AGONIAS E PENITÊNCIAS: O UNIVERSO SIMBÓLICO DA MORTE NO AGRESTE SERGIPANO Magno Francisco de Jesus Santos1 RESUMO A morte constitui uma preocupação que aflige toda a humanidade. A ritualização do fenômeno biológico pode ser visto um dos grandes passos do homem em busca do universo sagrado. No agreste de Sergipe, a morte ainda é um tabu, com ritual cercado de misticismo e práticas sincréticas. Neste artigo temos o propósito de compreender as principais manifestações ritualísticas de caráter fúnebre em Itabaiana. Por meio da oralidade, foram vislumbrados elementos fundamentais para a compreensão do fenômeno abordado. Palavras-chave: Morte, imaginário, premonição, anjos, religiosidade. ABSTRACT Death is a concern that afflicts all humanity. The ritualization of biological phenomenon can be seen one of the great man's footsteps in search of the sacred universe. In the wild Sergipe, death is still taboo, surrounded with ritual practices of mysticism and syncretism. In this article we intended to understand the main manifestations of character funeral ritual in Itabaiana. Through oral testimony, were envisioned key elements for understanding the phenomenon discussed. Keywords: death, imagination, foresight, angels, religious. 1- Apresentando a Morte Morte, poucos assuntos causam tanto assombro, polêmicas e discussões. Ela constitui uma das principais preocupações que afligem a humanidade. É muito provável que a tomada de consciência de sua finitude tenha sido uma das descobertas mais angustiantes do homem. O ato de morrer que era enfrentado de forma natural, biológico, tornou-se essencialmente cultural, por meio de complexas práticas ritualísticas fúnebres. 1 Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense sob a orientação de Martha Campos Abreu. Membro do Grupo de Pesquisa História, Culturas e Identidades (NPGH/UFS) e sócio do IHGSE. Professor das redes municipais de ensino de Laranjeiras e Itaporanga d’Ajuda. Professor da FJAV. Email: magnohistó[email protected] 2 A partir desse momento o universo da morte foi cercado por medos, espantos, angústias, saudades e superstições. A morte nunca mais seria a mesma. O homem é a única espécie que reflete sobre o seu próprio fim. Esta reflexão não ocorre de modo pacífico. Estar diante da possibilidade de morrer sempre causa impacto, tanto para o moribundo, como para os que o cercam. Morrer ainda é um verbo difícil de ser conjugado, mesmo nos grandes centros urbanos, nos quais o ritual fúnebre tornou-se um negócio lucrativo e, principalmente, distanciou-se do núcleo familiar. Um sinal que confirma esta constatação é o fato de haver uma série de filmes, canções, livros e novelas tratando sobre o assunto. Morrer ainda é difícil. Mesmo assim, pode ser observado que nas últimas décadas vem ocorrendo certa banalização da morte, principalmente na mídia televisiva. Hoje a morte é tratada como números e nos grandes centros urbanos é possível ver pessoas cruzando indiferentemente por corpos de pessoas assassinadas. A morte visualmente não é mais a mesma, perde o efeito de assombro. Na perspectiva de Philippe Ariés, a sociedade teria transformado a morte doméstica em morte selvagem (ARIÈS, 1989). Apesar da grande relevância que a obra de Ariés possui sobre as diferentes percepções da morte ao longo do tempo pela sociedade européia, devemos destacar as limitações dessa interpretação para contextos diferenciados. No agreste de Sergipe podemos encontrar em pleno século XX algumas reminiscências desse modo de enfrentar a morte, mas também existem peculiaridades locais. A dialética da mudança /permanência que norteia o ofício do historiador transparece nas assertivas dos moradores. A morte deixa seu lado externo, de rua e assume uma perspectiva mais íntima, do núcleo familiar. A morte do “outro”, do “diferente”, do “distante” que está ao lado não incomoda mais como em outrora. Parece que a morte caminha para deixar de ser um problema coletivo para tornar-se um problema particular. Estaria a morte deixando de ser uma festa? Só o tempo responderá. As transformações dos aspectos de enfrentamento e representações da morte já foram alvo de estudos, propiciando interpretações instigantes. Enquanto investigações realizadas na Europa denotam que a morte teria deixado de ser domesticada para ser selvagem (ARIÈS,1989), pesquisas sobre determinadas localidades do interior brasileiro podem revelar resultados destoantes. Nesse artigo tem-se o intuito de analisar as representações da morte no agreste sergipano. A pesquisa tem como corpus documental as fontes orais, obtidas por meio da realização de entrevistas com moradores do do município de Itabaiana. Os testemunhos foram selecionados de acordo com sua trajetória 3 de vida. Com isso, a pesquisa privilegiou moradores da zona rural que em algum momento da vida teve participação efetiva nos funerais, com destaque para rezadeiras, cantadoras de excelências e costureiras de mortalhas. Trata-se de personagens anônimas na historiografia oficial, mas que perpetuam a memória coletiva da localidade. Trata-se de invenção do passado a