráticos. Nas reuniões, ele costumava liderar os debates visto que se expressava de forma eloquente.” lusofonias com Maria Helena Vilhena Rodrigues É nestes anos de frequência universitária em Lisboa que, marcados pelo ambiente do pós-guerra com a sua grande circulação de ideias, o nosso estudante de Agronomia leria uma das obras que confessou reiteradamente terem mudado a sua visão do Mundo e da África: Léopold Senghor, Anthologie de la Nouvelle Poésie Negre et Malgache de na Serra de Sintra, durante a excursão de fim do curso de Langue Française, livro publicado em Paris, em 1948. Amílcar Cabral entusiasmou-se ao frequentar estes poemas africanos numa língua francesa que viria a cultivar na sua expressão oral e escrita com desenvolta elegância. Mas que nunca foi obstáculo, antes complemento, para a sua sentida defesa da língua portuguesa enquanto língua de libertação e de construção de novos estados soberanos. No final do ano académico de 1949, Cabral regressou ao seu arquipélago determinado a revelar Cabo Verde aos próprios caboverdianos, começando a 8 de Setembro uma série de palestras na rádio sobre aspectos geofísicos do território multi-insular. Um projecto em tudo semelhante ao contemporâneo movimento Vamos Descobrir Angola lançado por um grupo de intelectuais em torno do poeta Viriato da Cruz. No seu regresso a Lisboa, Amílcar Cabral começa a dar passos no sentido de encontrar formas de organização política capazes de enfrentar o Agronomia dilema debatido acaloradamente com alguns outros estudantes universitários oriundos das africanas colónias portuguesas: tornarem-se assimilados, como diziam, pela sua educação superior, ou mobilizar-se cultural e politicamente para desafiar o sistema de dominação colonial. Participa, então, no MUD juvenil e no Movimento da Paz, tentando sem sucesso com outros colegas conquistar a direcção da Casa dos Estudantes do Império (1944-1965), depois organizando o Centro de Estudos Africanos no final de 1951, logo estabelecendo contactos regulares com a célebre revista Présence Africaine, fundada em Paris por Alioune Diop, em 1947. Neste agitado período, Amílcar Cabral tinha já concluído os seus cursos universitários. Em 1950, diploma-se em Agronomia com 15 valores (no máximo de 16), finalizando no ano seguinte graças a uma bolsa da Missão dos Estudantes do Ultramar os estágios de Engenharia Agrónoma e Engenharia Agrónoma Colonial com 18 valores entre os 19 possíveis. Encontrava-se a estagiar na Brigada dos Solos de Santarém, da Estação Agronómica Nacional, quando recebe a notícia do falecimento do seu pai, Juvenal Cabral. Decide, então, aceitar um emprego como engenheiro agrónomo contratado oferecido pela Repartição Provincial dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa, opção que haveria de transformar ainda mais radicalmente o seu pensamento e acção políticos. LUSOFONIAS • Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 III Maria Helena Rodrigues com sua a filha Amílcar Cabral, Ana Luísa Cabral Amílcar Cabral, e no interior da O Recenseamento Agrícola A 20 de Outubro de 1952, a bordo do navio Ana Mafalda, com 28 anos de idade, o agora engenheiro agrónomo Amílcar Cabral regressa a Bissau. A sua mulher, Maria Helena Rodrigues, engenheira silvicultora, chegaria quase dois meses depois. Torna-se rapidamente adjunto do Chefe da Repartição Provincial dos Serviços Agrícolas e Florestais (chegaria mesmo a ser chefe interino e até Inspector Geral do Comércio, por substituição) e Director do Posto Agrícola Experimental de Pessubé. O casal instalou-se, por isso, na casa posta à disposição do director nessa Granja de Pessubé (como era mais conhecida) que, distante do centro de Bissau, se alargava por 400 hectares em que se reuniam espécies florestais e fruteiras, mais as verduras, os cheiros e os legumes que se distribuíam entre os altos administradores e oficiais portugueses. Apesar de ser uma das principais realizações dos serviços agrícolas coloniais instalados na Guiné, a estação praticamente não fazia investigação, formação ou experimentação, assim ajudando muito remotamente os camponeses da colónia que eram, aliás, considerados responsáveis por perpetuarem uma agricultura considerada de subsistência, primitiva e apenas “indígena”. A Granja era regularmente mais utilizada para piqueniques, festas e passeios do pessoal administrativo colonial do que como verdadeira estação agronómica, pelo que, desde a sua chegada, o Engº. Amílcar Cabral tratou, em coerência, de emendar as coisas: investigou técnicas agrícolas, promoveu ensaios de adaptação sobre o arroz, cana-de-açúcar, mancarra, banana e algodão, estudou pragas e doenças, fez pesquisas em sementes locais e apurou as possibilidades de desen- IV volvimento de novas espécies como o sésamo, girassol e soja. Cabral chegou mesmo a ligar os serviços da estação aos outros existentes na região, especialmente no Senegal, apresentou