UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PROFISSIONAL EM
PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE
MESTRADO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE
MARGARETH CALDAS PITROWSKY
CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE À QUESTÃO DA ADESÃO AO
TRATAMENTO DOS PORTADORES DE HIV/AIDS
Rio de Janeiro
2013
MARGARETH CALDAS PITROWSKY
CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE À QUESTÃO DA ADESÃO AO
TRATAMENTO DOS PORTADORES DE HIV/AIDS
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós - graduação – Strictu sensu Mestrado Profissional em Psicanálise,
Saúde
e
Sociedade
da
Universidade Veiga de Almeida,
como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em
Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área
de concentração – Psicanálise e Saúde
ORIENTADOR (a): Profª. Drª. Maria da Glória Schwab Sadala
RIO DE JANEIRO
2013
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo principal proporcionar uma
contribuição teórico-clínica para os profissionais de saúde que se deparam com
dificuldades na busca da adesão ao tratamento dos usuários com HIV/AIDS. O
fenômeno da transferência, um dos conceitos da psicanálise, aposta na
singularidade como fator primordial para o atendimento e poderá favorecer na
eficácia da adesão. A transferência pode ser considerada uma estratégia no
tratamento onde uma escuta e um olhar diferenciado favorecerá a identificação
desse fenômeno na relação entre o profissional de saúde e o usuário.
Palavras-Chave: Psicanálise, adesão, transferência.
ABSTRACT
This dissertation has the main objective providing a contribution to
theoretical and clinical health professionals who run into difficulties in seeking
treatment adherence by HIV/AIDS patients. The phenomenon of transference,
one of the concepts of psychoanalysis, focus on uniqueness as a key factor for
the service and may favor the effectiveness of adhesion. The transference can
be considered as a treatment strategy where a listening and a different look will
favor the identification of this phenomenon in the relationship between the
health professional and patients.
Keywords: Psychoanalysis, adhesion, transference.
DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU
E DE PESQUISA
Rua Ibituruna, 108 – Maracanã
20271-020 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922
FICHA CATALOGRÁFICA
P686c
FICHA CATALOGRÁFICA
Pitrowsky, Margareth Caldas.
Contribuições da psicanálise à questão da adesão ao tratamento dos
portadores de HIV/AIDS / Margareth Caldas Pitrowsky, 2013.
73 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida,
Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de
Janeiro, 2013.
Orientação: Profª Drª Maria da Glória Schwab Sadala.
1.
Psicanálise. 2. Adesão. 3. Transferência. I. Sadala, Maria da
Glória Schwab. II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional
em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título.
.
CDD – 616.89
Decs
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA
Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho
FOLHA DE APROVAÇÃO
MARGARETH CALDAS PITROWSKY
CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE À QUESTÃO DA ADESÃO AO
TRATAMENTO DOS PORTADORES DE HIV/AIDS
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós - graduação – Strictu sensu Mestrado Profissional em Psicanálise,
Saúde
e
Sociedade
da
Universidade Veiga de Almeida,
como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em
Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área
de concentração – Psicanálise e Saúde
APROVADA EM 20 DE SETEMBRO DE 2013.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profª Drª. Maria da Glória Schwab Sadala
Universidade Veiga de Almeida
__________________________________________
Profª Drª. Maria Helena Martinho
Universidade Veiga de Almeida
__________________________________________
Prof. Dr. Ademir Pacelli
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
AGRADECIMENTOS
À minha família pelo incentivo e em especial às minhas filhas Evelyn e
Erika, pelo apoio prestado diante das minhas dificuldades nesse período.
À Prof. Drª. Maria da Glória Sadala pela paciência e ajuda dispensada
por todo o período de direcionamento desta pesquisa.
Às amigas Marilene Barroso, Andrea Nietto, e Lilian Faertes, pela união
e oportunidade em trilharmos juntas esse caminho.
Aos usuários e à equipe de saúde do HUAP, pela rica contribuição
oferecida no dia a dia do meu trabalho.
“Penso que os seres humanos não conseguiram de modo
algum perceber o poder do amor. Se o tivessem
percebido, teriam erigido templos e altares grandiosos
para ele e o honrado grandiosamente com sacrifícios,
enquanto constatamos que nada disso foi realizado para
ele, ainda que particularmente lhe seja devido. De todos
os deuses ele é o que mais ama os seres humanos;
permanece ao lado da humanidade e é o curador
daqueles males cuja cura representa a suma felicidade da
raça humana”.
Aristófanes (O Banquete).
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AIDS- Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
CFESS- Conselho Federal do Serviço Social
CTA- Centro de Testagem Anônima
DIP- Doenças Infecciosas e Parasitárias
DST- Doença Sexualmente Transmissível
GEIA- Grupo de Estudo Interdisciplinar de AIDS
HIV- Vírus da Imunodeficiência Humana
HUAP- Hospital Universitário Antonio Pedro
LOAS- Lei Orgânica da Saúde
MEC- Ministério de Educação e Cultura
SICLOM- Sistema de Controle Logístico de Medicamentos
SUS- Sistema Único de Saúde
UFF- Universidade Federal Fluminense
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................................ 11
2. DA HISTÓRIA À CLÍNICA ............................................................................... 16
2.1.
HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ANTONIO PEDRO: SUA HISTÓRIA E
TRAJETÓRIA ........................................................................................................ 16
2.2.
A HISTÓRIA DA AIDS NO BRASIL ........................................................... 21
2.3.
UMA EXPERIÊNCIA CLÍNICA COM PORTADORES DE HIV/AIDS NO
HUAP ..................................................................................................................... 28
3. A TRANSFERÊNCIA COMO ESTRATÉGIA PARA A ADESÃO AO
TRATAMENTO DO HIV/AIDS.............................................................................. 36
3.1. A TRANSFERÊNCIA SEGUNDO SIGMUND FREUD ................................ 39
3.2. A TRANSFERÊNCIA SEGUNDO JACQUES LACAN................................. 43
4. CASOS CLÍNICOS......................................................................................... 48
5. CONCLUSÕES .............................................................................................. 60
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................... 67
APÊNDICE ............................................................................................................ 70
11
1. INTRODUÇÃO
Minha experiência no Hospital Universitário Antonio Pedro da Universidade
Federal Fluminense com usuários portadores de doenças crônicas¹, iniciou-se na
década de 80, como assistente social, com o surgimento dos primeiros casos de
AIDS. Antes, um diagnóstico que causava pânico e graves transtornos psíquicos,
sociais e físicos por se tratar de uma doença fatal, hoje com contornos de uma
doença crônica e controlável através da terapia antiretroviral combinada, possibilita
uma maior expectativa e qualidade de vida.
Não há dúvida do impacto que a epidemia de HIV/AIDS causou no mundo
inteiro na década de 80. A sociedade brasileira, nos primeiros anos da AIDS, viu-se
perplexa diante de tão forte doença, ainda misteriosa, que afetava pessoas de forma
mortal.
Foi um momento crítico em que as instituições brasileiras de atenção à saúde
estavam submetidas às turbulências da crise econômica e a medicina em todo o
mundo sofria o impacto do progresso, onde a prática médica afastava os médicos
dos doentes e das famílias. Gradativamente surgiram profissionais especializados
em fazer diagnósticos através de resultados de exames cada vez mais sofisticados e
os índices de sobrevida no período 1983/1986 eram baixíssimos. Os doentes
internavam num dia e morriam no outro. Aos poucos, esse tempo foi aumentando e
em pesquisa realizada na FIOCRUZ onde foram analisados 55 doentes com AIDS
entre 1986/1988, concluiu-se que 60% ainda estavam vivos um ano depois de
iniciarem o tratamento e 30% continuavam vivos dois anos depois (Sá & Costa,
1994).
Com o passar dos anos, a minha prática foi se ampliando na medida em que
passei a atuar nas enfermarias de Infectologia, Centro de Diálise e Unidade
Coronariana, onde o trabalho é realizado com usuários com três tipos de doenças
crônicas, que apesar de serem distintas, nos três casos, exibem as dificuldades de
adesão ao tratamento por tempo indeterminado como questões que preocupam às
equipes de saúde das diferentes enfermarias. No entanto, vale dizer, o interesse é
desenvolver essa pesquisa circunscrevendo-a à HIV/AIDS, devido à minha inserção
1
Despacho Conjunto dos Ministérios da Saúde, da Segurança Social e do Trabalho, n.º 861/99, de 10
de Setembro, considera: Doença crônica, a doença de longa duração, com aspectos
multidimensionais, com evolução gradual dos sintomas e potencialmente incapacitante, que implica
gravidade pelas limitações nas possibilidades de tratamento médico e aceitação pelo doente cuja
situação clínica tem de ser considerada no contexto da vida familiar, escolar e laboral, que se
manifeste particularmente afectado.
12
profissional, atuando no atendimento desses usuários, no setor de Infectologia
desde a referida década.
Durante meu trajeto como assistente social neste hospital, pude
experimentar a realidade cotidiana das práticas de saúde pública, nas redes do
Sistema Único de Saúde (SUS) no município de Niterói. Um cotidiano, cuja
intensidade logo me lançou à força e ao paradoxo de um singular cenário e
foram exatamente as marcas dessa experiência que, repercutindo ainda neste
tempo, fizeram-me conectar a outros profissionais que trabalhavam a adesão
junto a esses usuários atendidos de HIV/AIDS.
Aos poucos, os profissionais foram se organizando frente à sobrecarga
de atendimento dos usuários e seus familiares, que demandavam questões
relacionadas ao surgimento dessa nova doença. Surgiram então novos projetos
a fim de atender a diferentes demandas implicadas com a mesma questão, que
serão melhores descritos nesta pesquisa. Nossas ações começaram com a
formação de um grupo de discussão sobre a relação do profissional com o
usuário implicado, que se chamou GEIA (Grupo de Estudo Interdisciplinar de
AIDS). Após, iniciamos outro projeto destinado às pessoas de fontes diversas
(encaminhamentos internos e externos), candidatas à realização do teste antiHIV. Buscava-se preencher uma lacuna no atendimento a uma demanda que
além de solicitar a realização do teste, desejava esclarecimentos sobre uma
nova doença e suporte emocional, com o nome de Atendimento Psicossocial.
Paralelamente, eram trazidas para as reuniões do GEIA, uma solicitação
por parte dos médicos, de atendimento às famílias dos usuários HIV/AIDS, que
significava outra demanda carente de informações, de apoio emocional,
originando então um grupo de familiares.
Foi formado também outro grupo chamado de Sol, dessa vez através de
solicitação dos próprios usuários HIV/AIDS, que desejavam um espaço para
discutirem suas questões, na troca de vivências objetivas e subjetivas
relacionadas à doença, ao tratamento, assim como incursões pela vida social.
Portanto, a partir dessa experiência compartilhada com outros
profissionais
de
diferentes
áreas
de
atuação,
desejei
torná-la
uma
materialidade empírica para poder pensar nessa prática de cuidado, neste
trabalho de
mestrado. A
presente pesquisa trata de uma conexão
interdisciplinar voltada para uma prática implicada na busca da adesão,
13
instigando e problematizando acerca do atendimento em seus cotidianos de
trabalho.
Esse questionamento surge quando se constata que há abandono de
tratamento, apesar de inúmeros estudos e pesquisas sobre os motivos e
estratégias para a adesão e que não basta então o sistema e os profissionais
oferecerem o cuidado ao usuário para que haja adesão. Para muitos
profissionais de saúde, bom paciente é aquele aderente ao tratamento. É
importante definir a adesão na prática, como um processo em construção onde
esperamos a aderência por todos os usuários, mas há aqueles que se recusam
a tomar os remédios prescritos onde o acompanhamento contínuo por
profissionais torna-se uma estratégia a ser investida.
Tenho como hipótese na presente pesquisa, que uma das principais
condições para a adesão ao tratamento refere-se à relação usuário e
profissional, e ainda suponho que a transferência, tal como concebida pela
psicanálise, constitui uma estratégia para a adesão ao tratamento por parte dos
usuários com HIV/AIDS.
Começando a problematizar o fato e acompanhando os usuários
considerados “problema”, encaminhados pelos profissionais de saúde que
alegavam indisponibilidade de tempo, verifiquei que não passava pelo campo
da informação, do convencimento e nem do estágio da doença. Comecei a
perceber que poderia ter relação direta com o olhar do profissional de saúde e
com sua disponibilidade para estar com os usuários e que esse profissional
poderia funcionar como uma rede afetiva, levando-os a buscar outro modo de
viver adoecedor.
Neste cenário, segundo Dr. Mauro Shechter (2001), chefe do Laboratório
de Pesquisas em AIDS da UFRJ:
No início da epidemia, adoecer significava morrer. Hoje, quem
se trata dificilmente adoece. Se isso ocorre, a pessoa pode se
tratar e continuar vivendo. Hoje um paciente com AIDS pode
viver o mesmo tempo que alguém, que não tenha a doença. A
mortalidade por AIDS atualmente ocorre justamente entre os
que não se tratam ou não tomam os remédios direito.
(SHECHTER, 2001).
14
Em uma concepção mais restrita, adesão, pode ser definida conforme
nos ensina Haynes (1991), como o comportamento de uma pessoa tomar
remédio, seguir uma dieta ou fazer mudanças no estilo de vida que
correspondam às recomendações da equipe de saúde. No campo da saúde,
adesão corresponde ao “grau de seguimento dos pacientes a orientação
médica”. (Fletcher et al., 1989, p.70).
Problematizando a questão da adesão ao tratamento, certa vez
atendendo a um usuário internado, a sua percepção era de que haviam muitos
profissionais trabalhando para o cuidado, mas sentia uma diferença entre eles:
“uns ficam, outros estão junto aos usuários”.
Dentre tantas questões suscitadas por meu trabalho na enfermaria do
Serviço de Infectologia, percebi que alguns usuários aderem ao tratamento e
outros não. A prática instiga-nos a pensar o que efetivamente contribui para a
adesão do usuário ao tratamento. Isso poderia ser reduzido apenas ao plano
do usuário? Ou mesmo unicamente à questão dos profissionais? Outro usuário,
mecânico de automóveis, comparou a necessidade de seu engajamento no
tratamento a uma engrenagem onde cada dente representa a atuação dos
profissionais da equipe envolvidos no cuidado, os remédios, as consultas, os
exames, para que o todo do processo tenha um resultado satisfatório.
No segundo capítulo deste trabalho abordarei aspectos históricos da
AIDS no Brasil, assim como do Hospital Universitário Antonio Pedro onde
desenvolvi a prática que deu origem a esta pesquisa. Ainda neste capítulo
encontra-se um breve relato de minha experiência clínica com portadores de
HIV/AIDS no HUAP.
O interesse dos profissionais implicados na adesão é de construir um
dispositivo que, longe de qualquer possibilidade de juízo de valor, possa vir a
se constituir como um canal capaz de aumentar o número de usuários
aderentes ao tratamento necessário. Para o desenvolvimento desta pesquisa a
respeito da adesão ao tratamento dos portadores de HIV/AIDS, privilegiarei o
estudo do fenômeno da transferência, conceito desenvolvido pela psicanálise,
presente em todas as formas de relações humanas e que será trabalhado,
mais especificamente, no terceiro capítulo.
Serão apresentados no quarto capítulo, alguns relatos de casos clínicos
atendidos na enfermaria de Infectologia, que caracterizam o cenário vivenciado
15
pelos usuários, cujo foco do tratamento se baseia na adesão, assim como o dia
a dia das relações entre os profissionais de saúde e usuários, a fim de
investigar a hipótese desta pesquisa.
Esta pesquisa contribui para a compreensão da questão da adesão ao
tratamento, à medida que aponta a transferência como estratégia nos diversos
tratamentos na área de saúde. Levar em conta a subjetividade no processo de
adesão ao tratamento sugere rever a concepção linear desse conceito,
segundo o qual bastaria se oferecer remédios e profissionais, para obter a
resposta esperada. O que a psicanálise nos alerta sobre esse ponto é a
presença de fenômenos subjetivos, dentre os quais se destaca a transferência.
