Volume I Lusofonia e (neo)colonialismo: Culturas e valores, identidades linguísticas e estudos pós-coloniais Manuel Carlos Silva et al. (orgs) Centro de Investigação em Ciências Sociais (ed) Instituto de Ciências Sociais Universidade do Minho Lusofonia e (neo)colonialismo: Culturas e valores, identidades linguísticas e estudos pós-coloniais Assim, essas músicas parecem sugerir que, no processo de adaptação do migrante rural à nova ordem econômica, a honra e a estima social assumem particular importância como fundamento do processo de convencimento e adequação aos novos tempos. Neste sentido, os boiadeiros das músicas aqui tratadas não desempenham somente o papel de “heróis da epopéia”, conforme diz a letra da música “Mágoas de Boiadeiro”. Mais do que personagens de narrativas que destacam seus grandes feitos, os boiadeiros, conforme sugerido pela perspectiva de análise de José de Souza Martins (MARTINS, 1975), representam a mediação de um processo de transformação social que não diz respeito somente aos boiadeiros, mas a toda a grande parcela da população que seguia para um estilo de vida urbano com um preparo profissional inadequado para desempenharem as novas funções do trabalho urbano. Não conseguindo, consequentemente, realizar sua humanidade plena era, portanto, necessária uma reformulação dos seus valores para reconquistar a dignidade, agora dentro das novas condições. E é justamente este o papel que essas modas de viola parecem desempenhar. Este, enfim, parece ser o sentido das canções de boiadeiro da dupla “Tião Carreiro e Pardinho” e o significado da sua versão dos “heróis da epopéia” ao minimizar a mágoa ao mesmo tempo em que procuram dar um sentido às transformações sociais, procurando encarar as transformações sociais como um movimento de continuidade em relação ao passado, tanto no que se refere aos perigos e desafios quanto às possibilidades de realização. 7. Referências Bibliográficas ADORNO, Theodor W. (1991). Textos escolhidos: Max Horkheimer, Theodor W. Adorno. São Paulo. Nova Cultural. CANDIDO, Antonio. (1995) Vários Escritos. 3a. ed. (Revista e Ampliada). São Paulo: Livraria Duas Cidades, p.249. CUNHA, Euclides da. (1957) Os Sertões. Rio de Janeiro. Ed. Francisco Alves. ELIAS, Norbert (1987). A Sociedade de Corte. Tradução de Ana Maria Alves. Portugal, Lisboa, Estampa. ELIAS, Norbert (1990). O Processo Civilizador, volume I. Tradução de Ruy Jungm. Rio de Janeiro, Editora Zahar. FAUSTINO, Jean Carlo (2007). O êxodo cantado: A música tradicional paulista como fonte para uma história oral. Oralidades, revista de História Oral da USP. Status: publicado (ano 1, volume 2, julho-dezembro de 2007) LEITE, Eudes Fernando. (2003) Marchas na história: comitivas e peões-boiadeiros no pantanal. Campo Grandes, MS. Ed. UFMS. MARTINS, José de Souza (1975). Música Sertaneja: a dissimulação na linguagem dos humilhados. In Capitalismo e Tradicionalismo. São Paulo. Livraria Pioneira Editora. WEBER, Max (2001). A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo, Editora Martins Claret. Produçom teatral, teatros e sociabilidade na Galiza na viragem do séc. XVIII para o XIX Lucia Montenegro Pico Universidade de Santiago de Compostela [email protected] Resumo: Dentro dum projecto mais abrangente a respeito do século XVIII na Galiza em que o nosso grupo de investigaçom se inclui, detectamos umha carência de trabalhos quanto à produçom teatral do século XVIII galego, assi como, mais especificamente, sobre a rede de espaços teatrais que se começava a articular no final deste século. Neste sentido, temos verificado a existência dumha actividade teatral ligada a teatros portáveis, em muitos casos administrados por companhias estrangeiras, como passo prévio à construçom, na segunda metade do XVIII, de teatros estáveis, assentados fundamentalmente em núcleos urbanos portuários, como o das cidades da Corunha e do Ferrol. Por outro lado, sentimos a necessidade de transcender o nível do estudo de campo, para desta forma definir como objecto de estudo o discurso historiográfico sobre o teatro em Galiza no século XVIII, a fim de detectar as causas que motivam e explicam a desatençom que a historiografia e a crítica galega demonstrou em relaçom a esta importante rede de produçom teatral. Assi, deparamos com que as histórias da literatura e do teatro galego, seguidoras dum modelo historiográfico de base nacional[ista], ao priorizarem aqueles repertórios que historicamente mais tenhem contribuído à construçom dumha identidade nacional –fundamentalmente, o elemento da língua-, defrontam-se 281 