“A construção da epifania nas narrativas de Clarice
Lispector”
“The ephipany’s construction in the narrative os Clarice
Lispector”
Fernanda Silva Ferreira
Centro de Comunicação e Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie
Rua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP
[email protected]
Resumo. Esse ensaio tem por objetivo analisar a epifania nos contos de
Clarice Lispector. Foram selecionados três contos: “A imitação da rosa”,
“Os laços de família” e “A legião estrangeira”. Num primeiro momento,
apresenta-se uma visão geral da história do conto, o posicionamento de
alguns críticos e teóricos e a história do conto na Literatura Brasileira, em
específico. Em seguida, destaca-se a posição de Clarice Lispector no contexto
brasileiro, bem como suas obras e principais características. E ao final, a
partir da análise do corpus, é abordada a questão da epifania.
Palavras-Chave: Clarice Lispector. Conto. Epifania.
Abstract. This essay has for objective to analyze the ephipany in the Clarice
Lispector’s short stories. It was selected three short stories: “A imitação da
rosa”, “Os laços de família” e “A legião estrangeira”. In the first moment, it
shows a general point of view on the short story’s history, some critics and
theorist positions, and the short story’s history on the Brazilian Literature, in
specific. Then, it shows Clarice Lispector’s position on the brazilian context,
such as her works and characteristics mains. On the final, is analysed the
ephipany question.
Keywords: Clarice Lispector. Short story. Ephipania.
1. Das estórias ao conto
A estória sempre reuniu pessoas que contam e que ouvem, elas variam de
assunto e no modo de contar, tomando como exemplo os sacerdotes e seus discípulos, a
transmissão de mitos de uma certa tribo, além de conversas e causos contados.
Inicialmente, o “contar estórias” era uma prática oral, somente no século XIV o
conto ganha registro escrito e começa a afirmar-se como categoria estética. “O contador
procura elaboração artística sem perder, contudo, o tom da narrativa oral. E conserva o
recurso das estórias de moldura: são todas unidas pelo fato de serem contadas de
alguém para alguém.” (GOTLIB, 1990, p. 7). Temos como exemplo, os contos eróticos
de Boccacio e o Canterbury Tales, de Chaucer. No século XVI, temos Héptameron, de
Marguerite de Navarre e no século XVII surgem as Novelas ejemplares, de Cervantes.
No fim do século XVII, surgem os registros de contos de Charles Perrault, conhecidos
como Contos da mãe Gansa. No século XVIII, temos La Fontaine, um dos melhores
contadores de fábulas; e é no século XIX que
o conto se desenvolve estimulando o apego à cultura medieval, pela pesquisa
do popular e do folclórico, pela acentuada expansão da imprensa, que
permite a publicação dos contos nas inúmeras revistas e jornais. Este é o
momento de criação do conto moderno quando, ao lado de um Grimm que
registra contos e inicia o seu estudo comparativo, um Edgar Allan Poe se
afirma enquanto contista e teórico do conto (GOTLIB, 1990, p. 7).
Concomitantemente a força do “contar estórias”, que se estende através dos
séculos, surge a tentativa de explicitar a história dessas estórias, problematizando a
questão do modo de narrar. Há os que admitem uma teoria específica do conto e os que
acham que a teoria do conto se filia a uma teoria geral da narrativa. Esse é um assunto
muito discutido por diversos autores, mas ainda há muito questionamento nessa área.
Os critérios para a definição do conto são muitos. Alguns conservam a condição
de tempo de leitura como critério; outros recorrem à condição de maior impacto; outros
ressaltam sua flagrância do presente, por ser o conto uma ficção livre, como uma
pincelada; muitos autores também criam um “manual” de como se fazer um conto.
Aqui, nos deteremos mais especificamente em Poe e Cortázar, dois grandes
teóricos. Edgar Allan Poe estabeleceu, na primeira metade do século XIX, bases que
ainda hoje são referências para contistas e para a crítica literária.