A transferência, em qualquer relação profissional na área de saúde,
nosso foco de estudo, designa um laço de amor que se constrói sobre a base
de uma suposição de saber em relação àquele que atende. A identificação, o
reconhecimento e a valorização desse fenômeno nos atendimentos entre os
usuários e os profissionais de saúde são de suma importância na busca de
uma melhor relação durante todo o processo de tratamento. Essa ideia será
explanada no capítulo das conclusões.
16
2. DA HISTÓRIA À CLÍNICA
Neste capítulo descreverei a instituição onde trabalho, procurando
relatar as experiências vivenciadas durante a trajetória da AIDS. Ao reviver
essa história, marcada por uma série de mudanças na sociedade, percebemos
os movimentos políticos, econômicos e sociais, como forma de entender um
novo momento na prática do cuidado, onde forças emergem na busca de
alcançar um melhor atendimento aos usuários acometidos pelo HIV/AIDS.
2.1.
HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ANTONIO PEDRO: SUA HISTÓRIA E
TRAJETÓRIA
O Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), surgiu na década de 40
na mente de dois políticos, o interventor Amaral Peixoto e o então prefeito
Brandão Júnior.
Em 15 de janeiro de 1951, o Hospital Municipal Antônio Pedro foi
inaugurado e contava com 350 leitos assumindo integralmente a demanda do
Município de Niterói e de seus vizinhos. Concomitante à inauguração foram
desativados os outros Serviços de Saúde, ficando o Hospital Municipal
responsável pela demanda. O nome é em homenagem ao clínico geral Antônio
Pedro Pimentel, um dos fundadores da Faculdade Fluminense de Medicina,
que se destacou no estudo de doenças infecciosas.
Infelizmente, a autonomia administrativa não foi muito aceita pelos
governantes e uma nova bandeira de luta foi levantada para combater a então
administração do hospital, sob a alegação de que a missão do hospital não
estava sendo cumprida. Foi proibida a cobrança de serviços aos que podiam
pagar, com a desculpa de que a gratuidade deveria ser para todos. A lei foi
revogada, os serviços pararam de ser cobrados e a Prefeitura ficou com a
administração direta. Com o passar do tempo os recursos da Prefeitura
extenuaram-se e a instituição entrou em crise. Após três anos de intervenção
Municipal o Hospital foi fechado, mantendo-se em funcionamento, em precário
estado, apenas o Serviço de Emergência.
Duas foram as tragédias que assolaram a região e que ficaram
marcadas na história desse hospital. Mesmo antes da inauguração, já
17
funcionaria em caráter de urgência para atender às vítimas do desastre
ferroviário de Tanguá, em que morreram 56 pessoas e 61 ficaram feridas. A
tragédia lastimável do incêndio do Gran Circus Norte- Americano ocorrida na
cidade e que sensibilizou todo o Brasil, fez com que o Governo Federal
reabrisse suas portas, ainda como Hospital Municipal. Com o advento desse
incêndio, o Hospital, em caráter emergencial, foi cedido ao Ministério da Saúde
em 29 de dezembro de 1961. Reavaliando sua posição diante do desastre, a
Prefeitura resolveu doar a instituição em 26 de maio de 1964 à Universidade
Federal Fluminense que havia sido criada recentemente. O Governo Federal
recebeu um Hospital inadimplente e carente de recuperação e modificações,
para transformar-se em um Hospital Escola, passando a ser chamado de
Hospital Universitário Antônio Pedro.
Coube à Universidade Federal Fluminense a incumbência de administrar
um grande patrimônio. Aos poucos os funcionários da Prefeitura começaram a
ser substituídos, o que acarretou um enorme encargo para a Universidade.
Embora os custos tenham se mantido altos, durante muito tempo a
universidade manteve-se presente realizando um trabalho persistente e
continuado de recuperação e aprimoramento do HUAP, fazendo da instituição
uma escola.
A Universidade Federal Fluminense (UFF) foi criada pela Lei n.º 3.848,
de 18/12/60, com o nome de Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UFERJ). Constituiu-se da incorporação de cinco faculdades federais já
existentes em Niterói (Faculdade de Direito de Niterói, Faculdade Fluminense
Medicina, Faculdade de Farmácia e Odontologia do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade Fluminense de Odontologia e Faculdade de Medicina Veterinária);
três escolas estaduais (Escola de Enfermagem, Escola Fluminense de
Engenharia e Escola de Serviço Social) e duas faculdades particulares
(Faculdades Fluminense de Filosofia e de Ciências Econômicas), que foram
federalizadas e incorporadas posteriormente pela Lei nº 3.958, de 13/09/61).
A UFF teve seu nome atual homologado pela Lei n.º 4.831, de 5/11/65, e
se caracteriza como uma universidade de grande porte, com ensino, pesquisa
e extensão em quase todas as áreas do conhecimento. É a mais interiorizada
das universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro, com cursos em 16
cidades, incluindo a sede em Niterói.
18
O hospital hoje é considerado a maior e mais complexa unidade de
saúde da grande Niterói e pela hierarquia do SUS, é caracterizado com hospital
de nível terciário e quaternário (alta complexidade, em áreas especializadas de
diagnósticos e terapias, dentro dos princípios da universalização da
assistência, com garantia de acesso igualitário à saúde, resguardando os
princípios constitucionais), atendendo a uma clientela de cerca de onze
municípios vizinhos, incluindo as cidades da Região Metropolitana II.
A Região Metropolitana II do Rio de Janeiro é formada por sete
Municípios, representa 6,18% do território do estado e 11,89% da população
estadual. Integram a Região os Municípios de Itaboraí, Maricá, Niterói, Rio
Bonito, São Gonçalo, Silva Jardim e Tanguá. É o principal campo de atividades
de várias profissões como hospital de ensino, além de prestar assistência à
saúde da população, desenvolvendo atividades de capacitação de recursos
humanos nas áreas dos campos de formação em graduação e pós-graduação
em Medicina, Enfermagem, Nutrição, Odontologia, Farmácia, Psicologia,
Foniatria e Fisioterapia.
Quanto à articulação com o gestor local, desde o ano 2000, o
financiamento de custeio do HUAP é regulamentado por contrato estabelecido
entre a UFF, logo parte de seu recurso advém do MEC (Ministério de Educação
e Cultura) e pelo Sistema Único de Saúde (SUS), através da Secretaria de
Saúde do Município de Niterói. Os recursos são de dotação orçamentária
aprovada pelo Congresso Nacional.
O Ministério da Saúde, através do Departamento de Ciência e
Tecnologia (DECIT) em iniciativa conjunta dos Ministérios da Saúde e de
Ciência e Tecnologia, no ano de 2005 foi lançado um edital (MCT/MS/FINEP Implantação de Unidades de Pesquisa Clínica), com o objetivo de selecionar e
implementar unidades de pesquisa que pudessem ser financiadas e
estimuladas a atuar, formando a Rede Nacional de Pesquisa Clínica em
Hospitais de Ensino, cuja missão é a de dar suporte técnico-científico às
SULRULGDGHV GH SHVTXLVD GD 3ROtWLFD 1DFLRQDO GH 6D~GH GHILQLGDV QD ୻
Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (2004).
Através do decreto Nº 7.082 de 27 de janeiro de 2010, foi instituído o
Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários FederaisREHUF e dispõe sobre o financiamento compartilhado dos Hospitais
19
Universitários Federais entre as áreas da educação e da saúde, disciplinando o
regime da pactuação global com esses hospitais, o que proporcionou o
planejamento de um plano de metas a serem alcançadas a curto, médio e
longo prazo.
Nos últimos anos, algumas áreas têm sido contempladas com reformas,
principalmente aquelas vinculadas a programas prioritários da área de saúde.
O Plano de Reestruturação dos HU’s, chegou em momento oportuno para
viabilizar recursos, de forma a permitir os ajustes e intervenções necessárias
tornando possível exercer de forma plena a sua missão institucional no ensino,
pesquisa, extensão e assistência. O Programa estará retirando o hospital de
uma situação praticamente de estagnação e precariedade, devolvendo à rede
uma unidade capaz de aumentar a oferta de serviços de média e alta
complexidade.
O investimento nesse programa trará consequências, onde podemos
destacar um aumento da oferta de procedimentos de alta complexidade,
sobretudo nas áreas de cirurgia cardiovascular, oncologia/hematologia e
transplantes; uma maior rapidez e precisão nos diagnósticos, promovendo
significativa melhora nos indicadores de internação; um aumento da oferta de
leitos de terapia intensiva pediátrica para a região metropolitana II do Estado do
Rio de Janeiro; uma maior integração com a rede regional de saúde do SUS; a
otimização dos recursos disponíveis decorrentes das melhorias advindas nos
processos de gestão administrativa, de informação, de materiais e de pessoas;
a inclusão do HUAP na relação de hospitais com maior atividade em pesquisa
clínica, sobretudo aquelas de interesse para o SUS; a criação de um ambiente
acolhedor e humanizado para os pacientes e funcionários; uma maior
satisfação dos servidores da instituição e dos usuários que serão atendidos em
suas demandas em menor prazo através de um atendimento técnico altamente
qualificado; uma maior disponibilidade de cenários didático-pedagógicos para
alunos de graduação e pós-graduação, incluindo o Programa de Residência e
uma maior produtividade na elaboração, execução e publicação de pesquisas
clínicas realizados no hospital ou em colaboração com outras instituições.
A atuação do Serviço Social no Hospital Universitário Antonio Pedro, se
baseia na Política Pública de Saúde vigente do SUS (CFESS, 2008), e tem
como parâmetros:
20
x
Possibilitar a mobilização e garantia de direitos e acesso aos serviços na
esfera da seguridade social, por meio da criação de mecanismos e
rotinas de ação;
x
Democratizar as informações por meio de orientações (individuais e
coletivas) e/ou encaminhamentos quanto aos direitos sociais da
população usuária;
x
Fortalecer os vínculos familiares, na perspectiva de incentivar o usuário
e sua família a se tornarem sujeitos do processo de promoção, proteção,
prevenção, recuperação e reabilitação da saúde;
x
Buscar e garantir o direito do usuário ao acesso aos serviços;
x
Criação de uma nova cultura de atendimento, pautada na centralidade
dos sujeitos na construção coletiva do SUS.
Segundo Bravo & Matos (2001), a saúde foi uma das áreas em que os
avanços constitucionais foram mais significativos. O Sistema Único de Saúde
(SUS), integrante da Seguridade Social foi regulamentado em 1990, pela Lei
Orgânica da Saúde (LOAS). O Projeto de Reforma Sanitária, tendo no SUS
uma estratégia, tem como base um Estado democrático de direito, responsável
pelas políticas sociais e, consequentemente, pela saúde. Destacam-se como
fundamentos dessa proposta a democratização do acesso; a universalização
das ações; a melhoria da qualidade dos serviços com a adoção de um novo
modelo assistencial pautado na integralidade e equidade das ações; a
democratização das informações e transparência no uso de recursos e ações
do governo; a descentralização com controle social democrático e a
interdisciplinaridade nas ações. Tem como premissa básica a defesa da saúde
como direito de todos e dever do Estado (Bravo, 1999).
Ao analisarmos a trajetória do Serviço Social na área da saúde,
identificamos que alguns desafios estão postos na atualidade principalmente a
partir dos anos noventa, dada a existência de dois projetos: o projeto de
Reforma Sanitária e o projeto privatista. A prática do assistente social tem
visado uma inserção de suas ações na sociedade brasileira, segundo seu
Código de Ética, voltado para uma assistência aos grupos menos favorecidos e
mais destituídos de seus direitos, na busca de viabilizar as Políticas Sociais.
As novas diretrizes das diversas profissões têm ressaltado a importância
21
de formar trabalhadores de saúde para o Sistema Único de Saúde, com visão
generalista e não fragmentada. Assim, compreende-se que cabe ao Serviço
Social, numa ação necessariamente articulada com outros segmentos que
defendem o aprofundamento do Sistema Único de Saúde (SUS), formular
estratégias que busquem reforçar ou criar experiências nos serviços de saúde
que efetivem o direito social à saúde, atentando que o trabalho do assistente
social necessariamente, estará articulado ao projeto da Reforma Sanitária
(Matos, 2003; Bravo & Matos, 2004).
A presente pesquisa está sendo realizada no contexto de um mestrado
interdisciplinar, o que facilita seu encaminhamento como uma prática
interdisciplinar, em acordo com as novas diretrizes das políticas públicas de
saúde que colocam o profissional com uma visão mais geral, procurando
articular diversas áreas do saber. Ao focalizar neste trabalho o fenômeno da
adesão que ocorre na prática da saúde, o assistente social poderá articular as
políticas públicas, as técnicas específicas do serviço social e operadores da
psicanálise, na busca de uma maior compreensão desse fenômeno.
2.2.
A HISTÓRIA DA AIDS NO BRASIL
Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Saúde/DST-AIDS, desde o
início da epidemia, em 1980, até junho de 2011, o Brasil tem 608.230 casos
registrados de AIDS (condição em que a doença já se manifestou), de acordo
com o último Boletim Epidemiológico desse Ministério. Em 2010, foram
notificados 34.218 casos da doença, com 11.965 óbitos e a taxa de incidência
de AIDS no Brasil foi de 17,9 casos por 100 mil habitantes. Os números
mostram o avanço da doença entre 1998 e 2011. Por região, em um período de
10 anos (2000 a 2010), a taxa de incidência caiu no Sudeste de 24,5 para 17,6
casos por 100 mil habitantes, no entanto, apresenta o maior número de casos
acumulados, concentrando 56%. Nas outras regiões cresceu: 27,1 para 28,8 no
Sul; 7,0 para 20,6 no Norte; 13,9 para 15,7 no Centro-Oeste; e 7,1 para 12,6 no
Nordeste.
Ainda segundo o Ministério de Saúde, atualmente ainda há mais casos
da doença entre os homens do que entre as mulheres, mas essa diferença vem
diminuindo ao longo dos anos. Esse aumento proporcional do número de casos
de AIDS entre mulheres pode ser observado pela razão de sexos (número de
22
casos em homens dividido pelo número de casos em mulheres). Em 1989, a
razão de sexos era de cerca de 6 casos de AIDS no sexo masculino para cada
1 caso no sexo feminino. Em 2010, chegou a 1,7 caso em homens para cada 1
em mulheres.
Através de dados mais recentes apresentados nos termos das
conclusões da XI Conferência Brasil Johns Hopkins University em HIV/AIDS,
realizada no Rio de Janeiro em 2013 atualmente no Brasil são 608,230 mil
casos acumulados, em 2012 houveram 18 mil novas infecções, 15 mil mortes e
26 drogas estão sendo utilizadas no tratamento (terapia antiretroviais).
Atualmente no mundo possuem 68 milhões de infectados; 32 milhões vivem
com HIV; 2 milhões e meio infectados a cada ano; 1,7 milhões morreram em
2012. Por minuto 25 pessoas se contaminam e 300 pessoas por hora.
A faixa etária em que a AIDS é mais incidente, em ambos os sexos, é a
de 25 a 49 anos de idade. Chama atenção os dados em jovens de 13 a 19
anos. Essa é a única faixa etária em que o número de casos é maior entre as
mulheres e essa inversão se apresenta desde 1998. Em relação aos jovens, os
dados apontam que, embora eles tenham elevado conhecimento sobre
prevenção da AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, há
tendência de crescimento do HIV.
Quanto à forma de transmissão entre os maiores de 13 anos de idade,
prevalece a sexual. Nas mulheres, 83,1% dos casos registrados em 2010
decorreram de relações heterossexuais com pessoas infectadas pelo HIV.
Entre os homens, 42,4% dos casos se deram por relações heterossexuais,
22% por relações homossexuais e 7,7% por bissexuais. O restante ocorreu por
transmissão sanguínea e vertical (da mãe para o bebê).
