16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas
Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis
16º Encontro Nacional da ANPAP
Título da comunicação: Táticas explosivas no circuito da arte
contemporânea brasileira
Felipe Scovino, doutorando em História e Crítica de Arte (PPGAV/EBA/UFRJ) e professor
substituto do Departamento de Teoria e História da Arte (Uerj)
Resumo: O artigo coloca a produção da ironia dentro de um campo amplo a partir do
estudo das obras de Cildo Meireles e Felipe Barbosa, que utilizam a pólvora como meio
de produção de algumas de suas obras: são discussões que envolvem a política do
mercado de arte, Ética, participação do espectador e o jogo entre aparência e ilusão
proporcionado pelo objeto de arte. O artigo estabelece conceitos críticos e constrói o
panorama de uma rede de atravessamento do “objeto de arte irônico” em seus diferentes
suportes e ações.
Palavras-chave: Arte contemporânea, ironia, pólvora, Felipe Barbosa, Cildo Meireles.
Abstract: This paper places the production of irony within an expanded field analyzing the
works of Cildo Meireles and Felipe Barbosa, which uses the powder as way of production
of some of their artworks: the paper focus in discussions that involve the politics of the art
market, Ethics, participation of the audience and the play between appearance and illusion
given by artwork. This paper establishes critical concepts and constructs a panorama of
crossing of the "ironic artwork" in its different supports and actions.
Keywords: Contemporary Art, irony, powder, Felipe Barbosa, Cildo Meireles.
Introdução
Cena 1: O espectador abre uma porta e adentra numa sala escura e coberta com
uma camada espessa de talco. Os seus pés afundam. A porta se fecha. Tateando
as paredes desta sala, ele encontra uma porta.
Cena 2: Ao abrir esta porta, ele adentra numa nova câmara – um corredor com
aproximadamente catorze metros de extensão -, tão escura quanto a anterior. Um
cheiro de gás, como o utilizado em nossas cozinhas, impregna o ambiente. A
camada espessa de talco continua no espaço, dificultando a movimentação do
espectador, que caminhando chega ao final do corredor. Encontra uma vela. Uma
vela descoberta.
Portanto, agora alguma decisão deve ser tomada. Significaria a morte, este
enclausuramento cheirando a gás e prestes a explodir? Cildo Meireles ativa um
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circuito irônico em Volátil (1980-94) e mais do que isso transforma o espectador
em sujeito ativo da ação, em elemento de um jogo sarcástico e – por quê não? perverso.
O jogo aqui é transformado em tomada de posição. Não estamos mais
falando numa manipulação por manipulação, mas numa articulação entre
linguagem e ação, onde a sua vida (metaforicamente) pode depender disto. O
perigo fictício da combinatória entre “gás” e vela em Volátil assim como entre uma
potência construtiva e fósforos, no caso de Felipe Barbosa, questiona e alucina
nossa certeza e confiança no universo dos sólidos.
Existem jogos perigosos no mundo da arte contemporânea (que combinam
o nosso estar no mundo, a nossa mortalidade), onde quebrar as regras pode ser o
limite. Em Volátil i , Bombanel (1970/96), Tiradentes: totem-monumento ao preso
político (1970) e O sermão da montanha: fiat lux (1973-79) ii , todos de Cildo
Meireles, e Homem bomba (2002) e as séries Mórula (2001-2005) e Bicho de
pelúcia (2003-05) iii , de Felipe Barbosa, o perigo existe potencialmente nos
próprios materiais.
Perversidade e pólvora
A aparente singeleza de um boneco construído com fósforos é
desmistificada com o seu acendimento. Tal como a inocência de um urso de
pelúcia e a pólvora sendo transportada dentro de um anel podem ser um fator de
perigo para o espectador mais afoito. É o “projeto explosivo brasileiro” tomando o
lugar da inocência construtiva ou de uma geometria sensível que finalmente
identifica limites em sua exploração. Estas situações ‘explosivas’ não interessam
enquanto
forma,
organismo,
mas
como
possibilidade,
expectativa,
imprevisibilidade. Estas obras conseguem subverter a ordem dos fatores e aliam
perversidade e sedução no mesmo objeto. São situações incômodas que põem o
espectador numa situação de escolha: as aparências definitivamente enganam.