A teoria de Poe salienta a importância da extensão do conto e a reação que ele
provoca no leitor, ou seja, o efeito que a leitura lhe causa. Segundo Poe, a composição
literária causa uma “excitação” intensa, e como tal, ela é transitória; por isso a
importância da extensão do texto. Se o texto for longo ou breve demais esse efeito será
diluído.
Para Poe, o conto é produto de um trabalho consciente que se faz por etapas, em
função da conquista do efeito único. Toda e qualquer escolha do autor tem que estar
diretamente ligada ao efeito, o que não estiver relacionado a ele deve ser suprimido. O
autor tem que conseguir com o mínimo de meios o máximo de efeitos. E, na construção
do conto, o escritor deve, antes de tudo, pensar no desenlace da história.
O importante é que haja algo especial na representação da vida, isto é, que haja
um acidente que interesse e que seja ou pareça um “caso”, pela novidade, pelo instante,
pelo cunho trágico ou cômico. O conto deve “flagrar” um rápido instantâneo da
realidade, de crise ou conflito da personagem, captando-o na sua especificidade.
Segundo Cortázar, o conto tem uma limitação na sua extensão. É sempre um
texto curto, porque corresponde a um recorte na trajetória de uma personagem, de uma
situação dotada de grande carga significativa.
No texto “Alguns aspectos do conto”, Julio Cortázar compara o conto com o
romance, associando-os, respectivamente, à fotografia e ao cinema. No cinema há uma
sucessão de fatos, cuja estrutura acumulativa tem o tempo ao seu dispor. Já na
fotografia, bem como no conto, há a necessidade de escolher e limitar uma imagem ou
um acontecimento que seja significativo.
Cortázar segue dizendo que o que torna o “conto significativo” é o trabalho
literário desenvolvido pelo autor, através da tensão e da intensidade. O conto deve ter
intensidade, ou seja, não ter idéias ou ocasiões intermediárias, tudo tem que estar
totalmente relacionado ao tema, que é o núcleo do texto; e a tensão, que é o modo como
o autor vai, pouco a pouco, apresentando os fatos ao leitor, deve “seqüestrá-lo”
lentamente. Tudo está previsto milimétricamente para tecer uma rede de associações e
as escolhas são muito cuidadosas, para concretizar uma complexidade.
Para Cortázar, o tema do qual sairá um bom conto é sempre excepcional, e é isso
que torna alguns contos inesquecíveis. Assim, para que o conto envolva o leitor é
preciso que ele tenha algo mais, a “alquimia secreta” de que fala Cortazar:
O excepcional reside numa qualidade parecida à do imã; [...] um bom tema
atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no
leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até
idéias que lhe flutuavam virtualmente na memória e na sensibilidade; um
bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema
planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista,
astrônomo de palavras, nos revela sua existência (CORTÁZAR, 1974,
p.154).
2. O conto no contexto brasileiro
A origem do conto brasileiro gera controvérsias. Barbosa Sobrinho e Herman
Lima, por exemplo, apontam diferentes autores e veículos de divulgação do conto da
primeira metade do século XIX.
O marco da origem do conto, para Barbosa Sobrinho, é a fundação do semanário
O Chronista, dirigido por Justiniano da Rocha, que tinha um espaço para a ficção onde
eram publicados contos, e novelas, na maior parte estrangeiras, de escritores da época.
Um ano depois de sua fundação surge o Jornal dos Debates e, um pouco depois, o
Diário do Rio e o Jornal do Comércio, que também reservavam uma seção à literatura,
agora com seus principais redatores nacionais.
Herman Lima, por outro lado, considera Joaquim Norberto de Souza e Silva o
precursor do conto brasileiro; mas aponta que a primeira manifestação literária do conto,
bem como tínhamos na Europa, deve-se a Álvares de Azevedo, com Noite na taverna.
Machado de Assis foi o escritor que se destacou como grande contista não só no
século XIX, como também na posteridade. Ele se utilizou de diversos procedimentos
narrativos. Não tinha um estilo único no modo de escrever, nem na temática dos contos.
Escreveu contos de acontecimento, paródias da narrativa popular, contos humorísticos,
de análise psicológica, de denúncia social, entre outros.
