Correspondência passiva com Olga Benario
Berlim, 11/04/1937
Carlos, meu querido.
Com a ajuda de nossa Mãe, estou tentando fazer-te chegar estas linhas.
Lamentavelmente só me permitem escrever em alemão, sendo necessário, portanto, que te
contentes com a tradução de minha carta.
Antes de tudo, quero falar-te da nossa pequena. A Anita Leocadia tem agora mais de quatro
meses. Ela se desenvolve muito bem. Quando nasceu, pesava 3.800 gramas e agora 6.380
gramas, sendo que, ao mesmo tempo, ela aumentou de 55 para 64 centímetros.
Externamente ela é uma mistura de nós dois. Tem cabelos castanhos, tua boca e tuas mãos.
É lindo vê-la mover seus dedinhos da mesma maneira que tu. Seus olhos são muito grandes
e azuis, mas não tão claros como os meus, antes de um azul violeta. Além disso, ela tem
uma tez clara e macia e, lindas faces rosadas. Como seria feliz se tu pudesses ver! Ela não é
mais, um absoluto, o bebezinho tolo, mas uma verdadeira menininha. Usa vestidinhos,
sapatos e meias. Ela está em sua cama, brincando com seus dedinhos e seus brinquedos e
tenta, na medida em que pode, metê-los em sua boquinha. Sem dúvida, começará bem
cedo a falar, pois balbucia o dia inteiro os mais engraçados sons. O mais lindo é seu sorriso.
Ela pode sorrir tão bem que a gente esquece todo o mal deste mundo. Imagino como tu
brincarias com ela e puxarias sem parar sua mecha de cabelos, plantada com graça em sua
cabeça.
É verdadeiramente surpreendente que, após tudo o que passei, a nossa filha esteja
tão bem. Sem dúvida, isso se deve em grande parte ao fato de eu a amamentar. Enquanto eu
puder fazê-lo, poderá ela ficar comigo, pois estamos no hospital de uma prisão de mulheres.
Quanto a mim, vou mais ou menos bem. Entretanto, a amamentação em tais condições me
cansa bastante.
Meu querido, a nossa Mãe me mandou teu retrato. Seguidamente passo horas, com a
pequena Anita Leocadia nos braços, a olhar-te e estar pelo pensamento contigo. Faz agora
mais de um ano que estamos separados. Mas tu sabes, não é verdade?, que todo esse tempo
difícil só se fez reforçar meus sentimentos para contigo. Certamente, encontrarei forças
para esperar o dia feliz em que estaremos de novo unidos.
Se for possível, escreve-me! Podes imaginar o quanto estou inquieta de encontrarme inteiramente sem notícias tuas e que alegria me trariam algumas linhas tuas.
A pequena Anita Leocadia envia muitos beijos ao seu papai. Eu te abraço de todo o
meu coração. Tua Olga.
Berlim, 15/05/1937.
Carlos, meu querido.
Faltam-me palavras para dizer-te da alegria que senti ao receber tuas linhas de 16 de
março; percebi com mais força meus sentimentos e aperto contra meu coração, com um
amor maior ainda, a pequena Anita Leocadia. Não obstante os longos meses durante os
quais estivemos absolutamente sem notícias um do outro, não houve um só dia em que eu
não estivesse contigo pelo pensamento. Tudo o que nos une me dá forças para suportar a
situação atual.
Meu querido, quero falar-te da pequenina. Ela pesa agora 7.200 gramas e este
último mês aumentou mais quatro centímetros. Tem agora, portanto, 68 centímetros.
Atualmente, bastaria “somente” que crescesse ainda um metro, que seria uma pessoa
adulta.. A maior parte do tempo, ela se encontra em sua cama, com as perninhas para o ar,
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sendo que agarra um de seus pezinhos com cada uma das mãos. Gostaria que tu visses
como sua carinha se ilumina quando a gente se aproxima dela. O mais alegre são seus
olhos azuis, tão brilhantes e tão claros, e verdadeiramente “pícaros”, como sempre
chamavas os meus. É admirável constatar a mímica num ser tão pequenino: a alegria, o
aborrecimento, a fome, a fadiga, tudo isso é possível ler em seu rostinho; ela entende
inclusive muito bem o que a gente quer dela, se se está brincando, se se está sério ou
mesmo se se está zangado. Se lhe dou de mamar, desde o momento em que a tomo em
meus joelhos, ela abre sua boquinha como um passarinho sedento; seguidamente, quando
está quase insatisfeita, ela larga meu seio, me sorri e volta bem depressa sua cabecinha para
tomar o resto do leite. Se este procedimento não ocorre bem depressa, ela fica impaciente e
bate em mim com suas mãozinhas. Quando conversamos, pega-me pelo nariz, pelos
cabelos e eu desejaria muito que um dia te arrancasse uma mecha de cabelos, como faz
sempre comigo. Que lástima não poderes assistir um banho matinal Ela gosta muito de
espernear dentro da água quente. Quando está toda ensaboada, a envolvo num pano para
esfregá-la. Então, temos um pacote branco, que se mexe de vez em quando e de onde sai
um bracinho ou um pezinho. Se lavo seu rosto, ela chora; se lhe esfrego as costas, grita de
prazer, e quando chego à barriga, ela ri às gargalhadas. Todos os dias é a mesma coisa e
todos os dias novamente me alegro. Quando a Anita quer se acalmar, chupa meus dedos, ou
seja, mete na boca os dedos médio e anular e põe o indicador na ponta do nariz. Como sinal
de um favor especial mete também na minha boca às vezes um dedinho; e imagino que seu
papai Carlos receberia também este favor. Há ainda muitas outras coisas para dizer, por
exemplo como fazemos ginásticas, como cantamos canções, etc..., mas te falarei disso na
próxima carta. Envio-te hoje uns cabelinhos de Anita. Eles rodeavam de uma maneira tão
desordenada sua nuca, que os cortei para tê-los enviar. São ainda seus primeiros cabelos.
