16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis 16º Encontro Nacional da ANPAP Título da comunicação: Táticas explosivas no circuito da arte contemporânea brasileira Felipe Scovino, doutorando em História e Crítica de Arte (PPGAV/EBA/UFRJ) e professor substituto do Departamento de Teoria e História da Arte (Uerj) Resumo: O artigo coloca a produção da ironia dentro de um campo amplo a partir do estudo das obras de Cildo Meireles e Felipe Barbosa, que utilizam a pólvora como meio de produção de algumas de suas obras: são discussões que envolvem a política do mercado de arte, Ética, participação do espectador e o jogo entre aparência e ilusão proporcionado pelo objeto de arte. O artigo estabelece conceitos críticos e constrói o panorama de uma rede de atravessamento do “objeto de arte irônico” em seus diferentes suportes e ações. Palavras-chave: Arte contemporânea, ironia, pólvora, Felipe Barbosa, Cildo Meireles. Abstract: This paper places the production of irony within an expanded field analyzing the works of Cildo Meireles and Felipe Barbosa, which uses the powder as way of production of some of their artworks: the paper focus in discussions that involve the politics of the art market, Ethics, participation of the audience and the play between appearance and illusion given by artwork. This paper establishes critical concepts and constructs a panorama of crossing of the "ironic artwork" in its different supports and actions. Keywords: Contemporary Art, irony, powder, Felipe Barbosa, Cildo Meireles. Introdução Cena 1: O espectador abre uma porta e adentra numa sala escura e coberta com uma camada espessa de talco. Os seus pés afundam. A porta se fecha. Tateando as paredes desta sala, ele encontra uma porta. Cena 2: Ao abrir esta porta, ele adentra numa nova câmara – um corredor com aproximadamente catorze metros de extensão -, tão escura quanto a anterior. Um cheiro de gás, como o utilizado em nossas cozinhas, impregna o ambiente. A camada espessa de talco continua no espaço, dificultando a movimentação do espectador, que caminhando chega ao final do corredor. Encontra uma vela. Uma vela descoberta. Portanto, agora alguma decisão deve ser tomada. Significaria a morte, este enclausuramento cheirando a gás e prestes a explodir? Cildo Meireles ativa um 188 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis circuito irônico em Volátil (1980-94) e mais do que isso transforma o espectador em sujeito ativo da ação, em elemento de um jogo sarcástico e – por quê não? perverso. O jogo aqui é transformado em tomada de posição. Não estamos mais falando numa manipulação por manipulação, mas numa articulação entre linguagem e ação, onde a sua vida (metaforicamente) pode depender disto. O perigo fictício da combinatória entre “gás” e vela em Volátil assim como entre uma potência construtiva e fósforos, no caso de Felipe Barbosa, questiona e alucina nossa certeza e confiança no universo dos sólidos. Existem jogos perigosos no mundo da arte contemporânea (que combinam o nosso estar no mundo, a nossa mortalidade), onde quebrar as regras pode ser o limite. Em Volátil i , Bombanel (1970/96), Tiradentes: totem-monumento ao preso político (1970) e O sermão da montanha: fiat lux (1973-79) ii , todos de Cildo Meireles, e Homem bomba (2002) e as séries Mórula (2001-2005) e Bicho de pelúcia (2003-05) iii , de Felipe Barbosa, o perigo existe potencialmente nos próprios materiais. Perversidade e pólvora A aparente singeleza de um boneco construído com fósforos é desmistificada com o seu acendimento. Tal como a inocência de um urso de pelúcia e a pólvora sendo transportada dentro de um anel podem ser um fator de perigo para o espectador mais afoito. É o “projeto explosivo brasileiro” tomando o lugar da inocência construtiva ou de uma geometria sensível que finalmente identifica limites em sua exploração. Estas situações ‘explosivas’ não interessam enquanto forma, organismo, mas como possibilidade, expectativa, imprevisibilidade. Estas obras conseguem subverter a ordem