partir das cores do presente. Para Maurice Halbwachs: A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, 2004, p. 75-6). Os testemunhos orais utilizados nessa investigação revelam aspectos da religiosidade local, com enfoque para o universo da morte. Muitas das falas corroboram com os resultados de pesquisas realizadas na Europa Moderna (ARIÈS, 1989; VOVELLE, 1974) e de novas pesquisas desenvolvidas no Brasil oitocentista (REIS, 1997, 2009). Nesse sentido, as oralidades podem auxiliar a compreender as permanências do imaginário barroco religioso nas populações rurais, demonstrando que a morte não teria deixado totalmente de ser domesticada, ou, como preferem pesquisadores como João José Reis (2009), Pierre Verger (1976) e Michel Vovelle (1974), a morte não abandonou por completo suas feições barrocas. Adentrar no universo simbólico da morte de uma comunidade rural incumbe em algo mais complexo do que vislumbrar as práticas ritualísticas de desligamento do morto do seu habitat. Vasculhar sobre as diferentes representações da morte podem revelar o modo de vida, o imaginário, as crenças, dissabores sociais e conflitos inerentes à comunidade. Ao abordar sobre um tema polêmico, pautada na memória coletiva, o historiador abre espaço para os dramas sociais, ou seja, “história da memória tem sido quase sempre uma história das feridas abertas pela memória” (ROUSSO, 2002, p. 95). Diante dos primeiros testemunhos orais tornou-se possível perceber que alguns moradores do agreste sergipano possuem um modo particular de entender a morte. Mesmo sem a opulência dos funerais das cortes européias ou da pompa barroca do Brasil oitocentista, os funerais da zona rural itabaianense desvendam uma leitura diferenciada da realidade, na qual mortos e vivos coabitam (VOVELLE, 1974). As tradições inventadas e reinventadas se perpetuam ao mesmo passo em que se renovam. O presente estudo tem o intuito de compreender o universo simbólico da morte na zona rural de Itabaiana, no agreste de Sergipe. O universo lendário e imaginativo é fortemente presente no cotidiano da população. Muitas das manifestações lendárias da localidade estão correlacionadas com a morte. Além disso, o ritual fúnebre nos povoados 4 ainda é visto como motivo de congregação social, no qual pessoas de diferentes segmentos sociais buscam aproximar-se do defunto nos últimos momentos. Ao longo do século XX a morte sempre esteve bem presente no cotidiano da população. Tragédias, epidemias e assassinatos marcaram de modo eficaz o imaginário local. Para a realização desta pesquisa foram realizadas entrevistas com questionamentos abertos, visando valorizar os aspectos qualitativos das informações. As entrevistas foram transcritas e analisadas para que fosse enfim, estabelecida a estrutura da reflexão. Nesta discussão a morte é apresentada enquanto manifestação cultural, com fortes elementos sincréticos. No entanto, o foco central da reflexão não são os aspectos sincréticos, mas sim, as manifestações ritualísticas e o universo imaginário da população no que concerne a morte. A explanação foi dividida em tópicos, nos quais, algumas das facetas do mundo fúnebre foram tratadas, como a espera da morte, os preparativos do ritual e os cuidados tais como, o corpo, o sepultamento e as penitências. Resumindo, trata-se de uma discussão de caráter etnográfico, que tem como foco as representações da morte. Por ser um tema de considerável relevância social, a morte tem sido alvo de vários estudos. Diferentes áreas do saber têm lançado o olhar sobre o universo funerário ora apresentando-o como algo curioso, ora como relevante manifestação religiosa. Um desses estudos é o de Roger Bastide. O sociólogo francês foi um dos principais estudiosos da religiosidade afro-brasileira apresentou uma série de discussões a respeito do caráter sincrético das manifestações religiosas do Brasil. O autor explora a morte em diferentes facetas, entre as quais apresenta a morte como resistência à escravidão. Tratase do suicídio. Para Bastide: A permeabilidade ao suicídio era como uma tendência à agressão, variável segundo as etnias; o mina mata, o gabonês ou o moçambique suicidamse. Mas é um fato constante que o suicídio, enquanto em sua forma egoísta, para empregar a expressão durkheimiana, é raro ou inexistente por povos ditos não civilizados, o suicídio de escravos é, em compensação, muito freqüente. O suicídio é uma forma de resistência à cultura do branco, e é a forma mais apreciada pelos fracos; foge-se ao contato opressor refugiando-se na morte. O negro do Brasil sabia perfeitamente que seu suicídio era um ato de guerra, porque o escravo custava caro, e quando todo um grupo jurava deixar-se morrer, ou envenenar-se em conjunto, seguramente dessa maneira o patrão ficaria arruinado. Essa foi uma forma de vingança que os escravos souberam utilizar (BASTIDE, 1971, p. 119). A morte interpretada por Roger Bastide ganha uma nova dimensão. O suicídio de escravos é visto como uma expressão da resistência africana à escravidão, à imposição de uma nova roupagem cultural. O autor ainda apresenta uma