Os que nascem agora são verdadeiramente louros e estou triste porque ela se parece
externamente tão pouco contigo.
No que me diz respeito diretamente, não te preocuopes tanto. Com a ajuda da
Mamãe, tenho comprado alimentos suplementares e o outro dia recebi, inclusive , dela um
grande pacote de mantimentos. Podes bem imaginar com que prazer comi geléia de laranja
e marmelo. Do ponto de vista da saúde, estou também bastante bem. Superei a febre que
tinha após o parto. Tu sabes por experiência própria como o homem é resistente.
Meu querido, agora estamos na primavera em Berlim. A primeira após tanto tempo!
Somente eu a percebo muito pouco. Passeamos todos os dias uma meia hora no pátio da
prisão e, desta maneira, anda-se a uma distância de três metros da prisioneira seguinte e
sempre dando-se voltas. No pátio há uma árvore e lá no alto uma família de passarinhos.
Creio que são melros. No início estavam chocando e agora têm os filhotes. É possível vêlos voltar sem parar para alimentar seus filhinhos com minhocas ou outras coisas. Eu os
olho e, então, penso sempre em nós. Porque os homens chegam a separar assim uma família
como o fizeram conosco? Há todo um oceano entre nós e, entretanto, estamos tão próximos
um do outro. Quisera ficar sentada durante muito tempo ainda a escrever-te, mas é preciso
terminar. Carlos, beijo teus queridos olhos negros e desejo que eles brilhem de alegria. Tua
pequena
Olga.
Berlim, 02/06/1937.
Meu querido Carlos.
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Quero hoje escrever-te, mesmo não tendo ainda tua resposta às minhas cartas. Seria
muito demorado esperar sempre tuas resposta, e é por isso que penso ser melhor nos
escrevermos mais seguido.
Naturalmente, quero falar-te da pequena Anita Leocadia, pois é ela que atualmente
enche a minha vida e que lhe dá sentido. Ainda te lembras de uma conversa, em que
afirmaste que sempre se ama mais que tudo uma pessoa e que esse amor não tem limites;
era isso que tu me dizias naquele momento ao desenvolver um raciocínio em circunstâncias
diferentes. Isso eu o sinto agora com a pequenina. Após o parto, quando me trouxeram
aquele pacotinho, eu o olhei criticamente e pensei: este vai ser meu filho. Mas, desde a
primeira mamada, como se estabeleceu rapidamente um laço, que criou mil ligações entre
nós! O cordão umbilical foi cortado, mas a ligação já estava estabelecida. Minha vida é um
espelho da da pequenina. Meu estado moral e físico depende do da pequenina. E a gente se
esquece de pensar em si própria. Como é doce esta criancinha! Cada dia são novos milagres
a descobrir e cada dia é um novo laço do coração. É tão lindo alimentar a pequenina. Isso
me dá forças para viver pensando que posso dar-lhe o que possuo. Como ficarei triste,
quando este último laço físico terminar. Sei que terei perante mim deveres mais sérios em
ralação a esta criança - sua correta educação. Creio que ela se tornará um indivíduo de
cabeça forte: seguidamente ela não parece ser fácil. Em geral, está calma e meiga em sua
cama, ela brinca e tem um sorriso muito amistoso para todos os que lhe falam. Mas há dias
também em que não se pode fazer mais nada: ela chora, fica toda vermelha de raiva,
esperneia, quer que a gente a afague. Para mim é muito difícil não mimá-la. Mas não o
faço, a ponho em sua cama e a deixo chorar; ela continua chorando até adormecer e depois
ainda suspira dormindo. Acredito que é necessário agir desta forma, pois ela já está menos
caprichosa do que no início. Mas não penses que sou muito severa com ela. Uma criança
tão pequenina precisa tanto do carinho materno quanto do seu leite. Ela recebe todo esse
carinho como algo inteiramente natural e fica cada vez mais feliz, radiante.
Agora o tempo está muito frio e estou em guerra com as pernas da Anita. Gostaria
bem que ela ficasse sob as cobertas para que não tivesse frio, mas ela precisa de suas pernas
para brincar. Durante o dia inteiro, ela as agita, às vezes estão no ar e às vezes galopam
como cavalos e somente quando dorme, ela as deixa descansar enroscadas, como cavalos
cansados que regressam à estrebaria. É quase impossível dizer-te tudo o que eu poderia
contar-te sobre a pequenina.