com sérios problemas à hora de encaixar a produçom teatral e literária veiculada noutras línguas distintas do galego (em latim, italiano, espanhol, etc.) no discurso historiográfico nacional. Portanto, o nosso objectivo nesta comunicaçom consiste em realizar um estudo de como funciona e como evoluciona o campo teatral na Galiza do XVIII, para posteriormente, numha dimensom analítica diferente, desvendar quais som as estratégias principais que adoptam as histórias do teatro galego na abordage historiográfica deste período. O objectivo inicial desta comunicaçom consistia no estudo dos produtos teatrais e das redes espectaculares que funcionavam na Galiza do século XVIII; no entanto, como resultado da revisom das obras historiográficas que tratam o assunto do teatro galego1 setecentista, percebemos como na maioria destas obras –devedoras dum modelo de historiografia nacional[ista]- transparecia umha tomada de posiçom, concretamente quanto à definiçom do que devia ser considerado «teatro galego», que afectava directamente a como foi estudado o campo teatral na Galiza do XVIII. Neste sentido, sem abandonar o objecto inicial do estudo -o funcionamento do sistema teatral no XVIII galego- pareceu-nos necessário levantar a questom de como foi contemplado o campo teatral e cultural na historiografia nacional galega, onde «teatro galego» num momento dado passa a significar «produçom teatral em língua galega», sendo consensualizado e desde este momento naturalizado o critério linguístico como principal factor definidor dum sistema literário nacional2. A presente comunicaçom segue umha linha de estudo sobre a Galiza do século XVIII iniciada polo grupo Galabra da Universidade de Santiago de Compostela, cuja pretensom metodológica reside na identificaçom e análise dos processos que caracterizam e condicionam o funcionamento do campo cultural setecentista assi como das ideias fabricadas em volta deste, que nutrírom e nutrem o imaginário actual da colectividade galega. Atenderemos aqui a estas duas dimensons de análise: a dimensom sincrónica -ocupada no estudo dos macrofactores que operam no campo teatral do XVIII (Vid.Even-Zohar, 1999)- ao lado da dimensom diacrónica -que se centra na análise das ideias construídas a respeito deste século, observando o influxo que estas tivérom nos modos de estudar esta época histórica. Assi, num primeiro momento basearemo-nos no estudo da produçom teatral existente no XVIII galego (dumha perspectiva sócio-literária, interessaremo-nos nos espaços e redes de difusom teatral), para num segundo momento centrarmos o foco de estudo no discurso historiográfico dispensado à produçom teatral setecentista na Galiza (manejando nesta revisom um corpus constituído fundamentalmente por histórias da literatura e do teatro galego). Umha radiografia da actividade teatral da Galiza da segunda metade do século XVIII mostra como se começa a activar umha rede de espectáculos teatrais, fundamentalmente operáticos, ubicados nos principais núcleos urbanos galegos da época, especificamente naquelas cidades costeiras e portuárias em que se concentrava o intercámbio comercial e industrial – ligado ao assentamento da administraçom civil e militar, como na Corunha e em Ferrol- ou bem a cidades tradicionalmente centrais, que funcionavam como sede da administraçom eclesiástica, como é o caso de Santiago de Compostela. Estas manifestaçons teatrais retrotraem-se a períodos anteriores ao século XVIII, em que eram instalados teatros portáveis, habilitados provisoriamente para o acolhimento de representaçons teatrais, quase sempre a cargo de companhias estrangeiras itinerantes, que traziam os seus espectáculos à cidade, na maioria das ocasions com motivo da celebraçom dalgum acontecimento extraordinário de carácter político. Contodo, será no século XVIII quando sejam construídos, com carácter permanente, os primeiros teatros públicos. A construçom destas casas de comédia será assumida economicamente na maior parte dos casos polas próprias companhias foráneas (Sánchez García, 2007: 83); o que nos permite inferir que o teatro, e mais especificamente a ópera, começava a constituir para estas agrupaçons umha actividade economicamente viável, o que era um indício da progressiva consolidaçom dum circuito teatral na Galiza. Confirma esta hipótese o facto de que estas agrupaçons (de procedência italiana, como a célebre companhia de Nicolà Setaro; ou espanhola, como a companhia de comédias de Antonia Iglesias ou a do actor Cañizares) chegárom a disputar entre si a conquista determinados lugares de