comunicações cuidadas em seminários fora da Guiné, convidou especialistas e técnicos estrangeiros. Amílcar Cabral tinha sido convidado a trabalhar na Guiné para, prioritariamente, coordenar o Recenseamento Agrícola da colónia. O que fez com a maior qualidade científica, técnica e elevado profissionalismo. Durante mais de dois anos, o nosso engenheiro percorreu todos os recantos da Guiné, contactou chefes de etnias e tabancas, falou com simples camponeses, jovens e mulheres, observou atentamente solos e culturas, fez de etnógrafo ao recensear pormenorizadamente tradições e folclores, vestiu-se de sociólogo ao desfibrar estruturas sociais, assim acumulando uma experiência do terreno que haveria de se mostrar guia maior na ulterior luta armada contra o colonialismo português. O seu relatório de recenseamento agrícola da Guiné, muito ignorado pelas autoridades coloniais, permanece como um dos melhores e mais sólidos estudos sobre a paisagem ecológica, comunidades agrícolas e estruturas agrárias da Guiné-Bissau. Na verdade, Amílcar Cabral identificou qualificadamente a tripla estrutura de floresta tropical, savana e agricultura comunitária, percebeu as principais formas de domesticação humana do ambiente, estudou especializadamente os sistemas de rotação e pousio prolongados, a itinerância agrícola ou as queimadas sazonais, preocupando-se ainda com a profunda alteração da biodiversidade causada pela expansão agrícola e Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS Guiné, utilizando um teodolito para definição de tiro de artilharia comercial do amendoim (que macarra se diz na Guiné-Bissau). Um aviso agora com seis décadas que, talvez por muitíssimo pouco lido, certamente deve ter caído em saco roto: mais intensamente a partir dos princípios de 1980, as estruturas agrárias identificadas tão rigorosamente por Amílcar Cabral têm vindo a ser quase completamente substituídas por pousios curtos e essa cultura permamente do cajú que, mobilizando hoje 85% da população, se vazou em muito dominante riqueza do país (na verdade, tornou o país mais pobre e alguns grandes proprietários, intermediários e comerciantes muito mais ricos...). Nos primeiros meses após chegar a Bissau, pelos finais de 1952, Cabral passa à acção política, tentando organizar um Clube Desportivo e Recreativo de Bissau, incluindo biblioteca, reservado exclusivamente a guineenses, todos e sem excepção. A proposta caiu mais do que mal entre o governador e as autoridades coloniais portuguesas que recusaram. Nos registos da PIDE ficou depois lavrada a fatal informação de subversão: “o Eng.º Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Eng.º pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e Recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado”. Acabado o seu demorado e pormenorizado trabalho (com toda a propriedade...) de campo, mal fechado o seu relatório final do recenseamento agrícola da Guiné-Bissau, em da Amílcar Cabral e outros c a caminho do I Co Guiné-Bissau (1953-55) Março de 1955, o governador convida o nosso activo engenheiro a sair definitivamente da Guiné em avião da Air France, acusado de propagar perigosas ideias independentistas. Fica apenas autorizado a regressar uma vez por ano ao território para visitar a família, mas obrigado a fazer o conveniente requerimento. O engenheiro agrónomo encontra prontamente trabalho em Angola dirigindo uma equipa de estudo de solos na Sociedade Agrícola do Cassequel, proprietária, entre outras coisas, de uma enorme plantação de cana-de-açúcar na Catumbela com o respectivo privado caminho-de-ferro. Desde 1956, Amílcar Cabral torna-se também colaborador extraordinário e investigador na Junta de Investigação do Ultramar, ocupando idêntica posição, desde 1958, na Direcção Geral dos Serviços Agrícolas, em Lisboa. Na primeira instituição chega, em 1957, a Chefe de Secção da Brigada de Estudos de Defesa Fitossanitária, e na segunda dirige a Secção do Laboratório da Defesa Fitossanitária dos Produtos Armazenados. Em 1959, é ao Engº. Amílcar Cabral que a Junta de Investigação do Ultramar encomenda os planos de defesa fitossanitária do arroz e do amendoim da Guiné, a que se seguem os estudos das condições fitossanitárias dos porões dos navios mercantes e dos entrepostos do porto de Lisboa. Até aos princípios de 1960, Cabral publica 41 artigos científicos nestas áreas da sua especialidade para, depois, o engenheiro agrónomo se ver definitivamente obrigado a ceder completamente todo o protagonismo ao líder político do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde que, fundado sete anos antes em Bissau, se acolhia à Guiné-Conacry de Sekou Touré, independente desde 1958. R e 1 dos enco posi priv dian para cos vint Verd da C te s -Biss seu vem na il mun Cab golp bicé leva das Fo dest nhec apoi bé e com país de s (Mov que, “Tch mor As reve tóric exac Part né e PAI. mais nand de P únic fran dest lusofo