A nossa Mãe me escreveu que recebeste algo para ler. O que estás lendo? Faz-me
participar de tuas reflexões sobre essas leituras. Que pensas de dedicares uma parte de teu
tempo ao estudo do idioma alemão? Poderias tu próprio ler as minhas cartas. Tenho a
permissão de ler um livro por semana da biblioteca da prisão. No começo, recebia livros
sem nenhum valor, mas, nestes últimos tempos, li livros de Tolstoi - “Ana Karenina” -, as
Cartas de Goethe à Mme. de Stein, Knut Hamsun, etc... Ainda não consegui fazer algo
sério. Pedi à nossa Mãe que me mande alguns livros de psicologia, pois isso será útil para a
educação da criança e também porque me interessa muito. Quisera bastante continuar a
estudar português, pois não posso esquecer que fiz progressos durante o tempo que estive
presa no Brasil.
Peço-te, Carlos, que me escrevas mais detidamente sobre a tua saúde. Consegues dormir? E
como vão as tuas dores de cabeça? E te alimentas suficientemente? Recebeste minha carta
que te escrevi algumas hora antes de chegar a Hamburgo e que te entreguei ao policial que
nos acompanhava? (1) Quando soubeste do nascimento da pequenina e recebeste meu
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telegrama de 28 de novembro, informando-te a respeito? (2) Ainda não me disseste se o seu
nome te agradou.
Agora, meu querido, espero ter notícias tuas bem depressa, porque tuas linhas são para mim
a maior alegria. Abraça-te de todo coração e te envio muitos beijos.
Tua pequena.
PS = A pequena Anita Leocadia te dá um beijo em cada face.
1. Olga foi expulsa do Brasil e deportada para a Alemanha, juntamente com Elize Ewert,
em setembro de 1936, tendo sido ambas levadas em navio cargueiro alemão diretamente ao
porto de Hamburgo.
2. Anita Leocadia nasceu a 27/11/36.
Berlim, 28/07/1937.
Karli, meu querido!
Às vezes, quando acaricio a nossa pequenina, ela se mantém totalmente tranqüila e
tem somente um sorriso feliz em seu rostinho. Comigo foi a mesma coisa. Quando recebi
tua querida carta de 22 de junho. Surpreendo-me, às vezes, a repetir bem baixinho o teu
nome...
Mas dize-me, meu querido, porque não me escreveste durante três meses? De 16 de
março até 22 de junho houve um grande silêncio e isto apesar de que tu poderias escreverme todas as semanas. Se eu fosse capaz de me zangar contigo, isso teria sido uma razão não sabia mais o que deveria pensar. A primeira palavra inteligível que a nossa pequenas
disse foi “papá” e seguidamente, estando deitada, dizia durante horas no mesmo tom: ba-ba,
ba-ba, e eu tinha o coração oprimido...
Pois bem, quero falar-te antes de tudo da pequenina. Imagina que os dois primeiros dentes
apareceram. Isto aconteceu com muita facilidade e agora ela morde tudo que se possa
imaginar. Em geral, ela está atualmente muito viva. Neste momento ela se encontra
justamente em sua cama e suas pernas executam uma verdadeira dança de crioulos. Quando
a tomo em meus braços, ela faz ginástica em cima de mim como um macaquinho sobre
barras. No que diz respeito ao conhecido banho matinal, basta dizer-te que depois se pode
andar de canoa dentro da minha cela. Ela bate com suas mãozinhas e seus pezinhos dentro
d'água e quanto mais alto vão os respingos, melhor é. Por vezes, ela me olha como se
quisesse perguntar: “que me dizes disso?” E o que poderia eu fazer senão achar graça?
Gasto bastante tempo para enxugar depois a cela.
É também admirável como é interesseira! Se há legumes para comer e não o
bastante para ela, terias que ver como faz beicinho! Resmunga, então, após cada colherada
e tem tanta fome que bate com o pé com impaciência. Então eu me rio dela e ela fica
seriamente decepcionada com os resultados de seus esforços. Ou ri muito divertida ou
começa a gritar horrivelmente. Às vezes, ao comer de colher, lembra-se que é muito melhor
mamar no peito de sua mãe e com uma boquinha suja se lança sobre a minha blusa - podes
imaginar em que estado fica a blusa depois disso. Agora quero falar-te da nossa ginástica.
Todas as manhãs, antes do banho, eu lhe tiro toda a roupa e a ponho sobre uma coberta em
cima da mesa. De início, corremos. Pego uma perninha em cada mão a as movimento
rapidamente para frente e para trás. Ao mesmo tempo, dizemos que o papai sabe correr
muito depressa e que não podemos ficar para trás. Depois fazemos movimentos com os
braços, o cotovelo direito sobre o joelho esquerdo e após nos levantamos nas mãos da mãe
até que fiquemos sentadas e depois fazemos o mesmo movimento para trás; e devido ao
esforço ela fica com a cabeça toda vermelha. Depois fazemos exercícios para as costas e,
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finalmente, a seguro pelas duas pernas, com a cabeça para baixo, e assim ela navega um
movimento. Ainda que seja uma atividade muito séria, nos rimos muito e ela quase toca
clarim de satisfação.
Sabes, há milhares de lindos detalhes e cada um é mais belo que o outro. Mas não se
pode pôr tudo isso numa carta. Posso dizer-te apenas que eu não duvidava em absoluto de
como é lindo ter uma criancinha assim e que estou verdadeiramente agradecida à vida por
poder gozar esta felicidade - mesmo longe de ti e atrás dos muros da prisão. Tu dizes muito
bem que a fatalidade da vida te privou dessa felicidade. É verdade, meu querido, e,
entretanto, todos os sofrimentos, tantos meses, tantas horas sozinha na prisão também
tiveram algo de positivo. Aprendemos a distinguir o essencial do ilusório e nossos melhores
sentimentos e mais belos pensamentos se tornaram mais profundos e estáveis, não é
verdade?