representaçom especialmente estratégicos polos altos réditos económicos que podiam reportar, como aconteceu no caso da cidade da Corunha (Carreira, 1991). Mas a proposta de instalaçom dumha casa de ópera nom sempre será compreendida e aceite polos governos locais. A companhia de Nicolà Setaro encontrará obstáculos, ainda que de orige diversa, tanto na cidade de Santiago de Compostela como na da Corunha (Vid.Sánchez Garcia, 2007: 83) para instalar a sua companhia. Será na cidade de Ferrol onde finalmente esta companhia vai conquistar um espaço para a sua instalaçom e para a construçom dum teatro onde encenar as suas peças operáticas -nom por acaso esta casa da ópera será o primeiro teatro estável construído na Galiza, o teatro Settaro3, que se mantivo em activo até 1807, ano em que desapareceu por causa dum incêndio. Para além desta produçom operática vinculada a um espaço especificamente teatral, temos notícia da organizaçom de diferentes tipos de representaçons ligadas a um acontecimento festivo concreto, tanto religioso como profano. Dentro deste grupo encontram-se as peças dramáticas, fundamentalmente autos sacramentais, encenadas por confrarias e agrupaçons 1 Ao longo deste trabalho o uso que realizemos do sintagma «teatro galego» terá sempre o significado de ‘teatro que era produzido e circulava no espaço social galego’. Outras acepçons que tradicionalmente costuma empregar a historiografia galega para «teatro galego», tais como: a) ‘o teatro veiculado em língua galega’, b) ‘o teatro próprio da naçom galega’, c) ‘a produçom teatral do sistema teatral galego’, apresentam problemas metodológicos que esclareceremos ao longo desta comunicaçom. 2 O assunto da equiparaçom semántica entre os conceitos de «teatro galego» e «teatro escrito em língua galega» terá umha consequência directa na delimitaçom do corpus de estudo, de tal forma que os trabalhos historiográficos e críticos sobre teatro galego considerarám apenas aquela produçom veiculada em língua galega. Este assunto será abordado sinteticamente nesta comunicaçom, mas somos conscientes de que é um tema fulcral para entender o decorrer da história da literatura galega, e por isto mesmo precisa dum estudo mais profundo e demorado. 3 Para umha descriçom profusa da arquitectura e da biografia deste teatro, Vid. Juanjo de los Ríos, 1998: 100. 282 gremiais em muitas vilas galegas, com a finalidade de celebrarem festividades religiosas como o Corpus Christi, a Páscoa ou o padroeiro da confraria ou do grémio correspondente. Diferentes espaços institucionais da cidade de Santiago de Compostela também costumavam acolher este tipo de encenaçons: na Catedral eram representados autos e comédias, como também nos colégios pertencentes à Universidade, como o de Fonseca, ou no próprio Hospital Real de Santiago de Compostela (onde a celebraçom destes actos tinha como finalidade reunir financiamento económico para a gestom do mesmo). Toda esta actividade dramática, que circulava em paralelo à rede pública de teatros, adoptava um código linguístico ou outro em funçom de diferentes condicionantes (Vid. Filgueira Valverde, 1992: 402), tais como a funçom e finalidade do acto (o carácter mais ou menos formal e institucional do mesmo), a adscriçom social do público assistente (as classes populares fronte às elites) ou o próprio contexto espacial em que se celebrava (umha localizaçom urbana, vilega ou rural). De tal forma que ainda que o latim e o castelhano eram as línguas habitualmente empregues nestas encenaçons, existem documentos que confirmam a utilizaçom do galego em representaçons, predominantemente de carácter popular. Ao empreendermos um estado da questom a respeito do tratamento do teatro galego na historiografia literária galega, observamos que esta define como corpus unicamente este último tipo de produçom, isto é, aqueles produtos teatrais estritamente elaborados e representados em língua galega. A adopçom deste critério linguístico implica limitar o corpus do teatro galego a umha produçom fortemente reduzida4, que por sua vez condiciona a fabricaçom, por parte desta historiografia, dum discurso que pivota em volta da ideia força da escasseza e pobreza do teatro e da literatura galega desta altura. Esta visom entra em profunda contradicçom com a achegada desde outros campos da historiografia, tanto a historiografia geral, como mais especificamente a historiografia da música galega, que ao nom operarem com o critério linguístico, descrevem o último período do XVIII como o momento quando tem lugar a fundaçom das primeiras casas de ópera, umha