Desde o início do Modernismo, em especial dos anos 70, o número de contistas
no Brasil cresceu consideravelmente. Os tipos mais usados são o conto sóciodocumental, o conto simbólico-visionário, o conto fantástico e o conto de introspecção.
No conto sócio-documental, o tema principal são as aglomerações urbanas,
vistas como espaço da violência crescente no Brasil, que atinge tanto a classe dominada
quanto a classe dominante. Entre os autores dessa corrente estão Rubem Fonseca,
Dalton Trevisan e João Antonio. No conto simbólico-visionário, a história é símbolo da
condição humana ou de uma situação humana e seu significado vai além da palavra. O
maior representante desse tipo de conto é Guimarães Rosa, que deu uma dimensão
universal e visionária ao nosso regionalismo. Seus contos exigem que o leitor perceba
uma segunda história presente nas entrelinhas da trama narrativa, a qual tece o caráter
simbólico do texto.
Por outro lado, os dos contos fantásticos tendem para o caráter alegórico,
contrapõe dois sentidos; um literal (sentido próprio) e um alegórico (sentido figurado).
Alguns autores que escrevem contos nessa vertente são José J. Veiga, Murilo Rubião e
Lygia Fagundes Telles.
Já o conto de introspecção tem como característica focalizar o reflexo dos
acontecimentos no interior das personagens e a busca da significação de suas
experiências. A grande representante desse tipo de conto é Clarice Lispector; em seus
contos são as próprias personagens que expõe seus conflitos, dúvidas, medos e
situações-limite.
3. Clarice Lispector
Clarice escreveu diversos livros, desde romances até contos, passando ainda
pelas crônicas e livros infantis. Além da repercussão nacional, as obras de Clarice
Lispector tiveram uma grande projeção internacional e foram publicadas em diversos
países do mundo: Alemanha, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos da América, França,
Israel, Holanda, Inglaterra, Itália, Noruega, Polônia, Rússia, Suécia, República Tcheca e
Turquia.
Muitos críticos fizeram leituras da obra de Clarice Lispector – considerando
leitura como sinônimo de crítica, abordagem e interpretação – alguns dos mais
importantes foram: Antonio Candido, Álvaro de Lins, Roberto Schwars, Costa Lima e
Benedito Nunes.
Antonio Candido aproxima Clarice Lispector de Mário e Oswald de Andrade,
pelo seu “compromisso com a linguagem e não com a realidade empírica” (Sant’Anna,
1973, p.182). Segundo Antonio Candido, os romances de Clarice são de aproximação:
O seu ritmo é um ritmo de procura, de penetração que permite uma tensão
psicológica poucas vezes alcançada em nossa literatura contemporânea. Os
vocábulos são obrigados a perder o seu sentido corrente, para se amoldarem
às necessidades de uma expressão sutil e tensa, de tal modo que a íngua
adquire o mesmo caráter dramático que o entrecho (CANDIDO, 1977, p.
129).
Álvaro de Lins, ao tentar explicar a estranheza do texto de Clarice, coloca-a ao
lado de James Joyce e Virgínia Woolf. Ressalta as virtualidades estilísticas da autora,
sua “exuberância verbal”, o uso singular de adjetivos, a combinação de vocábulos
muitas vezes audaciosa, o jogo com as palavras; mas mesmo assim ainda considera que
o romance Perto de um coração selvagem “parece inacabado e mutilado”. Álvaro de
Lins diz que falta ao romance de Clarice um “ambiente mais definido e estruturado”,
além de personagens com existência real. (SANT’ANNA, 1973, p. 183).
Roberto Schwars, por sua vez, valoriza na escritora a presença do
‘momento’ em detrimento do ‘histórico’, mostrando que aí o tempo inexiste
como possibilidade de evolução. [...] Percebe claramente nos textos de
Clarice aquilo que hoje se poderia chamar de narrativa de estrutura
complexa. (SANT’ANNA, 1973, p. 183).
Costa Lima identifica Clarice como autora de “romances introspectivos”. Em
relação a cada obra, ele aborda os critérios de verossimilhança que Clarice usa para
estruturar a narração e os personagens; discute a pertinência ou não de sua composição;
e, muitas vezes, discute juízos teóricos ou a visão ideológica da autora.