Sobre o que dizes de Arquimedes, seu ponto de apoio e o mundo dos sentimentos,
parece-me que nesse caso o velho grego é mais materialista do que tu! Mas, contudo, estou
de acordo!
Além disso, posso apenas dizer-te que há várias semanas uma verdadeira
abundância de boas coisas me aconteceu: um magnífico pacote de roupas que veio de Paris
e depois novamente coisa que foram compradas em Berlim. Tu sabes como aprecio
semelhantes coisas, mas aqui na prisão são verdadeiros raios de luz vindos de outro mundo.
É apenas excessivamente demasiado o que nossa boa Mãe faz por mim e por nossa filha, e
receio que faça sacrifícios muito grandes. De resto, tenho tanta roupa de criança, que daria
para um segundo bebê.
Junto com esta carta estou te mandando uma folha de trevo de quatro folhas. Não
sou superticiosa - mas todos estes últimos meses eu pus o carrinho da Anita numa pontinha
de grama que existe em nosso pátio, e ontem, inteiramente por acaso, o encontrei. É
verdade que precisamos de felicidade!
Mas, meu querido, esta carta já está novamente muito extensa e, entretanto, haveria ainda
tanta coisa a dizer.
Gostaria de saber de ti se tens direito a passear ao ar livre, se consegues dormir bem e se a
tua alimentação é mais ou menos razoável. Ainda sofres da mesma maneira de dores de
cabeça e dize-me como vai em geral a saúde. Após tua condenação, tua prisão não mudará?
A lei prevê, como sei, que os prisioneiros podem ter suas famílias com eles; eu gostaria
tanto de partilhar tua prisão junto com filha Anita.
Bem, meu querido, espero que acrescentes também algumas linhas para mim às
cartas que escreves todas as semanas à Mamãe e às manas. Prometo-te também escrever
regularmente a cada dez dias.
Karli, como eu gostaria de ver-te apertar em teus braços a pequena Anita Leocadia e como
gostaria de abraçar-te! Sou de todo o meu coração
Tua Pequena.
Berlim, 09/08/1937
Carlos, meu querido.
Conforme o prometido, quero escrever-te. Inicialmente, desejo falar-te da permissão
que obtive para conversar com a Mme. Ewert. Por fim as administrações cederam às nossas
solicitações repetidas e, assim, pude revê-la pela primeira vez após dez meses e mostrar-lhe
nossa filhinha. Compreenderás que, após todos os sofrimentos comuns, eu a quero como a
uma irmã. Naturalmente os longos meses de prisão numa cela isolada deixaram suas marcas
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- ela tem atualmente os cabelos totalmente brancos e está muito nervosa. Mostra-se muito
inquieta com a falta de notícias de seu marido. Algumas linhas do seu próprio punho
seriam, sem dúvida, um grande conforto para ela. A pequena Anita Leocadia reagiu com
gritos terríveis à recepção um tanto violenta. Mas acalmou-se rapidamente e, depois de
tudo, ficou sentada pacificamente no colo da tia Sabo, puxando-lhe o nariz e os cabelos.
Permitiram-me também lhe dar o romance “O Guarani”, o que vai constituir motivo de
alegria para ela em sua solidão...
Agora quero falar-te da nossa pequenina. É admirável como se desenvolve a cada
dia. É interessante ver que esse desenvolvimento não se faz em linha reta. Observo isso por
muitas coisas. Por exemplo. Houve dias em que ela ia muito bem ao “trono”, mas agora
nada se consegue nesse sentido. Ela fica crispada, não quer ficar sentada e chora. O mesmo
acontece com a colher para comer. Durante algum tempo tudo ia muito bem, mas depois
tornou-se tão impaciente que quase saltava de meus braços, e agora tudo vai novamente
bem. Como em outros domínios da vida humana, não há progresso nem regressão...
O que mais provoca o interesse da pequenina no momento são as fitas e os botões.
Ela não pode ver um nó sem desatá-lo e metê-lo na boca e um botão sem mordê-lo. Como
seus sapatinhos de lã em geral são amarrados por fitas enfeitadas por pompons, acontece o
seguinte: não obstante os múltiplos nós, ela desata o nó e tira o sapato. A fita do outro
sapato é esticada também o máximo possível, passando por cima do dedo grande do outro
pé (naturalmente os dois pés estão no ar) e depois ela morde com o maior entusiasmo o
pompom que fica na ponta da fita. Às vezes, um pompom é arrancado e tenho a maior
dificuldade para tirá-lo da sua boca. Sua preferência por essa brincadeira levou-me a
apelidá-la de “Pom-Pom”, de brincadeira. Com seus dois indicadores ela está fazendo uma
coisa inteiramente nova. Quando quer algum coisa, estende a mão para obtê-la. Se, então,
sua mão está bem próxima do objeto desejado, ela faz um gancho com os indicadores, tenta
com prudência e somente então pega o objeto. Isso é muito engraçado.
À noite, às seis horas, quando ela já tomou seu leite, temos uma hora de bate-papo.