época de eclosom do teatro na Galiza. Para entendermos melhor esta distinçom de critérios é preciso reparar em que a historiografia literária galega, elaborada historicamente por sectores afins ao galeguismo, é devedora dum modelo de historiografia nacional, que triunfa na Europa do XIX, e que se nutre do discurso político de construçom identitária nacional -em muitos casos até porque ambos os discursos compartilham os mesmos fabricadores de ideias5. Como diziamos, a adopçom deste critério motivará a fabricaçom, pola historiografia galega, dumha estampa de exiguidade e de deserto cultural no que respeita à história literária e cultural galega anterior ao XIX. Significativamente a historiografia literária do século XX para se referir a esta etapa literária acunhou a expressom metafórica «Séculos Escuros» que remete para umha ideia de obscuridade, de vazio cultural; estabelecendo, ao mesmo tempo, umha contraposiçom com o período literário imediatamente posterior, denominado expressivamente «Rexurdimento», que se caracteriza pola produçom literária –fundamentalmente poética- dum conjunto de produtores de finais do século XIX que restituem o galego como língua apta para a produçom literária culta -é por isto que esta etiqueta evoca a ideia de renascimento, entendido como recuperaçom cultural. O conceito de «Séculos Escuros» tivo muito sucesso na historiografia literária galega. Existe um consenso maioritário à hora de identificar o período que abrange os séculos XVI, XVII e XVIII como «Séculos Escuros», tanto desde o campo historiográfico como desde a crítica literária, até o ponto de que a maioria dos manuais escolares de literatura galega também reproduzírom esta ideia e incorporárom esta denominaçom. No entanto, este conceito é relativamente moderno, os seus primeiros usos remitem para o século XX, e de consultarmos trabalhos historiográficos anteriores, por exemplo do século XIX, deparamos com que nom existe unanimidade na caracterizaçom deste alargado período de tempo –cumpre nom esquecer que som três séculos os que encobre esta etiqueta- como decadente em termos culturais (assi num escrito de Manuel Murguia [1917: 164], o século XVIII é valorado como umha época de acordar cultural para Galiza). Por outro lado, este período da longa «decadencia» também foi explicado e justificado na historiografia galega através da ideia recorrente da imposiçom linguística -e por extensom, cultural- que exercia sobre a comunidade cultural galega o campo cultural espanhol, que aparece representado mediante o símbolo Castela/Espanha (este símbolo funciona em relaçom à Galiza como «referente de oposiçom», conceito achegado polo historiador da Galiza Justo Beramendi que será posteriormente aplicado ao campo cultural galego por Torres Feijó [2004: 442] que define com este conceito o «sistema do qual se pretende a emancipaçom e sobre o que se gera umha atitude de rechaço»). Mas a fidelidade da historiografia galega ao modelo de história nacional ainda se manifesta em mais um fenómeno, na procura da continuidade discursiva. As histórias nacionais da literatura interpretam a história dum ponto de vista fortemente discursivo que fai com que para a reconstruçom histórica adquirir legitimidade esta deve ser mostrada como umha narraçom que evidencie unidade e continuidade. A necessidade de preencher os vazios discursivos está vinculada directamente com a própria funçom identitária que a literatura adquire plenamente desde o século XIX. Esta, ao produzir e difundir imagens da própria comunidade nacional, funcionando como um espelho desta (ao mesmo tempo que fabrica a sua memória colectiva, numha relaçom de retroalimentaçom) precisa dumha apresentaçom coesa, sem fracturas. Esta exigência 4 Apenas conservamos na história literária galega testemunhos escritos desta produçom em galego pois ao estar vinculada a manifestaçons teatrais pontuais e efémeras (celebraçons, festividades religiosas, etc), e, principalmente, por serem peças destinadas a representaçons populares, raramente contavam com umha versom textual conservada. 5 O conceito de «idea makers» foi achegado polo teórico Itamar Even-Zohar (2000) com o objectivo de identificar conceptualmente aqueles agentes que, sem serem necessariamente produtores, no sentido da produçom «estética» [isto é, escritores, pintores, etc.], produzem e difundem determinadas ideias no campo cultural. Voltando ao caso galego, figuras históricas do galeguismo como Anton Villar Ponte ou Manuel Murguia –tanto no plano da intervençom política como no da criaçom cultural- exerceriam esta funçom no campo, ao fabricarem ideias quanto à identidade galega, que posteriormente alimentárom a produçom literária e historiográfica galega. 