questão pertinente sobre o 5 tema. Ele demonstra que os africanos interpretavam a morte como uma longa viagem para a terra natal. Talvez a viagem derradeira e mais desejada. Assim, ao está “velho resignado, o escravo esperava o fim próximo” (BASTIDE, 1971, p. 120). No agreste sergipano, assim como no universo religioso brasileiro, a morte também é vista como uma viagem, a última viagem. Neste modo, o sentido dos rituais fúnebres do agreste assemelha-se ao imaginário afrobrasileiro. Em ambos os casos a morte é idealizada como uma viagem para um novo plano, para uma terra distante. Não devemos esquecer que esse propósito de viagem impregnado na cosmovisão da morte também é fruto do modelo interpretativo cristão. Morrer significa passar uma fronteira, entrar em outro mundo, prosseguir na peregrinação em busca do sagrado. Neste sentido, a idéia de passagem, de transpor o limiar, a estreita fronteira entre o profano e o sagrado aproxima diferentes esferas da religiosidade. Trata-se de um passo adentrando na geografia do além (LE GOFF, 1993). A morte aparece nesse contexto como um portal entre esses dois mundos. Outra obra que discute a morte nas religiões afrobrasileiras é o artigo da historiadora Mary Del Priore. A autora aborda os aspectos singulares do tema dentro da religiosidade africana e constata que a intimidade entre o mundo dos vivos e dos mortos era intensa. No entanto, o aspecto mais relevante da obra é o fato dela demonstrar que os rituais funerários não eram uniformes, pelo contrário, apresentavam diferenças circunstanciais de acordo como grupo étnico pertencente ao segmento social. Deste modo, o enterro de escravos poderia ser alegre e festivo com fogos de artifício, música e aplausos (no caso de enterro de nobres e reis), ou simples, com poucas pessoas, sem fogos e música. Segundo Del Priore: As atividades essenciais eram restritas às áreas cultivadas. Era nelas que se fazia sexo e se enterravam os mortos nas habitações ou nos campos lavrados. Só as vítimas de varíola, lepra, afogamentos, suicidas e condenados eram enterrados na ‘má savana’. Inversamente, a mata era associada à bruxaria e a magia e os que a praticavam podiam se transformar em animais selvagens. Isto equivalia a alimentar a intromissão do mundo do Além, do Outro mundo neste mundo. Aqui. Era considerado de mau agouro que qualquer coisa vinda do mato, penetrasse o mundo civilizado. Mesmo os curandeiros tinham que aprender a submeter à natureza. Pesquisas recentes mostram que inúmeras receitas congolesas combinavam uma planta da floresta com outra, cultivada, em uma tentativa de equilibrar influências negativas e positivas (DEL PRIORE, 2005, p. 7677). A reflexão de Del Priore é reveladora, por demonstrar a importância da distinção dos sepultamentos de acordo com o segmento e estado social. De certa forma a morte é aproximada do cotidiano da população. Além disso, ela tenta demonstrar que o universo 6 dos mortos consiste em algo a ser dominado, controlado pelos especialistas, pois a possibilidade de diálogo entre a esfera dos vivos e a dos mortos é grande e perigosa. Todavia, seria possível provocar uma aproximação entre as realidades descritas por Del Priore e o universo fúnebre do agreste sergipano? Podemos dizer que sim. No agreste de Sergipe também pode ser encontrada uma distinção em relação aos enterramentos. No caso, as crianças-defuntas, chamadas de anjos, não são sepultadas com os demais. Elas são enterradas em cemitérios especiais, dispostos nas encruzilhadas do agreste. Esses pequenos cemitérios são conhecidos como cruz dos anjos e geralmente dispõe de uma pequena capela de santa cruz ao centro, cercada por “covas” dos anjinhos. Outra distinção nos sepultamentos ocorreu em relação às vítimas da maior tragédia da saúde pública que atingiu um povoado do município de Itabaiana, Cajaíba nos primeiros decênios do século XX, em 1911. Foi a epidemia da febre amarela que dizimou cerca de dois terços da população local. As vítimas não foram sepultadas no cemitério do povoado, mas sim em valas comuns próximas aos muros do mesmo. A morte distingue. Outro estudo revelador é o de Vagner Gonçalves da Silva, intelectual que discute as representações sobre a vida e a morte nas religiões afrobrasileiras. O autor lembra que nestas religiosidades é difícil identificar uma noção de individualidade associada à pessoa, que coincide com os limites de seu corpo, pois o corpo é constantemente reinventado por uma série de eventos que desaloja o indivíduo da centralidade do corpo que ele ocupa (SILVA, 2005, p. 128). Assim, Silva enfatiza que as percepções da morte nas religiões afrobrasileiras são diferenciadas da noção cristã ocidental. Nas religiões afro, a vida é sempre uma questão de contexto, quer dizer, os indivíduos são construídos como pessoas múltiplas por meio dos ritos unificadores de iniciação e desconstruídos com os ritos desagregadores. Desse modo, a morte não seria o fim da construção em si, mas o momento em que uma determinada construção se desfaz com a falência do corpo e com o retorno daquelas partes a sua origem mítica (SILVA, 2005, p. 133). Outro estudo de relevância sobre o universo fúnebre é o de Luís da Câmara Cascudo. No “Dicionário do Folclore Brasileiro” o autor descreve com certos detalhes os velórios de diferentes regiões do país. O detalhe fica por conta dos velórios de anjinhos vistos como “velório especial e festivo, com cantos, desafios louvadores acompanhados à viola, glorificando sua viagem para o céu e felicitando os pais pela felicidade desse destino” (Cascudo, 1954). Sob a mesma temática destaca-se Oracy Nogueira (1983), com a discussão sobre a morte de anjos. Apesar de abordar a temática de modo tangencial, o autor enfoca a questão da morte de crianças com estudos comparativos entre a realidade 7 abordada por Cascudo e o contexto nas cidades paulistas do Vale do Parnaíba. De modo geral, Nogueira enfoca apenas as discrepâncias existentes entre as duas realidades. Ele também menciona a pertinência de estudos sobre a referida temática, pois “por sua indesejabilidade, inexorabilidade e irreversibilidade, a morte constitui um dos temas mais ricos de racionalizações em todas as culturas. Ritos, mitos, lendas, estórias e tabus proliferam em torno do mistério da morte” (NOGUEIRA, 1983, p. 223). Entretanto, um dos principais estudiosos da mística fúnebre no Brasil é João José Reis, que pesquisou as práticas funerárias do Brasil do século XIX, publicados em alguns ensaios. Um de seus principais textos é o artigo “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista” publicado em 1997. Trata-se de uma nova interpretação das práticas funerárias do país no século XIX. O autor inova ao demonstrar que a morte no referido período estava presente no cotidiano da população de forma enfática. A argumentação de Reis é pertinente, se levarmos em consideração que uma das grandes preocupações do homem no século XIX era a salvação da alma. Para que isso ocorresse era preciso morrer em paz, ter uma morte segura sem por em risco a salvação para o paraíso da eternidade. Mas essas preocupações ainda são vigentes em algumas comunidades rurais do país. É o caso do agreste sergipano, em localidades em que a morte não deixou de ser uma grande festa. Como se pode perceber, a morte tem sido um tema consideravelmente estudado pela intelectualidade brasileira. Diversos autores debruçaram seu olhar sobre o universo funerário ao longo do tempo, com enfoques diferenciados. A própria abordagem da morte em estudos acadêmicos reforça a idéia de que a morte continua sendo um tema incômodo, permanece sendo uma angústia social. Morrer ainda é um problema social e que deve permanecer sendo estudado. 2-Percepções da Morte Medo, angústia e aflição são algumas das sensações que envolvem o tema morte no agreste sergipano. Falar abertamente sobre o assunto ainda é tabu. Por conseguinte, pode ser percebida uma série de coibições em relação ao momento da partida, a começar pela proibição da pronúncia do nome morte, substituída por eufemismos como “viagem”, “passou dessa para melhor”, “Deus levou”, “virou um anjo” e “foi para o céu”. Em todos esses termos está presente a idéia de mudança, mutação, de passagem ritualística. Morrer ainda incumbe em transformação. 8 Entretanto, nem todos os termos designativos da morte denotam o aspecto da transformação ou mudança de um mundo para outro. Existem também as menções descontraídas, associadas ao contexto externo2. Entre tais nomenclaturas distingue-se “bater as botas”, “juntar os pés”, “escafedeu-se”. Apesar de apresentar uma tonalidade sarcástica e irônica, os termos também transmitem a idéia de metamorfose, com um diferencial em relação aos eufemismos do primeiro grupo: a metamorfose neste caso restringe-se ao corpo. Não é a alma que se transfere para outro mundo, mas o corpo que é transformado, desligado do mundo dos vivos. Muitos moradores da microrregião passam a vida preparando-se para “a viagem derradeira”, que também é a mais importante. Este fato assemelha-se aos episódios descritos por João José Reis, que estuda a sociedade baiana do século XIX (Reis, 2009). Rezas, promessas e preparação dos detalhes do funeral acompanham uma considerável parcela da vida dos moradores. A começar pela costura da mortalha3, que desde cedo se juntava às demais peças do vestuário “no fundo do baú ou guarda-roupa”. A preparação da mortalha é importante, principalmente na demonstração da interatividade social. Pessoas precavidas que prepararam com antecedência a mortalha, muitas vezes a emprestavam para o enterro de vizinhos desprevenidos. Os acautelados auxiliavam os vizinhos despreparados. As mortalhas são importantes instrumentos de distinção social (REIS, 2009, p. 116) e pode ser visto como um símbolo de alguém que se preocupa em captar prestígio no caminho da salvação. No imaginário local, deter uma mortalha entre as peças de uso cotidiano representa muito mais do que cautela. É uma tentativa de ter seus últimos desejos respeitados. As entrevistas realizadas denotam que na zona rural do agreste sergipano sobressaem as mortalhas brancas e azuis. Devemos lembrar que o azul é a cor atribuída a Nossa