Apesar de o número de casos no sexo masculino ainda ser maior entre
heterossexuais, a epidemia no país é concentrada. Ao longo dos últimos 12
anos, a porcentagem de casos na população de 15 a 24 anos caiu. Já entre os
gays houve aumento de 10,1%. Em 2010, para cada 16 homossexuais dessa
faixa etária vivendo com AIDS, havia 10 heterossexuais. Essa relação, em
1998, era de 12 para 10.
Em números absolutos, é possível ver como a redução de casos em
menores de cinco anos é expressiva: passou de 863 casos, em 2000, para
23
482, no ano de 2010. Comparando-se os anos de 2000 e 2010, a redução
chegou a 55%. O resultado confirma a eficácia da política de redução da
transmissão vertical do HIV.
Às gestantes, o Ministério da Saúde recomenda o uso de medicamentos
antiretrovirais durante o período de gravidez e no trabalho de parto, além de
realização de cesárea para as mulheres que têm carga viral elevada ou
desconhecida. Para o recém-nascido, a determinação é de substituição do
aleitamento materno por fórmula infantil (leite em pó) e uso de antiretrovirais,
onde tais medidas adotadas diminuem as chances de transmissão vertical para
menos de 1%.
A seguir, a descrição da trajetória da AIDS fornecida pelo Ministério da
Saúde/ DST-AIDS, identificando algumas fases importantes para a evolução do
tratamento e a inserção do HUAP como hospital de referência para
atendimento:
x
Em 1980 surge o primeiro caso no Brasil (São Paulo).
x
Em 1985 foi disponibilizado o primeiro teste anti-Hiv para diagnóstico e
surge o primeiro caso de transmissão vertical (de mãe grávida para o
bebê).
x
Em 1986 houve a criação do Programa Nacional de DST e AIDS, No
Brasil, a Lei no 9.313, de 13 de novembro de 1996 – de autoria do
Senador José Sarney e assinada pelo Presidente da República,
Fernando Henrique Cardoso – tornou obrigatória a distribuição de
medicamentos anti-HIV pelo sistema público de saúde (MS, 1999a). No
período de 1986 a 1990 é caracterizado pela organização de uma
estratégia global, coordenada pelo Programa Global de AIDS da
Organização Mundial de Saúde (OMS), numa proposta abarcando todas
as áreas do planeta, definindo que o componente mais importante era a
informação e educação.
x
Em 1987 houve a criação do primeiro Centro de Orientação SorológicaCOAS, em Porto Alegre/RS. Início da utilização do AZT, o primeiro a
reduzir a multiplicação do vírus HIV.
x
Em 1988 foi criada a Portaria assinada pelo Ministério da Saúde
passando a adotar o dia 1϶ de dezembro como o dia Mundial de Luta
24
Contra a AIDS. Criação do SUS. O ministério da Saúde inicia o
fornecimento de medicamentos para o tratamento das infecções
oportunistas.
x
Em 1991 inicia-se o processo para aquisição e distribuição gratuita de
antiretrovirais (medicamentos que dificultam a multiplicação do vírus).
x
Em 1992 o Ministério da Saúde credencia hospitais para o tratamento de
pacientes com AIDS e o Hospital Universitário Antonio Pedro/UFF é
referenciado para o atendimento no município de Niterói.
x
Em 1994 estudos mostram que o uso de AZT ajuda a prevenir a
transmissão do HIV de mãe para filho. Definição para diagnosticar casos
de AIDS em crianças.
x
Em 1995 estudos revelam que a combinação de drogas reduz a
progressão da infecção. Até esse ano a assistência medicamentosa era
precária.
x
Em 1996 houve o primeiro consenso em terapia antiretroviral
(regulamentação da prescrição de medicações para combater o HIV).
Lei fixa o direito ao recebimento da medicação gratuita para o
tratamento. Queda das taxas de mortalidade por AIDS, diferenciada por
regiões.
x
Em 1997 houve a implantação da Rede Nacional de Laboratórios para o
monitoramento de pacientes com HIV em terapia com antiretroviral, com
a realização de exames de carga viral e contagem de células CD4
(células que fazem parte do sistema de defesa do organismo ou sistema
imunológico).
x
Em 1998 uma lei define como obrigatória a cobertura de despesas
hospitalares com AIDS pelos seguros de saúde privados. Onze
medicamentos disponíveis, gratuitamente na rede de saúde.
x
Em 1999
aumenta
para
quinze
o
número
de
medicamentos
disponibilizados pelo Ministério de Saúde. Queda de 50% na
mortalidade dos pacientes com AIDS e melhora da qualidade de vida
dos portadores do HIV. Estudos indicam que quando o tratamento é
abandonado, a infecção torna-se outra vez detectável. Usuários
desenvolvem efeitos colaterais aos remédios.
25
x
Em 2000 houve a realização do I Fórum em HIV/AIDS e DST da
América Latina no Rio de Janeiro. A partir de acordo promovido pelas
Nações Unidas, cinco grandes companhias farmacêuticas concordam
em diminuir o preço dos remédios usados no tratamento da AIDS para
países em desenvolvimento.
x
Em 2003 o Programa Brasileiro de DST/AIDS recebe um prêmio de U$ 1
milhão da Fundação Bill & Melinda Gales como reconhecimento às
ações de prevenção e assistência no país. O Programa é considerado
por diversas agências de cooperação internacional como referência
mundial. Total de casos acumulados: 310310.
x
Em 2007 o Programa Nacional DST/AIDS institui Banco de Dados de
Violações dos direitos das pessoas portadoras do HIV. Aumenta a
sobrevida das pessoas com AIDS no Brasil.
Passados trinta anos, o Brasil tem como característica uma epidemia
estável e concentrada em alguns subgrupos populacionais em situação de
vulnerabilidade. Segundo dados do Boletim Epidemiológico/Ministério da
Saúde (2011), em estudos onde cerca de 36 mil jovens entre 15 a 24 anos do
sexo masculino foram entrevistados, apontaram que cerca de 97% da
população de homens (de 15 a 24 anos) sabem que o uso do preservativo é a
melhor maneira de evitar a infecção pelo HIV. A ação mais abrangente como a
ampliação da testagem com estratégias diferenciadas, do acesso ao
preservativo e de ações de promoção à saúde, que caracteriza a epidemia
brasileira como estabilizada, refere-se ao Programa Saúde e Prevenção nas
Escolas (SPE) que promove a integração dos sistemas de ensino e de saúde
no ambiente escolar em uma estratégia conjunta com o Ministério da
Educação. O Programa é responsável pela promoção da saúde sexual e
reprodutiva, o que inclui a distribuição de camisinhas nas escolas, e a formação
continuada para professores e profissionais de saúde em sexualidade, além de
envolver a comunidade (família, jovens) para a atuação conjunta com seus
pares.
Segundo Simão (2011), que fez reflexões sobre o progresso do Brasil no
combate à doença, o sistema de saúde brasileiro foi organizado em dois
subsistemas: o SUS (Sistema Único de Saúde), financiado com recursos
26
públicos, e o sistema complementar de atendimento médico privado. O SUS
tornou-se o principal financiador e fornecedor de serviços de saúde para três
quartos dos brasileiros. Os demais, formados pela população mais rica e
localizada principalmente nas áreas urbanas das regiões sul e sudeste,
compraram seguros de saúde privados e obtiveram acesso a médicos e
hospitais particulares. Os segurados privados mantiveram o direito de acessar
os serviços de saúde do sistema público.
Cinco princípios regeram o desenvolvimento do SUS: a cobertura
universal e gratuita; os serviços abrangentes desde a prevenção ao tratamento;
a igualdade; a descentralização e a participação pública. Durante a década de
90, leis e normativos descrevendo esses princípios foram regulamentados e
implantados.
Acrescenta ainda SIMÃO (2011), que em 1996 o Brasil se tornou o
primeiro país em desenvolvimento a oferecer tratamento antiretroviral com
financiamento público para todas as pessoas vivendo com o HIV/AIDS. Em
2000, a epidemia do HIV havia se estabilizado e apresentava indicadores
similares aos encontrados nos Estados Unidos e Europa Ocidental, sendo que
as taxas mais altas da infecção concentravam-se nos grupos de alto risco,
como os homens gays, profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis.
Este mesmo autor analisa que a governança do SUS é descentralizada,
com um centro de comando único nas esferas federais, estaduais e municipais.
Em nível federal, o Ministério da Saúde desenvolve e implanta políticas
nacionais. Nos estados, as secretarias de saúde distribuem os recursos para
os municípios e coordenam diretamente alguns hospitais e serviços médicos
oferecidos pelas universidades. As secretarias de saúde municipais organizam
e prestam a maior parte dos serviços de saúde. Autoridades eleitas nomeiam
os administradores dos serviços públicos de saúde. Em geral, as eleições
governamentais
levam a
mudanças
administrativas
impulsionadas
por
interesses políticos que não consideram a competência técnica ou o sucesso
dos programas. O princípio da participação pública (chamada controle social) é
realizado em todos os níveis da governança mediante os conselhos de saúde
pública. Esses são compostos de médicos, burocratas, pacientes e membros
de organizações da sociedade civil que ajudam a estabelecer as políticas
orçamentárias e programáticas. Os conselhos têm poder estatutário, mas sua
27
influência depende do estado e da cidade.
A política para a prevenção e controle do HIV consistiu de três áreas de
atividades integradas: 1) garantir o acesso universal e gratuito ao cuidado e à
terapia antiretroviral; 2) expandir o acesso a diagnóstico e prevenção e 3)
manter um relacionamento proativo com a sociedade civil independente.
Uma compreensão mais complexa e adequada dessa questão precisa
relacionar o sucesso do tratamento de AIDS à dependência de múltiplos fatores
ligados ao próprio usuário: sua rede social, familiar, oferta de serviços públicos
de saúde e da equipe multidisciplinar, crenças individuais sobre saúde, o
conhecimento equacionado dos riscos e benefícios da terapia, compromissos
diários, uso do álcool e de outras drogas, querer evitar efeitos colaterais,
depressão, angústia, estresse. Cabe novamente ressaltar a importância do
contexto do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, como possibilidade
para uma melhor compreensão dessas questões, uma vez que incentiva as
conexões entre diversos saberes, o que poderá contribuir, no caso da presente
pesquisa, para uma compreensão mais ampla da questão da adesão ao
tratamento pelos portadores de HIV/AIDS.
Na verdade, a concepção “adesão à terapêutica”, conta com uma vasta
literatura, especialmente a adesão ao tratamento de uma determinada
enfermidade como a AIDS. Adesão, em geral, é compreendida como a
utilização dos medicamentos prescritos ou outros procedimentos em pelo
menos 80% de seu total, observando horários, doses, tempo de tratamento.
Nas doenças crônicas ou muito graves, o envolvimento dos profissionais de
saúde é de suma importância porque a adesão ao tratamento sempre depende
da participação da pessoa doente, e esta participação não pode ser entendida
como uma dedicação exclusiva à doença, mas em uma capacidade de
reinventar-se. O acolhimento à escuta desses usuários é preconizada pelo
SUS, pois geralmente se tornam poliqueixosos, tornando muitas vezes a
situação de doença como o centro de suas vidas. É preciso que o usuário se
situe no que está falando e que se implique, se investigue e examine seu
posicionamento. A partir dessa escuta tanto o profissional como o usuário
criam vínculo e transferem afetos, criando laços. Esse fluxo de afetos poderá
facilitar a compreensão do outro para então trabalhar-se os inúmeros aspectos
envolvidos nesse adoecer. A equipe de referência no atendimento passa a ser
28
uma ferramenta a ser utilizada em favor desse trabalho de adesão que deverá
de preferência, continuar durante todo o processo. O exame do conceito de
transferência tomado da teoria psicanalítica oferece contribuições valiosas para
melhor compreensão desses aspectos.
Segundo GEOCZE et al (2010), podemos considerar que existe uma
questão a ser explorada na relação entre a adesão ao tratamento e qualidade
de vida. Alguns estudos mostram um paradoxo: o aumento da adesão
terapêutica pode determinar piora na qualidade de vida, porque os efeitos
colaterais das medicações crescem ao longo do tempo. Questionar se o
benefício da adesão afeta a qualidade de vida do usuário, incluindo aspectos
físicos, psíquicos e sociais, é algo a ser considerado.
Neste contexto a análise e o foco desta pesquisa sugere que a
promoção do cuidado em saúde está implicada também na ordem do afeto
entre as partes: trabalhador de saúde e usuário. Um cuidado que coloca em
cena a subjetividade de um corpo que não é só orgânico, um processo que
enfatiza o estabelecimento de um relacionamento seguro, respeitoso, de
confiança, além de um plano de tratamento que se adapte à rotina de vida
desse usuário que participaria mais ativamente desse processo. A idéia é dar
maior autonomia e liberdade na condução do tratamento, considerando tanto à
saúde como o usuário. Trata-se de um processo que possibilita um olhar do
que se produz na relação profissional e usuário, possibilitando uma visão
clínica da relação de trabalho, investigando de que maneira o olhar do
profissional de saúde vai incitar o cuidado e nesse sentido amenizar a dor e a
doença. Uma análise crítica dos tratamentos na área da saúde pode propiciar
benefícios ao usuário. É preciso veicular a ideia que a adesão ao tratamento
não implica, necessariamente, em prejuízos para a qualidade de vida.
A adesão ao tratamento é alcançada então, através de uma composição
e não de imposição. A psicanálise através do conceito de transferência poderá
contribuir para se pensar melhor em termos de estratégia para alcançar êxito
quanto à adesão ao tratamento dos portadores de HIV/AIDS.
2.3. UMA EXPERIÊNCIA CLÍNICA COM PORTADORES DE HIV/AIDS NO
HUAP
Na década de 80, a AIDS foi descrita nos EEUU como uma doença viral
29
em pacientes homossexuais, sexualmente transmissível, progressiva e
incurável. Começamos a nos deparar no Hospital Universitário Antônio Pedro
da Universidade Federal Fluminense, com situações clínicas semelhantes
àquelas descritas que surpreendiam aos especialistas da época como uma
entidade nova. Reações de pânico eclodiam, com frequência, entre os
profissionais visto que, supostamente, cuidar desses pacientes esbarrava na
ameaça de ser contaminado, em um hospital geral que conta com equipes
cirúrgicas que também se sentiam ameaçadas, pois os mecanismos de
transmissão dessa doença ainda não eram claramente conhecidos.
Em outro âmbito hospitalar, os profissionais do banco de sangue tinham
dificuldades em lidar com o doador cujo teste de rotina era positivo para HIV.
Encaminhavam-no ao setor de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP)
dizendo-lhe que ele estava com um “bichinho” no sangue. Outra preocupação
era de que o doador com teste negativo pudesse encontrar-se no que se
denomina de “janela imunológica” que corresponde ao tempo entre a infecção
e o aparecimento dos anticorpos para o vírus e de apresentar um grande
potencial na disseminação da doença através de doação de sangue.
No ambulatório, os casos clínicos se multiplicavam, sem que os médicos
soubessem como lidar com o diagnóstico e como comunicá-lo aos usuários.
Em tudo se assemelhava às reações dos outros espaços hospitalares,
tornando difícil o cuidado e o tratamento dessas pessoas. A primeira internação
na enfermaria do DIP foi em 10/04/85 com alta em 04/06/85 e outra com data
de 10/06/1985, mas desta vez, infelizmente, com data de óbito em 17/06/85.
Nossas ações começaram por organizar um grupo de discussão sobre a
relação profissional-usuário, dedicado especificamente aos usuários de
AIDS/HIV. Criou-se assim o Grupo de Estudos Interdisciplinar de AIDS (GEIA)
e um espaço de reflexão no qual os profissionais (médicos de diferentes
especialidades, incluindo psiquiatras, psicólogos, enfermeiras, assistentes
sociais), podiam pensar e discutir sua própria atuação e suas dificuldades no
trabalho do cotidiano com seus pacientes. Pretendíamos com isto implicar os
profissionais nesse processo de discussão. Ao longo dos anos, este grupo
sofreu seguidas modificações em seus quadros, todavia logrou a criação de um
espaço permanente de reflexões e de atuação clínica e social sobre os
problemas oriundos da atenção aos portadores de uma doença nova, mortal e
30
cercada de preconceitos, com muitos agravos psico-sócio-institucionais a
serem enfrentados.
