Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 FÁBULAS, MORAL E SOCIEDADE: CAMINHOS ENTRELAÇADOS Patrícia Biondo Nicolli Soares Thayane Olívia do Detone do Nascimento (G– CLCA – UENP/CJ) Rosiney Ap. Lopes do vale (Orientadora – CLCA – UENP/CJ) Introdução Dentre os diversos modos de manifestação literária, a fábula é conhecida desde longo tempo por sua peculiaridade em abordar assuntos alusivos à moral e aos bons costumes. Por muitos séculos, a fábula respaldou o caráter moralizante e seus valores, através de diferentes perspectivas tais como homem, sociedade, histórica mundial e/ou literária, buscando compreender a relação e possíveis consequências entre eles. Através de um mundo mágico, surreal, é possível perceber a intenção didática camuflada que sugestiona, ao final, uma interpretação crítica pós-leitura. Tal reflexão aponta para um sentido filosófico consciente de mundo e de escolhas pessoais, além de permear uma progressividade pedagógica. Por essa estrutura, que procede conforme a honestidade e à justiça no âmbito social, é que a fábula tornou-se um gênero transcendental, presente até hoje na literatura infantil. Breve perspectiva histórica das fábula Historicamente, partindo de Esopo, um grego iniciante na arte de fabular, que supostamente teria vivido no século VI a.C., foi considerado propagador de histórias em prosa. Tais divulgações foram disseminadas em razão do apreço popular, o que garantiu a tradição oral do gênero, assim, “os antigos falam de Esopo como logopoiós, isto é, um criador ou contador de histórias em prosa, e sempre o consideraram o pai da fábula” (DEZOTTI, 2003, p.29). As narrações de Esopo pairaram por cerca de duzentos anos após sua morte, momento em que harmonizadas e compiladas foram, trezentas e cinquenta e oito fábulas sob o título: As completas fábulas de Esopo. Dentre a referida coletânea, encontram-se as mais diversas e conhecidas como: “A tartaruga e a lebre”, “O lobo e o cordeiro”, “A raposa e as uvas”, dentre 370 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 outras. Nessa época, observa-se a dissociação do gênero no tocante à arte infantil, de conteúdo rebuscado, porém, sucinto (CARVALHO, 1971, p.128). Um pouco mais adiante, Fredo, primeiro escritor a compor fábulas em latim, inspirando-se nas obras outrora encenadas por Esopo, modificou-as, bem como redigiu alguns poemas originais, a fim de criticar os contemporâneos, como “O homem e o burro” e “Os jumentos e os ladrões”. Não obstante a seu precursor, Fredo também não direciona suas atividades ao publico infantil. Aludiu claramente a fatos e pessoas de sua época, o que lhe valeu o exílio, na época de Tibério, quando Sejano principal auxiliar do imperador, se viu retratado em alguns dos poemetos, sobremaneira pitoresco. Ainda, mesmo construindo textos extremamente breves, primou pela vivacidade do diálogo através de versos sátiros ou sérios. Por conseguinte, La Fontaine segue o ritmo até então difundido, todavia, insere uma conotação apropriadamente infantil, já que um de seus leitores era o filho de Luís XIV. No prefácio do livro “Fábulas”, ele evidencia as suas principais características: Estas fábulas não são apenas morais, proporcionam ainda outros conhecimentos. Exprimem as propriedades dos animais e os seus diversos caracteres e, por conseguinte, também os nossos, uma vez que somos um apanhado do que há de bom e de mau nas criaturas irracionais. Quando Prometeu quis formar o homem, pegou na qualidade dominante de cada animal: destas peças tão diferentes, compôs a nossa espécie; fez a obra a que chamamos o vulgo. Assim, estas fábulas são um quadro em que cada um de nós se encontra descrito. (1997 p. 27). Diante disso, é possível mencionar que determinadas circunstâncias, são reestruturadas e adaptadas, a fim de propagar sabedoria através de um cenário natural. Cada manifestação de moralidade corresponde-se com um referido símbolo/animal pré-estabelecido a algum atributo, índole, virtude ou temperamento relevante concernente ao homem. Tais qualidades e justamente pela representação não convencional de seus conceitos são responsáveis por despertar interesse, principalmente nas crianças. Modernamente, Monteiro Lobato seguiu as diretrizes até então abordadas, todavia adaptou-as aos portes atuais, conferindo-lhes tenacidade humorística, o que garantiu aceitação entre todas as idades. Sem desvencilhar-se de seus antecessores, mantém a tradição, mas adequa um texto figurativo com analises e discussões entre as personagens. Sem dúvida, sua obra mais famosa, “O sítio do pica-pau amarelo”, inovou a maneira de contar histórias (CARVALHO, p.92). Com divulgações, que permeavam as vivencias realistas sobrepostas ao mundo da imaginação, conseguiu, Lobato, propor o desenvolvimento de reflexão ética em conteúdos 371 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 apropriados às crianças. Por transitar nesse mundo, abre-se a possibilidade de interação e manifesto de opinião do leitor, distante da censura adulta. Intenta produzir formadores de senso crítico e futuros “bons” cidadãos. Com Millôr Fernandes, mais um momento de evolução no contexto do