Senhora, vista no imaginário católico tradicional como a advogada das almas no momento final, como enfatiza a oração da Santa Maria: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora, da nossa morte, amém”. A morte é vista como companheira certa e inevitável. Aos homens restam apenas tentar retardar o encontro final ao máximo possível. Com isso, dentro do contexto local, pode ser elencada uma série de ações que objetivavam impedir a despedida definitiva, das quais se pode destacar a recolhida dos tocos das velas transportadas durante a procissão noturna do Senhor dos Passos na cidade de São Cristóvão, para acender na 2 O funeral no agreste sergipano pode ser entendido a partir de duas realidades dicotômicas e paradoxalmente interligadas. Trata-se da sentinela do interior do recinto, junto ao cadáver, marcado pelo choro, revolta, rezas e excelências, e, a sentinela de terreiro, na parte externa da casa, marcada pela fogueira, petiscos, bebedeira, conversas descontraídas e até gargalhadas. 3 Túnica especial para os sepultamentos, podendo ser branca, azul, cor de rosa ou preta. 9 hora da morte ou ainda os galhos da procissão de ramos na Quaresma. Neste caso, a queima de algum elemento que foi carregado em uma procissão é visto na localidade como um instrumento de auxílio de impedir a ação imediata e eficiente da morte. O fogo sagrado é utilizado na tentativa de alimentar a alma agonizante (FRAZER, 1982). O medo é um dos principais sentimentos que rondam a morte. Os tocos de velas representariam a esperança findoura, mas que permanece acesa. Outra forma de tentar prolongar a vida é através do furto de relíquia. É forte a crença de que as pessoas que roubassem hóstias4 e a depositassem dentro do corpo teriam vida eterna ou viveriam muito (DANTAS, 2002). Isso fez com que em outrora fossem comuns as tentativas de furtos do corpo de Cristo. Muitos dos depoentes ressaltaram os furtos de hóstias como tentativa de conseguir a tão sonhada vida eterna. Observe a fala abaixo: Tem gente que acredita que se colocar a Hóstia Consagrada dentro do corpo não vai morrer nunca, vive para sempre. Aqui tinha um rezador que o povo dizia que tinha colocado uma Hóstia dentro do braço, com um corte e que ele não ia morrer. Mas esse homem viveu foi muito e sofreu para morrer com muito mais de cem anos. Fazer uma coisa dessa não é bom, pois a pessoa sofre muito para morrer, fica penando. (Marietinha, 2002). Como se pode perceber por meio da fala de dona Marietinha, afamada rezadeira do povoado Cajaíba, no sul do município de Itabaiana, as tentativas de uso do corpo de Cristo como mecanismo de prolongação da vida pode resultar em danos graves, com um fim de vida sofrido e dramático. A ênfase recai com maior veemência no imaginário acerca do ritual da junção do corpo de Cristo (Hóstia) ao corpo do devoto, ou seja, o momento em que o corpo sagrado é justaposto ao corpo profano, como ressalta a entrevistada: Tudo é feito escondido. A pessoa que rouba a Hóstia procura um lugar que ninguém veja e faz um corte no braço. Depois coloca a Hóstia dentro e espera melhorar. Tudo isso para viver muito. A pessoa sofre, fica doente, mas, não morre fácil. Dar até dó ver penando para morrer. (Santos, J. 2006). Apesar das inúmeras tentativas de retardar a boa hora, chega o momento em o encontro inevitável ocorre. No imaginário local, antes do encontro definitivo a morte avisa que está próxima. São os recados da chegada da hora final. Vários são os indícios que a última agonia está por chegar. Para percebê-las é preciso ter uma sensibilidade aguçada, pois os recados da morte são praticamente imperceptíveis. Ela manifesta a sua chegada 4 O roubo de hóstias é uma prática que permeia o imaginário popular sergipano, como também no âmbito nacional, principalmente em séculos passados. Acredita-se que o ritual consiste na incisão no punho, no qual coloca-se a hóstia e depois costura-se o corte. 10 por meio do canto e vôo dos pássaros, mudanças climáticas, morte de animais e por sonhos. São múltiplas linguagens enunciando o drama maior. A sensibilidade emotiva da população é ingrediente relevante para detectar a morte. Por serem expressos cotidianamente, muitos dos aspectos funerários podem passar despercebidos na pesquisa de campo. O observador que busca compreender o universo simbólico acerca da morte no povoado deve adentrar no convívio social buscando focar as minúcias pouco observáveis. Trata-se de um estudo que requer paciência e rigor metodológico, visando destrinchar do emaranhado cultural dos povoados os aspectos do fenômeno funerário. Neste sentido, mesmo um “pesquisador nativo 5” pode enfrentar sérios embates, ao passo que terá de buscar o estranhamento de sua própria realidade, problematizar a realidade ordinária cotidiana. Os avisos da morte são sutis. No imaginário da população local poucos têm o dom de perceber que a hora final aproxima-se. Um grupo privilegiado na percepção da própria morte é o das grávidas. Talvez pela sensibilidade aguçada em que a mulher grávida está condicionada, torna-se mais propício a descoberta do seu próprio