Nesse espaço de reflexão, a história de vida do portador transbordava e
se entrecruzava com a história da doença orgânica atual onde se percebia o
interesse do grupo na discussão de cada caso apresentado. Era clara a
transformação que pouco a pouco foi se instalando no grupo, substituindo a
condição de medo da nova doença para a preocupação com a pessoa doente.
Já nesse período se considerava a importância da adesão como chance de
tratamento, buscando se oferecer um atendimento humanizado de atenção ao
usuário, ocasionando um sentimento de compreensão deste pelo profissional.
Esse vínculo com o profissional, primordial para adesão ao tratamento, poderia
não acontecer e provocar uma resistência ao tratamento, sendo indicada uma
atuação psicoterapêutica. Este vínculo do usuário com o profissional é
analisado no âmbito da teoria psicanalítica através do conceito de
transferência, o qual será apresentado no capítulo 3 desta pesquisa.
A experiência fez-nos entender que nossas preocupações não deveriam
se limitar ao paciente e aos profissionais que conviviam naquela enfermaria
específica da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP), quando
os mesmos problemas eclodiam em âmbito hospitalar. A AIDS envolve
profissionais e/ou estudantes de diferentes ramos do conhecimento que
buscam avaliar, além dos conhecimentos específicos da doença, o respeito
pelos valores essenciais dos indivíduos implicados, o anonimato, a escuta e a
possibilidade de trabalhar em condições adversas.
Em janeiro de 1990, iniciamos um projeto novo destinado às pessoas de
fontes diversas (encaminhamentos internos e externos), candidatas à
realização
do teste anti-HIV. Buscava-se preencher uma
lacuna no
atendimento a uma demanda que além de solicitar a realização do teste,
desejava esclarecimentos sobre uma nova doença. O HUAP é um centro de
referência de vários municípios de Niterói e adjacências e esse projeto surgiu
de uma demanda institucional na concentração de esforços para atender a uma
pressão e acolher a essas candidatas ao teste, que invadiam os ambulatórios
clínicos com esse objetivo.
Chamamos esse projeto de Atendimento Psicossocial cuja característica
era introduzir no atendimento uma visão psíquica e social, para exercício do
31
qual os mesmos profissionais que participavam do GEIA eram treinados.
Esse atendimento visava dois momentos: um antes e outro depois de
realizado o teste.
Atendimento pré-teste – Para esse atendimento eram encaminhados os
usuários que tinham apenas suspeitas de estarem infectados. O profissional
treinado para essa função conversava com ele sobre sua vida pessoal,
amorosa, familiar, história de suas queixas clínicas e da necessidade de
esclarecer seus sintomas através de exames laboratoriais. Esta abordagem
visava também estabelecer uma indispensável confiança nos profissionais que
faziam parte do projeto e despertar um sentimento de segurança nos cuidados
médicos.
A privacidade desses encontros era essencial para preservar o caráter
eminentemente confidencial desse encontro. Após a primeira entrevista eram
realizados outros atendimentos de acordo com as necessidades de cada caso.
O profissional conduzia a conversa através da escuta, sempre seguindo
o rumo do candidato que em sua fala deixava entrever suas necessidades,
seus medos e preocupações as quais servem como indicadores do caminho a
seguir. Estar atento não só para o que é dito, mas também para o não dito e o
que esperávamos ouvir.
É importante ser voluntária e consciente a decisão de fazer o teste,
cabendo ao usuário, a decisão de sua realização.
Atendimento pós-teste – Se o teste era positivo para HIV, este era o
momento de preparar psicologicamente o usuário para receber a comunicação
diagnóstica. Sabedores que éramos das consequências, física, moral e
psicológica que ele enfrentaria e da necessidade do apoio nesse momento,
valorizava-se a posição do profissional como aliado nessa luta, permitindo que
uma relação de confiança despontasse. De fato, pudemos observar o
surgimento de uma aliança a partir do estabelecimento de confiança mútua
entre profissionais e usuários com HIV positivo. A partir de então, um canal se
abria para as expressões de sofrimento despertadas pelo medo da imprevisível
ameaça de morte. Ao mesmo tempo, surgia uma força de superação vinda das
enormes dificuldades iminentes, que se desenvolvia pela esperança que
passava a acalentar usuário e profissional.
As lições apreendidas pelos profissionais acerca de seu papel na área
32
da saúde permitiram não só uma maior compreensão da pessoa doente, mas
deu a eles o reconhecimento da importância da família e da comunidade nessa
luta contra a doença, como também de desenvolver sua própria atitude de
profissional da saúde. Foi também importante a decisão por parte do usuário
de criar uma rede de pessoas em que ele confiava para apoiá-lo em caso do
teste soropositivo, ajuda que tinha por objetivo contar com alguém nesse
momento em que experimentava um sentimento de abandono, questão central
ligado à descoberta do diagnóstico.
A partir das discussões de casos clínicos no grupo, alguns cuidados no
atendimento acabavam por se impor e serviam de orientação para os
profissionais como uma função transformadora em suas condutas. Foi desta
forma que se entendeu a necessidade de não estabelecer limites para o
número de entrevistas de pré e pós-teste. Alguns usuários, com testes
positivos ou não, mesmo depois de encaminhados, continuavam retornando
para “uma conversa”. Outro exemplo era o cuidado de não apresentar
resultados de testes às sextas-feiras à medida que não haveria possibilidade
de atendimento no fim de semana para suporte.
Com o passar do tempo, diminuiu o nível de comoção dos ambulatórios
clínicos de HIV/AIDS e tal nível aproximou-se daquele das outras clínicas à
medida que as tensões nos dois polos (profissionais e usuários) se
acomodaram. Do lado dos profissionais, não apenas a ampliação do
conhecimento sobre a doença ajudou, mas também a identificação com o
sofrimento quando parentes e amigos seus morreram de AIDS. Contribuíram
também, sem dúvida, os novos conhecimentos sobre os mecanismos de
infecção, do controle profilático, o advento de novas drogas que foram traçando
melhores caminhos para vencer a dolorosa batalha e a oportunidade dos
profissionais de diferentes serviços em participar das reuniões regulares do
GEIA, abertas ao acolhimento e atendimento desses.
Os profissionais que faziam parte do GEIA, assumiam igualmente a
responsabilidade de atender os usuários do atendimento psicossocial,
estabelecendo um vínculo de confiança com eles. Entre suas funções como de
todos da equipe, cumpria dar o resultado diagnóstico do teste, o que provocou
choques com chefes administrativos e acadêmicos, criando polêmicas internas
entre profissionais que consideravam tal ato uma função médica. Essa
33
polêmica não fazia sentido para o grupo que sabia da importância do vínculo e
da confiança desenvolvidos na relação profissional-usuário para alcançar essa
etapa do trabalho. Em defesa desse argumento uma das participantes do grupo
resolveu ir ao seu Conselho Regional esclarecer e tornar público tal
procedimento, o que acabou serenando os ânimos.
Mais tarde, o atendimento psicossocial foi tomado como modelo, embora
não reconhecido como tal pelas Secretarias de Saúde que resolveu criar o
Centro de Testagem Anônima (CTA), iniciativa institucional que abrange hoje
diversas unidades municipais e estaduais.
Paralelamente, em reuniões do GEIA, discutia-se entre os profissionais
uma sobrecarga no atendimento aos portadores da AIDS oriunda das famílias
que buscavam esclarecimentos, suporte emocional e até a oportunidade de
troca com outros que partilhavam das mesmas viscissitudes. Foi quando
alguns membros do GEIA se disponibilizaram para iniciarem um trabalho de
atendimento grupal às famílias. O grupo nesse momento se sentia movido por
um desejo de organizar-se em razão de tarefas concretas e percebia que
assumi-las, não implicaria em abdicar do seu esforço reflexivo.
Esse grupo de familiares teve seu início em dezembro de 1989 e desde
então se caracterizou por um grupo aberto com ingresso de membros
encaminhados pelos profissionais que atendiam aos portadores de HIV/AIDS e
que tinham vínculo com esses portadores. A proposta não era de um grupo
terapêutico, mas com a idéia de que juntos poderíamos encontrar soluções,
considerando os limites de poder individual ou grupal, onde era cabível a
presença de outros profissionais convidados e habilitados na busca de
soluções.
As reuniões no primeiro momento do desenvolvimento grupal, focavam
em cima de pleitos explícitos ou não, na busca de recursos materiais a fim de
auxiliar no tratamento, mas já no momento seguinte, era demarcado pela
predominância dos vínculos afetivos onde expressões de sofrimento eram
colocadas baseadas no medo do imprevisível e da morte. Nesse sentido era
trabalhado no grupo que apesar da presença constante e inusitada da
perspectiva da morte, esta não poderia ocupar todo o tempo da vida, mas era
preciso abrir espaços qualitativos além daqueles voltados para a quantidade do
tempo de vida.
34
Desde 2002, houve outro desdobramento desse projeto GEIA chamado
Grupo Sol com usuários com HIV/AIDS. O grupo visava reintroduzir o paciente
ao convívio social, capacitando-o a uma autonomia perdida e percebendo a
importância do acolhimento que é preconizado pelo Programa Nacional de
HIV/AIDS do SUS onde o acesso, a universalidade e descentralização são
presentes e considerando este espaço de atuação imprescindível para se
trabalhar a adesão ao tratamento. Esse grupo permanece em atividade até
hoje e faz incursões pela vida social: passeios por lugares turísticos, teatros,
etc.
O grupo propicia a expressão e a troca de experiências objetivas e
subjetivas, além de possibilitar o diálogo do usuário com a equipe sobre os
diversos aspectos do tratamento, sanando dúvidas e trabalhando temores
relacionados ao adoecer, a perda da integridade física e da morte.
Atualmente o HUAP, conta com uma equipe multiprofissional nas áreas
de cardiologia, clínica médica, pediatria, obstetrícia, enfermagem, serviço
social, farmácia, psicologia, nutrição e odontologia com o objetivo de organizar
as ações através de uma Coordenação de AIDS. Acompanha as gestantes
soropositivas provenientes do ambulatório de pré-natal, as crianças expostas
que são as nascidas de mães soropositivas, porém não contaminadas e
crianças positivas, além de adultos.
Segundo dados fornecidos pelo SICLOM/Ministério da Saúde (2012),
encontram-se
cadastrados
691
usuários
no
HUAP
para
retirarem
medicamentos antiretrovirais a fim de tratamento contra AIDS, sendo que 188
desses usuários encontram-se em atraso de dispensa, caracterizando
dificuldade na adesão ao tratamento.
Nesse cenário se inscreveu a história da AIDS no HUAP, uma doença
que significava a morte, geradora de pânico, mas que hoje é considerada uma
doença crônica, onde percebemos através das experiências vivenciadas, que
apesar do avanço tecnológico que trouxe mais recursos para o tratamento,
houve de maneira explícita ou não, por parte dos usuários ou dos profissionais
de saúde, a necessidade de um olhar subjetivo nas práticas do cuidado.
Nessa trajetória descrita, percebemos a presença constante e necessária
do trabalho de equipe interdisciplinar e sua aplicabilidade como suporte básico
no desenvolvimento da prática do cuidado em saúde preconizado pelo SUS e
35
de como a busca por um aprofundamento teórico nesse sentido, poderá trazer
novas possibilidades no olhar desses profissionais que atuam nessa prática. O
trabalho de equipe multiprofissional funciona então como um dos instrumentos
utilizados no atendimento às pessoas vivendo com HIV/AIDS.
Assim, o principal objetivo deste trabalho de pesquisa é analisar e trabalhar
a questão da adesão à luz da psicanálise na busca de um aprofundamento
teórico através do conceito de transferência que será estudado no próximo
capítulo.
36
3. A TRANSFERÊNCIA COMO ESTRATÉGIA PARA A ADESÃO AO
TRATAMENTO DO HIV/AIDS
Este capítulo se propõe a trabalhar o fenômeno da transferência através
de estudos realizados na psicanálise, privilegiando Sigmund Freud e Jacques
Lacan, a partir da hipótese de que a transferência constitui uma estratégia para
a adesão ao tratamento dos usuários com HIV/AIDS. O conceito de
transferência
poderá
trazer
uma
contribuição
teórico-clínica
para
os
profissionais da saúde, mostrando que uma das principais condições para a
adesão ao tratamento refere-se à relação usuário e profissional.
A adesão ao tratamento do HIV/AIDS é o que atualmente possibilita a
efetividade do cumprimento dos objetivos clínicos e finalidade terapêutica,
contribuindo, assim, para a preservação da vida das pessoas afetadas,
prevenção de agravos de saúde e melhora na qualidade de vida. Desse modo,
os objetivos clínicos são a reconstituição imunológica e a diminuição do
número de vírus do organismo o que demanda algumas condições e
procedimentos.
Porém, a indicação, a prescrição e o uso dos medicamentos
antiretrovirais extrapolam estes objetivos, pois envolvem questões que vão
além do prolongamento da vida biológica, envolvendo outros aspectos. O
nosso acolhimento e a nossa escuta enquanto profissionais de saúde são
dirigidos a todos os assuntos que na relação possam se fazer relevantes para a
ocorrência do fenômeno da adesão.
Diante da hipótese desta pesquisa de que a transferência é uma
estratégia para se conseguir a adesão a um tratamento, proponho examiná-la
neste capítulo.
A palavra estratégia segundo o Dicionário da Língua Portuguesa (1975),
vem do grego antigo stratègós (de stratos, “exército”, e ago, “liderança” ou
“comando” tendo significado inicialmente “a arte do general”) e designava o
comandante militar, à espera de democracia ateniense. Seu conceito é: “a arte
militar de planejar e executar movimentos e operações de tropas, navios, e/ou
aviões, visando a alcançar ou manter posições relativas e potenciais bélicos
favoráveis a futuras ações táticas sobre determinados objetivos”.
Nesse contexto, segundo Freud (1912), o que ajudaria e jogaria um peso
preponderante para superar as resistências ao tratamento seria a mobilização
37
de energias prontas para a transferência, apontando que a força motivadora
primária na análise é o sofrimento do paciente e o desejo de ser curado. Assim,
o aspecto relacional, entendido nessa proposta, tem em síntese, um aspecto
primordial para a adesão do paciente.
A transferência está presente em todas as relações profissionais, mas
dependerá do olhar diferenciado do profissional na sua compreensão e manejo
nas diferentes práticas profissionais. A transferência poderá ser utilizada como
ferramenta capaz de auxiliar aos profissionais a iluminar suas práticas no
tratamento aos portadores de HIV/AIDS a conquistarem uma maior adesão à
terapêutica, através de uma nova leitura a partir da psicanálise.
Segundo Jacques Lacan, psicanalista francês, a transferência é um dos
quatro conceitos fundamentais da psicanálise, pois é a partir dela que se dá o
tratamento analítico. Esse fenômeno poderá ocorrer em qualquer lugar e com
qualquer profissional, mas o seu manejo somente o analista poderá fazê-lo. É
considerada o marco para a entrada em análise, quando o paciente endereça
um amor que se dirige ao analista como portador de um saber sobre seu
inconsciente. Este suposto saber é o eixo do tratamento analítico, ou seja, é o
pivô de uma análise.
A transferência não é um termo específico da psicanálise. Retrata algo
relativo a deslocamento, transporte, substituição, uma vez que apresenta uma
atualização do real do paciente através de uma incursão histórica interessada
num passado que invade, perdura e empregna o presente que se atualiza,
fazendo-o coexistir simultaneamente temporal e materialmente.