gênero fábula é evidenciado. Aquilo que poderíamos intitular como atemporalidade, presente no corpo da fábula tradicional, ou seja, menções alusivas a ideologias sofrem uma ruptura. A prioridade agora é enfatizar temas relevantes presentes no dia-a-dia dos cidadãos, da linguagem contemporânea de mundo. Diante disso, surge também a necessidade de um leitor mais requintado, que tenha o bom tom de angariar a delicadeza do discurso apresentado, ou ainda, capazes de não perder o raciocínio em razão de uma linguagem rebuscada, de conotação nem sempre humorística, mas critica. Percebe-se então, que independente da época, da simbologia ou modo de transcrição, o ponto principal da história em si, aborda um conteúdo moral repleto de valoração do indivíduo e a possível formação de seu caráter. O que são fábulas As fábulas podem ser descritas como histórias concisas, como uma narrativa que compreende figuras de retóricas, constante de várias metáforas consecutivas. Na maioria das vezes exprimindo características animais, representam tipos humanos tais como o mentiroso, o egoísta, o espertalhão, enfim. Tais encenações são responsáveis por transmitirem preceitos morais de maneira muito versátil, uma vez que, permite diversas maneiras de abordar certos conteúdos. Nesse sentido, há que se falar ainda acerca de sua peculiaridade quanto à “correção” do comportamento humano. Exibidora do que poderíamos denominar de verdade camuflada, ela foi um meio encontrado para que se pudesse comunicá-la de forma mais amena, evitando uma possível rejeição imediata tão logo fosse sabida. Não obstante, a harmonia das formas e coloridos unidos ao mundo da fantasia, do imaginário transpondo a ontologia, conduz o leitor a uma nova realidade, uma realidade subjetiva, mas ainda assim realidade. Um espaço particular onde é possível assimilar a mensagem recebida no âmbito de certo e errado, e oportunamente discerni-los para demandar a melhor opção. 372 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 Diante disso, é notório que as fábulas apresentam dupla finalidade, primeiramente, diz respeito à diretriz moral, a formação digna, sensata do homem. Por conseguinte, à moldura artística, intenciona atingir o belo por meio da estética aplicada. A fábula esta inserida, sob a ótica do quesito moral, entre a anedota, que é uma simples narrativa e o provérbio que prega a ética abarcada por um estilo emblemático, místico, figurado. Estrutura da Fábula LINGUAGEM De certa maneira, a fábula procura equiparar-se à vida ainda que para isso sirva-se de metáfora, da linguagem figurada. Essa conotação é intencional, uma vez que fisgam o interesse do receptor pela imagem sensorial representada. Então, vale ressaltar que toda sua construção está voltada a uma meta previamente delimitada. Todavia, esse enredo, mesmo por sua subjetividade, não apresenta, características vazias, mas simplicidade. Geralmente, a obra é produzida em tom didático, prático, simplório, de fácil cognição para que seja possível subtrair a melhor imagem de comportamento e assim revertê-la em proveito próprio. É patente a forma do diálogo como linguagem predominante, pois o drama, os conflitos, as ironias da vida são exprimidos entre as divagações e buscas das personagens. No entanto, existe mais de uma forma de confabulação, que serve à base desse discurso, a saber: 1. O diálogo direto. De maneira simplificada, há conversa entre os personagens, diretamente. Não apresenta, por exemplo, uma intervenção de terceiros. Assim: — "Por que sujaste a água que eu bebia?" — "Como posso, ó lobo, fazer isto de que te queixas se a água corre de ti para os meus lábios?" (La Fontaine, O lobo e o cordeiro). 2. O diálogo indireto. Não há diálogo entre as personagens, a narração é intermediada pelo próprio fabulista: "O fraco deita-se a perder quando quer imitar o forte. Uma vez uma rã viu um boi no prado. Tocada de inveja de tamanha grandeza, inchou a rugosa pele: então perguntou a seus filhos se ela era maior que o boi. Eles disseram que não.” (Fedro, A rã e o boi). 373 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 3. O diálogo misto é a união das duas proposições anteriores: "Uma vez, querendo o sol tomar esposa, as rãs levantaram um clamor que chegou até aos astros. Júpiter, despertado pela gritaria, perguntou a causa da queixa. Então uma habitante do lago disse: — "Agora, um só seca todos os lagos e obriga-nos, desgraçadas, a morrer em lugar seco. Que será para o futuro, se tiver filhos?" (Fedro, As rãs se queixam a júpiter). 