Possuem uma violência, mas estão sob controle... Pelo menos por enquanto:
“Estou fazendo uns maiores [o artista refere-se ao trabalho Homem bomba] com
morteiro. Desde o inicio da série, eu quis fazer com toda a linha de morteiros: com
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doze tiros, três e um, além das bombinhas. Ai é sério”. O artista faz o alerta,
reconhece que há limites, encontra as fronteiras que guardam este tipo de
trabalho: “Se eu continuar com esta idéia, é risco de morte! Tudo tem um limite. Se
você [o artista faz um aviso aos colecionadores] quiser o homem com doze tiros,
eu faço, mas não o deixarei na minha casa” iv .
Citando Bombanel, Cildo Meireles argumenta com uma certa perversidade
e um gracejo infantil: “Esta obra faz parte da série Condensados. Uma série de
miniaturas de antigos trabalhos [da série Arte física]. Este é a miniatura de um
barril de petróleo em forma de anel. Ele tem o vidro como uma lente, que converge
a luz solar para um determinado foco. Mais duas camadas de vidro e finalmente,
em sua base, pólvora. A distância focal deste lente está direcionada para a
pólvora”. E o artista continua relatando a sua obra: “É como uma brincadeira de
criança: o menino brinca com a lente e a folha de papel, que depois de alguns
minutos, queima com a luz do sol” v .
A geometria passa a se tornar coisa, uma entidade material, mas aliada a
uma perversidade. Sua escala não se restringe exclusivamente a uma projeção
intelectual sobre o mundo, um olhar intangível, mas remete-se direta e
simultaneamente ao dado físico do sujeito que usufrui elementos tão corriqueiros
quanto palitos de fósforos, estalinhos, anéis ou brinquedos. No caso de Barbosa,
um aspecto ao qual os seus trabalhos colocam dizem respeito a sua construção.
Nenhum deles foi obtido pela sobreposição de uma estrutura externa artificial, eles
encontram sua “resultante” nos encaixes e conjunções que parecem se anunciar
espontaneamente. É importante deixar claro que as obras abordadas neste artigo
não seriam a primeira onda de um levante irônico dentro do panorama das artes
visuais brasileiras no século XX, mas dois artistas que aliaram uma identidade
irônica (em alguns casos identificáveis por este autor como embates ao
paradigmático projeto construtivo brasileiro vi ) a uma malícia, conjugada na
pólvora, e por isso mesmo levada a limites extremos.
Neste sentido, o grupo de trabalhos de Felipe Barbosa (domado por uma
singular vontade construtiva) aliado a uma conjunção irônica e evitando o emprego
de elementos em estado bruto (prontos, portanto, para moldar-se plenamente ao
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gesto e ao invento do artista), prefere tomar, como matéria de suas construções,
conjunto de objetos que já tenham uma finalidade ordinária e definida: em vez de
plástico, alumínio, tecido, é da reunião de fósforos, estalinhos, madeira e pregos
que faz os seus trabalhos. Como observa Moacir dos Anjos, “se tal procedimento,
por um lado, limita a variedade das construções por ele criadas, permite que
investigue os atributos formais que, a despeito de suas marcadas diferenças de
uso, os objetos partilham” vii .
Mórula e Bicho de pelúcia lidam com o estabelecimento de um fato.
Inicialmente ocorre uma reversão contundente: da banalidade – e aí talvez resida
a
sua
potência
irônica
–
desta
geometria
emergente,
uma
série
de
desdobramentos são provocados. São elementos cotidianos (palito de fósforos e
estalinhos), mas que são retirados de uma situação já esperada para serem
transformados, serializados, em objetos de caráter afável, numa primeira
aproximação, mas perigosos, se uma tentativa mais audaciosa for feita. Um
exame mais próximo do objeto pode alertar aquilo que os olhos podem estar
enganando. São, definitivamente, banais porque estão no mundo como qualquer
outro objeto, sua presença é mundana. O artista lida com a cultura da
acumulação, de um certo excesso e ao mesmo tempo desperdício das coisas: são
fragmentos que habitam o universo das sobras e dos esquecimentos. É a situação
de resíduo e repetição destes materiais que o atrai. E a possibilidade de trabalhálos ou reapresentá-los como matéria do cotidiano. De um cotidiano, digamos,
perverso.
