Humboldt Nummer 147 / 95 Eckhart Ribbeck A revolução urbana. Com seu alto grau de urbanização e de metropolização a América Latina virou um “laboratório urbano” de muitos fenômenos que futuramente se tornarão virulentos também em outras regiões meridionais. Sobre a história das cidades A história das cidades foi escrita basicamente por pesquisadores ocidentais que trataram sobretudo as culturas clássicas européias. Essa perspectiva eurocentrada deixa de lado, de certa forma, as culturas não-européias e não leva em conta que, na história dos assentamentos urbanos, a Europa chegou atrasada. Em algumas regiões, as cidades surgiram cerca de dois mil anos antes do que na Europa greco-romana e quase quatro mil anos antes do que na Europa do Norte não colonizada pelos romanos. Existiam culturas urbanas na Mesopotâmia, no Egito, na Pérsia, na Índia, na China, na América Central e do Sul. O tamanho das cidades antigas geralmente é subestimado porque a arqueologia trata prioritariamente dos templos e palácios monumentais, enquanto as choças simples de barro, que serviam de moradia para a massa da população, desapareceram sem deixar rastros. Em 1800 a.C., a Babilônia contava cerca de 300 mil habitantes. As populações de Bagdá e da cidade imperial chinesa Changan, em 850, superavam um milhão, assim como Edo – hoje Tóquio – e Istambul por volta de 1700. A história das cidades e das metrópoles não nasceu na Europa, onde apenas por volta do ano de 1800 a cidade de Londres atingiu a marca de um milhão de habitantes. Colonização A ascensão da Europa, por volta de 1500, teve como conseqüência a destruição de numerosas culturas não-européias. A subjugação de outros povos não constituiu nenhuma novidade em si, mas com a colonização atingiu dimensões mundiais. Em um primeiro momento, a dominância européia vestiu a forma de um colonialismo tradicional, ao qual se seguiu, na era da Revolução Industrial, o colonialismo moderno. No século XVI, a colonização européia se concentrou principalmente na América Latina. A capital do reino asteca, Tenochtitlan, foi arrasada em 1521 pelos espanhóis que, no mesmo local, fundaram a Cidade do México. A civilização inca também foi devastada, e a população indígena, dizimada por guerras, exploração e doenças. A urbanização colonial dos espanhóis, no entanto, foi única em seu gênero. Por volta de 1700 já existiam no novo continente centenas de cidades e assentamentos, quase todos projetados segundo o modelo das Leyes de las Indias (1571), um precoce conjunto de regras de planejamento urbano que continha instruções precisas para a fundação das cidades coloniais espanholas. A base era o “tabuleiro de xadrez”, herança da cidade colonial greco-romana que ressurgiu na Renascença na esteira dos projetos de cidades ideais. Um elemento importante da cidade colonial hispano-americana era a plaza mayor, a praça central como centro da cidade e cenário da dominação colonial. As culturas nativas tinham sido destruídas a tal ponto que não era preciso temer o risco de um contra-ataque. Geralmente, as cidades coloniais não eram fortificadas e podiam crescer rapidamente, mas de forma ordenada – razão essencial para o êxito deste modelo urbano. O colonialismo moderno começou por volta de 1800, voltado principalmente para a Ásia e a África, onde até então só existiam algumas bases de apoio européias que tinham por objetivo controlar o comércio com escravos, ouro e especiarias. As jovens nações industrializadas buscavam matérias-primas e mercados para a sua produção de mercadorias que não parava de crescer, e neste processo destruíam sistematicamente não apenas o artesanato tradicional dos países subjugados, como também a sua cultura urbana. Urbanização global Desde 2000, metade da população mundial – cerca de três bilhões de pessoas – vive nas cidades, sendo que um bilhão no Norte e dois no Sul. Desde 1960, a população urbana dobrou na Europa e na América do Norte, enquanto foi multiplicada por oito na África, Ásia e América Latina. As cidades aumentam por causa do crescimento natural da população, da migração do campo e da fusão de cidades, sendo que na China estão surgindo aglomerações urbanas imensas cujos nomes ainda poucos conhecem. A participação da população das cidades chega a 35% do total de habitantes na Ásia e a 40% na África. Já a América Latina, onde cerca de 75% das pessoas moram nas cidades, atingiu uma taxa de urbanização semelhante à da Europa e dos Estados Unidos. Quando apenas uma minoria da população