dos fatores e aliam perversidade e sedução no mesmo objeto. São situações incômodas que põem o espectador numa situação de escolha: as aparências definitivamente enganam. Possuem uma violência, mas estão sob controle... Pelo menos por enquanto: “Estou fazendo uns maiores [o artista refere-se ao trabalho Homem bomba] com morteiro. Desde o inicio da série, eu quis fazer com toda a linha de morteiros: com 189 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis doze tiros, três e um, além das bombinhas. Ai é sério”. O artista faz o alerta, reconhece que há limites, encontra as fronteiras que guardam este tipo de trabalho: “Se eu continuar com esta idéia, é risco de morte! Tudo tem um limite. Se você [o artista faz um aviso aos colecionadores] quiser o homem com doze tiros, eu faço, mas não o deixarei na minha casa” iv . Citando Bombanel, Cildo Meireles argumenta com uma certa perversidade e um gracejo infantil: “Esta obra faz parte da série Condensados. Uma série de miniaturas de antigos trabalhos [da série Arte física]. Este é a miniatura de um barril de petróleo em forma de anel. Ele tem o vidro como uma lente, que converge a luz solar para um determinado foco. Mais duas camadas de vidro e finalmente, em sua base, pólvora. A distância focal deste lente está direcionada para a pólvora”. E o artista continua relatando a sua obra: “É como uma brincadeira de criança: o menino brinca com a lente e a folha de papel, que depois de alguns minutos, queima com a luz do sol” v . A geometria passa a se tornar coisa, uma entidade material, mas aliada a uma perversidade. Sua escala não se restringe exclusivamente a uma projeção intelectual sobre o mundo, um olhar intangível, mas remete-se direta e simultaneamente ao dado físico do sujeito que usufrui elementos tão corriqueiros quanto palitos de fósforos, estalinhos, anéis ou brinquedos. No caso de Barbosa, um aspecto ao qual os seus trabalhos colocam dizem respeito a sua construção. Nenhum deles foi obtido pela sobreposição de uma estrutura externa artificial, eles encontram sua “resultante” nos encaixes e conjunções que parecem se anunciar espontaneamente. É importante deixar claro que as obras abordadas neste artigo não seriam a primeira onda de um levante irônico dentro do panorama das artes visuais brasileiras no século XX, mas dois artistas que aliaram uma identidade irônica (em alguns casos identificáveis por este autor como embates ao paradigmático projeto construtivo brasileiro vi ) a uma malícia, conjugada na pólvora, e por isso mesmo levada a limites extremos. Neste sentido, o grupo de trabalhos de Felipe Barbosa (domado por uma singular vontade construtiva) aliado a uma conjunção irônica e evitando o emprego de elementos em estado bruto (prontos, portanto, para moldar-se plenamente ao 190 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis gesto e ao invento do artista), prefere tomar, como matéria de suas construções, conjunto de objetos que já tenham uma finalidade ordinária e definida: em vez de plástico, alumínio, tecido, é da reunião de fósforos, estalinhos, madeira e pregos que faz os seus trabalhos. Como observa Moacir dos Anjos, “se tal procedimento, por um lado, limita a variedade das construções por ele criadas, permite que investigue os atributos formais que, a despeito de suas marcadas diferenças de uso, os objetos partilham” vii . Mórula e Bicho de pelúcia lidam com o estabelecimento de um fato. Inicialmente ocorre uma reversão contundente: da banalidade – e aí talvez resida a sua potência irônica – desta geometria emergente, uma série de desdobramentos são provocados. São elementos cotidianos (palito de fósforos e estalinhos), mas que são retirados de uma situação já esperada para serem transformados, serializados, em objetos de caráter afável, numa primeira aproximação, mas perigosos, se uma tentativa mais audaciosa for feita. Um exame mais próximo do objeto pode alertar aquilo que os olhos podem estar enganando. São, definitivamente, banais porque estão no mundo como qualquer outro