Já Benedito Nunes assinala,
[...] o desenvolvimento de certos temas importantes da ficção de Clarice
Lispector [que] insere-se no contexto da filosofia da existência, formado por
aquelas doutrinas que, muito embora diferindo nas suas conclusões, partem
da mesma intuição kierkegaardiana do caráter pré-reflexivo, individual e
dramático da ‘existência humana’, tratando de problemas como ‘a angústia, o
nada, o fracasso, a linguagem, a comunicação, das consciências, alguns dos
quais a filosofia tradicional ignorou ou deixou em segundo plano
(SANT’ANNA, 1973, p. 184).
Clarice Lispector utilizou muito o monólogo interior em seus romances. No
monólogo interior, a narração se transfere à personagem, que fala para si mesmo; esse
procedimento sintoniza a palavra com o pensamento fluente da personagem,
reflexivamente encadeado, seja ele lógico e intelectual ou ilógico e afetivo. Além do
monólogo interior, o discurso indireto livre é muito marcante em seu estilo.
O que ocupa lugar de destaque na cosmovisão de Clarice são as preocupações
com a linguagem, a natureza específica da ficção e da vida. Outro aspecto importante
são os tempos verbais, que mostram a existência de uma temporalidade na escritura,
uma perspectiva do narrador, além da vivência do escritor. Em seus romances, Clarice
Lispector utiliza muito os recursos de tempos verbais e de focos narrativos.
Nos romances de aproximação, a escritora cria uma tensão psicológica que
reflete uma espécie de tensão lingüística. A imprevisibilidade irrompe entre clichês
sociais e lingüísticos. Nos contos, destaca-se o mundo da opacidade, cujas personagens
não querem escapar da sua rotina, mecanicizada e aparentemente confortável.
Suas personagens refletem as angústias do homem do século XX; frustrações e
anseios, decorrentes da mecanicização da vida e do trabalho. Há, na obra de Clarice, a
presença recorrente do drama existencial. A romancista inaugura a ficção metafísica na
moderna Literatura Brasileira, contribuindo de imediato de forma significativa e
inovadora.
Os críticos e historiadores são unânimes em marcar a singularidade do estilo de
Clarice; sua performance é tão “diferente” como suas personagens. Por isso,
estilisticamente, sua obra pode ser concebida como um “estranhamento” no quadro da
nossa ficção. Clarice tem uma “naturalidade” em sua escrita. Sua obra não é uma
metáfora existencialista, no máximo uma metáfora existencial. Olhar sua obra com um
enfoque social ou filosófico é dar valor aos modelos conscientes em detrimento dos
modelos inconscientes de composição vigentes em sua obra – como a epifania.A
questão da epifania nas obras de Clarice Lispector é um tema recorrente na crítica
brasileira. Álvaro Lins, Roberto Schawarz, Benedito Nunes, Luis Costa Lima, Massaud
Moisés, Costa Lima, João Gaspar Simões e Affonso Romano de Sant’Anna foram
alguns dos principais críticos a falar sobre a epifania em Clarice.
Denominando-a como um ‘instante existencial’, ‘momento privilegiado’,
‘descortino silencioso’ ou simplesmente epifania, eles a traduzem ou a conceituam de
forma diversa: uns como uma revelação interior de duração fugaz; outros como um
momento excepcional, revelador e determinante; ou ainda como um fenômeno, onde no
ponto maior da dualidade entre o ‘eu’ e o ‘outro’, que se dissimula sob diversos
disfarces, ocorre a epifania, como momento necessário e insustentável de tensão na
narrativa.
Não se pode dizer que os desfechos de seus contos apontam para a resolução dos
conflitos; os conflitos são interiores, revelados e enunciados na narrativa. E o retorno ao
equilíbrio da situação inicial, antes de se deflagrar a revelação ou a epifania, é
praticamente impossível.