Posso então baixar minha cama, que durante o dia deve estar contra a parede; estendo uma
coberta com a pequenina em cima e me sento na cama. Ela se aproxima de mim bem
depressa e, então, brinca comigo. Devo permanecer totalmente imóvel, e ela passa suas
mãos suaves e quentes no meu rosto. Se isto me incomoda e eu faço uma careta, ela acha tal
coisa ainda muito melhor e ri muito alto. Com muita freqüência, ela ajuizadamente faz
apenas “bravo-bravo” com as mãos. Ela sabe muito bem que tem direito a esta hora de
brincadeira e se eu tenho alguma coisa ainda a fazer, ela reclama e seus olhos me seguem a
cada passo, revelando sua atitude de espera. Estou tricotando-lhe umas calças para o
inverno. Ela absolutamente não gosta, se os olhos de sua mãe estão voltados o tempo todo
para o trabalho. Então me faz lembrar alguém que, em ocasiões semelhantes, reagia de
maneira parecida...
Atualmente ela já está tão grande que é difícil abraçá-la com força. Ela pões, então,
seus dois braços em torno do meu pescoço, se aperta contra mim e grita de alegria. Diante
das outras pessoas, ela ficou muito mais reservada. Olha-as com curiosidade e depois me
olha de maneira interrogativa, como se quisesse saber minha opinião sobre a pessoa. Para
rir amistosamente, ela já deve conhecer a pessoa. Com isto, chega por hoje da pequena
Anita Leocadia.
Como fiquei feliz ao saber pela Lygia que não te encontras mais na Polícia Especial.
Conheço a Casa de Correção. Estás na Capela? E podes ler quatro jornais! Sei que os
jornais são para ti como o ar para viver. Como gostaria de estar sentada ao teu lado,
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ouvindo teus comentários! Espero que ainda exista, como no meu tempo, a rádio da ANL
(1) que ia ao ar todas as noites. Penso nas belas canções que uniam os operários,
camponeses, soldados, marinheiros, intelectuais, oficiais, negros, brancos, mulatos, homens
e mulheres e expressavam o grande sonho do povo brasileiro. Que lástima que não estou
mais lá! Dize-me, pois, todos os detalhes da tua vida atual. Será mais fácil então
acompanhar-te ao menos pelo pensamento.
Mas, meu querido, devo terminar. Posso dizer-te apenas que captei inteiramente o
significado da bela palavra brasileira “saudades” e que às vezes as tenho tantas que não sei
onde mantê-las.
Karli, gostaria de tomar tuas mãos e contemplar teu querido rosto. Tua filhinha e a Olga te
abraçam afetuosamente.
1. A . N. L. - Aliança Nacional Libertadora. Nos primeiros meses após a derrota dos
levantes antifascistas de novembro de 1935,os presos detidos na Casa de Correção tinham
uma rádio que desenvolvia programas políticos e culturais.
Berlim, 23/08/1937.
Meu bom e querido Carlos.
Ontem recebi uma boa carta da Mamãe e tuas lindas linhas de 16 de julho. Ainda
estou tão fortemente ligada à pequenina Anita Leocadia pela amamentação, que ela é um
reflexo absoluto do meu estado de espírito. E se te digo que ela está muito alegre desde
ontem, que grita de alegria e repete o tempo todo “papa”, compreenderás o quanto tuas
palavras me fizeram feliz. O que dizes a respeito do nome de nossa pequena é muito
amável e, contudo, devo acrescentar algo: o desejo de que eu não esteja de certo
completamente só, quando afirmo que tua filha se parece, antes de tudo, contigo...
Meu querido, soa quase como uma censura a constatação que fazes de que as linhas
de minha carta de julho do ano passado eram tão “secas”. Tanto quanto me lembro, eu te
havia escrito alguns dias antes uma carta que talvez não tenha recebido. E o suéter não te
transmitiu quantos pensamentos bons e pensamentos queridos eu tricotei nele? O fiz numa
época, quando ainda levava a nossa pequenina sob o meu coração, exatamente quando ela
começou a fazer seus primeiros movimentos. Em setembro, recebi algumas linhas de ti, que
me levaram ao hospital alemão, para onde fui transferida a conselho do médico da prisão,
que temia um aborto. Sem desconfiar de nada, ainda te respondi no dia, quando
simplesmente me puseram numa maca em que me conduziram para um navio alemão. Mas
talvez não seja o momento, agora, de reavivar tais lembranças.
Falemos antes da nossa pequenina. Estou inteiramente de acordo contigo a respeito
de tudo o que dizes sobre a sua educação e gostaria de rogar-te que me mandasses uma
quantidade maior de tuas idéias nesse domínio. Devido à falta de conhecimentos sobre
essas questões, procede de maneira inteiramente instintiva e quisera que a imensa perda
para a nossa pequenina, de não poder estar junto do seu pai fosse contrabalançada pelos
teus conselhos. O que me preocupa muito, por exemplo, é que existem coisas que ela não
deve fazer. Então, ela me olha completamente admirada, se lhe tiro alguma coisa ou que
não dou; ela não quer ainda entender esse “não”. Afinal, já consegue sentar-se. Está sentada
em sua cama, se alegra de ver mais do que antes e brinca. Com muito esforço, faz uma
tromba com a sua boquinha. Deve ser uma alegria especial para ela jogar os brinquedos
para fora da cama; depois há um ruído e eles estão no chão. Quando fica convencida de que
não mais estão na cama, suas duas estrelinhas azuis me imploram de tal maneira, que
sempre me levanto de novo para lavar as coisas e dar-lhe de novo. Se se aborrece muito na
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cama, a ponho sobre uma coberta no chão. Mas começa agora a engatinhar e, o outro dia,
para meu grande assombro, a encontrei num outro canto da cela, intensamente absorvida a
mastigar meu chinelo...