A ironia e uma certa referência ao fim de um “projeto construtivo” presente
tanto na aglomeração e orquestração dos materiais agregados ao boneco de
Homem bomba quanto na sua queima, acabam permeando a ação, já que o
“projeto explosivo” acaba tomando direções que não haviam sido problematizadas
pelo artista: no espaço da Arte, o espectador não sabe o que vai ver e, mais do
que isso, talvez nem esteja familiarizado com o tipo de manifestação a que assiste
ou participa. Como afirma Felipe Barbosa em entrevista ao autor:
O título, muitas vezes, é um dado, que serve para dar uma certa confusão,
mas ao mesmo tempo é uma muleta do trabalho. Ele se sustenta. Ele faz
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de alguma maneira do trabalho. O Homem bomba é um dos casos em que
isto acontece. De certa maneira é uma discussão do material que uso (um
homenzinho feito de bombinha). Só que quando você o transforma num
homem bomba, você o remete a um universo imenso; o que é quase um
contra-senso ao tamanho ridículo, inofensivo da obra, mas que, na
realidade, esta longe de ser. É esta potencialidade que me interessa. O
mero gesto [de acender as bombas] que dilui toda uma estrutura. Isto,
definitivamente, é o que me interessa viii .
Reinventando lugares: o papel do artista e o lugar da pólvora
Colocado o problema da recepção, vem o questionamento sobre a autosuficiência da Arte e o papel do artista, que mesmo que produza para seu próprio
prazer, está situado na estrutura de uma formação cultural que o obriga a pensar
no consumo de sua obra. O estranhamento, o desconforto e o incômodo passam a
ser uma intenção, um fim em determinadas obras da panorama contemporâneo da
arte. O espelho de si agora carece de vidro: o drama real é aquele que se
desenvolve frente ao espectador, é esta a base de numerosos processos de
transferência que causam a ruptura com a imagem prévia de si próprio que cada
ser possui. Felipe Barbosa ressalta a questão da recepção dos seus trabalhos
[notadamente a série Bicho de pelúcia e o vídeo Homem bomba] no exterior. Ao
contrário da reação, quase sempre bem humorada do público brasileiro, o
espectador europeu não tem a mesma atitude: “Eles entendem como sendo uma
coisa de mau gosto, não é bem vista. Porque é uma questão [a bomba, a iminente
explosão de algo por grupos terroristas] que eles vivem diretamente, o que acaba
provocando uma certa tensão e incômodo no espectador. Você está tocando
definitivamente nas feridas nacionais” ix . E neste ponto os trabalhos de Meireles e
Barbosa se tocam novamente. Até onde caminham os limites desta Ética? O fato é
que a obra ocasiona ruídos, alarga fronteiras do seu entendimento. Enquanto
algumas culturas entendem estas obras como perversão, outras apenas riem da
situação que beira o absurdo.
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Em 1970, durante a inauguração do Palácio das Artes, em Belo Horizonte,
Cildo Meireles erigiu Tiradentes: totem-monumento ao preso político, na semana
da Inconfidência. Ao empregar o tema da violência como matéria-prima e aludir à
situação nacional de repressão política, o gesto aterrorizante instala um mal-estar
no sistema de arte. O totem-monumento de Meireles identifica seres humanos
com certos animais e põe em circulação noções de sacrifício; Tiradentes, no
imaginário brasileiro, representa uma visão arquetípica do corpo esquartejado pela
violência política, e é assim que o artista o retratou. Representa, também, os
corpos
mutilados
daqueles
que,
muitas
vezes
injustificadamente,
foram
executados como traidores.
E onde fica a Ética do Artista, Cildo?
Você pode fazer qualquer coisa desde que você assuma. Desde que você
não queira engajar este projeto como se fosse um desejo da coletividade.