283 supom um desafio para a história literária galega se repararmos em que durante um período de três séculos nom conta com produçom culta em língua galega, o que deriva numha quebra profunda no seu curso histórico. Para salvaguardar a legitimidade da sua história, a historiografia galega optou por reivindicar a vitalidade nestes séculos «obscuros» dumha literatura popular em idioma galego. Sem dúvida, esta defensa do popular que iniciam os primeiros ideólogos do galeguismo (Vid.Villar Ponte, 1927) estivo fortemente imbuída das formulaçons herderianas da historiografia do XIX, que reconheciam nas manifestaçons culturais populares a expressom das essências identitárias da naçom, elevando o povo à categoria de guardiám ou protector espiritual do património cultural. Desta forma, recupera-se como central um repertório que tradicionalmente ocupou as margens dos sistemas literários: as peças dramáticas populares, que devido ao seu carácter oral e pola própria natureza popular deixárom um escasso legado escrito. No entanto, esta manobra canonizadora que tentava deslocar um repertório da periferia para o centro acabou por fracassar no próprio discurso historiográfico galego. Assi, a pesar da reivindicaçom da sua legitimidade na historiografia galega, esta reservara-lhe um espaço reduzido e marginal tanto nas histórias como nos manuais contemporáneos de teatro e de literatura galega. Na análise concreta das histórias da literatura e do teatro galego, deparamo-nos com que a maioria seguem os itens anteriormente enunciados como caracterizadores da historiografia galega: a escolha restritiva do critério linguístico ou filológico; a descriçom da história teatral do XVIII em termos de deserto criativo ou a posta em valor da produçom dramática popular. Assi, todas as histórias do teatro e da literatura consultadas, no que respeita ao século XVIII coincidem em destacar o legado teatral popular formado principalmente por autos sacramentais (Varela Jácome [1951]; Fernández del Riego [1951]; Lourenzo e Pillado Mayor [1979]; Vázquez Cuesta [1980]), por vilancicos (Fernández del Riego [1951]; Lourenzo e Pillado Mayor [1979], ainda que alguns autores nom julgárom estas peças como manifestaçons propriamente teatrais –como Vázquez Cuesta [1980]-, ou bem, julgaro-nas como mais próximas do género musical [Carvalho Calero, 1962] ou do poético [Freixeiro Mato e Tato Fontaíña, 1996; Vilavedra, 1999]) e por entremeses, coincidindo estas histórias da literatura em salientar um único entremês, intitulado Entremés famoso sobre da pesca no río Miño, de 1671, que destaca por ser umha obra conservada por escrito na íntegra em língua galega. Em virtude das reflexons derivadas da análise do discurso historiográfico a respeito do teatro do XVIII, podemos concluir que a historiografia teatral e literária galega é profundamente devedora do modelo de literatura nacional. Os elementos estruturantes do sistema teatral estám intimamente ligados a umha concepçom fortemente discursiva e nacional[ista] da história do teatro galego; de tal forma que será a naçom, e como elemento constituídor desta, a língua (galega), o item vertebrador e definidor do que é o «teatro galego», delimitando o corpus de estudo das histórias da literatura galega e, em definitivo, colocando as balizas que delimitam a história do sistema teatral (e literário) nacional. Assi, à hora de reelaborar a história do teatro galego, será seleccionado por um amplo sector da historiografia galega o período que transita entre o último terço do XIX e o início do século XX como o momento de constituiçom dum sistema teatral galego (Vid Vieites, 2003); posto que é neste período temporal quando surge umha primeira produçom teatral culta em língua galega, ao lado do desenvolvimento das primeiras instituiçons que promovem um teatro em galego. O elemento nacional está fortemente assentado na tradiçom historiográfica europeia, mas é nos sistemas culturais emergentes, como é o caso galego, que este elemento se manifesta de forma ainda mais enraizada no discurso historiográfico. Precisamente, um destes elementos configuradores da naçom, a língua, foi o escolhido polo nacionalismo, em 1916, no seio das Irmandades da Fala e na voz de Anton Villar Ponte, como elemento central onde descansar a identidade galega6. Desta forma, a historiografia, sustentada num modelo de base nacional, a causa desta retro-alimentaçom discursiva, assimilou