companheiros, a bordo de uma canoa, ongresso do R PAIGC, Cassacá, 1964 Amílcar Cabral Mário Pinto A Fundação ecorde-se que, quando regressou a Bissau, em 1952, Amílcar Cabral aproximou-se imediatamente seus antigos colegas do Liceu do Mindelo que se ontravam a trabalhar na Guiné, normalmente em ições elevadas da administração ou em empresas vadas, sobretudo estrangeiras. Entre estes cabovernos emigrados procurou encontrar apoios políticos a o seu sonho de emancipação. Os muitíssimo pouque o escutaram na altura haveriam de se tornar te anos depois os líderes da Guiné-Bissau e Cabo de independentes: o seu meio-irmão Luís de AlmeiCabral (1931-2009), nascido em Bissau, seu constanseguidor, viria ser o primeiro presidente da Guinésau até ao conhecido golpe militar liderado pelo então primeiro-ministro, Nino Vieira, a 14 de Nombro de 1980; Aristides Pereira (1923-2011), nascido lha da Boa Vista, emigrante trabalhador nas teleconicações de Bissau, seria o primeiro presidente de bo Verde até 1991, não sem antes ter respondido ao pe militar de Nino Vieira acabando com a direcção éfala do PAIGC, criando o caboverdiano PAICV, assim ando a que os dois países vivessem de costas voltapor muitos anos. ora de um muito pequeno punhado de apoiantes tas condições, o engenheiro (como passou a ser cocido um pouco por toda a Guiné) encontrou mais ios na sua unidade agrícola experimental de Pessue, depois, a simpatia e interesse de muitos chefes munitários e camponeses anónimos espalhados pelo s. É neste contexto de multiplicação de contactos e sensibilização política que aparece em 1955 o MING vimento Nacional para a Independência da Guiné) e, animado por José Francisco Gomes e Luís da Silva halumbé”, acabaria por se dissolver no processo derado de criação do PAIGC. ssim, na sua primeira visita autorizada à Guiné para er a família, Amílcar Cabral dirige a reunião hisca que, provavelmente a 19 de Setembro (a data cta ainda é discutida...) de 1956, decidiu fundar o tido Africano da Independência – União dos Povos da GuiCabo Verde, conhecido na altura simplesmente por . Para além de Cabral, estiveram presentes apenas s cinco pessoas: Aristides Pereira, Luís Cabral, Ferdo Fortes e Júlio de Almeida (funcionário na Granja Pessubé) eram caboverdianos, mais Elisée Turpin, o co guineense, na altura funcionário da companhia ncesa SCOA. O PAI viveria quatro duros anos de clantinidade até encontrar, desde 1960, essa base se- onias e de do Andrade, Khartum, 1969 PAI e o Massacre gura na Guiné-Conacry para onde se transferiu a sua direcção e, com ela, deixou mesmo Cabral de ser o engenheiro agrónomo e o investigador admirado tanto por académicos como por simples camponeses das mais remotas áreas da Guiné. Neste período de grande resguardo do PAI organiza-se igualmente, em princípios de 1958, o MLG (Movimento para Independência de Arquivo Mário Pinto Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos Amílcar Cabral. Nota de Amílcar Cabral para arquivo: “Reunião a 3 de Agosto no Centro 68” de de Andrade • Fundação Mário Soares Pidjiguiti da Guiné), reunindo personagens como João Rosa (um guarda-livros na empresa francesa NOSOCO, grande colaborador de Amílcar Cabral), César Fernandes, Ladislau Justado Lopes, Tomás Cabral de Almada, José Ferreira de Lacerda e o célebre Rafael Barbosa que, tendo sido dirigente importante do PAIGC, haveria de aparecer no contexto do assassinato de Amílcar Cabral a apoiar publicamente a política de chamada “reconciliação” promovida pelo governador português que, à época, era o conhecido general António de Spínola, homem suficiente arguto para disseminar também essas campanhas “psicológicas” em que se acusavam os caboverdianos de serem o verdadeiro problema da Guiné. Preso logo depois da independência final da Guiné-Bissau, em 1975, Rafael Barbosa acabaria por ser libertado com o golpe de Nino Vieira com quem partilhava a mesma etnia papel. Seja como for, o MLG aparece num contexto histórico marcado pelas sucessivas independências concretizadas e anunciadas nas colónias francesas na África Ocidental e, especialmente, por uma grande mobilização de muitos activistas guineenses em torno da campanha presidencial de Humberto Delgado, cujos boletins de voto foram abundantemente distribuídos no território. Muitas cartas, declarações e petições em circulação pública, depois dirigidas ao governo provincial e central seriam completamente ignoradas pelo poder da ditadura em Lisboa, frustrando-se rapidamente quaisquer esperanças de transição pacífica negociada para independência da colónia tanto como ruíram as esperanças de milhões de portugueses com a conhecida chapelada eleitoral que derrotou apenas oficialmente o General Sem Medo para colocar na presidência de Portugal o contra-almirante Américo Thomaz. Nada de novo seguiria para as colónias portuguesas, para além de cosméticas reformas de estatutos e requalificações administrativas. Neste