Você deve assumir a responsabilidade individual. É o que o artista faz.
Você é responsável pelos seus atos. É um problema de moral e não de
Ética x .
Neste momento, cabe descrever a primeira reação que Cildo Meireles
recebeu do seu trabalho. Uma reação surpreendente, como conta o artista:
Logo depois de atear fogo e presenciar a queima das galinhas, eu subo
uma rampa e observo o trabalho de cima, quando chega ao meu encontro
um rapaz e me pergunta se era eu, o artista. Eu respondo que sim. Ele
então me cumprimenta e se apresenta: era o presidente da seção Minas
Gerais da Sociedade Protetora dos Animais. Isto foi ótimo ter acontecido,
porque o meu medo era justamente receber críticas deste meio. Ele havia
compreendido o discurso: ‘Não é uma hipocrisia se perguntar sobre queima
de galinhas enquanto se está esquartejando jovens por causa de idéias? xi
Cildo Meireles deixa à mostra as contradições de um Estado centralizador
que carrega este legado durante várias gerações. Este trabalho exacerba, quase
“gritando”, a repercussão desta apresentação da chacina do inocente. Porém, o
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Estado, órgão fiscalizador e protetor dos cidadãos, não admite tal demonstração
de impetuosidade, ou estou enganado?
No dia seguinte, à realização de Tiradentes, houve um almoço solene. Era
dia de Tiradentes. O governo, naquele dia, havia sido transferido
simbolicamente de Brasília para Ouro Preto. Então, estavam lá o ditador do
dia, todos os políticos e congressistas adesistas. Segundo o artigo do
jornalista Morgan Mota (publicado em jornal mineiro), um deputado, durante
o almoço, fez um discurso atacando a exposição e, sobretudo ‘este trabalho
que queimava as galinhas’. Mas o curioso é que o jornalista termina o
artigo, afirmando: ‘E terminados os discursos, foi servido o almoço: frango
ao molho pardo’
xii
.
Em todo este “projeto explosivo brasileiro” xiii ,
há
uma
constante
manifestação de tensão e torção – seja no âmbito da estética, percepção e
ciência. Centrando-se em nossa experiência desses diferentes ramos do
conhecimento, o projeto visa gerar novos significados por meio do reconhecimento
dos limites e a falibilidade desses sistemas de compreensão. As obras de Cildo
Meireles e Felipe Barbosa poderiam ser descritas como uma teoria poética da
sociedade. Colocam questões de vão da política a ideais e estratégias. Examinam
espaços e processos de comunicação, as condições do espectador, os legados da
história da Arte e as fragilidades, limites e medos do Homem moderno. Podem
incorporar gestos, fogo, espaço, coisas, circuitos sociais, acumulação, potência,
linguagem construtiva, energia, explosão. Neste momento, Meireles examina Fiat
lux:
Eu lido diretamente com a pólvora. Você pode entrar em qualquer boteco e
comprar fósforo. E por que não comprar 126.000 caixas? Criar uma
situação de perigo através de um procedimento legal? Você não está
cometendo nenhum crime. Você está exercendo um direito de consumidor.
Esta é a lógica perversa do sistema. A explosão poderia matar todos que
estivessem na galeria.
xiv
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Em função destas mudanças, a interação entre os espaços da arte e da
política contemporâneas é complexa e porosa, existindo diversas possibilidades
de enunciar um discurso crítico que transite entre esses espaços sem afirmar
apenas um de seus pólos. É nesse contexto que Fiat lux busca ampliar a
percepção pública de uma das mais importantes questões da agenda política atual
sem se tornar, por isso, instrumento de propaganda rasa. Ao se estabelecer numa
galeria de arte, os fósforos percorriam a um só tempo e sem distinção alguma, o
circuito da arte, o da circulação de mercadorias e o de manifestações políticas e
religiosas. Paradoxalmente, era só assim, materialmente predisposto a destruição,
que ele adquiria poder simbólico. Como o artista anuncia:
Eu queria retirar as muletas psicológicas. O espaço de arte já cria
uma espécie de território seguro para uma experiência. Você está
dentro de um museu e, portanto estará sempre coberto por um
manto da certeza de que está seguro. Mas há sempre os desvios, e
é nisto que estou interessado xv .