Em seus contos, Clarice respeita as características fundamentais do gênero;
concentrados em um único episódio, focalizam um momento carregado de significação,
um momento denso na vida do personagem. Suas três principais coletâneas de contos
são Laços de família, A legião estrangeira e Felicidade clandestina. O núcleo da
narrativa dos contos é o momento de ‘tensão conflitiva’; em alguns contos essa tensão
se dá subitamente e estabelece uma ruptura da personagem com o mundo; em outros, a
crise se mantém do início ao fim do conto. Essa crise pode advir de causas diversas:
devaneio, mal-entendido, incompatibilidade entre pessoas, embate de sentimentos. Pode
ser decorrente de sentimentos de culpa, cólera, ódio ou loucura que se manifestam
diante de uma situação inesperada.
Numa leitura sintagmática dos contos de Clarice, Affonso Sant’Anna, na sua
obra Análise Estrutural de Romances Brasileiros, assinalas que o narrador é sempre em
1a e 3a pessoas do singular, o que nos levar a perceber que “o foco narrativo não traz
inovações ou rupturas violentas em relação aos métodos tradicionais de narrar”. Além
disso, destaca o “uso do discurso indireto livre e de ligeiros diálogos dentro de um clima
de naturalidade” (SANT’ANNA, 1973, p.191).
E a seguir, o crítico acrescenta que não há cortes espaço-temporais violentos.
“Os contos transcorrem por lugares conhecidos, privilegiando os mais diversos bairros
cariocas numa marcação cronológica de dias e noites [...], idas e vindas das
personagens”. (SANT’ANNA, 1973, p.191) .
Em sua leitura paradigmática, Sant’Anna apresenta-nos um levantamento,
destacando os motivos mais recorrentes nos contos de Clarice, sendo os mais
importantes a linguagem e a epifania. Os dez motivos arrolados são referentes às obras
Legião Estrangeira e Laços de Família e são os seguintes: espelho, olhos, bichos,
linguagem, família, objeto, jogo/rito, pai, o eu x outro e epifania.
Para uma melhor compreensão dos motivos arrolados por Affonso Sant’Anna,
procederemos a uma síntese dos aspectos que nos pareceram mais relevantes:
O espelho não tem uma relação direta como o mito de Narciso e “é um objeto
que ganha mais sentido quando correlacionado com outros tópicos através de um
sistema de contigüidade: os olhos, os animais, o eu x outro”. Por sua vez, os olhos,
motivo presente de forma significativa nos contos das duas coletâneas, “abre-se por um
campo semântico definido”[...] “por termos como: a cegueira, óculos, estrabismo,
miopia” (SANT’ANNA, 1973, p.197).
No tópico referente aos bichos, o crítico afirma que “identidade entre o homem e
o animal, como variante da dialética do Eu x Outro aparece implícita e explicitamente
em praticamente todos os trabalhos de Clarice”, inclusive naqueles em que não há uma
referência direta aos animais (SANT’ANNA, 1973, p.197).
Quanto à linguagem, o crítico assinala que, implicitamente, esta “vai se vincular
a problemática da epifania e surge como decorrência da ‘procura’ e do ‘encontro’ do Eu
e do o Mundo”. E a seguir acrescenta que “o envolvimento do personagem com a
linguagem expressa um ritual presente em seus romances”; e “alguns vocábulos servem
de eixo e têm um sentido específico no léxico de Clarice” (SANT’ANNA, 1973, p.198).
No tópico referente à família, é destacado o modo como a escritora aborda as
relações familiares, ou seja, “surpreende o trivial, o corriqueiro da situação familiar e
espreita atrás do cotidiano o advento de uma epifania qualquer”. (SANT’ANNA, 1973,
p.198).
Em seu estudo, Sant’Anna afirma que a dialética de sujeitos e objetos está
presente em todas as narrativas de Clarice e que “essa identidade é parte da ocorrência
epifânica quando o indivíduo se põe ao nível das coisas, animais e dos outros homens”.
Além disso, destaca os objetos recorrentes em diversos contos, tais como: o chapéu (em
Os laços de família), o saco de compras (em Amor) e os óculos (em diversos contos).
(SANT’ANNA, 1973, p.197, 198).