fim. Vários são os indícios que a morte aproxima-se, principalmente das parturientes. O parto no agreste ainda é visto como momento de alto risco, assim como ocorria no século XIX (Reis, 1997). Por esse motivo, na zona rural as grávidas ficam atentas aos possíveis sinais de risco de seu parto. Um desses sinais é a morte de baleias durante o ano da gestação da parturiente. Quando aparece a notícia da morte de alguma baleia é sinal certo de morte de parto. Apesar da sentença traumática, as grávidas têm um método de amenizar os riscos, usando luto pela morte baleia. Este tipo de luto ainda é um fato corriqueiro na região, demonstrando que as tradições da comunidade mudam, assumem novas feições, mas preservam alguns de seus traços. No caso, ocorre uma ressignificação dos valores e crenças, uma releitura da realidade vivida. Além disso, o luto em intenção das baleias mostra outra faceta do universo cultural local: a interação homem-natureza. É uma cumplicidade de mútua proteção e afeto. O homem na localidade ainda não se desligou por completo de seu meio, mas sim, é um homem que recria o seu espaço, seu habitat. Os limites de seu lugar são restabelecidos a todo o momento, são redefinidos. A outra forma de percepção da morte de parturientes é irreversível. Algumas grávidas pressentem o seu próprio fim, seja por meio de sonhos, seja por intuições. Neste caso as futuras vítimas assumem uma nova rotina de vida, cuidando do seu funeral e recomendando os cuidados com a criança prestes a nascer. Os relatos sobre mulheres 5 A pesquisa de campo foi desenvolvida em alguns povoados dos municípios de Itabaiana, Campo do Brito e São Domingos. O autor viveu a infância e parte da adolescência em povoado de Itabaiana. 11 que pressentiram seu próprio fim chegam a surpreender, pela forma natural como elas abordam sobre seu drama pessoal. Assim, segundo Maria dos Santos, na década de 1990: A finada Pitu, que morava no Dunga estava grávida e sentiu que ia morrer de parto. Deixou tudo pronto para ver quem ia criar sua filha e ainda cuidou da casa para a sentinela. De tarde passou uma mulher pela casa dela e ela estava varrendo o terreiro, com o barrigão e a mulher brincou por que ela ainda estava varrendo seu terreiro com aquela barriga. Ela respondeu que tava varrendo para a sua sentinela. De noite ela morreu de parto e teve a sentinela (Santos, M. 2006). O drama da finada Pitu não é o único caso em povoados da região. Ir à maternidade incumbe no retorno incerto. A morte sempre beira os partos, ou seja, morte e vida estão entrelaçadas. Lembrando que tanto o nascimento quanto a morte estão no limiar entre o vivido, ordinário e o além, extraordinário. Mas o dom de perceber a morte não é exclusivo das parturientes. Todos podem perceber a chegada da “visita indesejável”. Outras formas de percepções da morte são os sonhos com carne vermelha, mudanças do tempo (quando o dia fica com ar tristonho), e o vôo e canto de pássaros. Assim, quando um beija-flor entra em uma casa e beija o espelho é morte certa. Pior do que isso é somente se uma rasga-mortalha cruzar o telhado da casa cantando. Neste caso, os moradores entram em desespero com o fim eminente. A população também teme quando as amendoeiras ultrapassam a altura da casa, pois neste caso “o dono morre logo” (SANTOS, J. 2006). Morte e medo andam juntos pelo agreste. 3-Sentinelas: noites de Dor, Aflição e Folia Após uma série de avisos e premunições, a morte finalmente chega. O agonizante geralmente é cercado por parentes, conhecidos, rezadeiras e ajudantes. Morrer nem sempre é tarefa fácil na zona rural sergipana. Certamente esse é o aspecto que mais se aproxima dos resultados da pesquisa empreendida por João José Reis sobre a Bahia oitocentista. O enfermo, geralmente com o corpo enfraquecido é cercado de expectativas para a sua partida definitiva. Alguns parentes chegam a dizer o laudo desolador “está esperando a hora”. A morte ocorre por etapas, entre agonias, lágrimas e despedidas. Um sinal de que a hora está próxima são as alucinações, com visões de anjos e mortos perambulando pelo quarto. O passo seguinte, o enfermo tem uma melhora repentina. Então começa o drama com os termos (agonias para a morte) e um parente trata de acender uma vela e 12 colocar nas mãos do agonizante. Geralmente, os enfermos resistem aos dois primeiros termos, mas o terceiro é fatal. Os termos só não ocorrem se advir uma morte inesperada, ou como é chamada, tranqüila. Com o golpe final, têm início os preparativos para o funeral. Trata-se de evacuar a casa, retirar os móveis, lavar e vestir o finado. Para vestir o morto chama-se pelo nome pedindo auxílio do seguinte modo: “Fulano feche os olhos para o mundo e abra para Deus. Fulano levante o braço. Fulano levante a perna. Fulano cruze os braços 6” (SANTOS, M. 2006). A partir deste momento, o nome do falecido deixa de ser pronunciado, ou melhor, é acrescido do termo “finado”. O morto tem a sua identidade mudada na tentativa de desvinculá-lo da convivência social terrena. Trata-se de uma ritualística de passagem, com a inserção do morto em um novo