Nesta obra, as caixas de fósforo formam um cubo no centro da galeria.
Essa escultura readymade inflamável é circundada por atores vestidos de agentes
de segurança, com aspecto de gangsteres, que “protegem” as caixas de fósforos
dos espectadores. O número de caixas de fósforos foi calculado por Meireles em
quantidade suficiente para explodir a galeria. O ruído dos pés dos seguranças
sobre as lixas que recobrem o chão lembra o som do fósforo sendo aceso na
caixa, de tal modo que sua própria vigilância, longe de tranqüilizar, gera ansiedade
e medo. Essa visão perversa traz à baila uma ameaça à vida e à propriedade por
meio do acúmulo de materiais que, isoladamente, seriam inofensivos. O poder
incandescente de um único palito de fósforo revela-se enorme. Apropriando-se de
objetos comuns que habitam o nosso cotidiano, Meireles neutraliza por oposição,
adição, acumulação, mudança de escalas, as suas funções pragmáticas originais,
deslocando-os para o terreno da incerteza, do perigo. O objetivo do artista não é
criar um impacto visual pela quantidade, mas usar este fator quantitativo para
alterar funções, criar novas metáforas, reverter significados: porque sozinha a
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caixa de fósforos é um objeto banal e corriqueiro, de tal maneira integrado ao
nosso cotidiano. Mas, bastaria alguém riscar um fósforo para que tudo fosse pelos
ares, ameaçando o próprio edifício onde se localizava a galeria de arte. Meireles
questiona a noção de lugar do objeto no campo da arte e chega ao extremo ao
incluir a religião cristã, assunto tão delicado na cultura brasileira, na sua
concepção de um desaparecimento completo destas muletas.
Eu queria que todas as pessoas, que estivessem habituadas ao espaço da
galeria, estivessem presentes. O espaço estaria todo guardado. Por outro
lado, as bem-aventuranças são a matéria-prima e o símbolo do trabalho.
Serviam para regular a sociedade, organizar os grupos. A idéia era explodir
aquilo. Destruir as muletas psicológicas xvi .
De fato, seria somente a partir da expressão individual, anônima e difusa
frente aos vastos mecanismos de controle social em curso que o trabalho ganharia
sentido e eficácia, o que faz de Fiat lux menos suporte de propaganda do que
proposição de uma atitude distinta frente ao espaço político. O “projeto explosivo”
tende a criar circuitos, saídas; a pólvora se ramifica em ações que tendem a
balançar as estruturas políticas de um espaço ou instituição. O que fazer com uma
caixa de fósforos? Objetivamente isto não conta e não vale nada. O importante
não é o conteúdo, mas a estrutura dessa comunicação volátil: um certo murmúrio
coletivo que não cessa de acontecer. A ironia em constante circulação dentro de
um percurso aparentemente aleatório, misturando-se ao acaso e ao anonimato.
Qualquer pessoa pode comprar fósforos em qualquer quantidade. O sistema
permite isto. Uma das suas lógicas de existência é justamente esta: acumulação.
Tanto Meireles quanto Barbosa se apropriam destas brechas e expõem a ironia
que esta “perfeição capitalista” pode atingir.
Referências
BARBOSA, Felipe. Felipe Barbosa. Rio de Janeiro: Galeria Arte em Dobro, 2006.
MEIRELES, Cildo. Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funarte, 1981.
MORAIS, Frederico. Cildo Meireles: algum desenho (1963-2005). Rio de Janeiro:
Centro Cultural Banco do Brasil, 2005.
SCOVINO, Felipe. Entrevista com Cildo Meireles. In: 19 de outubro de 2005.
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_______. Entrevista com Cildo Meireles. In: 03 de abril de 2006.