O jogo/rito, segundo o crítico, está relacionado a outros aspectos e “vai ter seu
sentido completado quando vinculado a epifania”. Além disso, nos mostra que são
tênues os limites entre o jogo e o rito, e a seguir acrescenta que:
Toda ação se manifesta como um ritual que comporta jogos curtos. No ritual
o resultado é sempre previsível, com poucas variações. O aleatório existe,
mas não disturba as regras básicas da composição. Aí estão: a tensão, a
sensação de liberdade, a evasão da vida real, a representação – e uma série de
outras características que Huizinga aponta na natureza e significado do jogo.
(SANT’ANNA, 1973, p.199)
No caso do oitavo motivo, “O PAI”, as principais referências são: o nome Pai,
propriamente dito, Deus, ‘o par mais velho’ ou a variante da imagem de pai, que surge
na figura do professor. (SANT’ANNA, 1973, p.200).
Em relação ao nono motivo, Eu x Outro, o conflito entre duas figuras ou dois
elementos é tema de 24 dos 26 contos estudados, segundo Sant’Anna, e muitas vezes,
o termo “eu” e “outro” vêm destacados em negrito ou entre aspas. (SANT’ANNA,
1973, p.200).
Ao abordar o último motivo, o da epifania, Sant’Anna destaca novamente que o
termo não aparece na obra de Clarice Lispector, mas a sua presença pode ser apreendida
quer pela atmosfera criada, quer pela escolha lexical: “crise”, “náusea”, “inferno”,
“mensagem”, “assassinato”, “cólera” e “crime” (SANT’ANNA, 1973, p.201). As
reações nauseantes aparecem repetidamente nos seus romances e contos e são o ponto
de ruptura do sujeito com o cotidiano, tendo sempre uma função reveladora. A náusea é
o modo extremo do descortínio contemplativo e silencioso que a fascinação das coisas
provoca nos personagens de Clarice.
Por outro lado, as personagens são modelos psicológicos e psicanalísticos, elas
se acham convertidas em elementos que interagem dentro de uma estrutura configurada
pela narração de Clarice. O estudo de Sant’Anna buscou observar além dos nomes, as
semelhanças dos elementos.
A primeira observação sobre as personagens é a predominância quase que
absoluta de tipos femininos. Segundo Sant’Anna, os “tipos” que mais se repetem nas
estórias de Laços de Família e de Legião estrangeira são: o professor, essa figura oscila
entre dois significados, ora é o individuo experimentado, hábil no jogo da vida e dos
sentimentos, guiando o outro, ora é refúgio da racionalidade, um representante do
raciocínio lógico; os meninos/adolescentes, sempre desafiadores, e em confronto com
adultos; os velhos significam sempre os excluídos da sociedade e manipulados pelos
jovens; os casais, que “construídos numa relação medial entre “eu” e o “outro”, se
espelham em si mesmo na busca de identidade e identificação”; a dupla de amigos, cujo
relacionamento repete o mesmo esquema do “eu” e do “outro” dos casais; e o homemanimal, um e outro se complementando, servindo como espelho e identificação
(SANT’ANNA, 1973, p.203, 204).
Resta-nos ainda assinalar, que no universo das personagens o ponto de maior
tensão entre o Eu e o Outro ocorre no momento epifânico. Depois da revelação, a
personagem fica definitivamente pertubarda ou “regressa ao repouso inicial. Mas
continuará para sempre ‘ferido nos olhos’” (SANT’ANNA, 1973, p.206).
A escritura clariceana e, por conseguinte, toda a sua obra são instintivas,
intuitivas e sensoriais; as ressonâncias dos fatos são mais importantes do que os fatos
em si.
Nos contos “Laços de família” e “A imitação da rosa”, retirados da coletânea
Laços de Família e “Legião estrangeira”, extraído da obra A Legião Estrangeira; há a
oposição e confronto entre o “eu” e o “outro”, que é mantida ao longo de todo o conto
como um eixo da narrativa.
Os contos de Laços de família giram em torno da “prisão doméstica” dos ritos
familiares e do convencionalismo social.