Devo escrever-te também como ela dorme. Está muito esperta e, durante o dia, para
adormecer, ela cobre o rosto com a coberta para que fique escuro. Mas como, até o sono
chegar, as pernas devem correr, ela só cobre a parte superior do corpo, sendo que em baixo
ficam as pernas que se gelam. Mas é naturalmente tarefa da mãe e sua arte embalar o filho,
sem por isso despertá-lo. Com muita freqüência, dorme também com os olhos entreabertos
- quase como uma lebre. E quando acorda, esfrega os olhos com os dois punhos e resmunga
em voz baixa. Depois ela joga longe a coberta com grande entusiasmo, as pernas vão para o
ar e “Pom-pom” está acordada. Além do mais, ela pesa atualmente 18 libras, ou seja, 9
quilos e mede 72 centímetros. Espero que as minhas descrições da pequenina te causem
alegria, e devem, antes de tudo, ajudar a criar para ela um lugar em teu coração e isso por
trás da “quarta porta”, não é verdade?
Perguntas a respeito de que livros posso ler. Creio que posso receber de tudo
também em português, à exceção dos livros que estão proibidos na Alemanha.
Naturalmente as publicações do Instituto Íbero-Americano muito me interessam. Talvez a
Mamãe possa encomendá-los para mim. Mas tenho o mais vivo interesse pelos
acontecimentos políticos do Brasil. Naturalmente leio aqui um jornal, e te rirás de mim,
porque folheio de início todas as páginas para ver se há alguma coisa sobre o Brasil.
Lamentavelmente as semanas se passam seguidamente sem a menor notícia. Eis a razão por
que deves tentar me mandar algumas informações ou recortes interessantes dos teus jornais.
Tu me pedes notícias da minha saúde. No fundo, eu deveria encerrar esta questão
com a mesma observação que fazes sobre os “enfants gatés”. Mas não te preocupes! A
coisa mais desagradável foram os vômitos contínuos durante a gravidez. Agora mesmo
começo a ficar forte, o que provavelmente se explica mais pela falta de movimento do que
pelo excessivo bem-estar. O fato de eu continuar capaz, graças à ajuda da Mamãe, é
verdade, de alimentar eu mesma a pequenina, mostra de maneira suficiente, creio eu, que
meu organismo continua resistente.
Não recebi a carta da tua avó. Mas, quando penso que a Anita Leocadia tem uma
bisavó, isso é quase tão maravilhoso quanto num conto de fadas...
Mas, meu querido, devo terminar, ainda que houvesse tanta coisa para dizer...
Imagina, para encerrar, que tens a pequena Anita Leocadia em teus braços e que ela
pões seus bracinhos em torno do teu pescoço e aproxima sua facezinha da tua face e que diz
baixinho e com ternura “ba-ba”...
Karli, abraço-te muitas, muitas vezes e de todo coração. Tua Pequena.
Berlim, 07/09/1937.
Meu querido Carlos.
Se bem que já tenham novamente passado mais de 15 dias desde que recebi tua
última carta, não quero deixar-te sem notícias da pequenina e minhas.
Estes últimos tempos, o desenvolvimento da Anita avança cada vez mais
rapidamente; quase que diariamente ela “sabe' alguma coisa nova. É interessante como a
curiosidade e as brincadeiras são os motores de um desenvolvimento físico sempre novo.
Ao pé da minha cama, encontra-se uma mesinha. Quando ela está sentada, não consegue
ver tudo o que se passa. No início, ela fazia força para subir pela grade da sua cama, mas
agora já consegue ficar em pé e suas mãozinhas pegam tudo que se encontra na mesa. Um
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dia destes, quando eu ainda não havia absolutamente entendido a nova situação, procurava
desesperadamente o meu pedaço de pão, que acabavam de me dar. Finalmente, descobri
que estava com a pequenina, que mastigava com fervor seu novo “brinquedo”.
Com um jeito elegante, ela também se vira agora de costas e, depois, se vira em
torno de si mesma. Se está sentada e a gente lhe diz: “Vem”. estende seus dois bracinhos
para você. Sua linguagem também está se tornando cada vez mais rica. O outro dia, disse a
seguinte frase: “Nai baba gui-legut”. Eu traduzi que ela disse: “Papai, eu vou bem.” Se
esbarra numa situação nas suas subidas, diz com voz lastimosa: “Ma-man, ma-man”. À
noite, após uma hora de brincadeiras, antes de se deitar, eu a lavo. Como não posso ter água
quente até essa hora, pego água fria. Mas isto parece ser bastante desagradável para a
pequenina. Quando já está sem roupa e apenas percebe que aperto sua mão para lavá-la, ela
imediatamente aperta seus olhos e começa a soprar. Remexe-se e contorce-se e, depois,
contudo, pões-se a rir. Quando está vestida, a ponho sobre meus joelhos, escovo os cabelos
e, após, cada pezinho, cada joelho, as duas mãos e os dois joelhos recebem um beijo teu e
outro meu. Finalmente, aperto todo o “pacote” com muita força contra o meu coração e,
então, a meto rapidamente na cama.