objeto, sua presença é mundana. O artista lida com a cultura da acumulação, de um certo excesso e ao mesmo tempo desperdício das coisas: são fragmentos que habitam o universo das sobras e dos esquecimentos. É a situação de resíduo e repetição destes materiais que o atrai. E a possibilidade de trabalhálos ou reapresentá-los como matéria do cotidiano. De um cotidiano, digamos, perverso. A ironia e uma certa referência ao fim de um “projeto construtivo” presente tanto na aglomeração e orquestração dos materiais agregados ao boneco de Homem bomba quanto na sua queima, acabam permeando a ação, já que o “projeto explosivo” acaba tomando direções que não haviam sido problematizadas pelo artista: no espaço da Arte, o espectador não sabe o que vai ver e, mais do que isso, talvez nem esteja familiarizado com o tipo de manifestação a que assiste ou participa. Como afirma Felipe Barbosa em entrevista ao autor: O título, muitas vezes, é um dado, que serve para dar uma certa confusão, mas ao mesmo tempo é uma muleta do trabalho. Ele se sustenta. Ele faz 191 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis de alguma maneira do trabalho. O Homem bomba é um dos casos em que isto acontece. De certa maneira é uma discussão do material que uso (um homenzinho feito de bombinha). Só que quando você o transforma num homem bomba, você o remete a um universo imenso; o que é quase um contra-senso ao tamanho ridículo, inofensivo da obra, mas que, na realidade, esta longe de ser. É esta potencialidade que me interessa. O mero gesto [de acender as bombas] que dilui toda uma estrutura. Isto, definitivamente, é o que me interessa viii . Reinventando lugares: o papel do artista e o lugar da pólvora Colocado o problema da recepção, vem o questionamento sobre a autosuficiência da Arte e o papel do artista, que mesmo que produza para seu próprio prazer, está situado na estrutura de uma formação cultural que o obriga a pensar no consumo de sua obra. O estranhamento, o desconforto e o incômodo passam a ser uma intenção, um fim em determinadas obras da panorama contemporâneo da arte. O espelho de si agora carece de vidro: o drama real é aquele que se desenvolve frente ao espectador, é esta a base de numerosos processos de transferência que causam a ruptura com a imagem prévia de si próprio que cada ser possui. Felipe Barbosa ressalta a questão da recepção dos seus trabalhos [notadamente a série Bicho de pelúcia e o vídeo Homem bomba] no exterior. Ao contrário da reação, quase sempre bem humorada do público brasileiro, o espectador europeu não tem a mesma atitude: “Eles entendem como sendo uma coisa de mau gosto, não é bem vista. Porque é uma questão [a bomba, a iminente explosão de algo por grupos terroristas] que eles vivem diretamente, o que acaba provocando uma certa tensão e incômodo no espectador. Você está tocando definitivamente nas feridas nacionais” ix . E neste ponto os trabalhos de Meireles e Barbosa se tocam novamente. Até onde caminham os limites desta Ética? O fato é que a obra ocasiona ruídos, alarga fronteiras do seu entendimento. Enquanto algumas culturas entendem estas obras como perversão, outras apenas riem da situação que beira o absurdo. 192 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Em 1970, durante a inauguração do Palácio das Artes, em Belo Horizonte, Cildo Meireles erigiu Tiradentes: totem-monumento ao preso político, na semana da Inconfidência. Ao empregar o tema da violência como matéria-prima e aludir à situação nacional de repressão política, o gesto aterrorizante instala um mal-estar no sistema de arte. O totem-monumento de Meireles identifica seres humanos com certos animais e põe em circulação noções de sacrifício; Tiradentes, no imaginário brasileiro, representa uma visão arquetípica do corpo esquartejado pela violência política, e é assim que o artista o retratou. Representa, também, os corpos mutilados daqueles que, muitas vezes injustificadamente, foram executados como traidores. E onde fica a Ética do Artista, Cildo? Você pode fazer qualquer