Clarice Lispector nos apresenta uma galeria de personagens femininas que vivem
o modelo da dona-de-casa tradicional. Um modelo que fixa a mulher em papéis
estabelecidos, que como uma força opressiva que a desencoraja de articular de modo
claro sua própria vida.
Os contos mostram o aprisionamento a que está fadada à condição humana e o
desejo de liberdade ilimitado que a persegue.
Segundo Fábio Lucas, “Clarice Lispector explora a fragilidade do ser diante do
compromisso inevitável com a vida.” (LUCAS, 1922-1982, p. 131).
Laços de Família também está impregnado de intenção crítica já que suas
personagens fazem parte da sociedade burguesa, e suas relações condicionam e limitam
sua liberdade, em troca de valores ilusórios. Para fazer sua crítica, Clarice utiliza-se do
valor mais estimado da classe burguesa, a estabilidade, e nos mostra que os laços que
ela estabelece constituem uma prisão, na qual os mecanismos do cotidiano condenam a
pessoa ao tédio e à rotina. A busca da felicidade no quadro familiar resulta normalmente
em fracasso.
De um modo geral, suas personagens são seres fracos, desajustados, frustrados,
que se escondem por trás de uma “casca” que os envolve de angústia. Têm um momento
de lucidez, ou seja, um momento epifânico, que lhes permite vislumbrar a rotina que as
cega e as esmaga, revelando-lhes ainda sua fragilidade e insegura.
A única solução, então, é refugiar-se na rotina, onde se escondem das próprias
fraquezas, ambições e frustrações. São seres que se movem conforme as imposições e
convenções familiares e sociais. Faltam-lhe vontade própria e autodeterminação; podese dizer que não têm completa consciência das coisas, nem liberdade de ação.
“A imitação da rosa” nos mostra mais especificamente o tema da disparidade
entre o cotidiano ordenado e a vida extraordinária de que correspondem, aqui, aos dois
estados de Laura, de sanidade e de insanidade.
Clarice Lispector nos leva a identificar as mazelas e a deterioração de nossas
estruturas e valores. Enfoca o desmoronamento de todo um complexo de instituições,
fórmulas e convenções sociais; a coisificação do homem.
Aponta, acima de tudo, a situação dramática da mulher dentro da estrutura social
vigente. Em determinados momentos, a mulher deseja se libertar da rotina que lhe é
imposta pela vida cotidiana. Mas as suas atitudes oscilam entre dois pólos: ou ela se
molda e se torna a mãe desvelada, a esposa perfeita conforme as expectativas familiares
ou, de forma mais abrangente, de acordo com as expectativas de uma determinada
sociedade; ou ela não se enquadra, e é rejeitada por ser diferente. Entretanto, se quebra
da rotina traz a sensação de liberdade, ela provoca também sentimentos de angústia e de
medo face a uma situação nova; se a rotina é mantida, o enfado tende a se agravar. É
assim que o homem vai enfraquecendo, destruindo os laços que o unem à própria vida.
A epifania se dá justamente quando essa “casca” do cotidiano, representado pela
rotina, o mecanicismo e o vazio, é quebrada. A casca do cotidiano de Laura, por
exemplo, é quebrada ante a perfeição das rosas sobre a mesa, quando ela transpõe sua
obsessão. Segundo Olga de Sá, “[...] a epifania é um modo de desvendar a vida
selvagem que existe sob a mansa aparência das coisas [...].” (SÁ, 1979, p. 106)
Porém, após esse “momento excepcional”, Laura volta à realidade anterior; a
personagem “vai vivendo” e não tem, nem quer ter a percepção do cotidiano vazio a sua
volta.
No conto “A imitação da rosa”, temos o instante de revelação como uma
autodescoberta e a recusa da personagem a esse chamado, com conseqüente retorno aos
hábitos do dia-a-dia, pois se ela não voltasse ao seu estágio inicial, anterior à epifania,
ela estaria desagregada da família.
Os seus contos cumprem, desse modo, “o destino mais alto da obra de arte:
ensina-nos a ver e a compreender o mundo e os seres que nos cercam.” (SÁ, 1979, p.
41)
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