período de protecção do PAI e, em contraste, de várias actividades promovidas (ou, pelo menos, posteriormente reivindicadas) pelo MLG, conquanto muitas vezes partilhando espaços semelhantes e até os mesmíssimos activistas, Bissau era uma cidade agitada por um comércio que vivia em grande parte dessa agricultura desprezivelmente dita “indígena”, mas que produzia o arroz e, principalmente, a mancarra que, em bruto ou em óleo, muitas empresas portuCONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE > LUSOFONIAS • Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 V < CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR guesas e estrangeiras exportavam lucrativamente para os mercados europeus e, ainda que em menor escala, dos Estados Unidos. Destacava-se neste negócio a presença da grande empresa francesa NOSOCO (Nouvelle Société Commerciale) que, com o seu grande e imaculado edífico branco em Bissau, tinha interesses, armazéns e escritórios comerciais espalhados por toda a África ocidental francófona. Francesa e muita activa era também a companhia SCOA (Société Commerciale de l’Ouest Africain), mas a concorrência não era facilitada pelas várias empresas portuguesas sediadas em Bissau: Barbosa & Comandita, Álvaro Camacho, Sociedade Comercial Ultramarina e, sobretudo, a Casa António Silva Gouveia que representava os interesses da poderosa CUF (Companhia União Fabril). Grande comerciante, ex-marinheiro e antigo capitão de navios, Gouveia tinha sido deputado pela Guiné, desde 1911, na Câmara dos Deputados da I República, ligou-se ao Partido Republicano Evolucionista de António José de Almeida e assim desenvolveu abundantes negócios com a CUF que, originada ainda em 1865, era, de muito longe, o maior grupo económico português que detinha já pela década de 1950 fortes posições nas economias das colónias, do transporte marítimo à exploração mineira, do comércio às indústrias. O grande conglomerado consolidara um monopólio de tal forma eficaz no arroz, amendoim e pasta de papel da Guiné que se dizia ser o território um quintal da CUF. A verdade, porém, é que parte importante do comércio interno guineense escorria por outros intervenientes, alargando-se dos pequenos comerciantes libaneses de Bissau (Mamud El Awar, Michel Ajouz, Aly Souleiman e outros) aos muitos djilas que, almocreves ambulantes, vendiam pelos sítios mais recônditos da Guiné. As grande empresas comerciais possuíam tam- bém as indispensáveis frotas marítimas e fluviais que asseguravam tanto a circulação das produções internas de mancarra e arroz, sobretudo através do rio Geba, como a sua exportação externa, aqui se destacando a Companhia Nacional de Navegação que, inaugurada em 1956 pela CUF, visava assegurar os tráficos de mercadorias entre as colónias e para Portugal. Eram estas empresas com predominância para o monopólio da CUF a imporem salários, preços de serviços de intermediação, transporte e armazenagem, para além dos preços pagos aos produtores. Em 1959, ao contrário das outras firmas, a Casa Gouveia da CUF não actualizou os salários dos estivadores, marinheiros e outros trabalhadores envolvidos nestes movimentos comerciais, tendo-se progressivamente multiplicado e radicalizado os protestos. A 3 de Agosto de 1959, os trabalhadores do cais de Pidjiguiti e muitos outros populares de Bissau decidem marchar em direcção à sede da António Silva Gouveia: o confronto com as forças da ordem torna-se praticamente inevitável e a repressão muito violenta dos manifestantes salda-se entre os 16 mortos reconhecidos oficialmente e os 50 (para algumas fontes até mais), numerosos feridos e muitos encarcerados. O trágico (e estúpido) episódio incidental que, no campo da agitação política, parece ter tido mais alguma acção do MLG do que directamente do PAI, ficaria conhecido por massacre de Pidjiguiti. Foi, contudo, rapidamente criticado tanto pelos administradores locais como pelos responsáveis militares portugueses que enviaram, ainda em 1959, um relatório de análise da situação da Guiné em que se sublinhava: o agravamento do incidente deu-se devido à falta de preparação dos agentes da PSP que, impotentes para actuar de outra forma, fizeram uso de armas de fogo. Independentemente dos debates ociosos sobre o exacto número de vítimas ou a qualificação do incidente, a verdade é que a repressão policial e as mortes acabariam, como sempre acontece Um Líder Africano A 23 de Janeiro de 1963 com o ataque ao quartel de Tite, no Sul da Guiné, começava para ficar a luta armada. Com o seu demorado prosseguimento sob a liderança do PAICG, praticamente todos os outros grupos políticos guineenses se veriam obrigados a realinhar-se entre os dois lados da guerra, assim se dissolvendo ou reunificando sucessivamente em torno do partido liderado por Amílcar Cabral tanto o MLG como as outras várias organizações criadas entre exilados e emigrantes da Guiné-Bissau distribuídos