permanece no campo, a migração das áreas rurais para as urbanas diminui, o que se traduz no crescimento bem mais lento das metrópoles latino-americanas, como ocorreu na Cidade do México e em São Paulo, onde a taxa de crescimento caiu para menos de 2% por ano. Com seu alto grau de urbanização e de metropolização a América Latina virou um “laboratório urbano” onde se evidenciam vários fenômenos que futuramente se tornarão virulentos também em outras regiões meridionais. Já nos países industrializados, onde 80% da população mora nas cidades, começou um movimento de difusão espacial e, em parte, um encolhimento das cidades que voltou a reaproximar a cidade e o campo. A onda urbanizadora global também abalroará a África e a Ásia, dois continentes ainda pouco urbanizados. As sociedades ainda preponderantemente rurais se transformarão em sociedades urbanas. Estima-se que na China e na Índia surgirão algumas centenas de milhões de novos habitantes urbanos ao longo das próximas décadas. A cidade pós-européia Na Europa, estamos acostumados a defender privilégios históricos e vantagens econômicas e tecnológicas contra uma concorrência cada vez mais severa. Um dos últimos bastiões da supremacia européia seguia intocado até agora: a cidade européia com sua qualidade incomparável. Isto se fundamenta em uma longa história com raízes ao mesmo tempo no Império Romano e na Idade Média, na Renascença e no período barroco, no era dos fundadores e no período moderno. Qualquer tentativa de descrever a cidade européia com mais detalhes torna-se difícil face à multiplicidade de regiões e estilos. Fala-se freqüentemente no aspecto urbano compacto e na homogeneidade, no parcelamento em minifúndios e na mistura das destinações econômicas, na densidade urbana e no significado do espaço público. Da mesma forma, outras características completamente diferentes também podem ser consideradas “tipicamente européias”, como por exemplo, as cicatrizes na estrutura urbana herdadas por guerras e modelos que mudam rapidamente. A urbanização global implica mudanças radicais quantitativas imensas, mas também saltos qualitativos. Assim como em meados do século XIX, quando surgiu a jovem cidade industrial, revivemos hoje uma revolução urbana que gera toda uma gama de novos tipos de cidades: megacidades e gigacidades, global cities e metrópoles de barracos. No plano urbanístico, isso se expressa em estilos diferentes: cidades futuristas high-tech, cidades improvisadas low-tech e cidades no-tech que mais parecem imensos campos de refugiados. Pelo visto, a evolução do urbanismo em grandes partes do mundo está se divorciando da Europa, que durante muito tempo foi um exemplo inegável. De forma eurocêntrica, tendemos a condenar muitas das novas configurações urbanas como sendo equivocadas, por serem ora muito grandes, muito pobres, muito densas, muito altas ou muito feias – em suma, um futuro que mete medo. No entanto, deveríamos nos lembrar das primeiras cidades industriais que, para muitos contemporâneos, eram catastróficas, como mostram relatos de época, mas que mesmo assim se tornaram modelares. Muitas das cidades que estão surgindo já não podem ser medidas com critérios convencionais. Mas possuem uma qualidade própria, um dinamismo indomável, fortes contrastes e estão em constante mudança e improvisação. Deste modo, o planejamento urbano fora da Europa também representa uma inovação e um desafio, semelhante ao que ocorria no século XIX, quando a cidade industrial semi-acabada apareceu no cenário. Ainda não se sabe que rumo a urbanização mundial galopante vai tomar. Possivelmente, a gama das formas de cidade e de construção nunca tenha sido tão grande como hoje – uma multiplicidade que corre o risco, porém, de se reduzir rapidamente. Em muitos países, centros comerciais e guetos de luxo, feiras de rua e conjuntos habitacionais são iguais – uma urbanização globalizada, socialmente polarizada, que expulsa cada vez mais as culturas arquitetônicas locais. Construção espontânea Em muitas metrópoles do Hemisfério Sul, é largo o espectro das diferentes formas de moradia. Enquanto o luxo dos quarteirões dos abastados chega a dimensões provocadoras, os bairros pobres carecem das instalações mais elementares. Ao mesmo tempo, as megacidades desenvolvem novas formas de moradia que se distanciam nitidamente das européias. Isso vale tanto para os condomínios fechados – as gated communities – dos ricos quanto para os assentamentos espontâneos dos pobres excluídos dos