plano. Em seguida chegam os primeiros moradores do povoado para cumprir a obrigação de visitar o morto, exposto em um caixão (os mais pobres eram enterrados em redes até o início da década de 80 do século XX) e as rezadeiras começam suas orações. À noite chegam os puxadores para a execução das dolorosas e piedosas excelências, que perduram por toda a noite. Maria dos Santos, uma das últimas cantadoras de excelências 7 do sul de Itabaiana expôs alguns dos cantos executados ao longo da noite, entre os quais destacam-se: Uma hora eu vou Sem medo e sem pavor Na mão direita eu levo A imagem do Senhor Uma incelença de Maria Um cravo que alumeia Uma incelença da Virgem do Rosaro Foi do vosso ventre que saiu o sacraro Sacraro aberto, saiu Senhor fora Acompanhe esse anjo que vai para a glora Uma incelença das Virgens Senhora da Soledade Nossa Mãe era bendita Ah, dolorosa imaculada (Santos, M. 2003). A sentinela envolve múltiplas realidades dicotômicas e complementares. Enquanto no interior do recinto, em volta do corpo o clima é caracterizado pela tensão, angústia e 6 Essa prática também foi verificada na Bahia ao longo do século XIX, como atesta Reis (2009). As excelências, conhecidas na localidade como incelenças, são canções com melodia piedosa entoadas nas noites de sentinela, com estrofes simples que são repetidas 15, 13, 9 ou 7 vezes. Trata-se de cantos que encaminham o morto para o mundo do além, sob a proteção dos santos que compõem a corte celestial. 7 13 melancolia das mulheres (lágrimas, cantos, rezas e tristeza), no terreiro o funeral é diferenciado com homens em volta de uma fogueira 8, degustando “bolachões” e bebidas, relembrando histórias do finado. Após as primeiras horas de conversas descontraídas (com o auxílio do efeito do álcool), as gargalhadas não tardam em aparecer. A morte no terreiro é uma “festa”, que perdura até o amanhecer. É interessante observar a relevância de alguns elementos simbólicos presentes no funeral. Um desses elementos é fogueira. Nos povoados do agreste sergipano não existe sentinela sem fogueira. É muito provável que se trate de mais uma nuança do ritual de passagem, do encaminhamento da alma para o reino dos mortos. O fogo sempre foi um elemento de considerável importância nos rituais de morte, desde as sociedades tradicionais. Estudiosos como Frazer (1982) enfatizam que a fogueira consiste em uma forma de representar a queima simbólica do morto, a entrega de uma alma. Seria o funeral cajaibense uma remanescência dessa longínqua tradição? É provável que sim. Mas não só isso. O fogo pode ser revelador de muitas outras facetas. O mais instigante desse fato é que nos velórios de povoados e municípios vizinhos não existe a presença da fogueira. No agreste sergipano, o fogo sagrado dos velórios em Sergipe parece ser uma peculiaridade do referido povoado. Os demais elementos estão presentes no interior do recinto, pouco observável, exposto de forma discreta. Trata-se de uma vasilha com água e um ovo. Ao ser indagada sobre a função destes elementos, a senhora Josefa Santos expôs que consistia em um meio “evitar o mau-cheiro” (Santos, J. 2006). Este dado é revelador, pois demonstra a preocupação em preservar o corpo, através de elementos com grande simbologia. Tanto a água como ovo representam a vida. Isso significa que no velório do povoado está presente a tentativa de revigorar a força vital com a água purificadora e com o ovo, representante simbólico da vida, do nascimento. Mais uma vez morte e vida estão interligadas de modo indissociável. Ao aproximar-se de vinte e quatro horas do óbito, sai o cortejo fúnebre cumprindo o seguinte trajeto: sai da casa, passa pela capela do povoado (onde o caixão é aberto para exposição do corpo) e segue para o cemitério. Tudo isso é acompanhado pelo dobre fúnebre do sino da capela. São vários os mecanismos visando encaminhar a alma do finado para o descanso eterno. Talvez por isso, após o último suspiro é comum as pessoas dizerem que o enfermo “descansou”. Na verdade, todos que estavam envolvidos com os cuidados do doente descansam com a morte. A morte neste sentido passa a ser 8 A existência de fogueiras nos velórios somente foi mencionada pelos entrevistados e observada na pesquisa de campo nas sentinelas do povoado Cajaíba, no sul de Itabaiana. Mesmo em localidades vizinhas de Campo do brito e São Domingos não percebemos a existência de tal prática. 14 um alívio, tanto pelo fim das dores, como pelo fim dos trabalhos despendidos. Resta apenas o luto e o cumprimento das tarefas deixadas pelo finado. Mas o caminho da alma em busca da salvação é longo e permeado de obstáculos. Nem sempre a alma deseja desligar-se do cosmo dos vivos. Na cosmovisão local percebe-se que o sepultamento pode ser revelador sobre o estado do morto. Um enterro de chuva pode ser perigoso, pois a alma pode desviar-se do seu caminho para o paraíso celestial. Além disso, logo após a saída do cortejo, uma vizinha benemérita trata de varrer a casa dos fundos a frente, com a finalidade de expulsar o morto, de encaminhar a alma 9. No cemitério, parentes a amigos que acompanham o cortejo jogam torrões de terra sobre o caixão a sete palmos. Podemos entender esse ato como uma tentativa de apagar uma lembrança, de enterrar uma vida que deixou de existir. É a despedida. A vida segue em frente. Para traz fica o sepultamento e suas lembranças. 