Segundo Hanns (1996), transferência (Übertragung), conotativamente
pode-se dizer que nesse termo há um “arco” que mantém aceso um processo
de ida e vinda, entre o passado e a atualidade, longe e perto ou de uma pessoa
a outra, podendo ser assim representado:
38
Genericamente refere-se à idéia de aplicar (transpor) de um contexto
para outro uma estrutura, um modo de ser ou de se relacionar.
Podemos decompor o termo alemão Übertragung em três partes: Über,
trag e ung.
Über (prefixo verbal): denota um movimento em direção a algo; a ação
de cobrir algo (distâncias, caminhos, objetos, pessoas, etc) e o deslocamento
de um local para outro. Além disso, pode indicar uma ação excessiva bem
como a repetição/revisão da ação anterior; trag: verbo tragen, que significa
carregar, usar, vestir, sustentar, postar, etc e ung: sufixo de substantivação
corresponde aproximadamente a “ção” em português.
O amor de transferência é estratégia para a análise e não é de controle
do analista. Trata-se de um amor falso e genuíno ao mesmo tempo, porque é
repetição e atualização. A resistência prova a genuinidade desse amor na
repetição dos sintomas infantis.
A tese de Lacan (1964) é de que esse amor é endereçado ao saber: o
analisando coloca o analista na posição de sujeito suposto saber, de um saber
consistente, mas o analista não deve responder desse lugar. Quanto ao amor
transferencial, trata-se de uma transcrição da observação clínica, em que o
amor enquanto repetição significante se apoia na figura do analista, e este se
serve deste fenômeno como instrumento motor da direção da análise. Afirma
Lacan: “o inconsciente não resiste, o inconsciente repete, o inconsciente gira
como uma mensagem em um computador, não deixa de girar e diz ademais
sempre a mesma coisa” (LACAN, [1984] 1994, p.23).
39
Freud considera o amor de transferência o inconsciente em ação. O
recalque na sua infinita repetição torna o analista cúmplice de seu inconsciente
e este, no decorrer do processo de análise, desfaz esse equívoco. O analista
coloca o paciente para produzir significado da cadeia de significantes através
do discurso, buscando dar acesso ao seu próprio inconsciente.
Freud defrontou-se com os impasses desse fenômeno da transferência,
sobretudo no que se refere à sua ambivalência: ao mesmo tempo agindo como
força motora e resistência ao trabalho de rememoração na associação livre. Do
lado da resistência, Freud observa que sempre que ocorre uma parada das
associações livres, portanto uma resistência à análise, surge a transferência. O
manejo da transferência visa recolocá-lo no trilho da cadeia significante,
fazendo-o retomar a rememoração, vencendo assim tanto a resistência, como
o recalcamento, restabelecendo uma ponte entre os significantes e garantindo
assim a associação livre.
3.1. A TRANSFERÊNCIA SEGUNDO SIGMUND FREUD
A criação da psicanálise tem como marco principal a descoberta do
inconsciente. Anteriormente acreditava-se que o Eu mantinha o controle de
tudo. A descoberta de Freud revelou que o homem não possui o domínio sobre
si mesmo e que algo escapa à sua consciência. Já se conhecia o termo
inconsciente, mas Freud inovou apresentando um sistema de pensamento
inconsciente. Segundo Freud:
O termo inconsciente, que foi empregado antes no
sentido puramente descritivo, vem agora a implicar algo
mais. Designa não apenas as ideias latentes em geral,
mas especialmente ideias com certo caráter dinâmico,
ideias que se mantêm à parte da consciência, apesar de
sua intensidade e atividade. (FREUD [1912] 1969, p.4).
Freud criou um método de acesso ao inconsciente, o da associação livre
de ideias, um campo fértil que valoriza o mundo da fantasia, a história pessoal,
o passado infantil, os desejos, os sonhos, pensamentos e sentimentos,
quaisquer que eles sejam.
Apresentarei um breve histórico da vida de Freud até o surgimento da
psicanálise para uma melhor contextualização do conceito de transferência.
40
Em 6 de maio de 1856, nasce em Freiberg (Morávia), Schlomo
Sigismund, que mais tarde altera seu nome para Sigmund Freud, que marcou a
história da humanidade quando descobre que o homem é regido pelo seu
inconsciente, que altera o modo de pensar a vida psíquica.
Em 1873, aos 17 anos, Freud, ingressou no curso de medicina atraído
pela fisiologia e pela neurologia. Formou-se pela Universidade de Viena, em
1881, e especializou-se em Psiquiatria. No ano de 1883 trabalhou em clínica
psiquiátrica e um ano depois começa a pesquisar sobre os efeitos da cocaína.
Em 1885 conseguiu uma bolsa de estudo em Paris, já com o cargo de
docente em neurologia. Trabalhou como tradutor de Jean Martin Charcot, um
psiquiatra que acreditava que a histeria não se tratava de uma enfermidade
imaginária. Freud decidiu trabalhar essas ideias através de atendimentos em
sua clínica particular em Viena (1886), onde passou a ter como seu principal
instrumento de trabalho, a sugestão hipnótica para a eliminação dos sintomas
dos distúrbios nervosos.
A primeira grande parceria de Freud foi com Joseph Breuer (1842/1925),
um médico austríaco que desempenhou um papel muito importante nos
primórdios da psicanálise sobre estudos da histeria através do caso clínico de
Anna O. Fundamentalmente, os sintomas dos pacientes histéricos se
apresentavam mediante cenas do passado esquecidas (traumas). Sob um
estado hipnótico, a terapia consistia em lembrar e recordar essas experiências
(catarse), considerando que a psicanálise não poderia explicar nenhum
aspecto do presente sem se referir a algo do passado. Freud considerou que
nesse caso foi utilizado um protótipo do que mais tarde foi chamado de
transferência, ressaltando que a teoria da transferência não foi esclarecida por
ele nesta ocasião.
Freud (1914) acrescenta ao processo catártico como fonte de
conhecimento do inconsciente, a teoria do recalque e da resistência, o
reconhecimento da sexualidade infantil e a interpretação e exploração de
sonhos. A hipnose ocultava a resistência e a história da psicanálise só se inicia
com a dispensa desse método. Cita Freud:
A teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois fatos
surpreendentes e inesperados que se observam sempre que
se tenta remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes
41
do passado: a transferência e a resistência (FREUD [1914]
1969, p.26).
Freud considera a teoria do recalque como fundamental na estrutura da
psicanálise, e que este seria a formulação teórica de um fenômeno que pode
ser observado quantas vezes se desejar, presente no processo de análise de
um neurótico sem recorrer à hipnose. Nesses casos, encontra-se uma
resistência que se opõe ao trabalho. A história da psicanálise propriamente dita
só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose e propõe a técnica da
associação livre. A análise conduziu à origem dos sintomas até os traumas
sexuais infantis dos primeiros anos da infância. A teoria freudiana na clínica
com as histéricas destacará a existência, na base do sintoma histérico, de um
trauma.
Freud (1895) apontou a transferência (Übertragung) em seu estudo
sobre a histeria que implica em envolver o analista na psicanálise de um
sujeito. Para Freud, a transferência seria a repetição de protótipos infantis,
onde haveria um deslocamento de afeto de uma representação para outra.
Nesse sentido, a relação do paciente com as figuras parentais seria revivida na
relação com o analista, marcada ainda pelos sentimentos de ambivalência de
amor e de ódio. A partir daí surge então duas modalidades de transferência: a
positiva (sentimentos ternos) e a negativa (sentimentos hostis). A transferência
positiva reforça a confiança no analista e suscita a associação livre de ideias,
essencial ao trabalho e de modo geral, se vincula a sentimentos amistosos ou
afetuosos admissíveis à consciência. O fenômeno da transferência aparece em
diferentes formas de tratamento e em diferentes práticas, mas muitas vezes o
profissional não os identifica ou muitas vezes nem suporta o ódio e/ou o amor a
ele vinculados.
O saber do analista é dar acesso ao analisando ao seu próprio discurso
através da associação livre e impulsioná-lo através de interpretações
simbólicas que terão um significado na cadeia de significantes através da
linguagem. O analista deve procurar manter o domínio do amor transferencial
que atravessará o tratamento, remontando às suas origens inconscientes,
trazendo fatos ocultos da vida erótica do paciente para a sua consciência.
Freud (1912) enfatiza o período da primeira infância (antes dos seis
anos), como fundamental constituinte e determinante aos impulsos que mais
42
tarde irão ser repetidos. A transferência é uma repetição atualizada do real do
inconsciente. A transferência marca a entrada em análise, após as entrevistas
preliminares.
Estas
são
necessárias
para
criar
condições
para
o
estabelecimento da transferência, favorecer a construção de uma hipótese
diagnóstica e ainda familiarizar o paciente com o método psicanalítico.
Nas entrevistas preliminares, observa-se a presença da demanda de
análise, que poderá partir de uma queixa, um sofrimento, que se endereçará ao
analista como forma de pedido de ajuda. Quando o analista aceita a demanda
do cliente e o recebe, está implícito que algo pode ser feito, havendo uma
promessa de tratamento que será baseado na associação livre.
Com a constituição da transferência, a análise se inicia e ao longo do
tratamento analítico algo paradoxal é observado: a transferência é motor e
resistência, ao mesmo tempo.
Afirma Freud:
A resistência acompanha o tratamento passo a passo. Cada
associação isolada, cada ato da pessoa em tratamento tem
que levar em conta a resistência e representa uma conciliação
entre
as
forças
que
estão
lutando
no
sentido
do
restabelecimento e as que lhe se lhe opõe (FREUD [1912]
1969, p.138).
Quanto maior a resistência, maior é a transferência. Quando aparece a
resistência, já se evidencia o estabelecimento da entrada em análise que
deverá ser manejada pelo analista durante todo o processo. O amor
transferencial é paradoxal, pois o analista não deverá reprimir e nem aceitar
esse amor.
O manuseio da transferência é a parte mais importante da técnica de
análise. O analista, segundo Freud (1915), não tem um modelo a seguir e seu
caminho deverá ser não afastar-se do amor transferencial e não se colocar no
lugar de sujeito “pois um amor deste tipo, fadado a permanecer oculto e não
analisado, nunca poderá prestar ao restabelecimento da paciente a
contribuição que a análise dele teria extraído”. Acrescenta ainda:
O analista nunca deve, em quaisquer circunstâncias, aceitar
ou retribuir os ternos sentimentos que lhe são oferecidos, mas
tratá-lo como algo irreal, como uma situação que se deve
43
atravessar no tratamento e remontar às suas origens
inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se acha
muito profundamente oculto na vida erótica do paciente para
sua consciência e, portanto, par debaixo de seu controle
(FREUD [1915] 1969, p.216).
O amor transferencial caracteriza-se por uma posição especial. Primeiro
por ser provocado por uma situação analítica, segundo, por ser grandemente
intensificado pela resistência e também por faltar-lhe consideração pela
realidade, sendo menos sensato nas considerações pelas consequências
desse amor. Estar dentro dos limites prescritos pela ética e pela técnica não é
uma tarefa fácil, mas necessária.
3.2. A TRANSFERÊNCIA SEGUNDO JACQUES LACAN
O conceito de transferência sofreu acréscimos com Lacan, e este situa
no seu fundamento, uma função inédita em Freud que é a do sujeito suposto
saber, como sendo o pivô de tudo que se articula e relaciona com esse
fenômeno. Lacan não tinha como objetivo reinventar a psicanálise, mas
formular questões sobre as suas condições de possibilidades. Demonstrou
então que o descobrimento sobre o inconsciente por Freud só encontra
conexão através da proposição de que o inconsciente está estruturado com
uma linguagem. Segundo Lacan: “o analista exerce uma pressão sobre o
inconsciente pela própria oferta que faz de escutar o paciente, escutá-lo a
medida que diz qualquer coisa”. (LACAN [1984] 1994,p.63).
Lacan dedica o Seminário 8, A Transferência, ao ensino desse tema.
Introduz esse estudo retomando o texto filosófico O Banquete de Platão, que
se refere a um banquete entre filósofos onde o tema central era o amor. Por
considerá-lo um texto original de interesse monumental, tradicionalmente
respeitado, que diz respeito à estrutura do amor, Lacan apresenta neste
Seminário um extenso comentário sobre o Banquete para auxiliá-lo nas
investigações sobre o amor de transferência.
O Banquete, também conhecido como Simpósio, é um diálogo platônico
escrito por volta de 380 a.C.. Considerado uma obra prima literária tanto pelo
seu conteúdo tanto pela capacidade de Platão no domínio do tema proposto
para a produção de uma peça com clareza, beleza e elegância. Lacan o
44
descreve como uma cerimônia com regras, onde cada um contribui com a sua
cota, uma espécie de concurso íntimo da elite, que consiste em discursar sobre
o tema amor, formado por pessoas da sociedade. Constitui-se basicamente de
uma série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor (Eros), suas
facetas e pontos de vista heterogêneos sobre o amor, cujas questões não se
esgotam. Os convidados deveriam fazer discursos para louvar o amor. Porém
Sócrates intervém, ponderando que, antes de falar sobre o bem que o amor
causa e seus frutos, deveriam tratar de definir o que é o amor. Sócrates é o
mais importante dentre os homens presentes. Entre outros, também ali estão
Aristodemo, amigo e discípulo de Sócrates; Fedro, o jovem retórico; Pausânias,
amante de Agaton; o médico Erixímaco; Aristófanes, comediante que
ridicularizava Sócrates e o político Alcibíades.
Lacan esclarece que o importante não é extrair do texto Banquete a
importância da natureza do amor, mas a sua relação com a transferência,
articulando os discursos pronunciados, uma espécie de relato de sessões
analíticas. Introduz o estudo da transferência a partir do tema do amor, nos
mostrando que a transferência é um amor, um amor genuíno, como nos diz
Freud. Lacan introduz nesse estudo as noções de agalma, sujeito suposto
saber e desejo do analista.
Sendo assim, a noção de agalma, uma palavra originariamente grega
que designa um objeto precioso ou caixa de joias, é introduzido por Lacan no
estudo da transferência e diz respeito ao objeto que nos captura e que o sujeito
acredita ter encontrado, na pessoa amada, o objeto perdido desde sempre,
buscado a vida inteira e que, portanto, nos é precioso. Comenta QUINET
(1991, p.31), que para Lacan no Banquete de Platão, há uma identidade entre
o algoritmo da transferência e o que é conotado como agalma, uma vez que há
a presentificação da realidade do inconsciente enquanto sexual por causa
desse objeto.
Lacan (1960-1961) extrai do Banquete duas observações sobre o amor:
a primeira é de que o amor é um sentimento cômico e a segunda, é que o amor
é dar o que não se tem. Diz ele:
...o amor grego nos permite retirar, na relação do amor, os
dois parceiros do neutro. Trata-se daquela coisa pura que se
exprime naturalmente no gênero masculino, e que permite
45
inicialmente articular o que se passa no amor no nível deste
par formado, respectivamente, pelo amante e pelo amado, o
érastès e o érôméno (LACAN, [1960-1961] 2010, p.49).
Continuando, Lacan aponta esses dois termos para falar da posição dos
mesmos numa relação amorosa: érastès o amante, aquele que vai em busca
daquilo que lhe falta e érômenos o amado, aquele que tem alguma coisa.
Claramente aparecerá o amante como o sujeito do desejo e o amado como
aquele que nesse par seria o único a ter algo. Acrescenta que seu interesse no
amor vai interessar na medida que passará uma compreensão da
transferência.
A saber, qual a nossa relação com o ser de nosso paciente?
Sabe-se bem, afinal, que é isso que se trata em análise.
Nosso acesso a esse ser, será ou não do amor? O fenômeno
da transferência é considerado imitar ao máximo, até mesmo
chegando a confundir-se com ele: o amor (LACAN, [19601961] 2010, p.54).
No início de uma análise, o analista é colocado pelo paciente na posição
de amado, daquele que tem um saber e uma resposta para o seu sofrimento.