coisa desde que você assuma. Desde que você não queira engajar este projeto como se fosse um desejo da coletividade. Você deve assumir a responsabilidade individual. É o que o artista faz. Você é responsável pelos seus atos. É um problema de moral e não de Ética x . Neste momento, cabe descrever a primeira reação que Cildo Meireles recebeu do seu trabalho. Uma reação surpreendente, como conta o artista: Logo depois de atear fogo e presenciar a queima das galinhas, eu subo uma rampa e observo o trabalho de cima, quando chega ao meu encontro um rapaz e me pergunta se era eu, o artista. Eu respondo que sim. Ele então me cumprimenta e se apresenta: era o presidente da seção Minas Gerais da Sociedade Protetora dos Animais. Isto foi ótimo ter acontecido, porque o meu medo era justamente receber críticas deste meio. Ele havia compreendido o discurso: ‘Não é uma hipocrisia se perguntar sobre queima de galinhas enquanto se está esquartejando jovens por causa de idéias? xi Cildo Meireles deixa à mostra as contradições de um Estado centralizador que carrega este legado durante várias gerações. Este trabalho exacerba, quase “gritando”, a repercussão desta apresentação da chacina do inocente. Porém, o 193 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Estado, órgão fiscalizador e protetor dos cidadãos, não admite tal demonstração de impetuosidade, ou estou enganado? No dia seguinte, à realização de Tiradentes, houve um almoço solene. Era dia de Tiradentes. O governo, naquele dia, havia sido transferido simbolicamente de Brasília para Ouro Preto. Então, estavam lá o ditador do dia, todos os políticos e congressistas adesistas. Segundo o artigo do jornalista Morgan Mota (publicado em jornal mineiro), um deputado, durante o almoço, fez um discurso atacando a exposição e, sobretudo ‘este trabalho que queimava as galinhas’. Mas o curioso é que o jornalista termina o artigo, afirmando: ‘E terminados os discursos, foi servido o almoço: frango ao molho pardo’ xii . Em todo este “projeto explosivo brasileiro” xiii , há uma constante manifestação de tensão e torção – seja no âmbito da estética, percepção e ciência. Centrando-se em nossa experiência desses diferentes ramos do conhecimento, o projeto visa gerar novos significados por meio do reconhecimento dos limites e a falibilidade desses sistemas de compreensão. As obras de Cildo Meireles e Felipe Barbosa poderiam ser descritas como uma teoria poética da sociedade. Colocam questões de vão da política a ideais e estratégias. Examinam espaços e processos de comunicação, as condições do espectador, os legados da história da Arte e as fragilidades, limites e medos do Homem moderno. Podem incorporar gestos, fogo, espaço, coisas, circuitos sociais, acumulação, potência, linguagem construtiva, energia, explosão. Neste momento, Meireles examina Fiat lux: Eu lido diretamente com a pólvora. Você pode entrar em qualquer boteco e comprar fósforo. E por que não comprar 126.000 caixas? Criar uma situação de perigo através de um procedimento legal? Você não está cometendo nenhum crime. Você está exercendo um direito de consumidor. Esta é a lógica perversa do sistema. A explosão poderia matar todos que estivessem na galeria. xiv 194 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Em função destas mudanças, a interação entre os espaços da arte e da política contemporâneas é complexa e porosa, existindo diversas possibilidades de enunciar um discurso crítico que transite entre esses espaços sem afirmar apenas um de seus pólos. É nesse contexto que Fiat lux busca ampliar a percepção pública de uma das mais importantes questões da agenda política atual sem se tornar, por isso, instrumento de propaganda rasa. Ao se estabelecer numa galeria de arte, os fósforos percorriam a um só tempo e sem distinção alguma, o circuito da arte, o da circulação de mercadorias e o de manifestações políticas e religiosas. Paradoxalmente, era só assim, materialmente predisposto a destruição, que ele adquiria poder simbólico. Como o artista anuncia: Eu