pelos novos países independentes da África ocidental francófona: a FLING (Frente de Libertação para Independência Nacional da Guiné), a UPG (União Popular da Guiné), a UPLG (União Popular para a Libertação da Guiné), a UNGP (União dos Naturais da Guiné-Portuguesa) ou o afrancesado Ressemblement Democratique Africain de La Guiné (RDAG), entre outros agrupamentos que, hoje difíceis de reconstruir rigorosamente, duravam o tempo de um par de VI reuniões ou o protagonismo breve de algumas personagens políticas subsumidas numa memória cada vez mais fixada pela luta do PAIGC. A guerra colonial na Guiné-Bissau, ainda deficientemente estudada em toda a sua complexidade e muitos jogos de sombras, sublinha um processo histórico geral em que se destaca de forma gigantesca a palavra, a direcção e a pluralidade do pensamento político de Amílcar Cabral. Uma década, entre 1963 e 1973, absolutamente vertiginosa para o engenheiro agrónomo que conhecia a Guiné como ninguém e era uma das mais admiradas vozes em Cabo Verde para, nos anos seguintes, se tornar respeitado nas mais diferentes geografias políticas do mundo. Assim, na frente diplomática externa, edifica uma presença muito solicitada: dirigindo-se várias vezes às Nações Unidas, enfrentando seguro, em 1970, o interrogatório difícil do subcomité africano do Congressos dos EUA para, em Junho, vir a Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS nestes casos, por serem devidamente convocadas posteriormente pelas habituais narrativas tanto justificativas como heróicas dos movimentos de libertação que, como em todos os processos revolucionários históricos, sempre precisam de bandeiras e mártires que, neste episódio, existiram tragicamente mesmo. Amílcar Cabral recebe a dramática notícia em trânsito para Angola, mas consegue ainda deslocar-se entre 14 e 21 de Setembro de 1959 a Bissau, a sua última visita autorizada. Tinha acabado de percorrer os países africanos recentemente independentes – Gana (6 de Março de 1957) e Guiné-Conacry (2 de Outubro de 1958) – e a Libéria (independente desde 1847), estabelecendo contactos com os partidos que, no Congo-Kinshasa (hoje República Democrática do Congo) e no Senegal, se preparavam para abandonar defintivamente a África Ocidental Francesa em 1960. Conseguiu reunir apoios e muitas promessas, nem sempre depois concretizados, para o desenvolvimento da luta anti-colonial na Guiné-Bissau. Depois, numa reunião em Bissau que estaria na base da progressiva unificação dos activistas pela independência, decide-se a radicalização da luta, a sua deslocação para os campos da Guiné, a convocação de mais solidariedade internacional, o envio de protestos e pedidos de negociações ao governo de Lisboa que, como seria de esperar, nem sequer se deu ao trabalho de responder. Transferida a direcção do movimento de libertação para Conacry, Cabral lidera, em Agosto de 1960, a delegação que vai encontrar apoio na República Popular da China e descobrir inspiração na formidável mobilização camponesa que, em longa marcha, desaguara na Revolução Chinesa de 1949. A 8 de Outubro, o movimento adopta definitivamente a sigla PAIGC para, a 18 de Abril de 1961, colaborar na criação da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas), em cimeira realizada em Casablanca com o apoio do rei de Marrocos. entre ser um dos principais organizadores da famosa audiência de Paulo VI concedida ao MPLA, à FRELIMO e ao PAICG que muito embaraçaria os altos responsáveis de Portugal. Em 1971, denuncia em Estocolmo a fome em Cabo Verde, em Junho dirige-se com eloquência à cimeira da OUA em nome dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, percorrendo nos meses seguintes várias capitais europeias, dialogando com governos e políticos, debatendo com comités de solidariedade, discursando em Universidades e semeando a sua palavra convicta pelos media ocidentais. Na frente interna, em Conacry ou nos terrenos de guerra da Guiné, multiplicou a sua direcção política e organizativa por centenas de comunicados, cartas, directivas, pormenorizados guias de acção tanto como pequenas notas de leituras, desdobrou-se em seminários de formação de quadros e reuniões em que os seus discursos eram muitas vezes gravados e depois transcritos para serem distri- Humanismo Amílcar Cabral e Revolução acompanhado por Constantino Teixeira lusofonias buídos e lidos com atenção. Escreveu textos ideológicos importantes sobre a libertação da mulher, explicando também o seu conceito de democracia revolucionária, tratou em detalhe o tema da educação popular, reflectiu sobre o sistema de saúde, discutiu as formas de participação e representação políticas, escreveu sobre um Estado descentralizado no qual achava até que era desnecessário, porque centralista e despesista, a existência de uma capital: textos escritos e falados num impecável português, por vezes também saídos de uma pena que sabia mobilizar com