É desnecessário dizer-te o que esta criança significa para mim. A cada instante
interrompo minha atividade na cela, olho para esse pequenino ser e me alegro. Sabes, se a
gente toma a sua cabeça entre as mãos, tem-se mais ou menos o mesmo sentimento de que
se estivesse segurando um passarinho. Quisera-se ter braços de ferro para poder afastar
desse pequeno ente querido todo o mal do mundo. E, ao mesmo tempo, a gente é tão
indefesa.
Há já algum tempo que se levanta a questão de que a pequenina, a longo prazo, não
poderá ficar comigo. Para mim é ainda inteiramente inimaginável como vou suportar esta
separação. A Mamãe se ofereceu para tomar conta da pequenina. É, mais uma vez, um
consolo, mas também um pesado sacrifício para ela cuidar de uma criança tão pequena.
Portanto, poderás crer em mim, se te digo que tremo todos os dias que tenho a pequenina
comigo.
Atualmente, aqui estamos de novo no outono. Já é o segunda na Alemanha, na
prisão. Sabes, às vezes, sou tomada por um medo terrível de que seja possível que jamais
nos voltemos a ver. Trata-se de um estado de espírito provocado pelo ambiente e, em parte,
também, pela situação, pois nestes dias algumas circunstância fizeram que eu pensasse em
ti mais do que de uma maneira geral. O pensamento de como eu te amo e como quero ser
sempre fiel me servirá como um forte apoio para o futuro.
Meu querido, não ficas zangado comigo, se te falo também de meus tristes
pensamentos, não é verdade? Pois no passado também passamos por tantas coisas em
comum, e, assim, isso nos foi mais fácil.
Mas, dize-me, como suportas “a mudanças de ares” na Casa de Correção. Estive aí várias
vezes no dentista e conhecia também as pessoas que atualmente te cercam. De resto, o
dentista é um gaúcho amável, que me prometeu que, com o dente por ele obturado, eu ainda
comeria muitos churrascos. Ele tinha razão de que o dente aguentaria, mas
lamentavelmente falta-me essa comida tão apreciada pelos gaúchos. Mas estou te relatando
isto para incentivar tua coragem para ir no dentista, pois seguramente deves estar
precisando de seus serviços.
Que tens lido? Como passas o dia? Mas, meu querido, vou terminar e espero em breve
receber notícias de ti. Abraço-te carinhosamente, assim como a Anita Leocadia.
Tua Olga.
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P.S. - Tenho ainda um cachinho do cabelo da pequena, que cortei para que tu vejas o
quanto seus novos cabelos estão mais claros. Esses cabelinhos cresceram por trás de sua
orelha esquerda. Não há outra coisa que se possa cortar para enviar-te.
Berlim, 24/09/1937.
Meu querido Carli!
Há alguns dias recebi tua carta de 18 de agosto e estou muito triste porque tua carta
de 31 de julho não me chegou às mãos. Quem sabe se ainda a receberei. Um pedaço de
papel pode trazer tanta felicidade! Tuas queridas palavras me aquecem o coração. Espero
que entrementes tenhas recebido as minhas carta de 28 de julho, 9 de agosto, 22 de agosto e
7 de setembro, contendo grande quantidade de notícias da nossa filhinha.
Felizmente a Anita ainda pode permanecer comigo. Ainda recentemente, o médico da
prisão desaconselhou a separação, tendo em vista que ainda estou em condições de
amamentá-la. Jamais pensei possuir tal faculdade de “vaca leiteira”. Podemos nos felicitar
com isso, pois até agora a pequenina não teve nenhum resfriado. Alegra-me saber que
segues a curva do peso da pequenina. Atualmente ela pesa 9.600 gramas. No que diz
respeito ao aumento de cada semana, imagina que, durante um trimestre, o bebê aumentou
200 gramas por semana e, em três trimestre, 100 a 150 gramas e agora ela aumentará
menos. As crianças devem pesar dez quilos com um ano. Como vês, ela terá mesmo mais
do que isso. Podes, portanto, estar tranqüilo a esse respeito.
Eu estava menos tranqüila quanto aos seus ossos, pois ela pôde sentar-se bastante
tarde. Mas agora o seu desenvolvimento transcorre muito depressas. Ela fica em pé sozinha
em sua caminha e corre (evidentemente de quatro). Quer sempre estar de pé e, assim que
tento fazê-la deitar, se levanta. Não se pode mais tirar os olhos dela um minuto. Engatinha
pelo chão por todos os lados e ontem tentou seus primeiros passos segurando-me pela mão.
Eu chorei de alegria. A fim de sustentar seus pés, comprei-lhe um par de sapatos de couro,
seus primeiros sapatos de verdade.
No que diz respeito à sua linguagem, o “gugel-gugel” desempenha agora um grande
papel. Então ela faz uma boquinha pontiaguda e sopra como se quisesse assobiar. Quando
quer ser carinhosa, diz os “ai-daí-daí” e põe seus braços em volta do meu pescoço. Não está
certo que ela te chame de “Ba-ba”, mas não sabemos dizer “p”. Sobretudo, isto demanda
tempo. A Lyginha quisera, por exemplo, que ela dissesse “Titia”; ela deve também
conhecer o teu retrato. Mas é ainda muito cedo; e, além disso, te direi que sou contra tais
métodos de amestramento, com os quais, por exemplo, faz-se sofrer o cachorro “Stroblin” lembras-te?