queria retirar as muletas psicológicas. O espaço de arte já cria uma espécie de território seguro para uma experiência. Você está dentro de um museu e, portanto estará sempre coberto por um manto da certeza de que está seguro. Mas há sempre os desvios, e é nisto que estou interessado xv . Nesta obra, as caixas de fósforo formam um cubo no centro da galeria. Essa escultura readymade inflamável é circundada por atores vestidos de agentes de segurança, com aspecto de gangsteres, que “protegem” as caixas de fósforos dos espectadores. O número de caixas de fósforos foi calculado por Meireles em quantidade suficiente para explodir a galeria. O ruído dos pés dos seguranças sobre as lixas que recobrem o chão lembra o som do fósforo sendo aceso na caixa, de tal modo que sua própria vigilância, longe de tranqüilizar, gera ansiedade e medo. Essa visão perversa traz à baila uma ameaça à vida e à propriedade por meio do acúmulo de materiais que, isoladamente, seriam inofensivos. O poder incandescente de um único palito de fósforo revela-se enorme. Apropriando-se de objetos comuns que habitam o nosso cotidiano, Meireles neutraliza por oposição, adição, acumulação, mudança de escalas, as suas funções pragmáticas originais, deslocando-os para o terreno da incerteza, do perigo. O objetivo do artista não é criar um impacto visual pela quantidade, mas usar este fator quantitativo para alterar funções, criar novas metáforas, reverter significados: porque sozinha a 195 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis caixa de fósforos é um objeto banal e corriqueiro, de tal maneira integrado ao nosso cotidiano. Mas, bastaria alguém riscar um fósforo para que tudo fosse pelos ares, ameaçando o próprio edifício onde se localizava a galeria de arte. Meireles questiona a noção de lugar do objeto no campo da arte e chega ao extremo ao incluir a religião cristã, assunto tão delicado na cultura brasileira, na sua concepção de um desaparecimento completo destas muletas. Eu queria que todas as pessoas, que estivessem habituadas ao espaço da galeria, estivessem presentes. O espaço estaria todo guardado. Por outro lado, as bem-aventuranças são a matéria-prima e o símbolo do trabalho. Serviam para regular a sociedade, organizar os grupos. A idéia era explodir aquilo. Destruir as muletas psicológicas xvi . De fato, seria somente a partir da expressão individual, anônima e difusa frente aos vastos mecanismos de controle social em curso que o trabalho ganharia sentido e eficácia, o que faz de Fiat lux menos suporte de propaganda do que proposição de uma atitude distinta frente ao espaço político. O “projeto explosivo” tende a criar circuitos, saídas; a pólvora se ramifica em ações que tendem a balançar as estruturas políticas de um espaço ou instituição. O que fazer com uma caixa de fósforos? Objetivamente isto não conta e não vale nada. O importante não é o conteúdo, mas a estrutura dessa comunicação volátil: um certo murmúrio coletivo que não cessa de acontecer. A ironia em constante circulação dentro de um percurso aparentemente aleatório, misturando-se ao acaso e ao anonimato. Qualquer pessoa pode comprar fósforos em qualquer quantidade. O sistema permite isto. Uma das suas lógicas de existência é justamente esta: acumulação. Tanto Meireles quanto Barbosa se apropriam destas brechas e expõem a ironia que esta “perfeição capitalista” pode atingir. Referências BARBOSA, Felipe. Felipe Barbosa. Rio de Janeiro: Galeria Arte em Dobro, 2006. MEIRELES, Cildo. Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funarte, 1981. MORAIS, Frederico. Cildo Meireles: algum desenho (1963-2005). Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2005. SCOVINO, Felipe. Entrevista com Cildo Meireles. In: 19 de outubro de 2005. 