qualidade o francês e se desembaraçava num pragmático inglês. Continua a ser complicado (talvez seja mesmo inútil) tentar nesta produção oceânica de textos, intervenções e muitos discursos encontrar uma única escola de pensamento, uma singular ideologia, um unívoco projecto político para além desse sonho maior de libertar os africanos do jugo do colonialismo. Amílcar Cabral revela um pensamento em trânsito por variadas influências, aqui se descobrindo filiações marxistas e mesmo marxistas-leninistas, mas também um estudioso interesse pelos textos de Mao, em especial sobre a mobilização revolucionária do campesinato, tanto como um fascínio fiel às antologias e textos de Leopold Senghor, dos movimentos literários da negritude, muita leitura também de intelectuais progressistas franceses, conhecimento actualizado da obra de Samir Amin como dos grandes textos de Kwame Nkrumah ou de Patrice Lumumba. Neste pensamento entre muitas fronteiras não deixa de se descobrir perene um recorrente pan-africanismo que, vazado no nome de um partido que começava primeiro por ser Africano, concorre para explicar essa quase paradoxal ausência no pensamento de Cabral de um verdadeiro nacionalismo, mas que alimentaria depois a construção de dois estados-nação independentes, progressivamente mais diferentes, como o são as repúblicas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau hoje. Por isso, muitas vezes se interrogava nos seus textos, intervenções e cursos de formação de quadros do PAIGC sobre o verdadeiro significado da luta pela independência: “Muitos países se tornaram independentes e ouvimos muitas vezes esta frase:A independência para quê? Sim, a independência para quê? Para nós, em primeiro lugar, para sermos nós próprios. Para sermos homens africanos, com tudo o que nos caracteriza, mas caminhando para uma vida melhor, e que nos identifique, cada vez mais, com os outros homens no Mundo.” Simples e, ao mesmo tempo, um desafio terrivelmente complexo como a instável história de muitos dos novos países africanos independentes tem vindo a testemunhar. Um homem no pensamento e na prática da acção política profundamente humanista. Na guerra de libertação da Guiné proibiu todo o terrorismo, a violência contra os civis ou a destruição das principais infraestruturas, limitando até o armamento ou os obuses com que o PAIGC fustigava as tropas coloniais, perdoando frequentemente traições e dissidências. Um humanismo que provavelmente ajuda a explicar um pensamento pluriforme que não se parece ter deixado amarrar a uma única ideia, ideologia ou lado político do dividido mundo do seu tempo. Explicou vezes sem conta pela sua palavra escrita e falada: “É por isso mesmo que eu luto, para que deixemos de amarrar as pessoas… O ser humano não pode ser amarrado. Se há problemas, vamos sentar, vamos discutir, vamos conver- …NÃO, POESIA REGRESSO …não poesia: Não te escondas nas grutas do meu ser, Não fujas à vida. Quebra as grades invisíveis da minha prisão, Abre de par em par as portas do meu ser - e sai… Sai para a luta (a vida é luta), Os homens lá fora chamam por ti, E tu, poesia, és também um homem. Ama a poesia de todo o mundo, -Ama os homens Solta os teus poemas para todas as raças, Para todas as coisas. Confunde o teu corpo com todos os corpos do mundo, Confunde-te comigo… Mamãe velha, venha ouvir comigo O bater da chuva lá no seu portão É um bater de amigo Que vibra dentro do meu coração. Vai, poesia: dá-me os teus braços para que abrace a vida. A minha poesia sou eu. Venha comigo, mamãe velha, velha, Recobre a força e chegue-se ao portão A chuva amiga já falou mantenha E bate dentro do meu coração! (Amílcar Cabral, 1946) A chuva amiga, Mamãe velha, a chuva, Que há tanto tempo não batia assim. Ouvi dizer que a cidade velha, - A ilha toda Em poucos dias já virou jardim… Dizem que o campo se cobriu de verde Da cor mais bela, porque é a cor da esperança Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde - É a tempestade que virou bonança… (Antologia Poética da Guiné-Bissau, 1990) Evolução conceptual e real Um conceito anterior: um caracol Nos mistérios de um invólucro de egoísmo. A vida só valia à luz do sol, De um sol falho de Amor – do comodismo. Conceito mais actual: uma alma aberta à vida, Na conquista da vida, rasando o seu destino. Na estrada a percorrer, na estrada percorrida. O amor é o justo guia, o amor é um constante hino. (Amílcar Cabral, c. 1950-52) lusofonias sar.” Em coerência, manteve-se sempre prediposto ao diálogo que parece, afinal, nunca ter verdadeiramente estado nas intenções da governação instalada em Lisboa mesmo com a chegada à mais alta cadeira do poder de Marcelo Caetano: pouca mudança para muita continuidade. Homem gigantesco, um verdadeiro mito tanto entre os movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas como entre os resistentes e os seus grupos no Portugal das décadas de 1960 e 1970, o seu rico