Carta de Alguém que Nunca Teve a Coragem de a Escrever...
Esta carta é pura ficção. Qualquer semelhança com um caso real é pura
coincidência...
Caros colegas do meu Departamento:
A carta que aqui vos escrevo tem por finalidade aliviar a minha
consciência que se encontra extremamente pesada por tudo aquilo que tenho
feito ao longo de tantos anos. Durante todo este tempo tenho conseguido
aguentar iludindo-me a mim próprio e aos outros, convencendo-me a mim e
aos outros que o que faço é no proveito de todos, do meu Departamento, da
minha Faculdade mas na realidade não tenho tido nada disso muito em
consideração. Pelo contrário, não resisto ao prazer quase físico do prestígio
social, do poder, de ser eu a mandar, mesmo que isso só me rodeie de gente
menos humana e mais como eu.
Peço desculpa a tantos de vós por ter feito e continuar a fazer toda a
minha política por detrás, às escuras, nos corredores. É que não consigo
mesmo fazer as coisas às claras, olhos nos olhos, não aguentaria o vosso
olhar triste e resignado por nada poderem fazer já que eu sou o mais forte,
o superior, quem tem o vosso destino nas mãos. Na realidade, não é bem
assim, nenhum homem tem poder para retirar a dignidade a outro homem, a
menos que este o permita, mas resistir é bem difícil, e eu sei aproveitar
bem isso.
Peço desculpa a tantos de vós individualmente, pessoas de quem
aproveitei o trabalho, para chegar aonde cheguei, para poder passar por
aquilo que não sou. Nunca publiquei um único artigo em revistas
especializadas de certas áreas científicas de que sou considerado
especialista. Mas no país em que estamos, felizmente para mim, infelizmente
para o progresso real da Ciência, basta que eu diga que o sou, para que me
acreditem, já que sou catedrático, fiz uns trabalhos de divulgação, e li umas
coisas sobre isso. Se fosse no estrangeiro, por exemplo nos EUA que eu
tanto admiro, não me davam crédito nenhum pois eu não fiz qualquer
trabalho realmente de investigação científica nestas áreas, como aliás pode
ser comprovado pela análise do meu curriculum. A minha sorte é que eu
tenho sido hábil em juntar à minha volta pessoas que fazem o trabalho
científico por mim e depois eu como chefe do grupo, acrescento o nome nos
trabalhos deles, nas iniciativas que eles organizam e fico com o prestígio daí
decorrente.
Nos últimos anos, tenho andado louco de todo. Não sei se será da idade,
ou das hormonas... A verdade é que nem os meus melhores amigos me
reconhecem e têm tentado fazer-me ver que estou obcecado. Mas eu não
lhes dou ouvidos. Acho que fiquei sedento de poder e quero afirmar a minha
vontade, nem que para isso tenha que esmagar os meus amigos e aliar-me
aos meus até agora inimigos que sempre detestei e de quem sempre disse
tanto mal. Não sei como é possível que eu tenha descido tão baixo de modo a
aliar-me a eles agora, mas a conveniência é uma coisa muito forte, e apesar
de isto me tornar odioso até aos meus próprios olhos, não consegui resistir
a isso. Hei-de contudo arranjar maneira de dormir descansado, pois assim se
caracteriza um bom político e um mau homem de ciência, já que em Ciência a
objectividade e honestidade devem reinar.
Acho que conseguirei escapar ileso e sem grandes problemas de
consciência...
Estou agora a tentar virar as pessoas umas contra as outras dentro das
várias instituições que frequento.... Acho que sempre fiz isso... mas só agora
é que começo a notar e a fazê-lo em larga escala...
Daí pedir-vos desculpa... Eu sei que não consigo mudar e vou continuar a
fazê-lo mas isto talvez alivie um pouco a minha pessoa e isso é o que me
importa.
De resto, também para que é que havia de mudar? No nosso país nunca
sofrerei consequências por isto. Continuarei sempre a enganar bem todas as
autoridades (que continuam a chamar-me para estar presente em tudo o que
é comités de avaliação ou aconselhamento para tudo; e eu claro que aceito,
mesmo quando é numa área em que eu pouco percebo. Se os serviços das
autoridades não sabem distinguir, havia eu de ter a honestidade de lhes
dizer que eu não sou especialista nessa área? Não sou assim tão parvo!).
A minha família felizmente nada sabe disto... nem de nada mais... e
espero que continue na ignorância. Quem não sabe, não sofre... E eu sou
assim, sou mesmo assim, sou...
(Qualquer semelhança com um caso real é pura coincidência...)
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Uma Carta que Nunca Foi Escrita