Este então deve direcionar o tratamento não ocupando esse lugar de sujeito
suposto saber, mas mostrando ao analisado que ele mesmo tem o saber sobre
seu sofrimento, sobre seu inconsciente e, assim, não conduzir o tratamento
nem do lugar de amado nem do lugar de amante, pois ele não tem o agalma.
Assim permitirá que o analisando caminhe do amor ao desejo na análise,
saindo da posição de amado para a do amante, indo em busca do que lhe falta,
onde surgirá através dessa busca o desejo do sujeito. Desejo que para Lacan,
surge no deslizamento significante, no deslocamento de um objeto a outro, já
que não há nenhum objeto que complete o sujeito.
Lacan (1960-1961) define a transferência como alguma coisa que se
assemelha ao amor:
A transferência é algo que põe em causa muito profundamente
no que se refere à reflexão analítica por ter introduzido nela,
como uma dimensão essencial, aquilo a que se chama a sua
ambivalência. Se o sujeito busca encontrar na análise o que
tem e não conhece, o que vai encontrar é o que lhe falta, a
saber, seu desejo (LACAN, [1960-1961] 2010, p.88, 89).
46
Diz Lacan (1964) que o inconsciente é o discurso do Outro, do
inconsciente que se encontra do lado de fora e que através do analista se
presentifica, fazendo-o buscar soluções através da associação livre, no
implícito, nas entrelinhas do enunciado. Na presença do analista o inconsciente
se presentifica na fala, se atualiza.
Lacan (1964) remete ao conceito de inconsciente freudiano que o
considera como a soma dos efeitos da fala, sobre um sujeito, nesse nível em
que o sujeito se constitui pelos efeitos do significante. A presença do
psicanalista deverá estar incluída no conceito de inconsciente, jamais o
confundindo com o Eu narcísico. Segundo ele, a função da transferência seria
dar acesso à posição primária do inconsciente que se articula como constituído
pela determinação do sujeito do desejo e não só pela demanda onde se coloca
fora da cadeia do significante. Acrescenta: “no inconsciente há um saber que
não é de modo algum a ser concebido como saber a ter acabamento, a se
concluir” e mais: “a verdade só se funda pelo fato de que a palavra, mesmo
mentirosa, a reclama e a suscita” (LACAN, 1964, p.133).
Para Lacan (1964), o amor de transferência é sem dúvida um efeito do
processo, mas em fase de resistência. Diz respeito ao amor, com a demanda
de ser amado que se articula e como este será acolhido, tratado, em que a
psicanálise se diferencia de outros métodos. Um fenômeno que está presente
em todas as relações onde o amor se evidencia, mas a sua análise é a
condição
para
o
progresso
do
tratamento
psicanalítico.
Através
da
transferência a psicanálise se viabiliza como método de tratamento e será
condição preliminar para o seu estabelecimento.
Lacan nos ensina: “O sujeito suposto saber é para nós o pivô no qual se
articula tudo o que se relaciona com a transferência”. A análise se inicia com
um amor dirigido pelo paciente ao analista. Trata-se de um amor ao saber,
saber suposto ao analista e por essa razão o lugar que este ocupa neste
momento da análise é designado como sujeito suposto saber. (LACAN, 1994,
p. 56).
A dinâmica da transferência tão bem formulada e desenvolvida por
Freud e Lacan está sempre presente em todas as relações humanas. Examinála no contexto da adesão ao tratamento poderá esclarecer sobre muitas
47
situações onde ela ocorre com mais facilidade e em outras onde aparecem
dificuldades que impedem ao usuário aderir ao tratamento proposto.
A seguir apresentarei alguns relatos de casos clínicos, os quais
demonstram uma afinidade da teoria estudada sobre a transferência com a
prática em atendimentos no HUAP.
48
4. CASOS CLÍNICOS
Neste capítulo apresentarei alguns casos clínicos atendidos pela equipe
da enfermaria do Serviço de Infectologia do Hospital Universitário Antonio
Pedro/UFF. O objetivo ao abordar os casos, é de identificar um dos conceitos
da psicanálise, a transferência, privilegiado nesta dissertação, de modo a
investigar a hipótese desta pesquisa de que uma das principais condições para
a adesão ao tratamento refere-se à relação usuário e profissional, e que este
conceito, tal como concebido pela psicanálise, constitui uma estratégia para a
adesão ao tratamento por parte dos usuários com HIV/AIDS.
A percepção subjetiva sobre a sua doença por parte desses usuários,
que muitas vezes pode torná-lo incapaz para manter a mesma qualidade de
vida anterior, causa muito sofrimento. As limitações físicas e as alterações na
vida social causam um intenso e progressivo desgaste emocional. Muitas
vezes, o adoecer provoca um afastamento das atividades que o faz sentir vivo,
perdendo a autonomia de se encaminhar na vida, gerando momentos de
reflexão e questionamentos: porque logo comigo? Como será a minha vida a
partir de agora? Nessa prática, percebo que à medida que o usuário recebe
suporte (remédios para o tratamento, a realização de consultas, exames e o
afeto, não piedoso), tem mais chance em realizar um maior movimento na
busca de soluções para os problemas.
As informações sobre os casos foram colhidas através de entrevistas
com os próprios usuários, acompanhados algumas vezes por familiares,
enquanto permaneceram internados. O critério de escolha foi feito através da
seleção dos casos que permitissem pensar a questão abordada como tema
dessa pesquisa.
Relatos dos casos clínicos:
1° Caso Clínico: Usuário de 21 anos, sendo portador do vírus da AIDS há
quatro anos, apresentava ascite e com a hipótese diagnóstica de linfodema no
intestino. O início de seu tratamento ocorreu em outra unidade de saúde em
seu município onde residia, tendo sido posteriormente transferido para o
HUAP.
49
Residia com companheiro há três anos e meio, sendo este HIV negativo
e teve um relacionamento heterossexual anteriormente. Comentou que chegou
a procurar um psicólogo devido a sua preferência homossexual. Foi
contaminado por seu ex- companheiro, com idade bem superior a sua e com
quem não tinha mais contato.
Sua família era composta de mãe e quatro irmãos e mantinham uma
satisfatória relação entre eles. Sua mãe permanecia ao seu lado em horário
integral durante o período de sua internação. Esta relatou que ele sempre foi o
mais dengoso de seus filhos; cuidava da casa na sua ausência, mas não
conheceu o seu pai biológico e nem o adotivo que foi um de seus namorados,
tendo dele se separado, quando o usuário tinha apenas um ano. Ele sempre
insistiu em conhecê-lo e fez muitas tentativas pela internet para encontrá-lo.
Era extremamente afetuoso com a mãe e com seu companheiro.
Foi adotado por um companheiro de sua mãe, que também o abandonou
após brigas de casal. Verbalizou seu desejo de reencontrar esse homem e
solicitou ajuda do serviço social para pesquisar na internet sobre seu paradeiro,
mas não tinha dados suficientes O único vínculo afetivo que o amparava era o
de sua mãe, até que se envolveu com um companheiro que o contaminou com
o vírus da AIDS e o abandonou também. Sua mãe se entregou na posição de
uso e abuso dos outros (homens) e ele também se colocou assim, vítima de
um dos seus relacionamentos que o contaminou, o abandonou e que também
não o tratou adequadamente.
Sempre aderiu ao tratamento, indo às consultas, tomando seus
remédios prescritos pelo médico e buscando realizar os exames necessários
ao seu acompanhamento. Relata sua dificuldade em se tratar devido à falta de
recursos e de infraestrutura em seu município.
Os profissionais quando o atendiam, se colocavam a favor do esquema
de saúde deficiente que não oferecia a oferta necessária de recursos, numa
atitude de acomodação e ele não conseguia articular solução aos seus
problemas. Consequentemente, esses profissionais faziam encaminhamentos
para outras unidades de saúde com o objetivo de solução fora dali. Saía então
em busca de atendimento, mas já se sentindo enfraquecido, desamparado,
desprotegido e sem a assistência devida, o que acarretou a sua piora.
Não teve acesso aos documentos e orientações necessárias para a
50
obtenção de seus direitos enquanto HIV positivo. Remédios faltavam e eram
divididos por quem precisava
Declarou que somente por amor à sua vida e a persistência em se tratar,
encontrava-se naquele momento internado em um hospital de referência após
ser encaminhado por um profissional que se sensibilizou com seu estado.
Acrescentou que há muito tempo nenhum médico o examinava, o tocava.
Percebeu então que apesar do tempo que havia perdido em seu tratamento
inadequado, tudo estava sendo feito e providenciado para que venha
restabelecer a sua saúde.
Relatou queixas de abandono e de desleixo verificado em suas buscas
de tratamento nos hospitais, onde constatou surpreendentemente o medo, a
discriminação e preconceito dos profissionais em lidarem com a morte.
Enfrenta outro desamparo quando busca tratamento em instituição
pública. Após encaminhamento para o HUAP, encontra a possibilidade de
através de tratamento adequado, resgatar a sua saúde. Faz vínculo com a
equipe interprofissional, fato que mostra o amparo importante que se
estabeleceu a partir daí. O atendimento diferenciado, baseado na singularidade
do usuário, demonstra uma prática do cuidado onde é reconhecida a
importância do vínculo de quem cuida para com quem é cuidado como
premissa para um melhor andamento do tratamento.
Nesse primeiro caso, percebemos o investimento do usuário em seu
tratamento de saúde desde o início, mas este se depara com algumas
dificuldades que instiga-nos a pensar o que efetivamente contribui para a
adesão. Teve relacionamentos estáveis e com vínculos afetivos, contudo
sempre foi abandonado. Sua mãe permaneceu durante todo o tempo ao seu
lado, desejando sua recuperação e participando do seu tratamento. É possível
supor que esses aspectos contribuíram para a adesão ao tratamento. Sempre
colaborou com a equipe que o tratava, mas não obteve uma troca positiva em
todas as instituições em que foi atendido. Percebeu logo uma diferença no
atendimento ao chegar ao HUAP e enfatiza o toque do médico ao examiná-lo.
Aqui fica evidenciada a percepção pelo paciente da diferença de qualidade dos
vínculos.
Estas questões das relações profissionais nos colocam diante do
fenômeno estudado na psicanálise, foco dessa pesquisa, que é a transferência.
51
A transferência é um fenômeno que está presente em todas as relações onde o
amor se evidencia. Na teoria psicanalítica ela é um conceito que tem como
suporte um tipo de amor, denominado por Freud como o amor de transferência.
Este diz respeito ao amor, ou seja, a demanda de ser amado que vem se
articular ao suposto saber de diferentes profissionais.
Podemos lançar como hipótese que o investimento do usuário em seu
tratamento ao encontrar uma equipe profissional que desejava efetivamente
tratá-lo, fortaleceu sua busca por tratamento, efetivando-se assim os efeitos do
fenômeno da transferência. Provavelmente estes profissionais ocuparam o
lugar na série materna, ou seja, os profissionais foram colocados pelo usuário
no lugar daquela mãe que tanto queria seu tratamento e nunca o abandonou.
Alguns pontos podem ser evidenciados como manifestações da
transferência em jogo: o usuário mesmo exausto em sua busca por tratamento
percebe que agora está sendo cuidado devidamente; colabora com todos os
procedimentos sem questionamentos; segundo seus próprios relatos sabe que
está em “boas mãos agora”, que será cuidado e obterá uma qualidade mínima
de vida.
2° Caso Clínico: Usuária de 28 anos, portadora do vírus da AIDS há oito anos,
sem adesão regular. Foi trazida por sua irmã e internada com sífilis,
apresentando lesões de pele no corpo todo. Descobriu ser soropositiva durante
o pré- natal do seu primeiro filho
Sem moradia fixa, muitas vezes permanecia perambulando pelas ruas e
usuária de drogas. Sua família era composta de mãe e dois irmãos. Recebia
visitas regularmente de todos. Sua irmã havia contatado uma instituição
evangélica a fim de interná-la para recuperação de drogas. Mantinha a
esperança que ela um dia iria perceber que todo o investimento seria para o
seu bem. Esta relatou que nunca puderam contar com a mãe por esta sempre
alegar não querer envolvimento e lhe faltar tempo, havendo uma evidência
explícita da ausência de amor pela mãe.
Morou com a sua mãe até 12 anos de idade. Esta a colocava nas ruas
para pedir dinheiro enquanto bebia diariamente. Aos 12 anos seu pai a pegou
para criá-la junto com seu irmão. Aos 18 anos ele faleceu com problemas
cardíacos em seus braços. Referia-se ao pai com carinho e dizia que sua mãe
52
não o valorizou como merecia e que o problema estava em sua mãe. Começou
então a usar drogas e foi estuprada por um traficante, engravidando de seu
primeiro filho. Este foi doado para uma família que tinha contato. Tem notícias
dele até hoje através de seu irmão.
Aderiu ao tratamento proposto para mães soropositivas a fim de evitar a
transmissão vertical, mas abandonou tudo após o nascimento. Informou ter
matado o pai desse filho, após este brigar com o bando de traficantes. Relatou
com alguns detalhes, que logo após esse episódio, atirou nele para matar.
Sentiu-se vingada e aliviada com essa atitude.
Engravidou novamente de um homem mais velho, também usuário de
drogas. Hoje esse filho tem dois anos e se encontra abrigado no Lar da Criança
aguardando adoção. Através de contato com essa instituição, fomos
informados que ela havia sido destituída do poder familiar e teve a suspensão
da guarda do filho, pois vivia com ele nas ruas, drogada e muitas vezes em
meio ao tiroteio. Certa vez escapou de morrer por ter colocado seu filho na sua
frente, servindo como escudo. O juiz havia lhe dado tempo de recuperar-se por
duas vezes, mas nenhuma mudança aconteceu. O pai abriu mão da
paternidade e autorizou a adoção em audiência em que ela não compareceu
por estar internada
Solicitou ao serviço social que fizesse contato com o Lar da Criança a
fim de justificar sua ausência na última audiência e saber notícias de seu filho.
Fomos informados que ela não teria nem mais o direito em visitá-lo, mas que
poderia recorrer através da Defensoria Pública em reaver seu filho
judicialmente, desde que estivesse reabilitada do vício das drogas.
Mostrava-se irônica e agressiva com todos da equipe da enfermaria de
Infectologia onde permaneceu internada. Apresentava-se muito preocupada
com as marcas que as lesões lhe deixariam e que poderia sofrer preconceito e
discriminação após a alta. Comentava e reclamava que seria difícil para ela
tratar das manchas após a alta. Havia recebido a orientação do médico
dermatologista que teria que usar bloqueador solar, contudo segundo a
usuária, não teria recursos financeiros para arcar com tais recomendações.
Algumas vezes, cancelou o jejum a fim de não realizar exames, alegando ter
demorado e de estar com fome. A equipe procurava fazê-la entender que sua
internação seria mais prolongada devido a esses problemas e que buscava a
53
sua compreensão e colaboração, buscando mostrar que se interessava por ela.
Ameaçou alguns profissionais, dizendo que lá fora ela poderia resolver
pessoalmente seus impasses com eles.
Aos poucos foi mudando sua postura frente ao tratamento oferecido e
seu relacionamento com os profissionais foi ficando mais brando. Passou a
aceitar os exames com maior compreensão e tolerância em participar do
tratamento. Procurava entender o que estava sendo feito e o que estava
programado para seu tratamento. Articulamos sua vaga em instituição de
recuperação de usuários de drogas a seu pedido. Recebeu alta médica, porém
permaneceu ainda internada aguardando o dia da liberação da vaga, uma vez
que ela corria o risco de morte em comunidade vizinha da casa de sua irmã.
Seria encaminhada para uma instituição que recorreria judicialmente para
reaver seu filho, declarando que ela estava em recuperação e assim teria uma
maior credibilidade.