pensamento tem-se tornado cada vez mais longínquo e, pouco estudado, arrisca-se mais cedo que tarde a dissolver-se em vago lugar da memória quando deveria permanecer como legado histórico importante encruzilhado em saudáveis lusofonias. Resta tentar resgatar, pelo menos, alguns fragmentos da sua imensa obra que aqui se revisita nessa forma maior da arte literária que acompanhou Amílcar Cabral até à sua morte: a poesia. Pedindo-lhe, como nesse poema Regresso tantas vezes cantado por Cesária Évora ou por Cateano Veloso, para voltar a inspirar as mais plurais Lusofonias. Onde Amílcar Cabral deve ficar para sempre. Para ti, Mãe Iva Eu deixo uma parcela Do meu livro de curso… P’ra ti, que foste a estrela Da minha infância agreste, P’ra ti, Mãe, que me deste A tua alma viva E o teu amor profundo Maior que o próprio mundo! Aceita este tributo, Que tudo quanto eu for, Será do teu amor - Tua carne, Mãe, teu fruto! Sem ti, não sou ninguém, Só sou – porque és Mãe! (Amílcar Cabral, 1949) LUSOFONIAS • Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 VII Angola é aqui Publica textos de estudo e opinião sobre a diversidade cultural das Lusofonias Ideias Mônica Lima e Souza* “Após a década de 1980, surgiram novas rotas de migração. Inicialmente provenientes de Angola, e acrescidas de recentes levas vindas do Congo, essas populações de refugiados são formadas principalmente por jovens do sexo masculino. A nova diáspora centroafricana para o Brasil é fruto das guerras e das impossibilidades geradas por séculos de espoliação.” VIII D engo, farofa, moleque, neném, quitanda, samba... Quer palavras mais brasileiras do que estas? De fato, são brasileiras – mas nasceram na África. Foram trazidas da vasta região costeira central do continente, onde hoje se encontram Angola e Congo. Com origem no tronco linguístico banto, que engloba línguas como o quimbundo, o umbundo e o quicongo, essas palavras substituíram vocábulos portugueses que eram utilizados para os mesmos fins. Ou seja, em alguns casos, os falares africanos conseguiram sobrepor-se aos outros. Como a língua é algo vivo, algumas palavras mudaram um pouco, outras adquiriram significados diferentes, mas não muito distantes do original. A linguagem é um dos aspectos mais evidentes da contribuição cultural dos africanos trazidos para o Novo Mundo. Mas nem de longe é o único. Houve diversos aportes civilizatórios da África para o Brasil, e algumas regiões foram especialmente relevantes nesse processo, como é o caso de Angola. Práticas religiosas, conhecimentos técnicos agrícolas e de mineração, valores sociais, costumes na vida cotidiana e hábitos de alimentação, entre outros elementos, fizeram parte da bagagem cultural que os escravizados trouxeram para a formação de nosso país. Manifestações religiosas como os calundus, de forte presença entre os escravos trazidos da região Congo-Angola, estão na origem de religiões afro-brasileiras, como o candomblé na Bahia. Há indícios de que a arte da capoeira tem origem na “dança da zebra”, o n’golo do sul de Angola. O jongo, tão presente em comunidades negras do Sudeste brasileiro, e a congada assinalam sua herança centro-africana em versos, personagens, palavras. Os movimentos de corpo característicos de algumas danças brasileiras – sobretudo o rebolado – também têm sua origem em Angola. De lá, portanto, viria boa parte da nossa ginga. Aliás, esta é uma palavra derivada da língua quimbundo, e nomeava uma rainha africana. De nome de rainha a elemento da congada, a ginga adquiriu muitos outros significados, hoje atribuídos principalmente aos brasileiros. Os laços que ligam o Brasil a Angola existem há muito tempo. Remontam à formação do Império português, do qual fizeram parte, e se estendem por séculos, chegando aos nossos dias. O Brasil é o país que por mais tempo e em maior quantidade recebeu pessoas escravizadas vindas da África. Aproximadamente 40% de todos os escravos africanos que deram entrada em portos do Novo Mundo foram trazidos para o nosso país. Desse total, uma ampla maioria embarcou em cidades do litoral da atual Angola. Segundo o historiador Philip Curtin, o Brasil recebeu 1.685.200 escravos no século XVIII, dos quais 550.600 vindos da Costa da Mina e 1.134.600 de Angola. O tráfico angolano abastecia principalmente o porto do Rio de Janeiro, e em segunda escala, Bahia e Pernambuco. As capitanias de Pernambuco, Maranhão e Pará detinham 20% do tráfico de escravos de Angola no fim do século XVIII e começo do XIX. Nas palavras do padre Antônio Vieira em 1648, “sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros”. No século XVII, quando Luanda foi invadida e ocupada pelos holandeses, uma expedição partiu do Rio de Janeiro a fim de retomar Angola para o Império português. A missão foi financiada principalmente com capital dos comerciantes do Rio, e as tropas eram formadas por indígenas, africanos e seus descendentes. O sucesso da expedição