4. O diálogo interior, também conhecido como monólogo. Aqui não há diálogo e sim uma representação do pensamento e dos conflitos interiores atinentes à personagem. A crise existencial vivida é particular e fixa no seu mundo sendo, portanto, apresentado apenas o resultado de toda essa guerra peculiarmente particular. É aquilo que chamam de “conversa consigo mesmo”: "Uma raposa faminta, debaixo de uma vinha alta, tentava apanhar as uvas, saltando com todas as forças. Como não conseguisse apanhá-las, afastando-se diz: "Ainda não estão maduras; não quero saboreá-las verdes". (La Fontaine, A raposa e as uvas). Todas as quatro são evidentemente empregadas na dissertação, talvez uma predominância acerca do item três, mas nada que ofusque as demais. PERSONAGENS As personagens de uma fábula se complementam independente do tipo de diálogo escolhido a tecê-la. Não há que se falar, portanto, em uma única personagem, nem mesmo quando houver um monólogo. A segunda sempre existirá, mesmo que sua presença seja meramente figurativa, como no caso das uvas em relação à raposa. Haverá, pois, interação com outras formas, mesmo que o discurso seja apenas um. De conteúdo tipicamente breve e objetivo, correlacionado a um padrão de tempo, ação e espaço, não há espaço possível para abrigar um vasto contingente caricatural, assim é que se mantém um reduzido acervo de personagens no discorrer de uma fábula. Em efeito, há uma tendência quase nula no que diz respeito à movimentação, ou seja, assemelham-se a um conteúdo fotográfico, não há evolução, como a de um romance por exemplo. As personagens aparecem e desaparecem exatamente do mesmo modo, suas eventuais modificações, somente seriam possíveis com auxílio do imaginário. 374 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 Quanto ao tipo de personagem, não há diferença entre animais ou elementos da natureza, seres animados ou inanimados, tanto faz, todos podem atuar nesse espetáculo. É evidente que, ao contrariar a linha tradicional, colocando tais representantes desprovidos de fala comunicando-se, desperta muito mais a atenção do leitor. Assim, busca garantir a leitura de todo o conteúdo apresentado. Além do que, a opção por animais, por exemplo, faz com que, seja possível associar determinadas características de significado e significante sem que haja para tal, explicação prévia. Dessa forma, quando elencado um lobo como personagem principal, antecipadamente, já é feito uma associação ao caráter prepotente, temperamento antissocial, enfim, correlacionadas às características humanísticas. Importante salientar que não há respaldo científico que garanta tais identificações, trata-se de convenções populares, dessa maneira, à raposa pode ser conferida, astúcia, esperteza, inteligência; ao leão, força, majestade, prepotência; ao burro; estupidez, ingenuidade; a águia, força, argúcia, inteligência; ao gato, agilidade; ao cão, fidelidade; a lebre; rapidez e assim por diante. Contudo, essas relações não são absolutas, podendo variar de uma fábula para outra conforme o contexto que está inserida. Mas a finalidade é sempre a mesma, fazer com que o místico reproduza situações possivelmente dúbias presente no dia-a-dia, proporcionando ao interpelado visualizar as opções oferecidas e dentre elas, escolher a melhor. Considerações Finais Como pode-se observar, a fábula é tão antiga quanto os primórdios da civilização. Esopo, ícone responsável por sua primeira manifestação, promulgou seu discurso por meio da oratória popular, passeando entre real e abstrato o que cativou aqueles que as ouviam. Logo mais, Fredo potencializou tal persuasão oral conferindo-lhes um gênero literário mais independente, caindo ainda mais nas graças dos ouvintes e agora, também leitores. Atualmente, alguns autores com Monteiro Lobato e Millôr Fernandes adaptaram-nas aos temas relevantes e vigentes da sociedade em questão, entretanto, o fio condutor nunca foi de fato modificado. Reporta-se ainda às questões moralizantes, a parte metamórfica é com relação ao título que varia conforme o clamor social requer. Ao transpor gerações, é notório que o recurso estético da linguagem usada, bem como a composição das personagens, fundamentam a construção do conhecimento, instigando a criatividade, por exemplo, e valores humanos o que respalda o discernimento da moral e dos 375 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 bons costumes. Nesse sentido, intenciona, de uma maneira sutil, despertar um cidadão crítico e consciente das virtudes humanas. E, finalmente, é válido ressaltar, que a ausência de interação entre as pessoas, torna a aquisição do conhecimento inconcebível. A socialização é o que entrelaça a teoria subjetiva apresentada nas fábulas dentre os vários contextos sócios culturais Referências CARDOSO, Zélia de A. A literatura latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CARVALHO, Barbara Vasco. Compêndio de Literatura Infantil. São Paulo: IBEPInstituto brasileiro de edições pedagógicas, 1971. DEZOTTI, Maria Celeste Consolin. A tradição da fábula. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. FEDRO. Fables ésopiques. Paris: Hachette, 1955. LA FONTAINE, J. Fábulas completas. São Paulo: Cultura, 1940. LEONI, G. D.; Assis, Neyde Ramos de. Os gêneros literários da cultura romana. São Paulo: Livraria Nobel, 1959. Para citar este artigo: SOARES, Patrícia Biondo Nicolli; NASCIMENTO, Thayane Olívia do Detone do. Fábulas, moral e sociedade: caminhos entrelaçados. . In: VIII SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA SÓLETRAS - Estudos Linguísticos e Literários. 2011. Anais... UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná – Centro de Letras, Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2011. ISSN – 18089216. p. 370 – 376. 376