Solicitou iniciar a terapia antiretroviral e intencionava dar continuidade,
pois sabia ter uma maior possibilidade de manter a sua saúde através do
tratamento contínuo. Sua família (mãe e irmã) compareceu no dia de sua alta
para se despedirem, pois ela iria passar um período de três meses internada
em recuperação. Levou medicação para seu tratamento com antiretrovirais e
ganhou da equipe dois frascos de bloqueador solar. Agradeceu emocionada a
toda a equipe e prometeu voltar para continuar seu tratamento e visitar-nos.
Notamos uma importante mudança de comportamento da usuária frente
ao tratamento oferecido durante a internação. Remete-nos analisar, à luz do
fenômeno da transferência, que a adesão pode se relacionar à habilidade dos
profissionais de saúde de reconhecerem o processo transferencial, inerente a
todas as relações humanas e que este poderá ser usado como estratégia para
uma melhor resposta à adesão. Através do olhar diferenciado e do atendimento
da equipe à usuária, possibilitou-se uma mudança de comportamento e uma
nova postura frente à sua doença. Isto fica claro quando a usuária solicita
tratamento em uma clínica de recuperação, quando se compromete em aderir
ao tratamento e quando verbaliza que irá retornar para se tratar e visitar a
equipe que a cuidou.
54
3° Caso Clínico: Usuário com 45 anos descobriu ser soropositivo há quinze
anos, após uma internação em hospital conveniado da empresa em que
trabalhava.
Sua família era composta por mãe, pai e um irmão (42 anos). Referencia
sua mãe como uma lutadora, compreensiva, mas sofredora e cercada de
problemas familiares.
Contou-nos que demorou dois dias para que conseguisse entender o
que estava acontecendo. Chorou muito durante esse tempo e ressaltou o apoio
que recebeu de uma enfermeira que não saiu de seu lado, pois não poderia
passar essa notícia para sua mãe, já com tantos problemas. Conseguiu repartir
com seu irmão esse momento de angústia. Percebeu que seus sonhos
terminariam e que teria que conviver com uma doença cercada de preconceitos
e discriminação, ainda sem cura e de difícil tratamento.
Relatou ter sido internado dezoito vezes e houve várias trocas de
remédios devido aos efeitos colaterais causados. Cada vez que reanimava, se
reerguia, voltava a ficar doente. Pensou em suicídio pelo menos duas vezes e
desistiu, por faltar-lhe coragem e por sua mãe, que teria mais um sofrimento.
Lembrava o que havia aprendido no catecismo: “Deus dá a vida e só ele a tira”.
Dizia que estava cansado, infeliz e revoltado. Deixar o tratamento seria
uma maneira de morrer naturalmente, sem precisar se matar e que sua mãe
sofreria menos. Comentou que sua aparência de forte, decidido, era só
carcaça. Falava de suas dores e decepções, pois havia perdido muitos amigos
que viraram seus inimigos. O peso dessa dor era tão grande que a morte seria
mais suave e mais leve. Falou da dificuldade em mexer em suas feridas e que
havia decidido morrer e não mais sonhar, vivendo o presente.
Ressaltou a importância do seu bom relacionamento como seu médico,
da maneira com foi acolhido e escutado toda vez que precisou, mas solicitou
que repassasse para ele toda nossa conversa, poupando-o de mais um
desgaste. Retornou para atendimentos subsequentes para conversarmos, mas
não compareceu às consultas e exames com a regularidade esperada.
Comentou certa vez, que desde que decidiu não mais sonhar e enfrentar a sua
escolha, não havia mais precisado ser internado.
Os atendimentos ao usuário ofereciam uma escuta às suas questões e
acima de tudo respeitavam a sua escolha em não aderir ao tratamento
55
oferecido. A partir daí, criou-se um vínculo de confiança onde o usuário se
sentia à vontade de expressar seus sentimentos e assumir a sua decisão em
não se tratar.
Retomando o conceito de aderência para a área de saúde, segundo
Ministério de Saúde (2007), que considera que a adesão vai além do
comportamento adequado em tomar os remédios e seguir as prescrições, mas
que também faz parte de um processo de aceitação, integração, participação
nas decisões e implicações acerca do tratamento, devendo ser compartilhadas
e negociadas entre o usuário e o profissional. Nesse contexto, a psicanálise
poderá contribuir para um melhor entendimento quando interrogamos onde
está o sujeito do desejo, que muitas vezes prefere optar em não aderir ao
tratamento e ter a liberdade de escolha do que quer para a sua vida, podendo
ainda assim, continuar sendo apoiado e atendido pelo profissional de saúde.
Na continuidade do atendimento com o serviço social, ele informou que
havia resolvido se dar mais uma chance dizendo: “vamos ver se a vida não me
apronta de novo!”.
Percebe-se que foi através da transferência estabelecida com os
profissionais de saúde e o não abandono do cuidado, mesmo o usuário
relatando o seu desejo a não adesão, propôs-se a uma busca de cuidados
medicamentosos, já que os cuidados afetuosos ele já os tinha.
4° Caso Clínico: Usuário com 40 anos, sendo soropositivo há seis anos e
residindo com companheira há dez anos, também soropositiva. Foi internado
para tratamento de uma tuberculose.
Sua família era composta por esposa e quatro filhos.
Tomaram ciência de seus diagnósticos após exame de pré-natal de seu
penúltimo filho. No momento do resultado relatou que não acreditou, achou
“pesado demais” (sic). A partir daí, tratou-se irregularmente durante um ano.
Sua esposa tinha aderência regular ao tratamento. Seu último filho de um ano
e meio era soronegativo (em acompanhamento). Seu primeiro médico fez
várias tentativas para que ele se tratasse satisfatoriamente, mas justificou que
o preconceito dos colegas de trabalho, a reação medicamentosa, farras, vício
com álcool e o fato de não poder faltar ao trabalho, eram impedimentos para a
56
sua adesão. Seu médico chegou a trocar a medicação acarretando a sua
melhora. Este buscava conversar e incentivá-lo durante todo o tempo.
Quanto às internações, informou que foram todas muito ruins. Ressaltou
que faltavam recursos e atenção por parte dos profissionais da equipe. Muitas
vezes ficou na maca nos corredores. Foi então transferido para o HUAP, local
segundo ele, deve a sua vida. Não pensa mais em ficar doente e precisar
passar por tudo de novo, passando a reconhecer que se aderir ao tratamento
provavelmente não ficará doente. Passou a compreender a importância da sua
família, de sua fé (começou a frequentar a igreja), e de seu médico que tanto
lhe incentivou, em todo o processo de seu tratamento.
Este relato, ratifica o modelo de cuidado oferecido onde se valoriza,
potencializa e possibilita a relação do usuário com quem o cuida, podendo
desta forma, favorecer a adesão ao tratamento, onde o fenômeno da
transferência será um facilitador nesse processo.
A transferência se presentifica neste caso com a pessoa do médico, que
mesmo com toda resistência, que acompanha a transferência, houve a adesão
do usuário ao tratamento, que posteriormente ocorre devido a essa relação de
confiança ter sido estabelecida.
5° Caso Clínico: Usuária com 59 anos; viúva, sendo soropositiva há dois anos.
Sua família era composta por quatro filhos e dois netos.
Recebeu o diagnóstico através de exames pré- operatórios para
realização de cirurgia de hérnia. Percebeu que os médicos envolvidos no seu
tratamento não revelavam algo de terrível. Após a revelação de que era uma
nova portadora do vírus da AIDS, veio à ordem: “você tem que tomar os
remédios”!
Não aceitou, pois não tinha nenhum sintoma. Foi encaminhada
para o HUAP e passou a ser acompanhada por outro médico que através de
maiores esclarecimentos sobre a necessidade de começar o tratamento e
adquirir confiança pelo médico, passou a aceitar e iniciar os antiretrovirais. Sua
família participou de todo esse processo e continuou lhe apoiando
Relatou que foi uma benção e que sentia ter mergulhado dentro de uma
água cristalina. Tudo foi esclarecido sobre a necessidade dos remédios, com
delicadeza e que não a deixou perturbada como antes. Diz: “Deus no céu e ele
na terra!”.
57
Ao ser acometida por uma notícia ruim, a usuária se desestabilizou,
assim como qualquer pessoa, mas ao receber os devidos esclarecimentos
sobre a necessidade da medicação, a possibilidade de adesão se potencializa
e ocorre. Neste processo de esclarecimentos, de cuidados, se presentifica a
transferência, ela se encontra em todas as relações, sendo fundamental para a
adesão ao tratamento.
6° Caso Clínico: Usuária com 69 anos, viúva, sendo soropositiva há oito anos.
Possuía dois filhos casados que lhe apoiavam, principalmente após ter
ficado viúva.
Relatou que no início de seu tratamento, apresentou muitas dificuldades
para ingerir os comprimidos que lhe causavam efeitos colaterais. Atribuiu à
equipe profissional e especialmente à sua médica, toda a evolução positiva no
seu tratamento. A relação com carinho, liberdade de expressões e opiniões
sobre o seu tratamento e cuidado, sempre estiveram presentes em busca da
solução dos problemas que surgiam. Estabeleceram-se duas fases no seu
tratamento, antes e depois do vínculo criado com o profissional que lhe atendia
com muito afeto e referenciou como uma relação de respeito, amizade e
carinho, como de uma mãe para com seu filho. Ao longo desse tempo de
convívio funcionou como um suporte para a sua vida e todo o desenrolar de
seu tratamento.
Por vezes o usuário vê na figura do médico uma figura materna, paterna,
familiar, o que pode proporcionar uma maior interação entre ambos. Neste
caso, isto ocorreu e resultou em uma adesão significativa para o tratamento. O
fenômeno da transferência foi estabelecido entre a usuária e a médica que lhe
acompanhava ao longo do tratamento e o vínculo foi se fortalecendo,
possibilitando assim uma melhora na qualidade de vida da mesma.
7° Caso Clínico: Usuário de 55 anos, com diagnóstico em 2004 obtido em um
laboratório particular e encaminhado para tratamento no PAM em seu
município.
Residia sozinho após quatro casamentos, com quatorze filhos (seis
vivos). Possuía seis irmãos, mas nenhum o apoiava, sendo vítima da
discriminação pela própria família, fato que lhe entristecia deveras.
58
Relatou que a princípio, foi bem atendido pela assistente social e pela
médica de maneira satisfatória. Com o passar do tempo, percebeu que
demorava em ser atendido nas consultas e exames e que já não lhe ofereciam
a escuta para solucionar seus problemas. Parou o tratamento por não acreditar
que estava com o vírus uma vez que não tinha doença.
Permaneceu sem tratamento durante dois anos até que adoeceu e
necessitou de internação. Passou vinte dias em outro hospital, até ser
transferido para o HUAP, quase morto, segundo ele. O medo de morrer o fez
ficar apavorado e pensava somente em poder reverter tudo e ter outra chance.
O cuidado oferecido pela equipe interprofissional foi valioso nesse momento,
pois tinha rejeição à medicação (vômitos). Aos poucos o tratamento correto
com antiretrovirais foi proporcionando a sua melhora física e emocional.
Percebeu a importância do seu engajamento no processo de tratamento junto à
equipe interprofissional que o acolheu e revelou sua disposição em dar
continuidade.
O usuário ao perceber o investimento da equipe profissional em seu
tratamento, se sentiu cuidado e a transferência foi ocorrendo ao longo desse
processo e a adesão ao tratamento se presentificou.
A transferência poderá se apresentar em qualquer relação profissional,
podendo possibilitar outra escuta e um novo olhar para as demandas trazidas
durante o tratamento, facilitando ou dificultando uma maior aproximação entre
o usuário e o profissional. Cabe ressaltar que não basta haver cuidado,
amizade, atenção, carinho e confiança para que a transferência se estabeleça
em qualquer lugar e com qualquer pessoa, há algo fundamental na constituição
da transferência que pertence ao campo do paciente em questão. O
reconhecimento deste fenômeno pelos profissionais de saúde poderá abrir um
canal de escuta diferenciada onde a verificação da possibilidade dela existir
fará toda a diferença no atendimento, mas não necessariamente provocará a
transferência. O analista pode favorecer o estabelecimento da transferência,
mas esta poderá acontecer ou não, produzindo efeitos para o bem ou para o
mal, na repetição de suas experiências amorosas e eróticas.
A adesão poderá ser trabalhada de diferentes maneiras pelas várias
especialidades profissionais, visando uma melhor qualidade de vida ao usuário,
onde a valorização da escuta no atendimento é uma tática a ser investida,
59
tendo como estratégia a transferência. Este conceito trabalhado pela
psicanálise, quando reconhecido pelo profissional, poderá contribuir para essa
questão tão complexa- a adesão ao tratamento- vivenciada nos atendimentos
nas unidades de saúde.
Constata-se uma movimentação da transferência, ou seja, uma dinâmica
da transferência, podendo esta funcionar como motor ou obstáculo em
diferentes tratamentos na área de saúde. Considerar a presença do fenômeno
da transferência e verificar a possibilidade de sua existência, propiciando
condições para que ela funcione de modo a não constituir um obstáculo aos
tratamentos, é a conclusão que podemos extrair dos casos clínicos relatados
neste capítulo 4.·
60
5. CONCLUSÕES
Passadas três décadas do surgimento dos primeiros casos de AIDS no
Brasil, vivemos hoje um quadro bem distinto, graças ao surgimento da terapia
antiretroviral distribuída através do Ministério de Saúde e da disponibilidade
aos modernos testes de carga viral, como método de prevenção clínica e de
orientação terapêutica aos portadores de HIV/AIDS. Muito se falou durante
esse tempo da criação da vacina contra AIDS, mas o uso de preservativo ainda
hoje, é o método mais eficaz.
A política governamental adotada pelo Brasil, face à epidemia de AIDS,
demonstrou através de medidas como a oferta de recursos para o tratamento,
que é possível reverter um quadro epidêmico, salvar vidas, proporcionar uma
melhor qualidade de vida e até trazer economia, na medida em que a adesão
ao tratamento traz consequentemente uma diminuição do número de
internações por possíveis surgimentos de doenças oportunistas.
Apesar dos avanços, a AIDS no Brasil, ainda enfrenta algumas
dificuldades. Fatores de risco relacionados ao tratamento como a percepção
sobre a própria saúde, aceitação do diagnóstico, renda, religião, situação
familiar, a ocorrência de sintomas e o grau de gravidade, a qualidade dos
serviços de saúde, o acesso a esses serviços, são considerados problemas a
serem enfrentados e trabalhados pelo usuário acometido pelo HIV/AIDS junto à
equipe que o assiste.
A adesão dos usuários com HIV/AIDS à terapia antiretroviral é um
desafio enfrentado diariamente por profissionais de saúde, que buscam junto a
esses usuários, a optarem pela saúde, utilizando estratégias e procurando
adequar cada vez mais as prescrições aos hábitos de vida de cada um.
Consideremos então, que é preciso anteriormente, que tenha havido a adesão
do profissional, para que essa questão tão complexa seja trabalhada junto aos
usuários. Adesão ao tratamento é um processo de quem cuida e quem é
cuidado. O objetivo é trazer a participação ativa de seu acompanhamento
médico e dos cuidados com a sua saúde, mantendo-o a par do objetivo do seu
tratamento. Infelizmente, porém, há os que não aderem por mais que haja a
oferta de profissionais e remédios, trazendo um sentimento de frustração à
equipe, que procura entender que todos tem o livre arbítrio sobre suas vidas e
que tem o direito a decidirem se querem ou não se tratar.
61
Quando as doenças são denominadas crônicas, de longa duração, o
equilíbrio está em viver e conviver autonomamente com essa condição, pois
não há cura com remédios. O acompanhamento ao tratamento ao portador de
uma doença crônica deve favorecer adaptação a essa nova condição,
oferecendo- lhes suporte que possibilitará o enfrentamento das dificuldades e
melhor engajamento e compromisso no cuidado com a sua saúde e com uma
vida independente, autônoma em busca do equilíbrio da saúde e de sua
manutenção.