Quanto à cor de seus cabelos, eu mesma não sei direito qual virá a ser. Recebeste a última
mecha, mas, quando todos os cabelos estão juntos, mais parecem castanhos, mas mais
claros que os meus! De resto, tem no meio da cabeça um grande cacho e sobre as orelhas
também cachinhos. Como durante muito tempo não conseguia manter-se sentada, os
cabelos da nuca não cresceram e ela tem uma nuca rala; as vezes a chamo também de
“Affenpapo”. Mas agora os cabelos começam também a nascer aí.
Tu perguntas como vivemos. O melhor é que eu te descreva um dia na prisão. De
manhã, às 5 ou 6 horas, a Anita se acorda e começa a brincar. Até as 6 horas não me ocupo
dela, pois não quereria mais ficar em sua cama. Às 6 horas, dou-lhe de mamar. Depois
disso tenho muito que fazer, pois às 7 horas devo estar pronta e ter lavado o chão de minha
cela. Às sete e meia tomo o café e, nesse momento, a Anita dorme durante uma meia-hora
ou uma hora. Aproveito esse repouso para ler os jornais, a menos que tenha roupa para
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lavar ou outra coisa para fazer. Às 9 e meia a pequenina já tomou banho e come uma
segunda vez. Às dez e meia vamos ao pátio. Se faz bom tempo, a Anita fica lá fora até as
11 e meia e dorme, enquanto eu devo voltar para a minha cela ao cabo de 45 minutos.
Então almoço e, até a hora de receber de volta a pequenina, leio ou faço um trabalho
manual. Às 2 horas, a Anita almoça e brinca. Às vezes, ela ainda dorme uma meia hora.
Às 5 e meia, recebo minha refeição da tarde e, entrementes, dou ainda de mamar à
pequenina. Fico me distraindo com ela até as 7 horas e a ponho na cama para dormir. Como
já é noite a essa hora e não disponho de iluminação, não me resta outra coisa a fazer do que
“fazer bons sonhos” e adormecer. Às 10 horas dou ainda de mamar à pequenina (sempre no
escuro) e as duas adormecemos até o dia seguinte pela manhã. Posso assegurar-te que a
pequenina me ocupa de tal maneira que, tirando os jornais, não consigo ler mais nada.
Além disso, enviaram-me uma lã tão bonita, que emprego muito tempo tricotando. É uma
ocupação muito repousante: fica-se sentada, tricota-se e pensa-se em todo tipo de coisas ou
em nada, e faço lindas coisas para a pequenina. Já lhe fiz um <M>pullover e um longo
vestido combinando com ele.
Tu me perguntas se já pensei no que seria a nossa vida a três. Imaginas bem, meu
querido, que esse é o tema principal de meus “lindos sonhos” noturnos. Nós teríamos sido
muito felizes, mas isso não devia ser. Tu pensas que a Mamãe me teria cuidado e que, em
retribuição, eu também me teria ocupado dela, pois ela teria realmente merecido um pouco
de repouso e de felicidade.
É uma grande tranqüilidade para mim saber que a tua situação relativamente
melhorou, Para mim será o contrário, se me tirarem a pequenina, pois algumas
considerações, de que me beneficio, na medida em que amamento minha filha, não terão
mais razão de ser.
Mas não te preocupes com a minha saúde; tirando uns pequenos achaques, não vou
mal. No que se refere às tuas leituras sobre Napoleão, recordo-me das cartas à sua mulher,
que lemos juntos. Quando li as cartas de Goethe à Mme. von Stein, pensei muito naquele
tempo. Quanta gentileza de tua parte enviar-me a tradução de “Heidröschens”! Está bem
feita e, ainda que a língua portuguesa seja mais sonora de que a nossa, esses poemas de
Goethe, que são também canções, ao menos para mim, soam melhor em alemão. Mas foi
uma boa idéia para enriquecer meu vocabulário em português e, após tanto tempo, foi a
primeira vez que vi tua letra. De resto ficaria admirado com os meus progressos em
português que fiz na prisão no Brasil. No final, eu falava quase correntemente. Para teus
estudos de alemão, estou te mandando uma canção infantil que, segundo penso, é tão antiga
quanto a época a partir da qual as mães cantam para seus filhos, e que a pequenina também
houve com prazer. Tu me dirás se a compreendeste!
A Lygia escreve que tomas mate. Na “Casa de Detenção”, eu também era uma
grande tomadora de mate. O Agildo Barata fez o possível para isso e me mandou os
utensílios necessários. Lamentavelmente, Carmen Cuioldi ficou com tudo isso, quando fui
transferida para o hospital. Quisera saber de ti se tens te barbeado ou estás usando barba.
Quanto aos meus cabelos, estão tão compridos, que os uso amarrados. Mas devo terminar.
Abracei a Anita por ti, mas penso que gostaríamos muito mais de receber os beijos
pessoalmente, pois o papel é bem seco.
A pequenina te diz “ai-daí-daí” no ouvido e eu te abraço de todo o coração.
Tua Olga.
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Olga Benário