mercados imobiliários e fundiários formais. As construções populares próprias mostram que, nas megacidades, a velha tradição de construir a casa com as próprias mãos ainda não desapareceu – ao contrário, está vivenciando um ressurgimento gigantesco, ainda que em circunstâncias completamente diferentes do que ocorria no contexto rural tradicional. Em muitas das grandes cidades do Hemisfério Sul – principalmente na América Latina – a construção espontânea é uma característica marcante. No entanto, as ocupações fundiárias espontâneas ou invasões, em anos pregressos, freqüentemente abriram espaço para um mercado fundiário regular que organiza o problema habitacional das massas e o trata de forma profissional, orientada para o lucro. Corretores informais dividem a periferia em um traçado de lotes e os vendem – de forma mais ou menos ilegal – a famílias de baixa renda que ali erigem suas casas próprias precárias. Geralmente, falta-lhes qualquer infra-estrutura, por isso a construção espontânea significa também urbanização espontânea, pois não apenas se erige, a muito custo, a casa própria, como os terrenos loteados ainda precisam se tornar habitáveis. Ao mesmo tempo, os assentados precisam combater ameaças e discriminação por parte da administração municipal e da população estabelecida. As políticas públicas e urbanas oficiais mostraram-se incapazes de oferecer uma alternativa habitacional às massas e, por isso, os loteamentos clandestinos se constituem na mais importante válvula de escape para a pressão social gerada pela falta de uma política fundiária e habitacional. A postura dos políticos e dos planejadores urbanos é proporcionalmente ambivalente. De um lado, os “assentamentos espontâneos” ameaçam a ordem estabelecida, o que justificaria um controle rigoroso e medidas repressivas, por outro lado se constituem no único modelo habitacional que funciona e que permite à população carente o acesso a um terreno para construir. Com isso, a alternância entre ameaças e uma postura tolerante em relação a esses assentamentos espontâneos tornou-se um instrumento político para manter as massas dependentes e sob controle. A receita do sucesso dos corretores ilegais de lotes é mais do que simples: um padrão esquemático de parcelamento em lotes, sujeito a correções posteriores, e a liberdade de construir quando e como se quiser – são estas as principais características dos chamados “conjuntos habitacionais espontâneos”. Em um primeiro momento, os parcos meios e a origem irregular produzem construções brutas. Mas é surpreendente a variedade que se esconde atrás da aparente monotonia. Cada casa é um exemplar único no que se refere à planta baixa e à execução. Tudo se parece e nada é igual – esta poderia ser a fórmula para a riqueza inesgotável de variações das construções próprias. Igualmente aberta é a estrutura urbana, de forma a que, depois de muitos anos e condições favoráveis, uma favela precária pode ser transformada em um bairro habitacional consolidado. Muitos habitantes das periferias trabalham no setor da construção civil e conhecem as modernas técnicas de construção. Por esta razão, os assentamentos espontâneos assimilam tudo aquilo que funciona comprovadamente e que está ao alcance das parcas finanças. Para o povo, a casa é o principal ponto de apoio no caos metropolitano. A casa deve ser capaz de assimilar famílias que crescem rapidamente, assim como atividades produtivas ou comerciais, capazes de gerar emprego e renda. Por isso, em muitas casas há lojas ou oficinas ou alugam-se quartos. Acima de tudo, a casa deve ser um porto seguro para onde a família pode se retirar e onde é possível sobreviver com recursos mínimos em caso de desemprego ou doença. Quando há prosperidade, a casa deve ser passível de ser ampliada e transformada, ganhando um tamanho respeitável e uma fachada representativa. A casa própria típica é uma “embalagem“ extremamente flexível que reage a cada transformação familiar ou econômica, ao contrário do que acontece com a casa convencional de custo baixo, geralmente uma “fôrma” otimizada para uma “família padrão” e para uma determinada classe de renda que praticamente não pode mais ser transformada. Na maioria das metrópoles do Sul, não são os conjuntos habitacionais oficiais os marcapassos do abastecimento de moradias, e sim as construções espontâneas que, na América Latina, já contam com a experiência acumulada de algumas décadas. Incontáveis conjuntos de moradias a baixo custo forneceram um teto para