Diante da complexidade, intensidade e tensão das questões a serem
trabalhadas junto às pessoas vivendo com HIV/AIDS e seu círculo social, o
tratamento delas não poderia se restringir, apenas, à consulta médica e ao
recebimento das medicações. A contribuição da psicanálise na leitura dos
problemas da adesão ao tratamento, nos leva a uma reflexão das dificuldades
e impasses dos usuários, não apenas gerados por fatores externos trazidos por
um cotidiano nas unidades de saúde que apresentam situações conflituosas e
tensas, mas também à subjetividade dos protagonistas desse processo.
Assim, tanto os profissionais de saúde quanto os usuários estão
presentes com toda a bagagem que lhes é própria e que será posta à prova
nas relações nas unidades de saúde. Levar em conta a subjetividade no
processo de adesão ao tratamento impõe rever a concepção linear desse
conceito de adesão, segundo o qual bastaria se oferecer remédios e
profissionais, para obter a resposta esperada. O que a psicanálise nos alerta
sobre esse ponto é a presença de fenômenos subjetivos, dentre os quais se
destaca a transferência, conceito trabalhado nesta pesquisa.
O profissional de saúde necessita ter a adesão como foco a ser
trabalhado em todo momento, principalmente por ser uma patologia que ainda
traz em si muito preconceito e estigma e estar intimamente ligada à
sexualidade, ficando o portador de HIV/AIDS muito fragilizado em suas
relações sociais e familiares. Essa linha tênue entre adesão e não adesão deve
ser olhada de forma subjetiva e acolhedora a todo instante, pois muitas vezes
se expressa nas entrelinhas do discurso.
Para a construção dessa relação diária em prol da melhoria da saúde,
de uma melhor qualidade de vida e o incentivo ao autocuidado, profissionais da
saúde, necessitam reconhecer a importância da capacidade de ouvir o outro,
62
respeitando
as
suas
decisões
às
questões
surgidas,
interagindo
e
compartilhando de modo a encaminhar o tratamento. Disponibilizar o
medicamento não basta se os serviços não se imbuírem da idéia de que o
usuário é um sujeito diverso, a partir da sua singularidade e respeitando as
dificuldades específicas de cada um.
A adesão ao tratamento está associada à forma de pensar, agir e
enfrentar a vida, mesmo antes do diagnóstico do HIV. Conhecer melhor a AIDS
através da oferta de informações ajudará o processo de adesão. Enfrentar uma
doença ainda sem cura, o medo de adoecer, morrer, ser discriminado e de
vislumbrar a impossibilidade de encontrar aliados capazes de escutar, respeitar
e dividir esse momento faz parte desse cenário. Ao vivenciar o processo de
adoecimento e de sua inserção no mundo do hospital, o usuário se percebe em
outro prisma, o da doença, e a partir daí, a relação com o outro que cuida,
requer uma dimensão de totalidade dessa nova situação que passa a fazer
parte da sua vida. Nesse encontro há que se considerarem suas
potencialidades e limitações, a singularidade de cada um, respeitando os
horizontes traçados à busca do estar melhor que poderá não ser a adesão ao
tratamento propriamente dito.
Ao lado dos fatores de natureza biomédica que influenciam os níveis de
adesão, aspectos psicossociais suscitam o nosso interesse como profissionais
de saúde. Leva-nos a interrogar qual o olhar desse profissional melhor acolhe a
singularidade desses usuários a fim levá-los a efetivação do cuidado.
Embora muito já tenha sido dito a respeito da transferência, privilegiei
este tema por considerá-lo um dos pontos centrais da prática analítica. Acredito
que partindo de princípios que veem sendo elaborados desde Freud ao longo
deste século, seja possível acrescentar algo novo, tomando como referência
essa experiência vivida no atendimento aos portadores de HIV/AIDS durante
vários anos.
No começo da Psicanálise está o amor. No cenário inaugural, Breuer e
sua paciente Anna O. Nesta trama amorosa, Breuer encontra e deixa escapar a
chave que desvendaria os segredos da transferência. Freud a recupera e
transforma o amor no mais forte instrumento da cura psicanalítica. A
transferência atravessa também aquilo que oferece sustentação ao lugar de
63
permanente formação que são os laços sociais. Portanto, podemos dizer que
sem transferência, não há psicanálise.
A transferência, em qualquer relação, designa um laço de amor que se
constrói sobre a base da confiança, admiração e suposição de saber àquele
que o atende. O profissional de saúde, nesse processo, é o intermediário do
acesso do usuário ao tratamento. Assim, instalada a transferência, o
profissional deve ser capaz de identificá-la, para que esse amor ao saber não
seja confundido com o amor à pessoa do profissional e, por outro lado, para
que as características da pessoa do profissional, quando não favoráveis ao
amor, não gerem aversão ao tratamento. Em alguns casos, a transferência não
chega a se constituir. Surgem impasses que se impõem ao início do
tratamento, fenômenos esses que nos interessaram nesta pesquisa sobre
adesão ao tratamento.
Afirma Lacan (1964) que a transferência é aquilo que se manifesta na
experiência, a atualização da realidade do inconsciente, assim como Freud
(1912) expõe que a transferência é aquilo que, em uma análise, tornam
presentes os impulsos recalcados no inconsciente.
Através dessas afirmações não há dúvidas quanto à função necessária
da transferência. Neste sentido, ela é um veículo através do qual o
inconsciente se manifesta, veículo que coloca em ato, no agora (atual), o
inconsciente, tornando presente o que estaria ausente.
Podemos entender a fenômeno da transferência como um mecanismo
espontâneo, pois como diz Freud (1912), há precondições para enamorar-se
que o sujeito estabelece. São as ideias libidinais infantis e por não serem
inteiramente capazes de mudar diante de experiências recentes, dirigem-se a
cada nova pessoa que se aproxima, seguindo um clichê e inclui o outro numa
de suas séries psíquicas. O mecanismo da transferência remonta, então, ao
estado de prontidão da libido que conservou as imagos infantis; referindo-se ao
método próprio de se conduzir na vida amorosa, ao modo como constitui seus
objetos.
Destaca-se aqui a importância daquele que ocupa este lugar. Tem o
dever de suportar a transferência, seja no sentido de consentir em recebê-la
numa imagem daquilo que o paciente lhe confere, seja no sentido de sustentar
64
a questão do que o sujeito traz. Freud (1915) ensina sobre o caminho a ser
seguido pelo analista, o qual não existe como modelo na vida real:
Ele tem de tomar cuidado para não afastar-se do amor
transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a
paciente, mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe
qualquer retribuição. Deve manter um firme domínio do amor
transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como a situação
que se atravessar no tratamento e remontar às suas origens
inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se acha
muito profundamente oculto na vida erótica da paciente para a
sua consciência e, portanto, para debaixo de seu controle
(Freud [1915] 1969, p. 216).
Reportando esse fenômeno ao atendimento nas unidades de saúde,
muitas vezes o médico reconhece que esgotou todas as possibilidades com um
usuário e o referencia para outro profissional na tentativa de obter melhor
resultado na adesão. Chegam a comentar que algumas parcerias dão mais
certo que outras, assim como nos relacionamentos. Admitem que algumas
vezes, não seria o caso de desistirem daquele usuário, mas de perceberem
que algumas relações nem sempre são satisfatórias para a eficácia do
tratamento. Por isso a importância do trabalho em equipe interdisciplinar, de
modo que o usuário perceba que poderá contar com todos, caso necessite. Há
momentos em que se questionam, demonstrando um forte sentimento de
tristeza e impotência: por que não deu certo?
Embora reconhecendo que a transferência seja de fundamental
importância para a ocorrência do processo de adesão, muitas vezes, o
profissional encontrará dificuldades para que esse processo se estabeleça,
pois irão se deparar com a recusa de alguns usuários que se veem
acompanhados de situações adversas e não aderem ao tratamento.
Freud (1912) apresenta essa questão como comum no fenômeno da
transferência:
Pode-se levantar ainda a questão de saber por que os
fenômenos as resistência da transferência só aparecem na
psicanálise e não em formas indiferentes de tratamento (em
instituições, por exemplo). A resposta é que eles também se
65
apresentam nestas
outras situações, mas tem de ser
identificadas como tal (Freud [1912] 1969, p.141).
Retomando o conceito de estratégia: “a arte militar de planejar e
executar movimentos e operações de tropas, navios, e/ou aviões, visando a
alcançar ou manter posições relativas e potenciais bélicos favoráveis a futuras
ações
táticas
sobre
determinados
objetivos”,
podemos
relacionar
a
transferência como sendo a estratégia por parte do usuário para chegar ao seu
objetivo e a tática será um recurso a ser utilizado para se cumprir a meta
indicada pela transferência. Na análise, o desejo do analista é levar o sujeito à
análise e direcionar o tratamento, necessitando do estabelecimento de um
compromisso entre ambos. Como na análise, para se trabalhar a adesão,
também é importante o estabelecimento desse compromisso entre o usuário e
o profissional de saúde.
A transferência acontece fora e dentro da análise, em diferentes
experiências profissionais. Podemos associar tal fenômeno à relação que
poderá ser estabelecida na prática de saúde entre o profissional que
representa o saber da saúde e o usuário.
Cita Lacan (1964):
Mesmo se devemos considerar a transferência como um
produto da situação analítica, podemos dizer que esta situação
não poderia criar o fenômeno todo, e que, para produzi-lo, é
preciso que haja, fora dela, possibilidades já presentes às
quais ela dará composição, talvez única (Lacan, 1964, p.125).
Acrescenta ainda:
Isto não exclui de modo algum, onde não haja analista no
horizonte, que ali possa haver, propriamente, efeitos de
transferência exatamente estruturáveis como o jogo da
transferência na análise. Simplesmente, a análise, ao descobrilos, permitirá lhes dar um modelo experimental que não será de
modo
algum
forçosamente
diferente
do
modelo
que
chamaremos de natural. De modo que fazer emergir a
transferência na análise, onde ela encontra seus fundamentos
estruturais, pode muito bem ser o único modo de introduzir a
universalidade da aplicação desse conceito. (Lacan, 1964,
p.125).
66
A identificação, o reconhecimento e a valorização do fenômeno da
transferência nos atendimentos entre os usuários e os profissionais de saúde,
são de suma importância na busca de uma melhor relação durante todo o
processo de tratamento. Considerar o inconsciente, reconhecê-lo e identificar
seus aspectos importantes, levará a uma escuta diferenciada nas diferentes
profissões em que esse fenômeno acontece.
Adesão ao tratamento de HIV/AIDS seria então a capacidade de
reinventar-se, ou seja, de se organizar enquanto sujeito, e de reorganizar a sua
realidade psíquica. Na prática, verificamos que, embora a adesão tenha a meta
de salvar o corpo físico, ela pode destruir a vida enquanto potência,
enfraquecida pelo sentimento de tristeza gerado pela não aceitação da doença.
A transferência poderá ser usada pelo profissional de saúde com o foco
na adesão ao tratamento, como uma espécie de estratégia, na medida em que
forneça uma escuta adequada do usuário. O cuidado visto como uma
minimização da dor do outro, procurando confortá-lo e diminuir a ansiedade.
Mostrar, que ele é o personagem principal da sua história e que isso acarretará
a sua escolha em cuidar ou não da sua própria vida e de ser o sujeito da sua
saúde.
Considero que os objetivos propostos nesta pesquisa foram atingidos,
sobretudo ao contribuir para a área de saúde, a partir da sinalização da
relevância do fenômeno da transferência para os profissionais que trabalham
no atendimento aos usuários com HIV/AIDS, na busca de uma adesão ao
tratamento, observando, no entanto, o desejo de cada um.
67
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15/04/2011
70
APÊNDICE
Produto da Dissertação
O produto da presente dissertação será uma Palestra.
Tema: Uma contribuição da psicanálise através do conceito da
transferência como estratégia à adesão ao tratamento HIV/AIDS.
OBJETIVO GERAL:
Trazer contribuições, através do conceito de transferência à luz da
psicanálise, para os profissionais de saúde, na construção da idéia do cuidado
aos usuários portadores de HIV/AIDS, apontando e discutindo recursos e/ou
intervenções à questão da adesão ao tratamento, respeitando a singularidade
dos mesmos.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS:
x
Contribuir para um pensar sobre o atendimento feito nas unidades
de saúde.
x
Desenvolver um pensamento sobre os obstáculos existentes na
relação profissional de saúde e usuário portador do HIV/AIDS, na
compreensão dos entraves para a efetivação do cuidado e
especificamente à adesão ao tratamento.
x
Contribuir para um pensar crítico acerca da complexidade das
práticas de cuidado junto a usuários com HIV/AIDS, realizados na
unidade do Serviço de Infectologia do HUAP/UFF.
x
Apresentar o conceito de transferência da psicanálise à luz de
Sigmund Freud e Jacques Lacan.
x
Enfatizar o fenômeno da transferência como na relação do
profissional de saúde e usuário.
x
Aproximar teoria e prática.
JUSTIFICATIVA:
Investir na adesão é provavelmente a atitude mais importante que a
equipe de saúde deve visar para esses usuários. Adesão à vida, porque vai
além do uso das medicações, modificando seus cotidianos e podendo gerar
71
problemas de varias ordens. Cresce a demanda da necessidade do
acompanhamento clínico para trabalhar a questão da adesão.
A prática em atendimentos individuais na enfermaria de Infectologia do
HUAP a alguns usuários e familiares recentemente sabedores de seus
diagnósticos demonstram que os que recebem suporte desde o início e
estabelecem um vínculo com um profissional da equipe, aceitam melhor e
enfrentam o tratamento com menor dificuldade, já os que são encaminhados
pelos médicos da equipe, com queixas de abandono do tratamento, na sua
maioria não tiveram a mesma oportunidade de atendimento.
Devemos considerar a subjetividade de cada um que de acordo com as
suas vivências, conhecimento, crenças e valores, que apresenta um
comportamento
próprio
ao
“sentir-se
doente”.
Torna-se
importante
o
profissional ouvir esse usuário a fim de contribuir no tratamento, oferecendolhes suporte que possibilitará o enfrentamento das dificuldades e melhor
engajamento e compromisso no cuidado com a sua saúde e com uma vida
independente, autônoma.
A adesão ao tratamento será através de uma composição e não como
imposição, onde a psicanálise através da transferência poderá acolher toda a
singularidade do sujeito implicado, necessário ao processo na busca dos
determinantes inconscientes expressos pela linguagem que irão favorecer a
adesão.
Torna-se necessário então construir espaços coletivos que favoreçam a
participação da equipe de saúde, estimulando discussões e troca de
experiências referentes ao cotidiano vivenciado, o enfrentamento do tratamento
e suas dificuldades na adesão.
72
PÚBLICO ALVO:
x
Profissionais de saúde da equipe interprofissional que atendem aos
portadores de HIV/AIDS na enfermaria de Infectologia do HUAP;
x
Profissionais de saúde convidados de outros setores do HUAP,
envolvidos nesse atendimento.
CONTEÚDO:
x
O conceito de adesão segundo Ministério de Saúde;
x
O conceito de transferência à luz da psicanálise (Freud e Lacan);
x
A importância da adesão ao tratamento dos portadores de HIV/AIDS;
x
Apresentação e discussão de um caso clínico;
x
A transferência como estratégia na adesão ao tratamento.
METODOLOGIA:
Palestra a ser realizada na enfermaria de Infectologia do HUAP, através
de exposição oral e recurso audiovisual.
73
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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texto estabelecido por Jacques- Alain Miller; [versão brasileira de Dulce Duque
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Jacques Lacan: texto estabelecido por Jacques- Alain Miller; [versão brasileira
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_________J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, 1964/ Jacques Lacan; texto estabelecido por Jacques- Alain
Miller; tradução M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
MAURANO, D. A Transferência. Passo a Passo 72. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2006.
MILLER, J. Percurso de Lacan: uma introdução (1984). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor,1994.
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Contribuições da psicanálise à questão da adesão ao