comandada por Salvador de Sá, governador do Rio de Janeiro, em 1648, reforçou a determinação de libertar Pernambuco do domínio holandês, o que aconteceu anos depois, em 1654. A retomada de Angola também fez crescer a presença dos brasileiros por lá. Durante um século, entre 1648 e o fim dos anos 1740, gente do Brasil – por nascimento ou por vínculo de residência – praticamente dominou Angola, ocupando as funções que seriam de Portugal no controle da colônia e no tráfico de escravos. Portugal teve que fazer esforços para retomar as rédeas do controle político da área, o que conseguiu apenas em parte. Economicamente, e muitas vezes administrativamente, a relação foi se tornando tão estreita que qualificava as cidades-porto do litoral angolano, como Luanda e Benguela, como extensões do Brasil colonial no início do século XIX. Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS No processo de independência do Brasil, líderes políticos tinham interesse em anexar a colônia africana ao novo país. Não sem razão, no tratado que D.Pedro I teve que assinar para ter sua emancipação reconhecida pelo governo português, constava como exigência que o Brasil reconhecesse a soberania portuguesa sobre Angola. E à Inglaterra, mediadora do tratado, também interessava que o Brasil se distanciasse das rotas do tráfico escravista no litoral africano. Frustraram-se, portanto, as esperanças de um só reino, ou de dois reinos unidos, conjugando as duas margens do oceano, a brasileira e a angolana. A união entre Brasil e Angola não aconteceu, mas é claro que onde há fortes relações econômicas e políticas constroem-se intercâmbios pessoais, familiares e de parceria em diferentes atividades. Era comum que grandes comerciantes abrissem representações de suas casas de negócio em Angola, muitas vezes gerenciadas por parentes, ou mesmo por seus cativos. Famílias de negociantes se dividiam entre um lado e o outro do Atlântico, mantinham um ir-e-vir constante, não só de pessoas, mas de notícias, produtos, correspondências. Comerciantes escravistas na África mandavam seus filhos estudar no Brasil, para que aprendessem o português, conhecessem a dinâmica do comércio e da sociedade brasileira e pudessem tornar-se intermediários qualificados nesses negócios. A estreita convivência não terminou com o fim do tráfico atlântico. Aparentemente reduzida na primeira metade do século XX, depois encontrou outros caminhos. As lutas pela libertação de Angola do domínio colonial português foram acompanhadas com vivo interesse por brasileiros, ainda que naquela época amordaçados pela ditadura. Houve gente que participou ativamente dos movimentos de libertação. Nosso movimento negro festejou a independência de Angola, e o rápido reconhecimento das novas nações africanas pelo governo brasileiro criou uma abertura diplomática importante em direção à terra de nossos ancestrais. Na esteira dos novos interesses após a independência (1975), a influência de meios de comunicação brasileiros e de seus produtos passou a ser intensa no cotidiano dos angolanos. Telenovelas eram referência de entretenimento, para o comportamento dos jovens e a estética do vestuário. Nos canais de televisão locais são exibidos programas feitos no nosso país. Mercadorias brasileiras, legalmente importadas ou na candonga (contrabando), viraram produtos de consumo importantes, sobretudo roupas e calçados. A literatura e a música, fortemente impregnadas de memórias, ritmos, instrumentos e vozes de herança africana, também cruzaram o oceano e desembarcaram com grande sucesso no país independente, como Jubiabá, de Jorge Amado, e Tenda dos Milagres, de Guimarães Rosa. Encontros que abriram para os artistas brasileiros novas perspectivas de explorar nossa identidade cultural. Gilberto Gil compôs e cantou com grande propriedade: “Trago a minha banda/ Só quem sabe onde é Luanda/ Saberá lhe dar valor”. Após a década de 1980, surgiram novas rotas de migração. Inicialmente provenientes de Angola, e acrescidas de recentes levas vindas do Congo, essas populações de refugiados são formadas principalmente por jovens do sexo masculino. A nova diáspora centro-africana para o Brasil é fruto das guerras e das impossibilidades geradas por séculos de espoliação. O que não se pode nem se deve deixar de lembrar são nossos fortes vínculos com esses povos e essa terra. As heranças congo-angolanas, que em grande parte nos tornaram o que somos, nos lembram o quanto é importante perceber, reconhecer e se orgulhar do nosso pertencimento à África. As rápidas transformações geopolíticas em todo o planeta trazem novos desafios para o Brasil. Para saber qual o seu papel nesse jogo, o país precisa primeiro conhecer sua verdadeira identidade. E isso inclui recordar os compromissos que tem com a própria História. *Professora no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do LEÁFRICA (Laboratório de Estudos Africanos) lusofonias