4-Botijas: o elo entre dois Mundos Nos instantes finais de vida o enfermo deixa uma série de tarefas a serem cumpridas, relativas ao funeral, à ordem do cortejo fúnebre a ser seguido e às promessas a serem pagas. Tudo deve ser cumprido com rigor, pra evitar o retorno da alma ou que esta fique “penando para sempre”. São comuns os contatos entre vivos e mortos na resolução de problemas pendentes. A intermediação entre os dois mundos é uma constante no imaginário rural do agreste de Sergipe. Um desses casos ocorreu no final da década de 1990, no povoado Mangueira, em Itabaiana, em que uma senhora teria voltado e pedido para que uma conhecida pagasse uma promessa que ela não pôde cumprir em vida. Era aparentemente tarefa simples: realizar um acompanhamento10 entre a casa da finada e a de sua comadre. A finada designou todos os passos a serem seguidos, como expôs Josefa Santos: Teve o acompanhamento certinho como a finada tinha dito, com fogos, novenas, madalenas, andorzinho com a santa e muita gente. Depois a finada apareceu novamente pedindo para fazer de novo com outras madalenas. Com pouco tempo a mulher fez como ela pediu e a promessa foi paga. O primeiro acompanhamento não serviu porque uma das madalenas não era mais moça, estava grávida (SANTOS, J. 2006) 9 Prática também observada no século XIX (Reis, 2009). Tipo de procissão com a imagem de um santo de devoção particular, sem a presença de padres e que consta de personagens como as madalenas (moças virgens da comunidade). O cortejo deve seguir de uma casa a outra como planejou o promesseiro e no ponto final deve rezada uma novena. 10 15 Relatos como esses são constantes nos povoados e já foram mais corriqueiros. A interação entre o sagrado e o profano, entre os mundos dos mortos e dos vivos é constante. No entanto, o mais comum é a botija11. As botijas estão relacionadas aos esconderijos, enterros de objetos, ou seja, ocorre quando alguém enterra algum objeto e não retira antes de morrer. O morto volta em sonho para um amigo e pede para que este retire a botija. A pessoa escolhida deve ser corajosa e ir tirar meia noite, sozinha, sem olhar para traz. Caso olhe, passa a ver as chamadas presepadas12. O escolhido deve ir desenterrar o bem enterrado (que nem sempre é valioso) na tentativa de livrar a alma da agonia, das penas do mundo da morte. Isso porque o morto não pode mais estar ligado aos bens materiais, ou seja, tudo que ele guardou ou escondeu durante sua vida deve ser revelado para impedir que seu trajeto em busca da salvação seja obstruído. Existem outros meios de manter a relação com o mundo dos mortos como os penitentes e a reza do oficio das almas, mas a forma predominante é a botija. Neste sentido, a botija passa a ser um elo ligando duas realidades, dois mundos distintos e complementares, é o meio de aproximar o mundo dos mortos do mundo dos vivos. Existem outras possibilidades de enfocar o universo simbólico da morte no agreste sergipano. A morte na região designa várias facetas, que ainda são pouco abordadas, como o enterro de anjinhos (crianças) e moças-velhas (mulheres que morreram virgens). Com isso, o propósito deste estudo foi despertar o olhar acadêmico para o aspecto funerário em Sergipe. A morte é um tema frutífero. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. 2 ed., v. 1. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. ARIES, Philippe. O homem diante da morte. 2ª ed. Vol. 2. Trad.. Luíza Ribeiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das Interpretações de Civilizações. Trad. Maria Eloísa Capellato; Olívia Krähenühl. Vol. 01. São Paulo: Livraria Pioneira, 1971. 11 Botijas são objetos que foram enterrados por alguém. Ao morrer, segundo a tradição local, a alma volta e pede para que alguém vá até o local determinado, sem olhar para trás, cave e retire objeto. Existem várias lendas a respeito de botijas em Sergipe, muitas das vezes relacionados a supostos tesouros deixados pelos jesuítas no período da colonização. 12 As presepadas seriam as visões (visagens) de seres monstruosos e demoníacos, as ações do mal. 16 CALLIA, Marcos H. P. “Introdução: apresentando a morte” In: OLIVEIRA, Marcos Fleury; CALLIA, Marcos H. P. (orgs.). Reflexões sobre a morte no Brasil. São Paulo: Paulus, 2005. p. 07-16 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954. DANTAS, Beatriz Góis. “Nanã de Aracaju: trajetória de uma mãe plural”. In: SILVA, Vagner Gonçalves da. (Org.) Caminhos da alma: memória afro-brasileira. São Paulo: Summus, 2002. DEL PRIORE, Mary. “Cidades de vivos e cidades de mortos: morte e práticas religiosas entre os afro-descendentes”. In: MARIN, Jérri Roberto (org.). Religiões, Religiosidades e Diferenças Culturais. Campo Grande: UCDB, 2005. p. 74-99. DUBY, Georges. 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