_______. Entrevista com Felipe Barbosa. In: 19 de abril de 2006.
i
A primeira versão desta obra, mas nunca realizada pelo artista, consistia em utilizar o mesmo aparato
arquitetônico e técnico, porém aplicando uma redoma de vidro sobre a vela, que também estaria sendo
alimentada por oxigênio. Além disso, todas as salas conteriam gás natural e T-burtil-mercapitano (a essência
que é misturada ao gás e nos deixa alerta quando há um escapamento do mesmo). Por motivos de
segurança, este projeto nunca foi adiante. In: Entrevista concedida ao autor em 19 de outubro de 2005.
ii
Bombanel é uma peça de metal, em formato de prisma, tendo no seu interior uma pequena quantidade de
2
pólvora. Fiat lux compreende uma área de 60m , circundada por oito espelhos, na superfície dos quais
estavam escritas oito bem-aventuranças do sermão da montanha (Mateus, 5, 3-10). No centro desta área,
estão empilhadas 126.000 caixas de fósforos cercadas por cinco atores. O chão era revestido de lixa preta. O
som do atrito dos pés sobre a lixa foi gravado e amplificado. Realizada em 1979, no Centro Cultural Candido
Mendes, no Rio de Janeiro, a exposição durou apenas 24 horas. Tiradentes: totem-monumento ao preso
político foi realizado durante a comemoração da Semana da Inconfidência, em Belo Horizonte. Numa área
externa ao Palácio das Artes, Meireles fixou uma estaca de 2,5 m de altura, sobre um quadrilátero marcado
por um pano branco e tendo no topo um termômetro clínico. A esse ‘poste’ foram amarradas dez galinhas
vivas, sobre as quais se derramou gasolina e ateou-se fogo.
iii
Homem bomba compreende um boneco de 44 cm de altura e 20 cm de largura, constituído unicamente por
‘bombinhas’ (explosivos com pequeno poder de destruição, caso não sejam usados em grande quantidade). A
obra discutida neste ensaio é o vídeo Homem bomba (VHS, 10’, 2002), realizado pelo artista, que mostra a
queima deste boneco. Bicho de pelúcia é uma série que compreende entre outros: Panda, Teddy bear e Ursa
maior. São ursos de pelúcia, que tiveram o seu tecido de pelúcia retirado e foram cobertos com estalinhos
coloridos. Neste ensaio não estaremos abordando nenhum urso em específico, mas o seu conjunto. Mórula
são circunferências feitas de palitos de fósforos colados lado a lado formando uma estrutura, que mede
aproximadamente 30x30x30 cm. Com formas muito distintas (algumas são muitas semelhantes a bolas de
futebol, outras são vazadas), esta série também carrega o fator de uma explosão iminente.
iv
Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de abril de 2006.
v
Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de outubro de 2005.
vi
O título deste ensaio é uma provocação ao tema do livro organizado por Aracy Amaral (Projeto construtivo
brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977).
vii
BARBOSA, Felipe. Felipe Barbosa. Rio de Janeiro: Galeria Arte em Dobro, 2006, s/p.
viii
Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de abril de 2006.
ix
Idem, ibidem.
x
Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de outubro de 2005.
xi
Cf. Entrevista concedida ao autor em 03 de abril de 2006.
xii
Idem, ibidem.
xiii
Gostaria de enaltecer que este termo foi criado pelo autor. De modo algum, Cildo Meireles (1948) e Felipe
Barbosa (1978) são os únicos artistas visuais brasileiros que lidam com materiais explosivos. Esta seleção foi
feita porque além de ambos lidarem com materiais que podem entrar em combustão, possuem uma
linguagem derivada do construtivismo e do neoconcretismo (e esta é umas ironias que o texto traz: a
contraposição entre a linguagem sensível do neoconcretismo e a sua herança, que nas mãos de Meireles e
Barbosa se transformaram em elementos “nocivos”). Além do fato, de registrar a continuidade desta
linguagem através de gerações.
xiv
Cf. Entrevista concedida ao autor em 19 de outubro de 2005.
xv
Idem, ibidem.
xvi
Idem, ibidem.
Currículo resumido
Felipe Scovino é doutorando em História e Crítica pelo Programa de Pósgraduação em Artes Visuais (EBA;UFRJ), professor substituto do Departamento
de Teoria e História da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
curador da Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark”.
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