muita gente mas praticamente não tiveram maior eficácia. Os tipos de moradia inventados para os “pobres”, com suas plantas baixas e formas de construção, raramente sobrevivem alguns projetos-piloto, enquanto as estruturas de concreto das casas próprias em estado bruto se tornaram no mundo inteiro um emblema da construção espontânea. Poderia se falar de uma “modernidade informal” ou improvisada criada pelo povo em toda parte onde a “modernidade formal” falhou. Portanto, a construção espontânea não é uma tradição que deva ser conservada nostalgicamente, tampouco uma improvisação desamparada que demanda urgentemente a ajuda de especialistas, e sim uma prática de sobrevivência testada das massas urbanas que, apesar da miséria e contra todos os obstáculos, conquistam uma parcela da cidade. As casas de construção própria são sempre “casas em crescimento”. Depois de uma ou duas décadas, porém, muitas casas já não se transformam porque a necessidade de espaço da família foi preenchida e porque os limites econômicos e arquitetônicos foram atingidos. Nas colonias populares da Cidade do México, estas casas “saturadas” geralmente têm dois andares e de cinco a oito cômodos, o que oferece espaço suficiente para uma família inteira. Com uma loja ou oficina no andar térreo, cômodos para a família no andar de cima, puxadinhos para parentes ou para alugar, com quintal e laje, esta é uma espécie de “casa ideal” que se procura realizar em muitas variações. Muitas famílias, porém, nunca chegam a este nível de execução. Evolução incerta do bairro informal Em sua maioria, os bairros mais antigos permanecem em um estado semiconsolidado, onde, por um lado, há muitas casas de dois andares e atividades comerciais, mas também ainda muitos problemas e sinais de estagnação. Mesmo depois de 20 ou 30 anos muitas casas ainda não foram emboçadas, e acima da laje continuam canteiros de obras já visivelmente envelhecidos. Mesmo assim, os bairros de construção popular semi-acabados permitem uma vida mais ou menos normal na cidade, as condições de moradia são suportáveis, o custo de vida relativamente baixo, e a infra-estrutura existe em muitos setores, ainda que em um nível baixo. Isso tudo permite a sobrevivência de famílias pobres, bem como a ascensão social. Da mesma forma como aconteceu com as “invasões” caóticas já há três ou quatro décadas, assim os novos loteamentos clandestinos esbarram crescentemente com obstáculos. Terrenos cada vez mais raros, salários estagnados, custos crescentes de transporte e construção e um controle de planejamento mais rígido na periferia freiam os assentamentos irregulares. Por isso, a pressão volta a ficar mais forte nas áreas mais centrais da cidade, fenômeno conhecido como implosão urbana nas cidades latino-americanas. Neste processo, os bairros populares situados em áreas mais privilegiadas se transformam em bairros de aluguel de vários andares em que os limites tradicionais da construção própria são ultrapassados. Este fenômeno ocorre paralelamente à absorção pelo mercado imobiliário formal que, nas metrópoles latino-americanas, se caracteriza ainda por um alto grau de especulação. Freqüentemente, estes bairros informais mais antigos dispõem de um núcleo bem consolidado, com ruas de comércio bem desenvolvidas, que convive ainda com outras partes muito precárias. Em muitos casos, é impossível apontar em que direção o bairro vai se desenvolver no futuro. Portanto, a fundação de um assentamento espontâneo na periferia externa da cidade é sempre um empreendimento com desfecho incerto. Quando uma dessas áreas de construção espontânea vive uma dinâmica metropolitana de crescimento graças à sua situação favorável, as práticas costumeiras low-tech do urbanismo de auto-ajuda já não bastam. As utilizações econômicas e as densidades precisam ser controladas, o trânsito deve ser regulamentado, a infra-estrutura precisa ser ampliada. As áreas livres e o espaço coletivo devem ser planejados. Tudo isso requer planejamento urbano e investimentos públicos, assim como ocorre nos setores urbanos estabelecidos. Se o mercado fundiário se dinamiza, ocorre uma contradição entre os novos valores dos terrenos e as antigas construções espontâneas. Elas acabam substituídas por construções capital-intensivas e novas atividades comerciais: é o fim do urbanismo de auto-ajuda, que já não serve mais e pode ser substituído... De Eckhart Ribbeck Copyright: Goethe-Institut, Humboldt www.goethe.de/humboldt Tradução do alemão: Kristina Michahelles