196 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis _______. Entrevista com Cildo Meireles. In: 03 de abril de 2006. _______. Entrevista com Felipe Barbosa. In: 19 de abril de 2006. i A primeira versão desta obra, mas nunca realizada pelo artista, consistia em utilizar o mesmo aparato arquitetônico e técnico, porém aplicando uma redoma de vidro sobre a vela, que também estaria sendo alimentada por oxigênio. Além disso, todas as salas conteriam gás natural e T-burtil-mercapitano (a essência que é misturada ao gás e nos deixa alerta quando há um escapamento do mesmo). Por motivos de segurança, este projeto nunca foi adiante. In: Entrevista concedida ao autor em 19 de outubro de 2005. ii Bombanel é uma peça de metal, em formato de prisma, tendo no seu interior uma pequena quantidade de 2 pólvora. Fiat lux compreende uma área de 60m , circundada por oito espelhos, na superfície dos quais estavam escritas oito bem-aventuranças do sermão da montanha (Mateus, 5, 3-10). No centro desta área, estão empilhadas 126.000 caixas de fósforos cercadas por cinco atores. O chão era revestido de lixa preta. O som do atrito dos pés sobre a lixa foi gravado e amplificado. Realizada em 1979, no Centro Cultural Candido Mendes, no Rio de Janeiro, a exposição durou apenas 24 horas. Tiradentes: totem-monumento ao preso político foi realizado durante a comemoração da Semana da Inconfidência, em Belo Horizonte. Numa área externa ao Palácio das Artes, Meireles fixou uma estaca de 2,5 m de altura, sobre um quadrilátero marcado por um pano branco e tendo no topo um termômetro clínico. A esse ‘poste’ foram amarradas dez galinhas vivas, sobre as quais se derramou gasolina e ateou-se fogo. iii Homem bomba compreende um boneco de 44 cm de altura e 20 cm de largura, constituído unicamente por ‘bombinhas’ (explosivos com pequeno poder de destruição, caso não sejam usados em grande quantidade). A obra discutida neste ensaio é o vídeo Homem bomba (VHS, 10’, 2002), realizado pelo artista, que mostra a queima deste boneco. Bicho de pelúcia é uma série que compreende entre outros: Panda, Teddy bear e Ursa maior. São ursos de pelúcia, que tiveram o seu tecido de pelúcia retirado e foram cobertos com estalinhos coloridos. Neste ensaio não estaremos abordando nenhum urso em específico, mas o seu conjunto. Mórula são circunferências feitas de palitos de fósforos colados lado a lado formando uma estrutura, que mede aproximadamente 30x30x30 cm. Com formas muito distintas (algumas são muitas semelhantes a bolas de futebol, outras são vazadas), esta série também carrega o fator de uma explosão iminente. iv Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de abril de 2006. v Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de outubro de 2005. vi O título deste ensaio é uma provocação ao tema do livro organizado por Aracy Amaral (Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977). vii BARBOSA, Felipe. Felipe Barbosa. Rio de Janeiro: Galeria Arte em Dobro, 2006, s/p. viii Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de abril de 2006. ix Idem, ibidem. x Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de outubro de 2005. xi Cf. Entrevista concedida ao autor em 03 de abril de 2006. xii Idem, ibidem. xiii Gostaria de enaltecer que este termo foi criado pelo autor. De modo algum, Cildo Meireles (1948) e Felipe Barbosa (1978) são os únicos artistas visuais brasileiros que lidam com materiais explosivos. Esta seleção foi feita porque além de ambos lidarem com materiais que podem entrar em combustão, possuem uma linguagem derivada do construtivismo e do neoconcretismo (e esta é umas ironias que o texto traz: a contraposição entre a linguagem sensível do neoconcretismo e a sua herança, que nas mãos de Meireles e Barbosa se transformaram em elementos “nocivos”). Além do fato, de registrar a continuidade desta linguagem através de gerações. xiv Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de outubro de 2005. xv Idem, ibidem. xvi Idem, ibidem. Currículo resumido Felipe Scovino é doutorando em História e Crítica pelo Programa de Pósgraduação em Artes Visuais (EBA;UFRJ), professor substituto do Departamento de Teoria e História da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e curador da Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark”. 197