também a língua com esta mesma funçom identitária e vertebradora do sistema literário7. Mas, ainda adoptando a perspectiva da historiografia nacional, esta decisom resulta incoerente quanto à lógica da formaçom identitária da comunidade social galega, posto que na história desta comunidade e da sua produçom cultural nom sempre o elemento linguístico jogou este papel central na construçom da identidade –como vemos no caso do século XVIII, um período que é anterior a esta tomada de posiçom nacionalista de 1916-8. Portanto, nem sequer adoptando umha focage historiográfica nacional podemos aceitar como válida a restricçom do corpus em funçom do elemento linguístico. Por outro lado, desta estratégia historiográfica derivam-se problemas tam complexos e graves para a história da literatura e da cultura galega como o de como analisar e classificar toda a produçom literária culta veiculada em língua nom galega (em latim, italiano, espanhol, etc.) que, como vimos, circula na Galiza setecentista; induzindo, por sua vez, a soluçons tam ineficazes e deficitárias como a de excluir toda esta produçom da história da literatura galega, por meio da legitimaçom da etiqueta de «Séculos Escuros». Por último, colocadas sobre a mesa as nossas argumentaçons, só nos resta oferecer um modelo alternativo a este discurso historiográfico nacional. Assi, a nossa proposta historiográfica deve primar o conhecimento da lógica que rige e 6 O livro Nacionalismo gallego: nuestra “afirmación” regional elaborado polo galeguista Anton Villar Ponte, e aparecido em 1916, eleva a língua à categoria de elemento nuclear na configuraçom da identidade galega. 7 Ainda que desde as primeiras obras historiográficas da literatura galega será adoptado quase unanimemente o factor lingüístico à hora de circunscrever o corpus, a primeira história da literatura que explicita a adopçom deste critério -ao qual denominará «o critério filológico»- será a Historia da literatura galega contemporánea de Carvalho Calero, de 1962. 8 Este tratamento historiográfico tem a ver com um dos traços, anteriormente apontados, definidores do modelo historiográfico nacional: a vontade de reconstruçom histórica do passado colectivo em forma de narraçom unitária e unificada, o que obriga a que os elementos que o discurso nacional escolheu num momento dado –no caso galego, a partir de 1916- como prioritários na definiçom do nacional funcionem em todo momento como referência para a análise de qualquer período da história da naçom, ignorando ou apagando as possíveis oscilaçons que se dérom no evoluir da fabricaçom desta identidade colectiva, tanto em períodos passados como em contemporáneos. 284 explica o campo literário, deve ser priorizada a análise sistémica do campo cultural e literário. Em coerência com isto, a historiografia nom deve ser reduzida ao estudo dos processos de produçom cultural dumha naçom –pois este critério nacional revela-se, como mostramos ao longo desta comnicaçom, como variável e problemático-; senom que deve dedicar-se ao estudo dos processos literários que tenhem lugar num espaço social9, sendo portanto o referente sócio-espacial o que consideramos que deve delimitar e dar coerência ao estudo historiográfico. Referências bibliográficas: Carreira Antelo, X. M. (1991). La temporada teatral 1791-92 en A Coruña. el pleito Cañizares-Nicolini. A Coruña: Instituto “José Cornide” de Estudios Coruñeses, (pp. 109-124). Carvalho Calero, Ricardo (1962 [1981]). Historia da literatura galega contemporánea: 1808-1936. Vigo: Galaxia. De los Ríos, Juanjo (1998). Orígenes de la ópera en Ferrol. Ferrol análisis, 12, 98-103. Even-Zohar, Itamar (1999). Factores y dependencias en la cultura. Una revisión de la Teoría de los Polisistemas. 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Vigo: Galaxia, (pp. 2-8). 9 Esta escolha do espaço social como constituinte referencial e delimitador da história literária tem sido formulada anteriormente por Torres Feijó «[...] pode considerar-se a literatura num espaço social ou a literatura dum espaço social. O primeiro elemento remete para as actividades literárias que tenhem lugar nesse espaço, intepretado como um espaço geo-humano delimitável. O segundo fixa essas actividades literárias como um conjunto vinculado ou pertencente a um determinado grupo que se delimita e reconhece em funçom da compartiçom de ideias, características e/ou elementos que, no seu conjunto, som exclussivas do mesmo (o que, normalmente, remete para a consideraçom da literatura regional/nacional)» (Torres Feijó, 2004: 423). 285